A experiência da pessoa estomizada com câncer: uma análise segundo o Modelo de
Trajetória da Doença Crônica proposto por Morse e Johnson
PESQUISA
1 . INTRODUÇÃO
A identidade de uma pessoa geralmente é abalada quando submetida à vivência de
um intenso sofrimento, como aquele gerado pela presença do câncer e de um
estoma definitivo. O impacto do diagnóstico, a realização de uma cirurgia
mutiladora, a submissão a um tratamento quimioterápico e radioterápico
prolongado, as limitações impostas pela presença do estoma e da bolsa coletora,
a redução das atividades diárias e sociais e a incerteza quanto ao futuro, são
alguns aspectos que influenciam fortemente a vida da pessoa e,
consequentemente, sua identidade.
Assim, este artigo descreve a trajetória da doença percorrida pelas pessoas com
câncer, desde o aparecimento inicial e a suspeita dos sintomas, até um ano após
a internação hospitalar decorrente da realização da cirurgia, que originou a
confecção de um estoma permanente, e suas repercussões sobre a identidade das
mesmas.
O processo de adoecimento não envolve somente o órgão acometido pela patologia.
Adoecer causa uma descontinuidade na rotina praticada diariamente e faz
repensar os valores, prioridades e projetos de vida, conduzindo a uma reflexão
mais profunda do que realmente é mais importante para cada um. O tornar-se
doente atinge outras pessoas significativas de sua vida, que também sofrem com
a situação. Ao entrar em contato com a doença, inicia-se uma longa trajetória,
e como essa trajetória é percorrida tem sido objeto de estudo de vários autores
(1-5).
A trajetória do sofrimento não é somente a direção, o desenvolvimento ou a
história natural da doença. Mais que isso, é um processo mutável, que abrange
desde o início dos sintomas até a morte, incluindo as percepções, avaliações,
manifestações e efeitos mediatos e imediatos que o sofrimento causa, tanto
sobre o doente como naqueles que o rodeiam(3). As pessoas têm experiências
particulares e únicas de sofrimento, e percebem suas mudanças quantitativas e
qualitativas, à medida que a causa do sofrimento vai-se modificando com o
tempo, não somente no âmbito orgânico, mas também em outras dimensões de sua
vida, tanto social como emocional(3). Tem-se, portanto, através das
trajetórias, o ponto de partida para compreender como transcorre a experiência
de vida das pessoas, a partir do momento do diagnóstico da doença.
2. METODOLOGIA
Através da abordagem qualitativa buscou-se responder à questão sobre como as
pessoas estomizadas moradores do município de Passo Fundo e região reconstroem
sua identidade, a partir da vivência de uma situação traumatizante, tendo como
referencial metodológico a História Oral de Vida(6). Esta é constituída pelo
conjunto da experiência de vida de uma pessoa expressa por meio de uma
narrativa. Ao contar uma história, a pessoa não se limita apenas à reconstrução
do passado, mas expressa também o entendimento atual sobre a doença, seu
signifi-cado e seu possível futuro, deixando emergir a complexa trama em que
vão reconstruindo sua identidade.
Assim, acompanhou-se as pessoas que constituíram o grupo de estudo, durante o
período de um ano, a partir do momento da internação hospitalar, até doze meses
após a realização do estoma. Realizou-se uma série de cinco entrevistas
seqüenciais durante o período de um ano, com cada paciente, a partir da
internação hospitalar, para a realização da cirurgia: uma no período pré-
operatório, outra no momento da alta, a terceira, três meses após, a quarta aos
seis meses e a última após um ano da alta hospitalar.
2.1 Procedimentos para a coleta de dados
Manteu-se contato prévio com os médicos coloproctologistas que atuavam nos
principais hospitais do município de Passo Fundo, solicitando sua colaboração
no encaminhamento de pacientes que fossem submetidos a um estoma definitivo
pela presença do câncer colorretal, durante um período de três meses.
Assim, entrevistou-se um total de sete pessoas, que forneceram as narrativas de
suas experiências, com as seguintes características: cinco femininos e dois
masculinos, com idade entre 55 e 75 anos, seis procedentes da zona urbana e uma
da zona rural, quatro eram casadas, duas viúvas e um separado, quatro eram do
lar, um pedreiro, uma agricultura e um auxiliar de contador. Todos residiam em
casa própria, eram católicos, possuíam o primeiro grau incompleto e com o nível
sócio-econômico variando de baixo a médio.
O estudo seguiu os preceitos estabelecidos pela Resolução nº 196/96, do
Ministério da Saúde; e obteve aprovação e autorização do Comitê de Ética em
Pesquisa, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Uma vez
executadas as formalidades de praxe, solicitou-se a assinatura do termo de
consentimento livre e esclarecido, dando-se, assim, início as entrevistas. Os
depoentes preferiram usar seu próprio nome, ao invés de pseudônimo, por
julgarem seus depoimentos uma história de vida não havendo razão para não se
identificarem.
Os dados foram obtidos através de entrevista semi-estruturada, gravada em fita
magnética e transcrita literalmente. Iniciaram-se as entrevistas com a
pergunta: "Como está sendo sua vida neste momento?" E, no decorrer da conversa,
outros tópicos foram acrescidos, com a finalidade de obter o que se estava
buscando e estimular os depoimentos. Foram analisadas trinta entrevistas. Desse
total, oito ocorreram no hospital, nove no ambulatório e treze na residência
das pessoas.
