A corporalidade do cliente segundo representações de estudantes de enfermagem
PESQUISA
1. INTRODUÇÃO
O ato de cuidar na enfermagem estabelece uma relação muito próxima, íntima
muitas vezes, de contato físico intenso e permeado por várias sensações e
sentimentos. Esta atuação diretamente sobre o corpo do outro, faz com que a
profissional ou estudante de enfermagem entre em contato com a intimidade do
cliente. Trata-se de uma relação em que as humanidades se encontram, num
processo de comunicação que pode ser, por vezes, interessante, revelador,
constrangedor, ou gratificante para ambos. É na comunicação/interação que se
materializa a relação enfermeira/cliente: interação entre competências
diferentes, experiências de vida e ideologia variadas, estado inferior e
disposição de ânimo desiguais, enfim, entre personalidades diferentes(1).
Esse cuidar de enfermagem se dá no corpo do cliente. Tal estrutura dá sentido a
existência e pode ser considerada como a nossa presença e morada no mundo. O
corpo possui uma concretude física, ocupa um lugar no espaço. Em outras
palavras, o corpo nos dá concretude a uma existência. Sobrepondo as diferenças
culturais, comportamentais e históricas, existem certas semelhanças, geradoras
de uma identidade que aproxima o ser humano de todas as épocas. Este talvez
seja o denominador comum, capaz de atravessar fronteiras temporais e espaciais,
é derivado da estrutura e do esquema corporal do indivíduo, considerando as
variações anatômicas regionais. Justamente pelo reconhecimento das diferenças e
das semelhanças existentes entre as civilizações, talvez possamos recuperar uma
secreta unidade: o próprio ser humano(2).
Diante dessas colocações, fica claro que a atuação da estudante de enfermagem
ocorre diretamente sobre o corpo do cliente, tornando-se a receptora de suas
emoções. Com base nessas prerrogativas formulamos os seguintes problemas Como a
estudante de enfermagem percebe o corpo do outro? e Quais as representações do
corpo do cliente, elaboradas pelas estudantes do curso de Enfermagem?
Para tanto, os objetivos elaborados foram: 1) conhecer como as estudantes de
enfermagem percebem o corpo do cliente; 2) identificar quais as subjetividades
emergentes desta relação.
2. MÉTODO
Trata-se de um estudo com abordagem qualitativa(3), fundamentado na teoria da
Representação Social(4,5) para subsidiar a apreensão e análise de como as
estudantes de enfermagem representam seus clientes e as subjetividades
emergentes do contato da relação do cuidar.
Os dados foram obtidos em entrevistas abertas (não-estruturadas) com uma
pergunta norteadora: "Levando em conta as vivências dos estágios, como você
percebe o corpo do cliente e como é a sua relação com este corpo que recebe os
cuidados de enfermagem?". As entrevistas foram realizadas com 20 estudantes,
distribuídas em grupos de cinco para cada série da graduação, abrangendo, desta
forma, as quatro séries existentes do curso de graduação em Enfermagem da
Universidade Federal de São Paulo.
Optou-se pela técnica de análise categorial, escolhida entre as técnicas de
Análise de Conteúdo(6), para tratamento e interpretação dos dados emergentes da
pergunta norteadora, permitindo a investigação dos temas subjacentes a cada
categoria, a partir dos relatos das entrevistadas.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
A análise, centrada na totalidade do discurso, foi demorada e após exaustiva
leitura flutuante, destacamos recortes das falas dos sujeitos entrevistados,
formando um rol de unidades significantes, que segundo nossa percepção
representaram categorias como:
3.1 Corpo objeto
O corpo é representado pelas estudantes de enfermagem como objeto de cuidado,
de estudo e de exercício de poder.
Desta forma, em relação ao corpo objeto de cuidado, no espaço subjetivo da
interação estudante-cliente, a estudante de enfermagem constrói a representação
do corpo do cliente no ato do cuidado, percebendo os limites do seu corpo e das
suas ações. Representam seu cliente como um corpo holístico, ou seja, um corpo
que expressa sentimentos, uma história de vida e uma cultura, um ser
biopsicossocial:
Bio porque é um corpo, nós temos que encarar o indivíduo como um
corpo, a anatomia mesmo do indivíduo, através dela vê as doenças, vê
a normalidade, ver o que está bem, fazer um parâmetro, mesmo com o
corpo. Esse é o bio, ver a natureza mesmo do ser humano. Psíquico por
que a gente tem que integrar, saber um pouco mais dos sentimentos
dessas pessoas, a expressão dessa pessoa. E social porque, engloba a
classe dessa pessoa, da onde essa pessoa veio, porque isso faz
diferença.(E18, 1ª série)
Ao representar o cliente como um corpo biopsicossocial, as estudantes citaram a
doença como uma causa de desequilíbrio psicológico, e o toque como instrumento
de cuidado, proporcionando um bem estar ao outro e diminuindo sua dor.
