Compreensão das mães sobre a produção do cuidado pela equipe de saúde de um
hospital infantil
INTRODUÇÃO
Trabalhando com crianças hospitalizadas ao longo da nossa trajetória
profissional, percebemos a importância do cuidado integral à criança e sua
família.
O cuidado é uma palavra que vem sendo muito utilizada há alguns anos entre os
profissionais de saúde. Segundo o filósofo alemão Martin Heidegger(1), cuidado
"significa um fenômeno ontológico-existencial básico". Ainda, segundo o autor,
do ponto de vista existencial, o cuidado (cura) "se acha a priori, antes de
toda atitude e situação do ser humano (presença), o que sempre significa dizer
que ele(a) se acha em toda atitude e situação de fato".
De modo geral, falar de cuidado de saúde, ou cuidado em saúde, atribui ao termo
um sentido já consagrado no senso comum, o de um conjunto de procedimentos
tecnicamente orientados para o bom êxito de certo tratamento. Porém, cuidado,
do latim cura, em uma forma mais antiga, coera, era usado nas relações de amor
e amizade, expressando uma atitude de desvelo e preocupação(2-3).
A doença é interpretada, pela concepção biomédica, como um desvio de variáveis
biológicas em relação à norma. Este modelo, fundamentado em uma perspectiva
mecanicista, considera os fenômenos complexos como constituídos por princípios
simples, isto é, relação de causa-efeito, distinção cartesiana entre mente e
corpo, análise do corpo como máquina, minimizando os aspectos sociais,
psicológicos e comportamentais(4). A formação dos profissionais de saúde, tendo
por base o referido modelo, centrado na doença, reduz o cuidado ao corpo
doente, esquecendo que o doente é um ser de sentimentos e pensamentos.
Mesmo sem saber cientificamente o que é sua doença, o enfermo sabe o que ela
significa na sua vida e onde se sente incapaz. Na opinião de Canguilhem(5), o
homem, mesmo sob o aspecto físico, não se limita a seu organismo; é além do
corpo que se deve olhar para julgar o que é normal ou patológico para esse
mesmo corpo. Segundo ele, é o próprio indivíduo quem avalia o que é normal e o
que é patológico, porque é ele quem sofre essa transformação.
Em contraponto ao cuidado segundo o modelo biomédico, ainda predominante no
Brasil, fazemos referência ao cuidado integral. Falar em cuidado integral
remete à Constituição Federal do Brasil(6)de 1988, ao Art. 198, alusivo ao
atendimento integral em saúde e, também, ao Sistema Único de Saúde (SUS)(7), de
1990, que tem como uma de suas diretrizes básicas, a integralidade. Porém, a
integralidade não é só uma diretriz do SUS. Ela se relaciona a uma luta por uma
sociedade mais justa e solidária. A integralidade, "no contexto da luta do
movimento sanitário, parece ser assim: uma noção amálgama, prenhe de sentidos"
(8).
O cuidado como uma ação integral para o ser humano e do ser humano que vive na
busca contínua do cuidado, diante da fragilidade social existente no mundo
capitalista, segundo Luz(9), não é um procedimento técnico simplificado, mas o
tratar, o respeitar, o acolher, o atender o ser humano em seu sofrimento(9-10).
Em um dos espaços do cuidar -o hospital -todas essas questões se revestem de
ainda maior importância, dada a situação de extrema fragilidade, dependência e
perda de autonomia em que os pacientes se encontram quando internados. O
hospital moderno tem como marca histórica de sua constituição organizacional,
impor aos "pacientes" o isolamento, a despersonalização e a submissão
disciplinar de seus corpos (e subjetividades) a procedimentos e decisões que
sequer compreendem(11).
Se a hospitalização é um momento difícil na vida de qualquer pessoa, no caso da
criança, ela pode se configurar como uma experiência potencialmente traumática,
na medida em que a afasta de sua vida cotidiana e do ambiente familiar, e a
coloca em um mundo desconhecido, com suas rotinas, equipamentos, pessoas,
limitações de movimento, cheiros, procedimentos e dores(12). Não sem razão,
portanto, as internações são carregadas de medos, inseguranças e angústias
diversas, tanto para a criança quanto para seus familiares.