Após o término de todas as entrevistas programadas, iniciou-se a transcrição
das mesmas seguindo as etapas(6) de: transcrição (passagem do relato oral para
linguagem escrita), textualização (reorganização da narrativa com supressão das
perguntas e agregadas às respostas dos depoentes) e transcriação (versão final
da narrativa quando os cinco depoimentos foram transcriados em um só e
aprovados pelos depoentes).
3. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
A leitura cuidadosa das narrativas obtidas por meio das histórias de vida
permitiu observar a existência de pontos comuns durante suas trajetórias que
foram aprofundados e forneceram, assim, melhor compreensão do seu conteúdo.
Dessa forma, para a análise dos dados, adotou-se o Modelo de Constelação da
Doença elaborado por Morse e Johnson(4).
De acordo com as autoras, esse modelo considera a doença uma experiência que
afeta a pessoa doente e seus outros significantes - parentes, vizinhos, amigos,
colegas de trabalho. As ramificações dessa experiência causam profundas
mudanças nas interações, nos papéis e relacionamentos dos envolvidos,
resultando na perda da normalidade. Conseqüentemente, a doença pode ser vista
com muita angústia e como um período de ruptura durante o qual a minimização do
sofrimento e a obtenção de conforto tornam-se prioridades.
O modelo define a experiência da doença crônica como um processo composto de
quatro estágios. O Estágio I -da incerteza - caracteriza-se pelas dúvidas e
suspeitas que começam a invadir a vida das pessoas que vivem a experiência, com
relação aos sintomas que presenciam e se apresentam como de uma doença grave ou
não. O Estágio II - da ruptura - é aquele em que geralmente a crise se instala,
devido à confirmação e revelação do diagnóstico da doença, ocasionando grande
impacto na pessoa, pelas várias alterações introduzidas na vida familiar, que
tem de lidar com a situação. Já no Estágio III da busca do autocontrole - há um
grande esforço por parte da pessoa doente em compreender o sentidoda doença,
buscando as razões ou motivos que poderiam explicar o aparecimento da mesma,
bem como as suas conseqüências futuras. Ao mesmo tempo, familiares e amigos
engajam-se na luta da pessoa doente fornecendo todo o apoio necessário. Por
fim, o Estágio IV - de reaquisição do bem-estar - é aquele em que a pessoa
doente obtém domínio para recuperar seus relacionamentos anteriores e o
controle de si mesmo. Nessa fase, o doente e seus familiares buscam a
estabilidade da situação.
Ainda, cada um desses estágios é composto de estratégias adotadas pelas
pessoas, sendo que para cada estratégia adotada, havia uma correspondente
adotada pelos outros significantes, como mostra o quadro_1.
3.1 Estágio I Da incerteza
Nesse estágio, as pessoas apresentavam os sinais e sintomas da doença e
tentavam criar um senso de gravidade ou não a respeito deles.
Suspeitando - Suspeitando
A experiência da doença começava quando a pessoa e sua família desconfiava que
alguma coisa estava errada. Os sintomas se intensificavam e a observação dizia
que o quadro apresentado era diferente do que se costumava reconhecer como
sintomas comuns e conhecidos. A perda concomitante de peso, o sangramento
incomum nas fezes e, às vezes, acompanhado de forte dor abdominal, eram os
sinais mais freqüentes. Quando confrontava esses sintomas, a ajuda médica
definitiva era buscada:
Minha doença começou há uns três anos atrás. Não conseguia ir aos pés
direito e também sentia dor. Um dia, consultei um médico em minha
cidade já com suspeita de que alguma coisa não estava bem porque
tinha muita dor. (Idithe)
Embora a possibilidade de estar acontecendo alguma coisa grave fosse percebida,
pacientes e familiares viviam momentos de ambigüidade suspeitavam, mas tinham
medo, procuravam fugir, evitar, tentando encontrar explicações para o que
estava acontecendo.
Lendo o corpo - Monitorando
A pessoa começava a ler o seu corpo, usando suas próprias experiências
passadas, e comparando-se a outros em situação semelhante, para avaliar se os
sintomas presentes deviam ser considerados graves ou não:
Fiquei preocupada, mas lembrei que minha mãe também tinha tido um
tumor. Tiraram um pedaço do intestino, mas não era maligno e não
precisou de bolsinha. Viveu mais vinte anos. Na minha família não
tinha nenhum caso de câncer, e meus pais, tios, todos tinham pressão
alta e faleceram de derrame, morreram de repente. Então, sempre
pensei que o fim da minha vida seria este. Quando fiz a cirurgia do
seio, do útero, todos achavam que era câncer e não era. Pensava que
agora ia acontecer a mesma coisa. (Evanise)
Tornando-se depressivo "!Tornando-se depressivo
A possibilidade de ser uma doença grave era tão angustiante que a maioria
protelava a busca definitiva do diagnóstico. O senso de incerteza deixava a
pessoa muito preocupada e depressiva. A decisão de procurar um médico só foi
facilitada pela gravidade dos sintomas que vinha apresentando, ou quando levada
por um familiar. As suspeitas foram, então, se confirmando:
Se não operasse, com o tempo a fístula iria apertando, apertando,
apertando até não sair mais as fezes e, talvez, eu não durasse muito
tempo. Então, não adiantava, tinha que fazer. (Artelina)
A suspeita de que seus sintomas eram decorrentes da presença do câncer
colorretal, e de que necessitavam realizar, concomitantemente, uma colostomia
definitiva, teve um efeito devastador, para todos os entrevistados e seus
familiares. A revelação do diagnóstico causava choro intenso, demorado e
profundo. As pessoas eram golpeadas por um turbilhão de pensamentos e emoções
e, simultaneamente, procuravam vislumbrar as possíveis conseqüências do fato em
suas vidas futuras:
Não tinha medo da morte porque é uma coisa natural, faz parte do jogo
da vida. Era o medo da enfermidade em si, da gravidade, do risco de
vida que ela trazia, das metástases, se ela voltaria de novo, de suas
conseqüências que eu considerava uma anomalia, uma coisa diferente.