A linguagem dos sentidos, na qual podemos ser todos socializados, é capaz de
ampliar nossa valorização do outro e do mundo em que vivemos e de aprofundar
nossa compreensão em relação a eles. Tocar é a principal dessas outras
linguagens. Desta forma, o toque humano é capaz de alcançar a amenização de
sentimentos agitados e a mitigação da dor, o alívio de perturbação emocional, a
tranqüilidade na promoção, ou seja, uma sensível diferença para melhor(7).
Porém, a estudante possui um estranhamento em tocar o corpo do outro por não
saber os limites e onde tocar no corpo do cliente:
Tocar em mim mesma é diferente de tocar em outra pessoa, porque eu
sinto o que está acontecendo. Agora, eu não sei o que a outra pessoa
sente quando toca outra pessoa. Então, é difícil assim, você saber
medir isso, como eu vou fazer para agredir menos essa pessoa. (E19,
1ª série)
Incertos quanto ao tocar ser uma forma de compartilhar experiências com outros,
permitimos a nossos temores e incômodos que limitassem as ricas possibilidades
da comunicação não-verbal(7).
As representações sobre o cuidar e o cuidado foram as mais diversas possíveis.
Foram citados desde uma reabilitação física até como "ser mãe do paciente". As
estudantes colocam que é necessário disponibilizar tempo e atenção ao cliente,
explicar os procedimentos, ouvir queixas, atender às necessidades, proporcionar
um bem estar físico e mental, e humanizar os procedimentos. Dentre desses
cuidados, as estudantes utilizam a conversa como recurso terapêutico,
diminuindo a dor e ansiedade do cliente:
No momento em que você está na prática, você está avaliando todas
aquelas coisas, valores, que o paciente tem para estar tornando
aquele procedimento não tão invasivo, não tão prejudicial para o
paciente. Então, pra você lembrar que o paciente sente dor, como você
faz para evitar que ele sinta muita dor? Conversando com ele para
diminuir a ansiedade acaba interferindo, explicar os procedimentos,
tentar ver a melhor forma para que aquele procedimento não machuque
tanto ele.(E7, 4ª série)
Conversar com o cliente, principalmente com aqueles que estão restritos ao
leito, configura-se em um cuidado de enfermagem, na medida em que esta conversa
funciona como terapia para minimizar a solidão sentida por ele(8). A conversa é
um caminho para a interação pessoal, através da qual podemos identificar e
intervir mais efetivamente nas solicitações de cuidado do cliente(9).
Há uma representação de corpo objeto de estudo, pois as estudantes colocam em
pauta a questão do hospital-escola e ter um cliente que deixa ser cuidado por
uma estudante:
Para falar a verdade, ele tem que ser muito corajoso, ainda mais em
hospital escola e deixar ser cuidado por aluno.(E2, 2ª série)
Além disso, elas representam o corpo do cliente como um "boneco", um objeto
servindo de estudo e "cobaia" para realizar os primeiros procedimentos:
Ele está sendo meio que cobaia está servindo de alguém para a gente
treinar as práticas. Ele está servindo mesmo, para muitos, meio que
um boneco que a gente vai lá e tem que fazer tudo para a gente ficar
boa. Se a gente não treinar nada do que a gente aprendeu a gente vai
sair do 4º ano sem saber nada. (E2, 2ª série)
Que nem tirar sangue, a gente aprendeu no boneco, no braço lá que
tinha mais furo do que peneira. E eu acho que não vai ser a mesma
coisa no paciente. E a gente não teve a oportunidade de estar fazendo
em ninguém ainda. E mesmo assim, você tira de 10 pessoas, de cada um
vai ser diferente, cada um vai agir de uma maneira, e eu vou agir
diferente com cada um.(E10, 1ª série)
Esta despersonalização do corpo do cliente enquanto objeto de estudo, foi
representada pelas estudantes como resultado do que vivenciam no ambiente
hospitalar e conseqüência das variedades de especializações:
Eu acho muito complicado, mesmo na parte da enfermagem, nos cuidados
de saúde, que é muito dividido, cardio, pneumo, essas coisas. Eu acho
que tem mesmo que ter essa divisão para se aprofundar mais nos
estudos. Ele está na pneumo com problemas respiratórios, mas a gente
tem sempre que atentar para as outras queixas. Por isso que eu falo
que não pode ver o paciente fragmentado, tem que ver ele como um
todo. (E13, 3ª série)
O cliente no contexto hospitalar é visto como ser passivo; tendo sua identidade
diluída ou pouco considerada, de conformidade com o seu seguro social, passa a
ser conhecido por um número, como o paciente da ala azul, ou o paciente do
seguro tal; ou passa a ser conhecido, segundo o diagnóstico, como o canceroso,
o gotoso, o comatoso(10).
