Conhecimento materno/familiar sobre o cuidado prestado à criança doente
PESQUISA
1. INTRODUÇÃO
No Brasil, embora mudanças importantes tenham sido observadas no quadro geral
da mortalidade infantil nas últimas décadas, esse indicador ainda revela
grandes iniqüidades no campo da saúde. A situação atual das crianças
brasileiras continua representando um grande desafio, pois ainda se convive com
elevada morbidade por doenças geradas pelas desigualdades sociais resultantes
do modelo capitalista, como as pneumonias, diarréias e desnutrição. Segundo o
Ministério da Saúde, em 1997, foram hospitalizadas no Sistema Único de Saúde
(SUS), mais de 1.600.000 crianças menores de 5 anos, sendo 60% de causas
decorrentes de problemas respiratórios e de doenças infecciosas e parasitárias.
Medidas de prevenção e eficiência na assistência em nível primário poderiam
contribuir para redução dessas internações e de suas conseqüências para a
criança, além da liberação desses leitos para tratamento de crianças com
patologias que exigem uma atenção de maior complexidade(1).
Também no Município de São Paulo, informações epidemiológicas de 2002 indicam a
manutenção da doença respiratória como a patologia mais freqüente e severa,
mantendo-se como a principal causa de mortalidade da população infantil. A
participação das pneumonias como causa mais freqüente de óbito, por sua vez,
além de estar atrelada às precárias condições de vida a que certamente está
submetida, a maioria das crianças, denuncia a ineficiência da atenção primária
à saúde. Outro dado bastante significativo é a presença de morte por
desnutrição, não pelo valor numérico que representa, mas por ser a forma mais
explícita e desumana das desigualdades sociais(2). Analisando-se a distribuição
dos óbitos infantis segundo freqüência e local de residência, percebem-se
diferenças acentuadas entre as crianças moradoras de distritos administrativos
mais periféricos em relação aos distritos administrativos mais centrais ou mais
"elitizados". Os indicadores são extremamente desfavoráveis e sistematicamente
mais elevados nas regiões mais pobres, revelando, por exemplo, que uma criança
que nasce no Jardim São Luis tem chance de morrer 20 vezes maior, comparada à
uma criança nascida no Jardim Paulista(2).
Esse quadro, comum nos países pobres, apesar do imenso avanço tecnológico
observado nas últimas décadas, gerou preocupação mundial e levou organismos
internacionais a estabelecerem prioridades concretas, com vistas a reduzir a
morbimortalidade infantil decorrente de doenças preveníveis como diarréia,
infecções respiratórias e doenças imunopreveníveis e melhorar as condições de
saúde dessa população nos países em desenvolvimento.
Na busca de novos enfoques e instrumentos para enfrentar essa problemática, a
Organização Mundial da Saúde (OMS), Organização Panamericana da Saúde (OPS) e o
Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) preconizam, desde meados da
década de 90, uma abordagem estratégica para as doenças prevalentes na
infância. No Brasil, o Ministério da Saúde incorporou, em 1996, a estratégia de
Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância (AIDPI) dentro das
políticas de atenção à saúde. Sua implantação seguiu os critérios de prioridade
estabelecidos pelo próprio Ministério da Saúde, isto é, nos municípios com
índices de mortalidade infantil acima de 40/1000 nascidos vivos, iniciando com
os municípios integrantes do Programa de Redução da Mortalidade na Infância
(PRMI) e aqueles que tivessem os Programas de Agentes Comunitários de Saúde
(PACS) e de Saúde da Família (PSF) já implantados(3).
A estratégia AIDPI foi concebida com a finalidade de abordar a criança "como um
todo", em vez de se dirigir somente para o "problema de saúde", avaliando de
forma sistemática os principais fatores que afetam a saúde das crianças para
detectar e tratar qualquer "sinal geral de perigo" ou "doença específica" e
ainda integrar ações curativas com medidas de prevenção e promoção da saúde, de
forma a reduzir a mortalidade infantil e contribuir de maneira significativa
para que a criança venha a atingir seu potencial máximo de crescimento e
desenvolvimento, sobretudo nos países emergentes(3).