Sempre fui muito caprichoso e agora ia ter que lidar com fezes, com
uma bolsa, e ia levar isso pra minha mulher, achava isso um horror.
Isso não foi fácil! Fiquei profundamente afetado com tudo o que
estava acontecendo. (Alceu)
3.2 Estágio II: Da ruptura
A situação inesperada faz com que o doente perca o controle sobre si mesmo,
tornando-se totalmente dependente da equipe de saúde e dos membros da família.
A percepção de que a intervenção médica era urgente, que os sintomas eram muito
graves e que não podiam mais adiar o tratamento, desencadeava crises de pânico,
medo e angústia sobre as pessoas e todos os que as circundavam. Ocorria um
impacto arrasador ao lidarem com a situação:
Desabou o mundo pra mim: eu tinha câncer e tinha que usar a bolsinha
pra sempre! Fiquei com um medo! Dormia e me acordava num pranto só,
de vereda vinha na minha cabeça: eu tenho câncer, meu Deus, essa
doença braba! E chorava desesperadamente! (chorando). Quantas vezes
me acordei chorando e o meu marido estava acordado também, segurando
a minha mão. Eu tinha essa coisa que nunca pensei que ia ter. Foi a
parte mais difícil da minha vida. Não sei como não me deu depressão,
de tão nervosa que fiquei. Ficava deitada no sofá sem vontade de
fazer nada. Fazia comida, mas não conseguia comer. E meu marido ficou
num estado ... disse que se acontecesse alguma coisa comigo venderia
tudo e ia morar numa quitinete. Ia viajar, cuidar do seu serviço,
aqui não ficava. (Graçulina)
Renunciando ao controle - Aceitando responsabilidades
A necessidade crucial de realizar a cirurgia fazia com que a internação
ocorresse imediatamente. Uma vez dentro hospital, deixavam de tomar decisões,
devido à urgência do caso, que exigia uma ação imediata do médico. Ficavam
impressionados com a velocidade com que tudo acontecia:
Mas daí a oito dias já veio o laudo que era câncer. Nunca imaginei
que fosse acontecer isso comigo. Não me conformava! Porque me dar
essa coisa tão repentina? Quando vi o resultado e voltei pra casa,
fiquei tão desesperada que tinha vontade de acabar com a minha vida.
Chorei o dia inteiro. Daí a uma semana já fui operada. Foi tudo tão
rápido, ninguém esperava, foi um choque pros filhos, pra todo mundo.
Me doeu muito, mas teria que enfrentar!(Evanise)
O senso de falta de controle sobre a situação era também sentido pelos
parentes. Todos sentiam que não tinham escolha, mas confiavam na decisão do
médico. Assim sendo, havia um empenho por parte de todos, em aceitar
responsabilidades pela pessoa. Os membros da família sentiam que deviam manter-
se unidos, pois o fato de que eles estavam saudáveis e seu ente querido doente,
fazia com que sentissem necessidade de ajudá-lo de alguma forma. Assim,
realizavam pequenas tarefas no intuito de colaborar, ou traziam pequenos
presentes que pudessem ter algum significado ou serem úteis para o paciente.
Esse envolvimento com o doente proporcionava alívio na tensão existente, pois
demonstrava que aquela era uma experiência compartilhada.
Distanciando-se de si mesmo - Assumindo a vigilância
Para enfrentar a situação, começava a distanciar-se de si mesmo, permitindo,
frequentemente, que as decisões fossem tomadas pelos outros significantes. Ao
retornar para casa uma nova dinâmica familiar se estabelecia, pois mostrava-se
muito dependente deles para cuidar de si e para a realização do trabalho
rotineiro:
Estava dependente de tudo, pra comer, pra limpar, esvaziar, trocar,
tomar banho, vestir-me. Minha esposa que tomava conta da casa e
administrava meus negócios. Sentia-me impotente, triste e abalado
emocionalmente. Não falava sem chorar. Não fazia nada ainda,
levantava, tomava café, almoçava, via um filme, via televisão.
Esperava o tempo passar. Como eu iria ficar?(Alceu)
Também, as inúmeras visitas que recebiam no hospital e em suas casas
confirmavam, para o paciente e seus familiares, que realmente estavam passando
por uma situação muito delicada:
Mesmo aqui sei que tudo mundo me olhava achando que eu não
sobreviveria, porque vinha parente, vinha gente, vinha de todo lado.
Parecia que vinham aqui porque eu já estava no fim, não ia viver
muitos dias. Foi assim no hospital e em todo lugar.(Evanise)
A velocidade e as implicações dos acontecimentos faziam com que muitos não
conseguissem assimilar o que estava ocorrendo, e se queixassem de que as coisas
pareciam nebulosas, não havendo espaço para que eles pudessem tomar decisões
sem se sentirem fortemente pressionados:
E tudo aconteceu tão rápido que não conseguia nem raciocinar. Os
médicos davam a entender que era extremamente grave, falavam somente
o essencial sobre esse tipo de coisa, e eu não tinha capacidade de
apanhar o que estava acontecendo de fato. Eu não sabia o tamanho e
nem a dimensão do que seria isso. Acho que não faria muita diferença
se eu pudesse ter esperado mais alguns dias para fazer a cirurgia.