Conforme assinala Ceccim(13)"o hospital e a enfermidade produzem, para a
criança, uma relação peculiar com o mundo, onde o cuidado, a cura e os atos de
saúde requerem uma abordagem mais integral".
Como profissionais de saúde que somos, preocupadas com o desenvolvimento do
cuidado integral à criança dentro do contexto hospitalar, buscamos neste estudo
apreender como as acompanhantes percebem o cuidado dispensado à sua criança
nesse ambiente assistencial, de modo a contribuir para as reflexões e o
desenvolvimento de ações que possam a facilitar o respeito aos direitos dos
pacientes pediátricos e uma atenção mais humanizada.
MÉTODOS
A pesquisa empreendida foi de abordagem qualitativa. A opção pela metodologia
qualitativa é consonante com Minayo(14), para quem esta abordagem se afirma no
campo da subjetividade, com o universo de significados, crenças, valores, entre
outros. Leopardi(15)corrobora com Minayo, afirmando que, na pesquisa
qualitativa, "tenta-se compreender um problema da perspectiva dos sujeitos que
o vivenciam", ou parte da sua vida diária, seus sentimentos e desejos, bem como
na perspectiva do pesquisador.
O campo da pesquisa foi um hospital Infantil, público, na cidade de Fortaleza,
de referência para todo o Estado, no cuidado à criança e ao adolescente, tanto
nas áreas clínicas como cirúrgicas, no ano de 2006.
O referido hospital serve de campo de estágios para diversos cursos de
graduação das várias universidades de Fortaleza bem como de nível médio e de
residência médica em diversas especialidades pediátricas.
Existem diversos projetos de humanização no hospital, entre eles citamos Cidade
da Criança, Brinquedoteca, Cirurgia sem Medo, Criança Cidadã, Mãe Canguru, Mãe
Acompanhante. Esses projetos atendem tanto a criança como sua família,
destacando a instituição em relação a outros hospitais do SUS, em Fortaleza.
Nesse hospital, os locais de internação são denominados de blocos. A nossa
pesquisa foi desenvolvida em um bloco cirúrgico, que denominaremos de X. O
bloco em questão possui sete enfermarias num total de 46 leitos. Não é incomum
que algumas das crianças - e, por conseguinte, seu acompanhante - passem, por
vezes, longos períodos de tempo internados ou estejam sujeitos a internamentos
repetidos.
A entrada no campo se deu após aprovação do projeto, pelo Comitê de Ética e
Pesquisa do Hospital.
Os sujeitos da pesquisa foram sete acompanhantes, todas eram mulheres, mães de
crianças internadas, exceto uma avó que era a responsável pela "criação" do
menor em discussão. A participação se deu orientada sobre o termo de
consentimento livre e esclarecido, tendo todas concordado e assinado este
termo. As acompanhantes foram identificadas com nomes fictícios.
Na coleta dos dados, utilizamos um roteiro de entrevista com: dados de
identificação (nome, idade, procedência e renda familiar) e, quatro perguntas
abertas: "Como os profissionais de saúde cuidam do seu filho?", "Quem cuida de
seu filho?", "Como realizam procedimentos dolorosos?" e "Como se processava o
cuidado no período noturno?"
Após leitura exaustiva dos discursos, recortes de trechos, confrontos dos
vários discursos dos sujeitos, organizamos cinco temáticas: Cuidar no sentido
de executar procedimentos, Identificando o profissional cuidador, O
profissional e o cuidado especializado e/ou doloroso, O cuidado à noite e
Dificuldades no relacionamento acompanhante x profissional que foram
interpretadas com o referencial teórico pertinente à pesquisa.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Cuidar no sentido de executar procedimentos
Conforme os discursos de algumas acompanhantes, a equipe de saúde (referindo-se
mais às auxiliares de enfermagem) cuidava bem das suas crianças. Esse "cuidar
bem" era no sentido de dar o medicamento nos horários estabelecidos, de brincar
com a criança, de não puncionar várias vezes "tentando achar a veia", entre
outros: o discurso a seguir, destaca vários desses aspectos:
Elas [as auxiliares de enfermagem] têm o maior carinho com ele, os
remédios vêm na hora certa [...]. Tratam direitinho, pra puncionar a
veia elas fazem o possível pra não ficar furando.