Traduzindo para a realidade brasileira, a estratégia AIDPI reintroduziu o
conceito da integralidade, surgindo como alternativa para aplicar todas as
ações de controle específico já existentes no Programa de Assistência Integral
à Saúde da Criança (PAISC), implantado no Brasil desde 1984 (Ministério da
Saúde, 1984), além de reconhecer que as crianças, saudáveis ou doentes, sejam
consideradas em seu contexto social. Também enfatiza a necessidade de melhorar
tanto as práticas relacionadas à família e à comunidade, quanto a atenção
prestada pelo serviço de saúde. Nesse sentido, busca melhorar as habilidades
dos profissionais de saúde, a organização dos serviços e as práticas familiares
e comunitárias relacionadas ao cuidado da criança(4).
Dentre as bases da estratégia AIDPI destacam-se as medidas para o cuidado da
criança por parte de seus pais no domicílio, especialmente o reconhecimento de
sinais perante os quais deve-se buscar a atenção de serviços de saúde, porém
incluindo também a capacitação dos familiares para o cuidado efetivo da criança
no lar(5).
Sabe-se que as atividades de promoção e de atenção básica são fundamentais para
a melhoria da qualidade de vida e saúde da população e que as ações educativas
constituem uma das principais estratégias em direção à transformação e mudança
de conhecimentos e de valores, processo que exige um esforço contínuo dos
profissionais de saúde, no sentido de contribuir para o melhoramento das
condições de saúde da população infantil.
Considerando que a implantação da estratégia AIDPI foi priorizada nas unidades
de saúde com Programa de Saúde da Família (PSF), buscou-se neste estudo,
identificar os conhecimentos das mães ou a tecnologia materna no manejo, ou
seja, no cuidado da criança com infecção respiratória aguda e com doença
diarréica em unidades de saúde com modelos assistenciais distintos, com PSF e
sem PSF.
2. METODOLOGIA
Este estudo exploratório/descritivo, de natureza transversal, integra um
projeto mais amplo denominado "Saúde da Família: avaliação da nova estratégia
assistencial no cenário das políticas públicas"1, aprovado por Comitê de Ética
em Pesquisa. O sub-projeto foi desenvolvido com mães/familiares responsáveis
por crianças de 0 a 5 anos de idade, matriculadas em duas unidades de saúde da
rede pública do município de São Paulo.
As unidades de saúde selecionadas atuavam com modelos assistenciais distintos.
Uma organizava a assistência conforme o modelo tradicional de atenção à saúde
(sem-PSF) e a outra tinha como eixo estruturante da assistência à saúde, o
Programa de Saúde da Família (com-PSF). O Quadro_1 apresenta algumas variáveis
sócio-econômicas e demográficas dos distritos administrativos onde se localizam
as unidades de saúde envolvidas no estudo. Os dados reiteram que a população
residente no distrito administrativo de Cidade Dutra, região onde se localiza a
unidade sem-PSF, apresenta população mais numerosa e índice de exclusão mais
acentuado. Essa posição no mapa de exclusão da cidade é confirmada pelas demais
variáveis como renda e escolaridade dos chefes de família, taxa de homicídios,
áreas com favela e percentual de mulheres chefes de família sem renda, todos
com índices mais desfavoráveis em relação aos da população de Artur Alvim, onde
se localiza a unidade com-PSF.
A amostra estatisticamente prevista para o projeto maior foi a seleção
aleatória de 100 prontuários de crianças de 0 a 5 anos de idade atendidas em
cada uma das unidade de saúde, porém os dados deste estudo referem-se a uma
amostra de 190 mães/familiares responsáveis, sendo 96 da unidade sem-PSF e 94
da unidade com-PSF. Contou-se com a assessoria do Laboratório de Epidemiologia
e Estatística do Instituto Dante Pazzanezi, tanto para o desenho amostral,
quanto para a elaboração do banco de dados e as análises estatísticas.
A coleta dos dados foi feita por entrevista com a mãe ou responsável pela
criança, no domicílio, realizado por estudantes de enfermagem, bolsistas de
iniciação científica do projeto maior, treinados tanto para a técnica de
entrevista quanto para o preenchimento de formulário previamente testado.
A análise dos dados foi feita utilizando-se freqüências relativas (percentuais)
e absolutas (n) das classes de cada variável qualitativa, especialmente com o
intuito de caracterizar a amostra estudada.