(Alceu)
Durante todo o período os familiares e parentes mantinham-se vigilantes,
ajudando o doente no que fosse possível. Os enfermos consideravam fundamental o
apoio recebido, pois tinha um papel relevante na recuperação e estabilização da
saúde atingida pela enfermidade:
A compreensão dos meus amigos, a ajuda dos meus filhos, de toda minha
gente me ajudou muito, foi muito bom. Se eu não tivesse esse apoio
teria sido muito mais difícil. Mas, graças a Deus, eu tive.
(Artelina)
O uso da religião, o apego às promessas, novenas, santinhos; manifestada em
todos os estágios da trajetória, como uma forma de enfrentar e interpretar a
doença, foi especialmente marcante nesse período. Acreditar firmemente que o
evento era devido ao destino ou determinado pela vontade de Deus fazia-os
aceitar o fato, ao mesmo tempo em que os empurrava para a luta contra a doença,
seja pela força da vontade própria, pela fé incondicional ou pela esperança de
que tudo podia acontecer, inclusive um milagre, encorajava-os a seguir em
frente:
Mas depois me acalmava, voltava pra trás, me agarrava com Deus, com
Jesus, fazia preces, lia a bíblia, tinha o acompanhamento do pastor.
Deitava e levantava pensando em Deus, pedia que me desse as forças,
que não fosse tão difícil assim, que me recuperasse novamente. (...)
Quando tudo me aconteceu tive que fazer nascer coragem pra encarar
tudo isso aí, mas ... Passei uns dias danados. Acho que a coragem de
não deixar fracassar a gente mesmo me ajudou. Tem muita gente que
começa a pensar, pensar, daí morre de uma vez. Eu não, eu sempre
pensava pra frente. (Napoleão)
OEstágio da Ruptura,caracterizado principalmente pela interrupção de
continuidade no viver cotidiano de pacientes e familiares e pela perda de
controle e autonomia da pessoa acometida, geralmente terminava quando o doente
começava a compreender o que estava acontecendo com ele. A situação tornava-se
clara, ele sentia que não estava mais confuso, recuperava seu senso de
realidade e engajava-se ativamente no processo do tratamento. O controle da
situação não era mais exclusivo do médico e da família, pois ele já percebia
que devia assumir alguma responsabilidade por si mesmo:
Agora estão faceiros e querem que eu viva mais um pouco. E pensei:
enquanto estiver viva vou ser sempre gente. Caminhando e vivendo
estava muito bom. E tinha planos para mim, para minha família e meu
filho. (...) Tive que pensar de outro jeito. Pensar que agora ia ser
assim, tinha que ser assim, tinha que me conformar desse jeito. Se
Deus também queria assim o quê eu ia fazer? E se não tivesse o estoma
o que ia ser? Ia morrer e pronto! Então, estava melhor assim.
(Terezinha)
Quando assaltados por sentimentos tristes ou depressivos, os estomizados
procuravam afastá-los, buscando em seu repertório pessoal os meios disponíveis
para o enfrentamento. Percebiam não ser favorável para ninguém, expressar, de
forma freqüente, tais sensações:
Procurava não ficar triste e quando isto acontecia, rezava, ligava o
rádio, escutava uma música, dava uma caminhada, não deixava a
depressão me pegar. Não adiantava ficar aí deitada o dia inteiro só
me lamentando. Não levava a nada. E as pessoas acabavam nem me
visitando mais. Afinal, aquela mulher só sabe se lamentar! Tinha que
rezar e ter muita fé, quem não tem fé não tem nada. (Evanise)
Seguiam, assim, para o estágio seguinte.
3.3 Estágio III Da busca do autocontrole
Era a fase em que a pessoa se engalfinhava com a doença e seus futuros
desdobramentos. Começavam as negociações com outros para preservar sua
identidade, seu controle, seus papéis, e assim, tentar recuperar o seu bem-
estar. Ao mesmo tempo em que os familiares e outros próximos participam da
lutae engajam-se num comportamento protetor, auxiliando, apoiando e
encorajando, o doente tenta preservar-se a si mesmo, conservando, canalizando
energia e estabelecendo metas. Alcançar algumas metas recuperava a confiança em
si mesmo e começava a criar um senso de normalidade sobre sua vida.
O tratamento quimioterápico e radioterápico havia terminado, mostravam-se mais
familiarizados com o manejo do estoma e do dispo-sitivo coletor, seus sintomas
físicos tinham desaparecido ou diminuído e começavam a alimentar-se e dormir
melhor. Adquiriam a sensação de novamente estar no controle do próprio destino
e, aos poucos, a família também tentava retomar sua vida normal.
Compreendendo o sentido - Engajando-se na luta
Elas tentavam encontrar em seu passado uma explicação que facilitasse
compreender o sentidodo que aconteceu, buscando razões que poderiam justificar
a doença. Examinavam os eventos que conduziram à internação, bem como o que
poderiam ter feito e não fizeram para evitar o ocorrido. Assim, as histórias
eram contadas e recontadas para os visitantes, na tentativa de criarem um
conceito sobre o que ocorreu e enfrentarem sua condição atual:
Quanto à doença e o estoma penso que era uma coisa que eu ainda tinha
que passar na vida. Deve ser isso aí, eu entendo isso: que eu ainda
tinha essa cruz pra carregar. Porque o quê vou pensar? De repente me
aparece isso aí. Então, de certo estava faltando isso pra eu passar.