Elas conversam, brincam, são maravilhosas [...].
Eu acredito que eles fazem do Super-Homem com maior carinho, eu não
sei dos outros, mas eu sinto isso [...] Não por ele ser melhor, que
eu sei que toda criança, eles cuidam bem [...] O meu sentimento [é]
que eles cuidam com carinho, que eles fazem a cirurgia com muito
gosto [referindo-se aos médicos e enfermeiras] (Acompanhante do
Super-Homem).
A avaliação da "qualidade" do cuidado prestado, feita pelas mães e
acompanhantes, também passa muito pelo "sucesso" dos procedimentos executados:
Só quero dizer que foi muito bom, graças a Deus, foi um sucesso a
cirurgia, ele está se recuperando bem e eu gostei (Acompanhante do
Zorro).
Na realidade, as acompanhantes desconhecem o cuidado integral, vendo-o apenas
como o acesso à internação, aos exames e tratamentos e relacionando-o no máximo
a um tratamento respeitoso e gentil por parte daqueles que atendem aos menores,
mas sem associá-lo ao reconhecimento dos direitos do paciente, de sua
subjetividade e às suas referências culturais.
Percebemos que esse desconhecimento ocorre também com alguns profissionais.
Embora tenhamos presenciado momentos em que alguns profissionais de saúde
demonstravam carinho, atenção à criança e seu acompanhante, isso não significa
que houve um cuidado integral, mas apenas um passo ou alguns passos na direção
deste cuidado.
O cuidado integral em saúde, segundo Cecílio e Merhy(16), aconteceria a partir
de uma combinação generosa e flexível de tecnologias duras (ligadas a
equipamentos, procedimentos), leve-duras (uso de saberes bem estruturados) e
leves (relacionais no espaço intersubjetivo do profissional de saúde e
paciente). Cuidado envolveria, portanto, tecnologia e humanização combinadas,
como ponto de partida para qualquer intervenção hospitalar, no desafio de
adotar o lugar do paciente e suas necessidades singulares.
Nesse sentido, ainda falta um espaço, que não sabemos mensurar em termos de
tamanho ou dimensão, para acontecer o "encontro" descrito por Ceccim(13) e
Merhy(17), entre outros autores que defendem a integralidade. Isso ocorre
apesar da integralidade vir, há muitos anos, sendo objeto de grande produção e
debate na saúde, principalmente no meio da saúde coletiva. Talvez porque ela
não seja suficientemente "discutida", e menos ainda efetivamente incorporada,
no espaço das práticas, da clínica, entendida esta não como a clínica dos
médicos e sim dos vários e distintos profissionais de saúde.
Infelizmente, a incorporação desse atributo às práticas cotidianas dos sujeitos
em saúde ainda parece depender muito da formação de cada profissional. É um
desejo ou uma consciência individual querer cuidar de forma integral. Mattos8
faz um questionamento sobre isso: "Seria integralidade um adjetivo de uma
atitude de certos profissionais, ou uma marca das práticas desses
profissionais?"
Esse cuidado também não é visto como um direito, de saúde e de cidadania. Ao
contrário, parece vinculado a uma atitude cooperativa, quase passiva frente à
situação de internação e aos procedimentos realizados no âmbito do hospital.
Conforme informou uma acompanhante, a auxiliar cuida muito bem do seu filho
porque ele é "bonzinho":
A auxiliar de enfermagem também cuida dele muito bem, por ele ser um
menino muito bom, muito calado, muito quieto (Acompanhante do Super-
Homem).
Ou seja, na visão da acompanhante, a criança tem de se "comportar bem" para ser
bem atendida, independente da sua dor, seus sentimentos e medos. Independente,
portanto, de ser este um direito da criança e da família.