Esta visão de corpo despersonalizado também ocorre quando as estudantes vão
fazer algum procedimento para se desvincularem do lado emocional do cliente:
Só enxerguei a veia ali, não enxerguei mais nada.(E2, 2ª série)
Só que quando eu vou fazer um procedimento naquela parte do corpo, eu
procuro me desligar um pouco do paciente, me desligar um pouco do
sentimento do paciente para poder conseguir fazer aquele procedimento
e depois eu volto a vê-lo como um todo.(E8, 4ª série)
No hospital, o paciente é submetido a um ritual de despersonalização, onde é
transformado num "caso" numerado e é colocado num setor de estranhos. A ênfase
recai sobre a sua doença física, com poucas referências ao seu ambiente
doméstico, sua religião, suas relações sociais ou seu status moral, ou mesmo ao
significado que o paciente dá ao abalo em sua saúde. A especialização
hospitalar garante que os pacientes sejam classificados e colocados em
determinada ala, com base em idade, gênero, órgão ou sistema envolvido ou
gravidade. Todos são destituídos de seus suportes de identidade social e
individualidade e uniformizados em pijamas, camisolas ou roupões de banho(11).
Ao iniciarem suas práticas estagiando em um hospital-escola e se depararem com
o paciente e o processo saúde-doença, além desta representação do corpo
enquanto objeto de estudo, as estudantes representam este corpo como objeto de
exercício de poderpelo profissional de saúde. Desta forma, ser profissional da
saúde, vestir um avental/jaleco é representado pelas estudantes como "doutores
do conhecimento", "senhor do conhecimento", sendo que este conhecimento, o
saber científico, é tido como poder:
As pessoas te vêem de avental, te vêem como profissional da saúde e
já vão te chamando de doutora. Acham que você tem, por obrigação dar
o melhor de si para estar auxiliando, para tentar estar amenizando a
situação dessas pessoas, então elas te endeusam muito, elas ficam te
vangloriando muito, pra elas você é tudo, você é que sabe mais, para
as pessoas humildes. A gente vê isso na humildade das pessoas, no
poder aquisitivo. Pelo fato de você estar usando um jaleco, você é o
senhor do conhecimento, você é detentor do conhecimento. (E9, 1ª
série)
O jaleco branco, quando usado em um cenário de hospital ou consultório, é tido
como um símbolo de um ritual de cura e poder da ciência médica. Tal símbolo diz
respeito não tanto ao médico individualmente, mas sim aos atributos de seu
papel como representante daquela categoria de pessoas que constituem o conjunto
profissional oficialmente encarregado da cura, um grupo com o poder de usar as
forças da ciência e da tecnologia para os benefícios de seus pacientes. Ele
simboliza atributos como o poder para hospitalizar os pacientes, prescrever
medicamentos e exames, orientação para o cuidado e alívio do sofrimento e
detentor de conceitos científicos e técnicos(11).
Os membros das classes baixas, em geral, não adotam uma atitude crítica em
relação ao conhecimento médico, nem aquela atitude racional que consistia em
tê-lo como falso ou verdadeiro. Isso ocorre, pois a escola primária inculca nos
membros das classes populares o respeito pela ciência, o respeito por aquilo
que é, e ficará para sempre inacessível; respeito que deve se manifestar pela
recusa da pretensão, ou seja, por uma clara consciência de sua própria
ignorância, pela submissão aos detentores legítimos do conhecimento médico, os
médicos, aos quais se delega até o direito de falar do próprio corpo e dos
males que o atingem(12).