Se é uma coisa que veio pra mim, que eu tenho que passar, vamos lá,
vamos pra frente, vamos ver.(Artelina)
Todas as pessoas tinham consciência de que suas vidas foram irremediavelmente
alteradas. A quebra da integridade física pelo "buraquinho" no abdômen, o abalo
emocional, a alteração nas funções orgânicas, as repercussões em todas as
esferas de sua vida, afirmaram estas modificações:
Como a minha vida tinha mudado! Não podia mais fazer tudo o que fazia
antes, já dependia de outros. Já não era mais uma pessoa como as
outras, era diferente agora. Não era mais normal como antes, tinha
sido desviado. Já pensou se um dia eu não puder mais me limpar? Isso
me preocupava muito. Percebi que a gente não é nada nessa vida, que
nada é para sempre. Quando se tem saúde, trabalhando, nem pensa que
um dia pode ter uma coisa assim.(Evanise)
Embora considerassem que não eram mais jovens, de já terem vivido "um bom
pedaço", de terem praticamente concluído sua missão, a vivência da doença fez
com que se enxergassem sob uma nova luz. O sofrimento que se abateu sobre elas,
o confronto com a morte e "que nada era eterno", forçava as pessoas e famílias
a reexaminarem suas vidas e dar-lhes um novo significado, apreciando as coisas
que estavam disponíveis:
Pensava na minha saúde, queria me cuidar porque pra morrer basta
estar vivo. Decidi que faria as coisas que tivesse vontade. Procurava
pensar que o que passou, passou e eu tinha que ir em frente. O que
Deus me deu, eu tinha que aceitar. O pior da minha vida já tinha
passado. (...) Parecia também que depois que me aconteceu tudo isso
minha vida estava melhor. Parecia que tinha ficado mais calma. Eu era
muito nervosa e agora vi que a gente tem que ter calma pra viver. Não
pode se atacar por qualquer coisa. Vi que o que queria da vida tinha
conseguido: queria um lar e tinha, tinha um marido bom, meus filhos
estavam bem, todos casados, com filhos, tranqüilos. Eles estando bem
eu também estava feliz. (...) Começaria a sair, passear, visitar
minha mãe, meus parentes, meus filhos. Cuidaria da nossa vida com
mais tranqüilidade. Essa vida não voltaria mais. (Graçulina)
Assim, enquanto a pessoa estava tentando compreender o sentido do que aconteceu
e dar um novo significado à sua vida, a família e os amigos começavam a olhar
para o futuro e se comprometer com a luta que continuava adiante.
Preservando-se a si mesma - Proteção
O desejo imediato das pessoas que estavam doentes era recuperar o controle e
preservarem a si mesmas. Nessa etapa, buscavam "preservar o senso de si
mesmo"recuperando-se de forma cautelosa e gradativa, alimentando-se bem, tendo
um repouso adequado, fazendo o tratamento prescrito, realizando as consultas
médicas periódicas e incorporando alguns termos agora já conhecidos: "amputação
irreversível do reto, colostomia definitiva, quimioterapia, CEA, tumor
curável", etc. Procuravam desenvolver tarefas que não exigissem muito esforço.
Seus familiares, ao mesmo tempo, vigiavam e as protegiam, para que não
ocorressem imprevistos capazes de comprometer ainda mais sua saúde.
O fato de ter que "fazer o desvio", de ter o seu corpo "transformado por uma
ostomia"(7)foi considerado aviltante, e uma ameaça à auto-identidade e
integridade. A presença da colostomia e da bolsa provocava significativas
alterações em sua sexualidade e imagem corporal, de tal forma que desencadeava
longas crises de choro, revolta, raiva e não-aceitação. Entretanto, tinha que
se resignar, obrigatoriamente, porque não havia a menor possibilidade de
reverter tal condição:
Também achava que de certo não ia mais ser a mesma coisa. Tirar um
órgão da gente já modifica o corpo, tudo, essas coisas. Usar a tal de
bolsinha ali, andar com isso aí, pensava: vai ter cheiro ruim, vai me
afastar de tudo, não vou poder sair, vão me refugar, se afastar de
mim. Mas depois pensei que tantos usam, não iria influenciar em nada.
(Artelina)
Para aliviar a ansiedade de seus familiares e parentes, tentavam parecer melhor
do que antes e criavam um novo aspecto para sua doença:
Fomos a um casamento, dançamos, tiramos fotos, filmamos. Todos os
presentes estavam surpresos de como eu estava bem considerando que
estava tão mal. Eu dizia que não estava mais doente, que minha doença
tinha ido embora, que o médico falou que o quê eu tinha não tenho
mais.(Terezinha)
Por outro lado, os parentes reconheciam que deviam diminuir o impacto da
situação e proteger a pessoa doente de suas inquietações e preocupações:
"Minha mulher me diz que já melhorei bastante, então tinha que ter
força de vontade senão era pior deixar ir tudo por água abaixo".