A permanência prolongada no ambiente hospitalar, que facilita o estabelecimento
de vínculos da criança e das famílias com os profissionais de saúde, parece ser
outro elemento que modifica ou interfere nos cuidados prestados, contribuindo
para um cuidado diferenciado ou mais humanizado. Uma das acompanhantes
sinalizou para essa característica distinta do atendimento:
Não é criticar, mas eu acho que as meninas [as auxiliares] têm um
tratamento diferencial com ela [referindo-se a outra acompanhante,
mãe do Batman]. Talvez seja [...] porque já conhece há mais tempo
[...] Às vezes, pode ter mais necessidade do que eu, mas eu não sei
não, acho tratamento diferencial [...] Ontem, uma mãezinha reclamou,
porque a gente ia lá [o posto de enfermagem]: "Eu dei banho no meu
filho, tem que trocar o curativo". E ela [a auxiliar]: "Depois, eu
vou". Passava uma hora, meia hora, a gente ia de novo: "Tem que
trocar o curativo". E ela: "Mãezinha, eu já sei", mas não ia na hora
que a gente pedia. A outra [mãe do Batman] não, chegava: "Fulana, meu
filho está assim, assim". Na mesma hora, ela [a auxiliar] ia, podia
está fazendo o que fosse, às vezes tava cuidando do nosso [filho] e
ia ver o dela(Acompanhante do Homem Aranha).
Apesar de, por direito, não existir (ou não dever existir) hierarquia entre os
indivíduos que são cuidados, no cotidiano das práticas dos serviços de saúde,
diferenciais de comportamento, de tratamento, de cuidado, enfim, se
estabelecem. Em parte isso decorre do fato de que cuidado tem uma forte
dimensão relacional e subjetiva, dependente de vínculos, afinidade, percepção
de necessidades, e esses diferenciais podem ser mais bem percebidos pelos
familiares que pelos profissionais de saúde. Os familiares podem inclusive como
fez a acompanhante do Homem Aranha, buscar hipóteses ou justificativas para
esses "tratamentos" distintos: mais tempo de internação, mais necessidade de
atenção, mais afinidade entre familiar e profissional.
Identificando o profissional cuidador
Quando perguntamos às acompanhantes quem cuidava de suas crianças, a resposta
quase unânime foi a seguinte: a equipe de enfermagem, os médicos e elas. Outros
profissionais integrantes da equipe de saúde atuante no setor estudado a
nutricionista, a fisioterapeuta, a terapeuta ocupacional, a assistente social,
que estão diariamente em contato com as crianças não foram citados, a não ser
quando mencionamos explicitamente.
Todas as mães se incluíram como uma das principais agentes desse cuidado à
criança porque, conforma menciona Spitz(18), existe uma relação de amor e
afeição da mãe para com o filho. A criança torna-se um objeto de contínuo
interesse para ela. A equipe de enfermagem e médicos tendem a ser
consensualmente citados por serem estes os profissionais de saúde mais próximos
da criança e de forma constante, principalmente a equipe de enfermagem, que
permanece 24 horas por dia na unidade.
Começa por mim, primeiramente. Eu tenho muito cuidado com ele. Aí,
vem a equipe médica, que é o dr. X, o cirurgião dele, dr. Y [falou o
nome dos diversos médicos que atendem a criança]. Eles é que fazem,
todo dia, as prescrições, e, às vezes, à tarde, se tiver alguma
intercorrência, os plantonistas. [...] As enfermeiras, as auxiliares
e eu, principalmente (Acompanhante do Batman).
Além disso, deve ser destacado que a percepção pela acompanhante de quem cuida
do menor, em termos de função no processo de cuidado até chegar à possibilidade
de nominar esses profissionais, parece guardar estreita relação com o tempo de
contato, no caso de internação. Isso fica evidente na última narrativa ora
exposta da mãe do Batman, que já se encontrava internado por quase dois meses -
como pelo relato a seguir:
[No segundo dia de internamento, ao ser perguntada sobre quem cuidava
do seu filho].
[...] Não, quem vai operar [...] eu não sei, não sei não!
[Perguntada se algum profissional chegou para conversar com ela].
Nenhum. Tem uma doutora que chegou de manhã [...] não sei se ela é
doutora. [...] acho que ela é a chefe daqui [a enfermeira responsável
pelo Bloco].
[No quinto dia de internamento, ao ser novamente indagada se ela
sabia quem cuidava do seu filho]
De manhã, é a XXX (auxiliar de enfermagem). À tarde, tem [...] porque
eu esqueço o nome dela. De manhãzinha, as doutoras, a pediatra, é a
dra. XXX Às vezes, dr. X, foi ele que me explicou
[...] e a doutora [...], não tô lembrada do nome dela não, que é meio
complicado (Acompanhante do Homem Aranha).