As variáveis quantitativas foram analisadas utilizando-se médias e medianas
para resumir as informações, além de desvios-padrão e valores mínimo e máximo
para indicar a variabilidade dos dados.
Para comparar as distribuições de freqüência das variáveis qualitativas, foi
utilizado o teste Qui-Quadrado de Pearson(6). Esse teste baseia-se nas
diferenças entre valores observados e esperados, avaliando se as proporções em
cada grupo podem ser consideradas semelhantes ou não. O teste exato de Fisher
foi utilizado nas situações onde os valores esperados foram inferiores a cinco.
Em cada tabela de cruzamento dessas variáveis são apresentados os resultados da
significância do teste através do valor de p, sendo que, para valores menores
do que 0,05 (p<0,05), considerou-se associação estatisticamente significante
entre as variáveis.
O teste não paramétrico de Mann-Whitney para amostras independentes foi
utilizado para variáveis quantitativas na comparação de duas médias, nos casos
onde a hipótese de normalidade foi violada.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Apresenta-se na Tabela_1, dados gerais de caracterização da mãe/responsável
pela criança. Analisando-se os dados sócio-econômicos e demográficos dos
respondentes, observa-se que mais de 80% eram mães, com faixa etária entre 28 a
30 anos. O tempo médio de residência em São Paulo girava em torno de 20 anos e
a maioria, aproximadamente 78%, vivia com companheiro.
Quanto ao nível de escolaridade, cerca de metade possuía 8 anos ou mais de
estudo, a maior parte (68,6%) não ocupava posição de chefia da família e mais
de 70% não estavam inseridas no mercado de trabalho. Cerca de 60% das famílias
possuíam renda familiar per capita entre 1 a 3 salários mínimos e em dois
terços delas, apenas uma pessoa da família contribuía para a renda familiar. As
famílias referiram gasto médio mensal de R$ 84,34 com a saúde e a grande
maioria das famílias não possuía assistência médica suplementar (81,5%).
No Brasil, os problemas respiratórios, principalmente a pneumonia, causam 22,3%
das mortes de crianças de 1 a 4 anos, ocupando o primeiro lugar entre as causas
de morte, e compreendendo mais de 50% das causas de internação hospitalar,
nessa faixa etária. Nos pronto-socorros e postos de saúde, 30% a 50% das
crianças atendidas apresentam algum sintoma respiratório(1).
De cada quatro crianças com problemas respiratórios, três têm apenas
resfriados, que embora de menor gravidade, causam mal-estar, pois provocam
febre, tosse, dor ou dificuldade para respirar e inapetência. Até recentemente
a pneumonia não era considerada como um problema prioritário, pois se entendia
que o controle das infecções respiratórias não merecia muita prioridade, devido
às dificuldades inerentes à sua prevenção e tratamento. Hoje em dia, sabe-se
que a pneumonia é um problema muito grave e responsável por muitos óbitos na
população infantil, necessitando, por isso, de medidas preventivas eficazes(5).
Veríssimo e Sigaud(7) propõem, entre as ações de promoção, prevenção e
recuperação de crianças com agravos respiratórios, cuidados como aumento da
freqüência de oferta de líquidos e alimentos servidos às crianças.
A Tabela_2 expressa o grau de conhecimento da mãe e/ou familiares sobre
cuidados específicos quando a criança apresenta infecção respiratória aguda e/
ou doença diarréica. Analisando-se os dados referentes aos conhecimentos sobre
infecção respiratória, percebe-se que proporção similar de respondentes da
unidade sem-PSF (48,4%) e com-PSF (45,7%) associam maior oferta de líquidos a
infecções respiratórias. Para maior oferta de alimentos, os índices também não
diferiram entre as unidades, sendo de 11,6% para a unidade sem-PSF e 7,4% para
a unidade com-PSF. Sabe-se que tanto a oferta de alimentos quanto de líquidos é
muito importante na recuperação da criança com agravos respiratórios.