(Napoleão)
Renegociando papéis - Renegociando papéis
Tanto o doente como suas famílias empenhavam-se em recuperar o cotidiano
habitual. Para a pessoa doente, o restabelecimento de seus papéis diminuía o
impacto, a ruptura causada pela doença, mantinha um senso de controle, de
normalidade, de continuidade e a ilusão de que estava próxima de restabelecer o
que ela era na realidade. Embora enferma, com algum grau de dependência e
necessitando de ajuda, os parentes lhe conferiam algumas atribuições, para que
pudesse sentir-se útil e recuperar seus papéis:
E agora já me sinto em condições de fazer algumas coisas, embora eles
fiquem com um pouco de medo de eu me arruinar, mas vou devagar, vou
me cuidando, que graças a Deus está indo bem. (...) Vou fazendo uma
coisinha e outra. Os pedreiros brigam comigo porque não paro quieto,
não é pra ficar forcejando, mas preciso me distrair um pouco.
(Napoleão)
As relações com a pessoa doente representavam uma interação complexa. Em certos
casos, envolvia a ocultação de sintomas e negociações para o doente ser tratado
como normal:
Evitava brigar, porque tenho pavor de bronca. E quando ele chegava,
eu estava bem alegre, nem que às vezes tivesse alguma tontura, alguma
dor, não me queixava. De eu ficar doente durante o dia, ele chegar e
eu mostrar uma cara bonita. Não gostava de ficar reclamando.
(Graçulina)
De forma semelhante a uma dança, a pessoa doente e seus significantes aceitavam
e desistiam de tarefas:
"Procurava compensar uma coisa com outra. Se não podia mais fazer
aquilo, fazia outra. E é isso aí então. Viver cada dia, cada momento!
Enquanto não tiver dores, está muito bom".(Evanise)
Estabelecendo metas - Monitorando atividades
Era importante ao indivíduo acreditar que não ficaria doente para sempre.
Embora quisessem realizar seus trabalhos anteriores, eram capazes de aceitar
que já haviam trabalhado muito, e que a presença da doença lhes dizia que agora
era o momento de "descansar, de se preocupar menos" e usufruir mais dos
recursos e oportunidades disponíveis para "aproveitar mais a vida".
Obter êxitos em pequenos empreendimentos, como caminhar de um local para outro,
terminar a casa que estava reformando ou visitar um familiar distante, ajudavam
as pessoas a sentirem que estavam evoluindo bem, recuperando o controle e
avançando na luta. Por outro lado, os familiares preocupavam-se que seu doente
pudesse exagerar e continuavam monitorando suas atividades.
Buscando reafirmação - Apoiando
Muitas vezes, mesmo com o empenho em conseguir o autocontrole, ainda prevalecia
certa dose de incerteza. Quando a pessoa fraquejava, os familiares davam apoio,
elogios, encorajando e tentando instilar nela um senso de esperança. A pessoa
também buscava reafirmação nos cuidados prestados pelos profissionais da área
de saúde, observando, rigorosamente, os cuidados prescritos. Era através de um
processo de experiência e erro que suas rotinas diárias se construíram,
acomodando sintomas e medos:
Me cuidava bastante para não baixar no hospital de novo. Depois que
fiz a cirurgia, já tinha baixado duas ou três vezes só por não saber
certo como fazer as coisas. Tomava meu remédio direitinho, sem
falhar. A saúde é uma só. Tinha que me cuidar, ia ser assim até o fim
da vida.(Napoleão)
O substrato que movia a pessoa a internalizar sua nova condição era, de alguma
maneira, incorporar em seu cotidiano atual as dinâmicas anteriores à cirurgia:
E eu tinha muitas coisas para pensar e organizar. Cuidava das
plantas, do jardim. Fazia todo o serviço leve, passava pano, varria a
casa, arrumava as camas. Fazia essas coisas todas porque me sentia
bem, me distraía e não ficava pensando em bobagens. Ia olhar pra
frente e esperar que cada vez melhorasse mais. Andava sempre arrumada
e procurava viver a vida como antes.(Terezinha)
A pessoa também buscava reafirmar-se, através de uma avaliação do que tinha
acontecido, de como ela era no passado, como viveria no presente e o que
esperava no futuro:
Sempre fui uma pessoa alegre e pensava que com a minha idade queria
era me divertir, aproveitar o que ainda tinha de vida, fazer aquilo
que podia fazer. Gostava muito de me arrumar, ser independente, ver
meu apartamento sempre ajeitado, de jogar, passear. Ainda não sabia
como seria (rindo), mas meus planos eram começar a aprender
direitinho tudo (o manejo com a bolsa), e depois começar minhas
viagens. Me cuidaria bastante e faria a revisão médica. (Artelina)
3.4 Estágio IV Da reaquisição do bem-estar
Os principais objetivos a serem alcançados, neste estágio, eram recuperar os
relacionamentos anteriores, sem a dependência da doença e, uma vez mais,
afirmar o controle e autonomia sobre suas vidas, aprendendo a confiar em seu
corpo, deixando a doença para atrás e conseguindo o domínio da situação.
Não depender da ajuda de terceiros também contribuía para a sensação de
independência e autonomia. Um senso de normalidade pairava e já conseguiam
respirar mais aliviados. Realizavam pequenas viagens, interessavam-se pelos
fatos do cotidiano, e, cada vez mais, absorviam a nova condição de suas vidas e
de seus familiares. Ansiedade, nervosismo e raiva eram sentimentos superados,
embora, em seu íntimo, todos tivessem medo de que a doença voltasse num futuro
próximo, obrigando-os a se defrontarem novamente com os acontecimentos
iniciais.