Conforme mencionado, fica bastante evidente no discurso recémexposto a ausência
de registro da participação dos demais membros da equipe de saúde no cuidado às
crianças. Em parte, isso provavelmente se deve ao fato de esses vários
profissionais, embora atuantes diariamente no serviço, terem contato apenas
pontual e de curta duração com as crianças e/ou familiares. Mas talvez possa
ser atribuído também a um diferencial de percepção e valoração, pelos
familiares, do papel desses diversos profissionais no cuidado. Termina por
ficar mais evidente, para os responsáveis, os papéis dos profissionais médicos
como aqueles que decidem as condutas diagnósticas e terapêuticas a serem
realizadas e da equipe de enfermagem mais diretamente envolvida na assistência
direta, como a administração de medicamentos, os curativos, a higiene corporal,
entre outros, e no gerenciamento do ambiente hospitalar. Os demais componentes
da equipe "ficam anônimos" ou têm sua função no cuidado pouco destacada, até
por serem várias dessas funções por exemplo, o brincar identificadas/valoradas
como de menor importância para o restabelecimento da saúde da criança.
Uma acompanhante, que estava no segundo dia de internamento com sua neta, não
soube dizer o nome dos profissionais de saúde e classificou o cuidado como "sem
medida" porque eram várias pessoas que cuidavam da sua criança:
Realmente aqui vem uma, dá uma palavrinha e sai [...] vem outra,
aplica o soro e sai [...] Então, são várias. Também não sei [o nome]
porque não me dizem. Eu também não pergunto. Aqui, o cuidado é sem
medida, porque são várias (Acompanhante da Docinho).
Em virtude da diversidade de profissionais, essa acompanhante classifica o
cuidado como bom, "sem medida". Entretanto, essa multiplicidade também
dificulta ao familiar identificar com precisão quem é quem, no sentido da
função deles no processo de cuidado e na formação de vínculos. Ao comentar o
assunto, Machado(19)relata que, em um hospital-escola, a criança e seu familiar
entra em contato com muitos profissionais de saúde, não aprofundando um vínculo
afetivo com nenhum deles.
O profissional e o cuidado especializado e/ou doloroso
Cuidado integral e humanizado também se refere a uma forma de assistência que
valorize a qualidade do cuidado do ponto de vista técnico. Certos procedimentos
de saúde somente podem ser realizados por um profissional qualificado.
Procedimentos como passagem de sondas gástrica, enteral, vesical; curativos de
maior complexidade, entre outros, requerem habilidade e conhecimento técnico do
profissional médico ou enfermeiro que não devem ser delegados a outro
profissional sem essa qualificação.
Quando perguntamos quem executava os curativos mais delicados e procedimentos
dolorosos, as acompanhantes informaram que só as enfermeiras ou médicos os
realizavam, e as auxiliares só faziam curativos simples e com a permissão dos
mencionados profissionais.
Quando é um curativo muito delicado, o doutor vem. De manhã, o dr X,
que é o médico dele vem, se for pra fazer o curativo, que é muito
delicado, ele mesmo faz, a XX (enfermeira) faz, só as chefes, [...]
só é as auxiliar, quando eles permitem (Acompanhante do Super-Homem).
Como mostram o discurso, há um cuidado dos profissionais médicos e enfermeiros
na realização dos curativos mais complexos e no acompanhamento da evolução da
ferida cirúrgica. Durante os momentos de observação na enfermaria, presenciamos
a execução de curativos mais complexos pelas enfermeiras, enquanto os mais
simples, pelas auxiliares de enfermagem, sempre com supervisão da enfermeira.
Percebemos, também, que as acompanhantes sabiam distinguir claramente as
tarefas específicas de certos profissionais. Ao afirmarem que os curativos mais
delicados eram de competência dos médicos ou enfermeiros, elas, apesar de não
saberem que é um dever do profissional executar esse tipo de procedimento, os
mais "delicados" sabiam que este não poderia ser feito pelo auxiliar de
enfermagem.
Nos procedimentos que causam muita dor e possíveis de ser realizados com
anestesia ou sedação, a criança é encaminhada ao Centro Cirúrgico:
[...] quando é pra botar a sonda, ele vai sempre pro centro
cirúrgico. Agora, pra tirar não [...] pra tirar é fácil [...]. Seca o
balão rápido e tira. Mas agora, pra colocar, ele toda vida vai
anestesiado pra que a criança não sofra muito (Acompanhante do Super-
Homem).