As estudantes representam uma diferença entre o cliente de um hospital público
e um cliente de um hospital privado. O cliente que utiliza o hospital público é
mais receptivo e mais carente, possui uma cultura distinta e o relacionamento é
diferente:
A família do indivíduo que está em um bom hospital (hospital privado)
vai estar dando auxílio, assistência, nem que seja financeira. É
outro comportamento. Agora um indivíduo que está num hospital
público, ou morador de rua, por exemplo, que está no hospital, é
outra convivência, ele pode ser mais receptivo a mim, ao contrário de
um paciente que vai estar em um hospital particular, ele pode estar
mais arredio, eu acho que o mundo são distintos. (E9, 1ª série)
O discurso da estudante de Enfermagem desvela a difícil relação existente entre
o setor público e o privado. Muitos querem usar a lógica do serviço privado no
serviço público, pois no setor privado, as pessoas que dirigem o serviço são
permanentes, traçam objetivos de longo prazo e cuidam para que sejam atingidos,
senão perdem investimentos, patrimônios e consequentemente o lucro. No serviço
público ocorre exatamente o contrário, não se visa lucro, e os dirigentes são
transitórios, dependendo da administração política vigente, tornando-o assim
instável, pois muda a cada quatro anos. Também se pode afirmar que no serviço
público existe um corpo técnico de primeira qualidade que no dia a dia enfrenta
o sério problema de infra-estrutura(13).
Neste mesmo discurso vale ressaltar a analogia que fazem: setor público/serviço
de má qualidade e o setor privado/serviço de boa qualidade. Tal analogia é
simplista, pois o serviço público deveria ser do "público", ou seja, de todos.
Segundo as estudantes, a informação é melhor dada para clientes que freqüentam
um hospital privado:
O privado tem mais cautela porque tem clientes mais informados e
pessoas com mais condições de estar protestando, agindo de acordo com
seus direitos, ou às vezes até abusando dos seus direitos pra cobrar
da equipe, seja do médico, da enfermeira, de quem está atuando. E no
público você não tem essa cobrança tão direta. A estrutura da própria
equipe, infelizmente, não é tão concisa, tão atenta com essas coisas,
então acaba por vezes não respeitando o cliente como respeita na rede
privada. (E15, 4ª série)
O profissional da saúde assume um comportamento diferenciado dependendo da
classe social a que o indivíduo pertence. Adota comunicação e linguagem
específica para a classe social pobre e para a rica. Diante da classe popular
possui uma postura de recusa de fornecer ao doente um mínimo de informações
sobre seu corpo e doenças, em função essencialmente de impedi-lo de manter com
o corpo uma relação científica e reflexiva com a doença. Contrariamente, nas
classes superiores, o profissional da saúde pode fazer-se ouvir pelo doente e o
doente suscitar o interesse e mesmo a amizade do profissional, porque eles
falam a mesma linguagem, têm os mesmo "hábitos mentais", utilizam categorias de
pensamento semelhantes e, enfim, sofreram a influência da mesma força formadora
de hábitos que é, no caso, o sistema educacional(12).
A relação com o cliente envolve jogos de linguagem e entra, nesse conjunto, a
multiplicidade de representações sociais. Forma-se, então, um campo de tensão
entre um saber de cunho técnico e científico, prescritivo, que tem como
objetivo produzir mudanças nos hábitos dos sujeitos(14).
No discurso das estudantes há uma representação de passividade na qual o
cliente encontra-se inconsciente, assim as estudantes impõem tratamentos,
procedimentos e rotinas sem questionar ao cliente, ficando a intervenção da
assistência mais fácil, mesmo porque, nesta situação, o cliente não resiste ao
tratamento. Representam o cliente como "paciente", aquele que sofre ou é objeto
de uma ação, ser passivo que espera serenamente um resultado.
Esta situação de passividade do corpo do cliente foi encontrada na
representação das estudantes como um corpo doente, acamado, internado em um
hospital há vários dias ou meses, dependente de cuidados, com perda de sua
autonomia e muitas vezes próximo da morte.
Esse corpo desfigurado era o corpo todo inchado, com várias áreas de
necrose, nas pernas, por exemplo. Que se ela conseguisse sobreviver
ela teria que amputar as duas pernas, por exemplo. Então, o rosto, o
rosto não, a cabeça toda inchada. Esse corpo me chocou muito. (E20,
2ª série)
Porque, imagina uma pessoa que foi a vida inteira independente, você
cai em um hospital e você vai depender desde o momento que você
entra, mesmo que você não esteja tão mal assim, você está dependendo
dos outros, da medicação que os outros vai te dar, do banho que os
outros vão te dar. Então, eu acho muito difícil, eu acho que deve
passar toda uma história na cabeça da pessoa, eu sempre fui
independente, eu trabalho, eu fiz isso, fiz aquilo, agora eu estou
aqui nessa situação, dependendo do cuidado dos outros, muitas vezes
bate uma insegurança será que ele está fazendo direito, é estudante.