Assumindo incumbências - Relaxando o controle
À medida que as pessoas retomavam suas atividades e seus familiares percebiam
que tudo estava correndo bem, diminuía o controle sobre elas. Poder mergulhar
novamente em sua vida, possibilitava a reabilitação de quem estava ansioso para
mais uma vez assumir o controle. A reintegração era uma questão de honra, ou
seja, mostrar a si mesmo e aos outros que era capaz de sobreviver após a alta
hospitalar, apesar de estomizado, significava uma vitória e um desafio.
Resgatar sua rotina anterior, mesmo de forma parcial, era o ponto alto deste
estágio, pois restaurava tudo aquilo que fora quebrado:
Quando acordava pela manhã dava graças a Deus por mais um dia, e a
noite fazia minhas orações pra ter bastante força e saúde. Queria
curtir meus netos, sempre tinha um conselho, uma palavra pra dar, e
eles me escutavam porque a gente tem experiência. Os meus filhos
também, queria continuar fazendo o que fazia para ajudá-los, comprava
uma coisa, comprava outra, fazia uma costura, sempre estava pronta
pra tudo. De vez em quando a gente tinha um bate boca, mas eu sempre
falava o que pensava, assim como eles. Eu vivo muito das coisas que
eu aprendi com meus pais. Quem sabe, mais tarde, eles valorizem
também. Queria sair mais, não ficar só em casa me preocupando com o
trabalho, com a limpeza. Mesmo assim, lavava roupa, passava, tirava o
pó, fazia comida, caminhava lá pra fora, colhia alguma flor, ia à
horta, fazia crochê, lia um pouco, olhava televisão, quando eu via o
dia tinha passado.(Evanise)
Conseguindo o domínio - Superando
Durante este estágio final, as pessoas, progressivamente, aprendiam a confiar
em suas habilidades e trabalhavam voltadas a conseguir o domínio. O doente
reaprendia a interpretar os sintomas em seu corpo e sabia quando eles se
tornavam preocupantes e o significado que tinham. Sentiam-se inseridas no mundo
e tinham consciência de suas limitações e até onde podiam ir sem se
prejudicarem:
Não dava mais para subir uma escada depressa, nem percorrer percursos
rapidamente, a movimentação e a mobilidade tinham diminuído. A
alimentação modificou um pouco, tinha que fazer uma certa dieta, até
pra ter um maior controle sobre a evacuação intestinal. Mas, achava
que estava tudo dentro de um certo padrão pra aceitar a situação.
(Alceu)
Entretanto, o processo de conseguir o domínio não acontecia rapidamente.
Ocorria depois de um longo período de tempo. Porém, quando conseguiam
reproduzir no cotidiano o que era considerado objetivo de vida, tal êxito
permitia revigorar a confiança, readquirir o controle e concentrar-se em outros
aspectos de sua vida. Quando os depoentes percebiam que já não desperdiçavam
muito tempo com preocupações e aflições voltavam-se para o futuro e deixavam a
experiência da doença para trás:
Hoje, quase dois anos depois da cirurgia, ainda me sinto um pouco
fraca, sempre com um pouco de anemia, tomo remédio pra ver se
resolve, mas faço praticamente todo o serviço da casa, cuido dos meus
netos. Meu intestino está normal. Quando vejo o dia passou e de
repente tu nem percebe mais que é diferente dos outros, esqueço que
tenho aquilo ali quando estou fazendo minhas coisas. (Evanise)
A família e os amigos também tentavam superar a situação, embora continuassem
preocupados sobre o futuro e relutantes em se conven-cerem de que o fim da
doença tinha chegado. O medo de recorrências era freqüente e, assim, os
familiares não se entusiasmavam em demasia com os avanços obtidos, pois se
houvesse um retrocesso, a experiência teria de ser vivenciada novamente.
Buscando a estabilidade - Buscando a estabilidade
No final deste estágio, a tarefa principal do estomizado e dos membros da
família era se engajarem na busca da estabilidade. Não seria possível tocar a
vida com tranqüilidade, sem resolver, satisfatóriamente, o que tinha acontecido
com eles. Se, de alguma forma, se revelassem incapazes de aceitar a nova
condição, seriam também incapazes de recuperar a convicção de que suas vidas
mantinham um senso de continuidade e normalidade. Somente adaptando-se à
situação e dando um novo sentido à vida é que se consegue avançar. Desse modo,
todo o complexo familiar se estruturava para dar estabilidade ao evento,
criando um senso de realidade sobre o que tinha acontecido e também "deixando a
doença para trás".
A estabilização do evento, de fato, se concretizava quando a alteração no senso
identitário era restaurado. Sentir-se e viver como vivia antes era de
importância vital. Havia, portanto, um grande empenho da pessoa em manter-se e
manter sua casa, seu trabalho, suas atividades, sua rotina, como era antes da
cirurgia. Normalizar a vida significava torná-la a mais semelhante possível com
a anterior. Seria essa atitude que possibilitaria conectar-se novamente com o
mundo, sentir-se menos diferente em relação aos outros e, conseqüentemente,
restabelecer seu senso identitário:
Todos dizem que na minha casa nada mudou, estava tudo igual. Eu
dizia: é o que espero, se um dia eu morrer quero que quem fique cuide
de tudo como nós cuidamos. Não quero que tirem o que fizemos, que se
esforcem para manter assim, para que um filho ou um neto possa gozar
do que fizemos. Tem que ser assim, a vida é essa. (...) Pela idade
que tenho e pela doença que passei estou muito bem. Tudo está bem,
consigo fazer todo o serviço, meu marido é um bom companheiro, uma
boa pessoa, gosta de ficar sempre em casa, se sai quer que vá junto,
não quer que eu fique sozinha porque somos em dois né. Então a gente
se conforma e se esforça um pouco mais.(Terezinha)
Assim, passado o pesadelo, todos os envolvidos sentiam necessidade de dar
estabilidade ao evento, apesar de continuarem vigilantes acerca da saúde do
doente. Todos buscavam retornar a um estado de bem-estar, após a experiência
cruel da doença, dentro dos limites e condições configurados pela nova
situação.