Portanto, há uma preocupação, por parte dos profissionais, em evitar que a
criança sofra durante procedimentos dolorosos, que podem ser minimizados com
sedação. Isto representa um respeito à criança e sua família. E vai ao encontro
do item 7 da Resolução 41/95(20), que delibera sobre o direito da criança não
sentir dor quando existem meios para evitá-la; e da Carta da Criança
Hospitalizada(21), no seu item 5: "Deve evitar-se qualquer exame ou tratamento
que não seja indispensável. As agressões físicas ou emocionais e a dor devem
ser reduzidas ao mínimo".
O cuidado noturno
Durante o dia, o hospital é uma instituição com grande presença de
profissionais, empenhados em tarefas diversas. É também o horário onde circulam
diversas outras pessoas, onde a assistência se faz mais presente e onde as
intercorrências e solicitações são atendidas com mais presteza. A noite, o
número de profissionais decaem, e a solidão e os medos ganham forma.
Perguntamos às acompanhantes o que acontecia no período noturno quando a
criança sentia dor, febre ou era preciso trocar um curativo. Segundo elas,
chamavam primeiro a enfermeira e, se preciso, esta chamava o médico
plantonista.
Sempre chamo a enfermeira do horário [...]. Toda noite, a enfermeira
passa fazendo a visita [...] (Acompanhante do Batman)
Assim que ele chegou da cirurgia, ele tava chorando [...]. Eu peguei
e disse assim: "Enfermeira, eu acho que ele está com dor" [...] Ela
disse: "Eu vou lá ver o que é que tá escrito no prontuário dele". Aí,
ela trouxe TylenolÂ, eu dei a ele(Acompanhante do Homem Aranha)
Nessas narrativas, as acompanhantes demonstraram conhecer a "hierarquia" mesmo
não explícita do serviço e também a quem se dirigir para resolver seu problema.
Como não há um médico exclusivo para o bloco em questão no período noturno, a
enfermeira tenta resolver a situação, quando não consegue resolver chama o
médico plantonista.
Conforme uma acompanhante, nem sempre o plantonista vem na hora em que é
chamado; às vezes, demora mais de uma hora. Porém, ela não demonstrou raiva por
isso, nem considerava como descaso do profissional ou da instituição. Pelo
contrário: segundo afirmou, mesmo demorando, o médico sempre vinha ver seu
filho, e disse isto de uma forma gratificada.
Já cansou de, muitas vezes, ela [enfermeira] chamar o médico pra vim
olhar ele. Demora, uma hora e meia, duas horas, mas sempre vem [...]
Nunca faltou, de deixar de vir, não (Acompanhante do Super-Homem).
Em muitos casos, talvez essa demora ocorra porque o médico esteja assistindo
outras crianças e, assim, mesmo que a criança do bloco em estudo esteja com dor
ou outro problema que requer um atendimento imediato, ele não tem como fazê-lo,
porque existe apenas um profissional de plantão para atender três setores de
internação. Ao mesmo tempo, é importante ressaltar que situações como estas
geram desconforto, estresse (para a criança e seu familiar) e podem envolver,
inclusive, riscos, na dependência do problema associado àquela intercorrência.
Desse modo, a preocupação com a humanização da atenção não pode prescindir da
melhoria das condições de trabalho do próprio cuidador, como condição inclusive
para que os profissionais de saúde possam dedicar-se mais plenamente ao
cuidado.
Dificuldades no relacionamento acompanhante x profissionais de saúde
Situações de conflito não raramente encontram-se presentes nos encontros entre
profissionais e pacientes (ou seus familiares) nos espaços de assistência à
saúde. O ambiente hospitalar não constitui acerca disso uma exceção, ainda que,
nesse lócus, com frequência os pacientes encontrem-se mais fragilizados, seja
do ponto de vista estritamente clínico, seja sob a ótica de seus direitos e
autonomia.