(E14, 3ª série)
Este cenário vivenciado no hospital, instituição de vigilância e inspeção, no
qual os procedimentos realizados fazem com que o corpo seja submetido a
trações, os ossos fixados com pinos, as vísceras, os músculos, os tendões
suturados com fios de diferentes tipos de absorção. O corpo é privado de
alimentos e de água, privado do paladar, nutrido por vias artificiais, com
nutrientes oriundos da alta tecnologia, que promovem crescimento e
desenvolvimento. Vê-se o corpo submetido a observações, a mensurações, em vista
do controle das suas funções, da correção de distúrbios que possam dificultar o
processo de recuperação; corpo vestido ou desnudo, mobilizado, massageado,
oxigenado, com orifícios lubrificados; corpo sujeito às regras do poder e do
saber aceitas pela maioria sem contestação e, muitas vezes, vítimas de
desmandos(15).
3.4 Estigmatização
A sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de
atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma
dessas categorias. Consequentemente, um indivíduo que poderia ter sido
facilmente recebido na relação social cotidiana possui um traço que se pode
impor à atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade
de atenção para outros atributos seus. Ele possui um estigma, uma
característica diferente da que havíamos previsto(16).
Assim, no decorrer dos estágios, as estudantes representam alguns clientes como
chatos, quando não são colaborativos na assistência prestada, criando rótulos
como "poliqueixosos" no prontuário:
Esses pacientes que querem saber são "os chatos", ninguém gosta, são
considerados como "chato", de "poliqueixosos", e escreve no
prontuário: "paciente poliqueixoso".(E1, 3ª série)
Quanto mais fácil ele receber a terapêutica, mais rápido ele tem alta
e mais rápido ele restabelece. Apesar da pessoa não entender isso. É
complicado. Eu chamo ele de paciente tigre. Ele teria o diagnóstico
de enfermagem "Controle ineficaz do regime terapêutico", é o que eu
poria pra ele. (E11,4ª série)
Representam os clientes homossexuais e portadores de HIV como sendo pessoas
"diferentes":
Eu acho que eu já encontrei muita gente diferente, já fiz estágios,
já encontrei homossexuais, já encontrei pessoas com HIV, já encontrei
gente de tudo quanto é tipo, gente recatada, gente depravada.
Depravado que eu falo assim é aquele sem limites, dá para qualquer
um, quantas vezes quer, sem limites. Não assim "ah, esse cara é
depravado", não julgando, mas uma pessoa sem limites.(E6, 4ª série)
3.6 Relação Estudante-Cliente
A categoria "relação estudante-cliente" enfoca aspectos subjetivos emergentes
da relação que é produto da práxis do cuidar, gerando subcategorias como:
identificação com o cliente; criação de vínculo; colocar-se no lugar do outro;
reformulação de conceitos; interação.
Na relação estudante-cliente, a estudante por ficar mais tempo com o cliente
prestando a assistência, acaba desenvolvendo uma relação de transferência do
sofrimento do cliente para si, para aliviá-lo de suas enfermidades e dor.
A estudante se identifica com o cliente ao passar pela mesma situação em que
ele se encontra, desde uma gripe, perna fraturada, até uma consulta em
ginecologia:
Ginecologia é incrível, parece que está acontecendo comigo. O que
está acontecendo com ela, está acontecendo comigo. Eu preciso colher
o papanicolaou, colocar o espéculo é um sofrimento, porque dependendo
da situação, quem já passou pelo ginecologista e ficar naquela
situação tem vergonha. Mas foi só na Gineco que eu tive esse
problema, ser incômodo, coisas incômodas para a mulher. Eu fui para o
estágio de Ginecologia sofrendo, para eu colocar o espéculo era um
sofrimento, para mim essa parte é muito sensível, então eu tinha medo
de machucar, de ser bruta.(E1, 3ª série)
A questão de estar próximo do outro, ter contato humano, a identificação com a
clientela, de ajudar as pessoas carentes, sensibilizam as estudantes, porém ao
se identificar e transferir o sofrimento do cliente para si, conforme vimos
anteriormente, as estudantes sofrem também fora do ambiente hospitalar, pois ao
irem para casa elas ficam pensando no cliente e perdem o sono:
Você vai para casa, fica pensando na doença do paciente, pensando que
ele deve estar sofrendo, o que você pode fazer para melhorar e
ajudar. Você quer tirar tudo que ele tem, mas muitas vezes não é
possível e não consegue. Então, é difícil encarar isso realmente.