Afora isso, submeter-se a exames de controle e falar sobre a doença e a
colostomia já não causavam impacto tão grande como no início do evento,
passando a integrar o repertório do grupo com certa naturalidade.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O impacto da situação em suas vidas instaura um doloroso movimento de comoção e
reconstrução de si(8) que pode ser detectado nos diferentes estágios que
constituíram suas trajetórias de doença no Modelo de Morse e Johnson.
O caminho da ressignificação da identidade foi evidenciado nos diversos
estágios que compuseram o Modelo de constelação da doença. A passagem pelos
estágios não seguiu uma seqüência linear simples, compostos por padrões pré-
determinados. Foram, sim, momentos em que as pessoas expressaram atitudes e
concepções particularmente desenvolvidas sobre si mesmas, sobre os outros e
sobre o seu mundo, dentro de um processo contínuo de desenvolvimento da
identidade. Embora, o modelo, em certos momentos, aprisionou um pouco os dados
tendo de "ajeitá-los", foi um importante recurso didático que auxiliou na
compreensão da experiência.
No primeiro estágio da incerteza-quando as suspeitas sobre a doença se
confirmaram, iniciou as transformações na identidade, pois, de imediato,
tiveram que abandonar seus papéis e à medida que isto foi acontecendo também
foram perdendo o controle sobre a situação e sobre si mesmos, levando-os a
desenvolverem sentimentos de depressão.
No estágio seguinte da ruptura passaram a vivenciar o impacto decorrente de
todas as conseqüências diretas geradas pela situação. Aqui, foi nítida a perda
de controle e de autonomia sobre seu viver, pois as decisões foram tomadas
quase que exclusivamente pelo médico e por seus familiares. Acompanhou essa
fase, a profunda sensação de perdas que, na instantaneidade da situação, não
foram visualizadas como possíveis de serem ressignificadas adiante. Nesses
momentos, suas identidades sofreram importantes transformações, sendo a
identidade situacional de doente(9) a que se sobressaiu, seja na esfera pessoal
ou social.
O terceiro estágio a busca do autocontrole foi um período de transição entre o
intenso sofrimento gerado pela situação e o vislumbre da possibilidade de
voltar a fazer o que faziam antes. Estava clara a necessidade de manter,
minimamente, seus papéis e atividades anteriores, criando e buscando, em seus
repertórios, estratégias para enfrentarem o conflito. À medida que foram se
restabelecendo, física e emocionalmente, foram compreendendo e dando
significado aos acontecimentos, iniciando, assim, o processo de recuperação do
autocontrole e da autonomia, considerado fundamental nesta fase. Um senso de
normalidade e continuidade começava aflorar sobre as pessoas e suas famílias.
Entretanto, entreviam seus limites e, baseados nisso, projetavam suas metas e
seu futuro.
No último estágio reaquisição do bem-estar a magnitude do evento perdeu sua
intensidade, embora, internamente, sempre tiveram medo de que a doença poderia
voltar. A vivência do conflito que gerou as transformações na identidade foram
sendo substituídas pelo esforço contínuo de se manterem como eram antes, mesmo
com limites ou mudanças. Isto era fundamental na configuração de suas
identidades. Com a estabilização da situação, com as transformações
ressignificadas, com o senso de normalidade restabelecido, as pessoas e seus
familiares prosseguiam com suas vidas.
Ressalta-se que, durante o processo, as pessoas circulavam mais de uma vez por
esses estágios, pois sempre surgiam novos fatos que conduziam os doentes a um
estágio ou outro. Mas, ao final de um ano, todos afirmaram que "a vida estava
boa, não como era antes, mas quase". Dessa forma, não houve uma ruptura na
identidade, no sentido de mudança total, houve inúmeras forças externas
querendo romper, houve toda uma pressão querendo dividi-los, vivenciaram
momentos de grandes contradições, mas existiam forças contrárias, esforços
contínuos voltados para não alterar, para não mudar e sim, para preservar e
manter a mesma identidade.
Diante da complexa realidade que envolve essas pessoas é importante para os
enfermeiros e demais componentes da equipe de saúde, que se envolvem com o
atendimento dessas pessoas, ampliar sua visão a respeito dos sentimentos que
afloram frente à doença, de suas seqüelas e do processo de reconstrução de si
próprio e de sua vida. É importantíssimo o desenvolvimento de uma assistência
personalizada, que considere o sistema de crenças, a base do conhecimento, a
habilidade para aprender a manipular o estoma e o dispositivo coletor, a
capacidade de lutar contra a doença e, dessa forma, contribuir para a
ressignificação da identidade e melhoria na qualidade de vida do indivíduo, e
não apenas no prolongamento da sua sobrevida.