Durante a pesquisa, foram relatadas por três acompanhantes situações recentes
de desentendimento com os profissionais. Múltiplas causas podem contribuir para
isso: um longo tempo de permanência da criança e acompanhante no hospital; a
ansiedade e o estresse gerados pela doença, bem como o acúmulo de trabalho do
profissional de saúde, seu cansaço físico, jornadas duplas ou triplas de
trabalho, entre outros. Independente da causa, produzem estremecimentos ou
desgastes na relação doente/acompanhante e profissional de saúde e podem vir a
interferir no cuidado prestado.
De acordo com Luz(9), "provavelmente não existem, hoje em dia, profissionais
mais estressados e sem descanso que aqueles voltados para a atenção à saúde".
Cuidam da saúde dos outros sem ter quem deles cuidem.
Quanto aos episódios de desavença mencionados pelas acompanhantes, ocorreram
com profissionais da equipe de enfermagem, pessoas que convivem bem próximas
das crianças e sua família:
Eu entrei no quarto [sala de procedimentos] na hora que estava
aplicando o soro. [falei] "Ó mulher, vocês furam demais". Uma se
estressou comigo [...] eu só não voltei para dar resposta porque, eu
quero [o] bem, o melhor pra ela [a criança]. Eu disse que ela só
servia pra está furando [...] não tem aquela expectativa de acertar.
Que eu acho realmente que este povo vem chegando agora, não tem
estudo ainda, habilidade de acertar uma veia de uma criança, porque
não tem noção ainda. [A auxiliar] disse: "Minha senhora, vá pra lá".
Eu quase que voltava pra dizer: "Vá pra lá, não, eu tenho todo
direito de reclamar" (Acompanhante da Docinho).
Segundo esta acompanhante, sua neta passou por várias tentativas para conseguir
puncionar a veia, por uma pessoa que ela julgava não ter experiência. Situações
como essa, que envolvem estresses comuns quando da execução de procedimentos
que produzem dor em particular quando eles se repetem, por incapacidade ou
dificuldades dos profissionais expõem duas facetas a serem mencionadas. A
primeira se refere a uma das origens de conflitos no ambiente dos cuidados à
saúde, onde particularmente procedimentos relacionados com dor punção venosa,
curativos, etc. servem, com frequência, de estopim e gerador de ansiedade.
Outra é que o respeito dos direitos dos pacientes guarda também uma interface
significativa com o modo como os profissionais tratam ou reagem dessas
situações. Não são apenas as crianças ou seus familiares que ficam nervosos ou
angustiados nesses momentos. Também os profissionais se sentem assim. E esse
sentir pode, até mesmo, afetar seu desempenho (a auxiliar em discussão é uma
funcionária antiga, que lida há vários anos com crianças e, possivelmente, por
isso, bastante experiente). Mas a "experiência" não foi suficiente para fazê-la
lidar com a situação de "forma respeitosa", dialogada.
Por fim, é importante também chamar atenção para o fato de que essa foi não a
única, mas uma das poucas vezes em que um acompanhante reconhece e expressa em
voz alta um de seus direitos:
[A auxiliar] disse: "Minha senhora, vá pra lá". Eu quase que voltava
pra dizer: "Vá pra lá, não, eu tenho todo direito de reclamar"
(Acompanhante da Docinho)
Direito de reclamar, de sentir-se insatisfeita com o "tratamento" dado a ela e
à sua criança. Tratamento no sentido de cuidado clínico (modo de cuidar ou
paliar) mas, sobretudo, tratamento no sentido de delicadeza no trato, de
maneira de receber ou de ser recebido, de acolhimento, de recepção.
Outro relato de desentendimento teve por base o desgaste decorrente da espera
pelo cuidado, em virtude de a mãe ver o filho chorando e não ser atendida
quando chamou:
A mãezinha ontem pediu pra trocar o curativo, que ele tava chorando,
tava saindo sangue do penizinho dele [...] Ela [a mãe] se irritou [e
disse]: "Eu tenho raiva, porque tem gente aqui que é só chamar, corre
tudinho [...] a gente morre [de chamar]". [...] Passou mais de 40
minutos, ele chorava muito, aí saía sangue pelo pênis, e melou a cama
(Acompanhante do Homem Aranha).
Às vezes, a demora no atendimento à queixa do doente leva a um sentimento de
raiva e de desespero, por parte do próprio doente e de sua família.