Quanto aos conhecimentos maternos em relação à diarréia, os dados apontam que a
maioria dos entrevistados de ambas as unidades tem consciência sobre a
importância do aumento da oferta de líquidos, 69,1% da unidade sem-PSF e 74,5%
da unidade com-PSF. Entretanto, com relação à alimentação, 100% dos
respondentes de ambas as unidades ainda associaram a pausa ou dieta alimentar
como cuidado que deve ser prestado à criança com diarréia, embora essa conduta
seja totalmente superada, do ponto de vista científico. Os dados encontrados
mostram que essa prática, cultivada durante muitas décadas pelos serviços de
saúde, ainda permanece impregnada na cultura popular, embora as ferramentas
para o controle das doenças diarréicas sejam mais conhecidas e mais acessíveis
à população(8).
Estudo de caso-controle da mortalidade infantil pós-neonatal, que analisou
entre outras variáveis a tecnologia materna e sua associação com a
sobrevivência da criança verificou que a porcentagem de mães do grupo de
sobreviventes, que referiu tomar medida adequada diante de um episódio de
diarréia da criança, foi significativamente maior em relação ao grupo de
óbitos, demonstrando associação positiva entre saber a conduta correta em
relação à diarréia e sobrevivência da criança. A pesquisa mostrou ainda,
associação significativa entre saber preparar o soro caseiro e a sobrevivência
da criança, com odds ratio evidenciando chance de sobrevivência 4,42 vezes, de
forma que para os autores, fatores reprodutivos, culturais, de conhecimento e
de tecnologia materna associam-se com a sobrevivência das crianças(9).
Estudo multicêntrico que buscou avaliar se profissionais com e sem treinamento
na estratégia AIDPI apresentavam diferença no cuidado prestado à criança,
constatou que no grupo de profissionais treinados, mais cuidadores eram melhor
aconselhados a dar fluido extra à criança doente, ministrar corretamente a
medicação oral e reconhecer sinais e sintomas para retorno imediato ao serviço
de saúde, indicando que as regiões brasileiras que ainda não implementaram a
estratégia AIDPI devem ser incentivadas a adotá-la(10).
O mesmo estudo mostrou que enfermeiros treinados em AIDPI tinham desempenho tão
bom quanto e às vezes melhor do que médicos treinados na estratégia(10).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No PSF, há um dimensionamento diferenciado da enfermeira na equipe de saúde,
uma para cada 4 mil habitantes, enquanto no modelo hegemônico, a proporção
preconizada é de uma para cada 20 mil habitantes. Considerando que a área
específica de conhecimento da enfermagem é mais centrada no cuidado, pressupõe-
se que a prática da enfermagem no PSF permita a aplicabilidade da concepção e
dos eixos fundamentais do programa, como o desenvolvimento de ações de educação
em saúde(11).
Entretanto, os dados do presente estudo apontaram que o efeito da ação dos
serviços sobre o conhecimento e o cuidado materno ainda não se traduz de forma
efetiva na realidade encontrada. Quanto à abordagem utilizada no enfrentamento
dos problemas de saúde referidos no estudo, observa-se que o grau de
conhecimento da mãe/familiares sobre cuidados específicos quando a criança
apresenta infecção respiratória aguda e/ou doença diarréica é semelhante nos
dois modelos assistenciais. Com relação à diarréia, ainda persistem
conhecimentos superados do ponto de vista científico. Os resultados mostraram a
necessidade de desenvolver ações de educação em saúde em níveis mais próximos
da população, ou aperfeiçoá-las, no caso da unidade com-PSF, cujos
profissionais são treinados na estratégia AIDPI.
É preciso compreender a importância da ação educativa como um componente de
impacto, não só na mudança do perfil de morbimortalidade, mas também em direção
à construção da cidadania como elemento emancipatório. Nessa perspectiva, cabe
uma reflexão acerca da formação dos profissionais de saúde que ainda tem sido
centrada na formação de especialistas, com visão voltada para o velho modelo
biomédico-biologicista, com enfoque curativo e orientado para a atenção
individual. Muitos projetos sustentados pela visão do processo saúde-doença
como determinação econômico-social e cultural têm surgido, porém a maioria das
escolas ainda tem introjetada em seus projetos pedagógicos, a racionalidade
científica ancorada na concepção mecanicista. Esse modelo resulta em um
determinado perfil profissional que não contempla os conhecimentos, habilidades
e atitudes necessárias para o enfrentamento dos desafios implícitos ao atual
sistema de saúde. Portanto, a transformação deve incluir a mudança do perfil
profissional nas escolas e nos serviços(12,13).