Você perde o sono, fica pensando. (E5, 2ª série)
Um estudo sobre o envolvimento emocional da estudante de enfermagem com seus
clientes refere que os reflexos desse envolvimento repercutem na vida futura
como profissional, pois o acadêmico possui uma maior possibilidade de dialogar
com o cliente e de permanecer maior tempo ao seu lado, demonstrando que
questões relacionadas à relação estudante-cliente e suas vicissitudes foram
objeto de estudo no passado e atualmente persistem, pois são assuntos que ainda
fazem parte do universo de discussão na qualidade da formação acadêmica(17).
As estudantes criam uma relação de vínculo com o cliente, ao conversar, ouvir
sua história de vida, partilhar da sua intimidade e assim suscitando aspectos
vinculadores da história de vida de ambos, cuidador e cliente. Neste sentido,
as estudantes referem que é difícil ser somente profissional e esquecer o lado
humano da pessoa. Representam essa relação como se o cliente se tornasse uma
pessoa conhecida:
É uma conversa com o paciente, não chegar do lado dele com presa e
sim poder ouvir o que ele tem pra dizer pra você. Só vai conhecer se
você chegar e conversar, o vínculo só vai existir a partir do momento
em que você ouve o paciente e fala pra ele, não o que ele quer ouvir,
por doloroso que seja tem que falar a verdade. O vínculo é a base da
conversa e ouvir o que ele tem pra dizer. (E13, 3ª série)
Ao vincular-se com o cliente, há o desenvolvimento de uma relação de apego em
ambos os lados. A estudante sente saudade e carinho, porém, esse apego acaba
sendo prejudicial à estudante:
Envolvi-me muito com essa paciente, porque era uma pessoa que tinha
uma história de vida muito sofrida, tinha uma filhinha, pequenininha
de um ano, dois anos. Então, eu me comovi com a história dessa
mulher. Ia pra casa e cheguei a chorar. (E17, 3ª série)
O lado positivo dessa relação, onde se cria um vínculo, é que este facilita e
otimiza a assistência prestada:
Tinha uma paciente que quando eu entrava no quarto ela não queria
falar comigo. Como poderia cuidar melhor dela se a gente promove o
autocuidado. Devia falar "olha, a gente vai fazer assim, quando você
for tomar banho tem que fazer assim, assim e assim". Orientamos, por
exemplo, para tentar promover o autocuidado, mas se ela não me
escuta, se ela não olha pra mim, como eu vou saber se ela está
entendendo? Então, simpatia tem haver também. Acho que ajuda, não
posso falar que é fundamental, mas ajuda. (E20, 2ª série)
As estudantes, ao prestar assistência, desenvolvem o lado humano e se colocam
no lugar do outro de uma forma fácil, pois prestam o cuidado como se estivessem
cuidando de si mesmas:
Colocando-me no lugar dele eu também gostaria de poder escolher,
gostaria de poder ter o direito de escolher, então eu acho que ele
tem todo o direito, mesmo porque ele já está no hospital, um ambiente
que não é agradável, por mais que o ambiente seja bonito, você não
está lá porque você está passeando, está porque precisa, muitas vezes
até com um acesso venoso que incomoda e que você não pode se mexer
direito, alguns materiais como cateter.(E7, 4ª série)
Ao se colocarem no lugar do cliente, as estudantes proporcionam qualidade na
relação e na ação do cuidar, da mesma forma que o vínculo o faz. Esta postura
favorece a atenção das necessidades psicofísicas do cliente.
Verificamos, também, que antes de irem para campo de estágio, ou antes, de
conhecer o seu cliente, as estudantes possuem um "pré-conceito"ou "pré-
julgamento", que após interagirem com o cliente e desenvolverem uma relação,
esses conceitos modificam para o que é observado pela ótica da estudante em
seus estágios.
No começo foi muito estranho, porque eu nunca tive contato direto com
crianças com paralisia cerebral. E muitas vezes você tem um conceito
diferente dessas crianças. Você já está julgando essa criança, tendo
um preconceito indiretamente, um pré-conceito, por que um pré-
conceito? Porque você está criando um conceito dessa criança antes de
você conhecer. E uma coisa que eu posso te falar, que eu achei que eu
ia entrar lá sentindo pena dessas crianças, mas eu estou saindo dali
sentindo orgulho, porque eu acho que eu nunca aprendi tanto em pouco
dias. (E18 1ª série)
A enfermagem mantém uma contínua convivência com os clientes, de modo que isso
lhe possibilita grandes oportunidades de interação(14). Ao desenvolverem uma
atividade de educação em saúde, as estudantes interagem com seus clientes,
tornando a relação mais prazerosa e divertida:
Elas nem prestavam atenção na leitura, mas elas gostavam da atenção
que a gente dava. As brincadeiras faziam barulho e os médicos não
gostavam muito. Resolvemos fazer um teatrinho, porque eram muitas
doenças e muitas especialidades de uma vez só. Falamos sobre escovar
os dentes, porque todo mundo tem que escovar os dentes mesmo. E na
primeira vez que a gente apresentou foi um fiasco foi meio confuso,
muito rápido e não deu tempo pra eles entenderem o teatro, o que a
gente queria falar. Mas a segunda vez, foi muito legal, eles
entenderam e participaram, eles torceram, porque eu sou a cárie e
fico escondida, então eles ficam super ansiosos para a hora que eu
vou entrar. E depois a gente ensinou a escovar os dentes em uma
dentadura e elas "eu sei, eu escovo", criança conta história pra
tudo, e foi muito legal, está sendo muito legal. (E10, 1ª série)
3.7 Comunicação Corporal
A função essencial da enfermagem baseia-se no cuidar. Este é o momento
específico no qual há a interação direta entre a enfermeira e o cliente,
traduzindo a forma e o movimento de uma expressão corporal de ambos,
principalmente da enfermeira que tem em seu corpo um instrumento do cuidado.
Essa expressão corporal vai além da linguagem verbal, envolve todos os sentidos
e, entre eles, o tato possui papel principal no ato de cuidar.
As estudantes percebem em seu dia a dia vivenciados em campo de estágio que o
corpo fala, pois ele está envolvido nas emoções que produz. As emoções são um
primeiro sistema de comunicação, traduzem rupturas e ligações com o meio humano
e físico(18). Além de considerarem a importância da aplicação do conhecimento
da linguagem não verbal na formação do enfermeiro:
A gente aprende assim que o verbal é um pouquinho da linguagem do
paciente ou nossa também, de qualquer pessoa. Acho que o não-verbal é
mais expresso, é espontâneo, porque falar você pode falar uma coisa e
não estar sentindo no momento. Agora o não-verbal não, não tem como
você esconder uma cara de insatisfação ou de desagradado do que você
falou ou fez, aí eu acho que você tem que aprender a interpretar isso
agora.(E3, 2ª série)
Percebem que o cliente exprimiu através de seus gestos, movimentos, expressões
faciais, informações importantes que irão nortear uma anamnese e assistência
prestada.
A habilidade de ouvir e de se aproximar do cliente favorece a relação
terapêutica e abre espaço para a dimensão sensível do cuidado. Para isso, é
relevante saber aproximar-se do cliente e ter sensibilidade em perceber, no
outro, os aspectos verbais e as expressões corporais(14).
3.8 Invasão de privacidade e constrangimento
Foi observado que há um grande constrangimento e significativa vergonha pelas
estudantes quando vão examinar a genitália do cliente. Dessa forma, diante de
tanta vergonha e desconforto da estudante, acaba-se evitando examinar tal
região. Referem que não se sentem à vontade por ser um incômodo muito grande
caso o cliente tenha uma ereção:
Nos primeiros anos era meio chato, principalmente no homem, você tem
um contato muito íntimo, às vezes o homem pode ter uma ereção, toda
aquela coisa, então você fica meio assim, é meio estranho, falar "eu
vou passar uma sonda num homem". É no contato direto mesmo, de ter
que pegar, esse é o maior problema. (E8, 4ª série)
Sexualidade é um termo impregnado de mitos, preconceitos e desconhecimento para
muitas pessoas. É assunto que se reveste de massa compacta de contradições,
tabus e ignorância(19). Na enfermagem a sexualidade também é tratada como um
tabu, percebido pela carência de estudos, discussões e reflexões realizadas em
nível acadêmico e quando viabilizadas aparem numa perspectiva patológica
limitada ao coito e ao ato sexual(14).
Em um estudo(20) realizado com enfermeiras americanas, o qual explorou as
percepções das mesmas sobre a sexualidade relacionada ao cuidado do paciente,
resultou em achados que expõem as dificuldades com o assunto, propondo a
introdução do tema sexualidade no currículo das enfermeiras para que estas
possam adquirir conhecimento e integrar a sua prática.
A fala a seguir demonstra explicitamente um mecanismo de defesa utilizado pelas
estudantes de enfermagem:
Na hora eu não consegui ver o paciente como algo sexuado, mas como
alguém que está precisando de você. Não sei, eu não consegui ver um
ser sexuado lá. Eu consegui ver alguém com uma incapacidade que se
fosse eu iria falar "pelo amor, alguém me ajuda, alguém tenta fazer o
melhor por mim". Foi isso que eu tentei fazer, o melhor por ele. (E4,
2ª série)
Desta forma, prestar uma assistência integral, segundo a análise dos dados
retirados dos discursos das entrevistadas, é muito mais difícil quando
realizado para o sexo oposto do cuidador. As estudantes referem que há uma
significativa diferença em cuidar de homens ao invés de uma mulher, pois ao
conhecerem melhor o corpo feminino, acham menos constrangedor quando a relação
cuidador/ser cuidado é do mesmo sexo:
Acho que se fosse mulher, não teria tanto problema, porque mulher com
mulher é normal, agora por ser homem, porque para passar sonda você
tem que pegar o pênis do paciente, essa é a parte chata, você tem que
literalmente pegar inteiro, acho que isso é a parte mais chata. (E8,
4ª série)
Diante dos fatos apresentados anteriormente, há o reforço da necessidade de
desvelar o tema sexualidade na enfermagem. As instituições formadoras precisam
comprometer-se a capacitar o aluno quanto a este conteúdo, intervindo neste
assunto para que o homem seja tratado como um ser holístico, com seus múltiplos
processos interdependentes, que permeiam o ciclo da vida, dentre eles o da
sexualidade(19).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desvelamos através da aplicação da metodologia da Representação Social e do
procedimento qualitativo junto aos sujeitos, seguindo o percurso do discurso
individual para a determinação do coletivo, categorias importantes que
possibilitaram o entendimento de como as estudantes de enfermagem perceberam o
corpo do cliente. Alem de identificarmos as subjetividades emergentes da
relação que envolve os cuidados prestados pela estudante de enfermagem ao
cliente.
As representações de como as estudantes percebem o corpo que é objeto do
cuidado em enfermagem, são caracterizadas por categorias constituídas por:
corpo objeto de cuidado, que adquire uma conotação biopsicosocial, a
importância do cuidado humanizado, além da valorização do tocar enquanto
aproximação e elemento facilitador da relação estudante-cliente; o corpo como
objeto de estudo, o qual é tido como um objeto de aprendizagem e corpo
despersonalizado, inserido no hospital escola; o corpo enquanto objeto de
exercício de poder, caracterizado pela expropriação do corpo segundo o fator
classe social, envolvendo o caráter da instituição pública e privada, além de
ser representado como um corpo doente sem autonomia; o corpo estigmatizado, que
se mostra através de rótulos estabelecidos a partir de características pessoais
e pela postura de enfrentamento da doença.
Neste cenário da saúde, no qual o corpo é fragmentado e expropriado de sua
identidade, o saber técnico-científico é tido como referência, e os
profissionais de saúde são representados como juízes que sentenciam a
normalidade, baseando-se nos sinais e sensações do sujeito, que entram em cena
para subsidiar o diagnóstico(21).
De acordo com essas representações, é explícito a necessidade de superar uma
mentalidade, ainda profundamente arraigada na cultura do profissional da saúde,
segundo a qual o nosso corpo é tido de máquina complicada, que deve ser mantida
eficiente ou deve ser consertada, caso se encontre estragada. É necessário
recuperar o conceito de corpo como uma realidade articulada(23).
As representações referentes às subjetividades emergentes da relação entre
estudante de enfermagem e cliente são constituídas por categorias tais como:
relação estudante-cliente, na qual há reformulação de conceitos, interação,
identificação com o cliente e criação de vínculo; comunicação corporal,
representada pela importância da linguagem do corpo, norteando a assistência
prestada;invasão de privacidade e constrangimento, representada por sentimentos
de vergonha em relação a exposição da intimidade do outro, principalmente
quando este é do sexo oposto.
Desta forma, a presente pesquisa mostra como o assunto "corpo" pode desvelar um
universo de elementos objetivos e subjetivos expondo a importância do estudo
para subsidiar o ensino de quem cuida do corpo do outro, de quem tem como
profissão o cuidado ao corpo do outro.
Os resultados obtidos contribuirão para o Grupo de Estudos sobre "Corporalidade
e Promoção da Saúde"; com o ensino, na disciplina curricular Psicologia
Aplicada à Saúde, ministrada a estudantes do curso de graduação em Enfermagem
da Universidade Federal de São Paulo.