Independente do motivo segundo o qual se retarda o atendimento do pedido da
mãe, existe a necessidade de explicar à família e à criança o porquê do atraso
e, mais ainda, de priorizar situações de atendimento.
O último episódio relatado de desentendimento da família ocorreu com uma
enfermeira, como exposto a seguir:
Eu me enraivei com a Y [enfermeira]. Foi assim: a X [enfermeira]
disse: "Ó mãe da Lindinha, tenha muito cuidado nas meninas
[enfermeiras] que vão fazer [o curativo]. Eu já prescrevi, mas você
diga que não pode jogar fora esse produto, que eu coloquei em cima da
cirurgia da Lindinha, que é para descer a urina" [...] Só troca o
curativo de cima. Eu falei para a enfermeira Y: "Mulher, tu rebolou o
curativo?". Ela disse: "rebolei". Eu falei: "A X[enfermeira] falou
que não era para rebolar, porque isso dura sete dias". Ela falou: "eu
sei". Eu disse: "E porque tu rebolou?" "Porque eu quis". Ela falou
desse jeito: "Porque eu quis". Eu me enfezei, porque estava filtrando
bem com esse produto [...], ela [a X] tinha ido para esse congresso
só pra arrumar esse produto, era pra colocar na cirurgia da Lindinha,
que estava muito feia, porque tinha tirado o abscesso [...] e, com
aquele xixi, num ia sarar, tinha que ser com esse produto. Ela foi e
rebolou, que as outras [enfermeiras] não rebolavam. Eu só achei ruim,
eu só me enfezei com ela, porque ela olhou para mim e disse: "Porque
eu quis" (Acompanhante da Lindinha).
Na narrativa desta acompanhante, existem alguns pontos a serem considerados. Um
deles era a falta de conhecimento do profissional sobre o material utilizado no
curativo. Independente da sua habilidade técnica, faltava-lhe conhecimento do
produto em uso na ferida cirúrgica. Outro ponto que destacamos é o descaso do
profissional em ouvir a mãe, que demonstrou ter ciência do produto em discussão
e que não era para ser removido. Às vezes, há uma "falta de humildade" e
interesse do profissional em escutar a família e aprender com ela a cuidar da
criança. E, um último ponto, mesmo tendo outros, é a falta de reconhecimento,
por parte do profissional, de que errou e deveria tentar corrigir o erro.
Nada justifica a forma como o profissional tratou a situação, mas, como já
mencionamos, Luz(9) questiona: Quem cuida do cuidador? Pois este vive uma vida
estressada, com muitos empregos, além dos seus problemas pessoais. Há uma
necessidade das instituições de saúde olharem para seus funcionários e, não
apenas oferecer boas condições de trabalho, mas proporcionar momentos de
relaxamento, integração ou outras atividades destinadas a diminuir o estresse e
ajudar na reflexão do cuidado humanizado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na nossa realidade, o cuidado em saúde, em particular aquele que é prestado no
ambiente hospitalar, ainda está bastante restrito só a parte técnica, o saber
fazer, deixando muitas vezes, de lado, a relação de subjetividade entre os
sujeitos (o doente e o cuidador). Ser bom profissional é fazer os procedimentos
técnicos na hora, ter destreza manual e conhecimentos específicos, entre outras
coisas. Esta visão tanto parte do doente e seu familiar como do profissional de
saúde. Persiste ainda o privilégio do conhecimento da patologia, da fisiologia,
da técnica, em detrimento do valor do conhecimento do ser humano e do que o
cerca.
O cuidar de alguém requer de cada um a compreensão do outro como ser humano,
integral. O cuidador precisa perceber o sofrimento do doente e compreender seu
momento de dor, bem como o da família. Cuidar de uma criança exige do
profissional de saúde não apenas o treinamento, mas, segundo Winnicott(22), que
"somente se candidatem aqueles capazes de amar". E, conforme o mesmo autor, a
ausência de amor ou os muitos traumas produzidos no cuidado da criança podem
ser permanentemente prejudiciais a ela.
Há ainda uma lacuna referente à importância e significado de um cuidado
humanizado, integral ao ser humano. Existe falta de conteúdos específicos sobre
o cuidado nos processos de formação da área da saúde. A inclusão nos
currículos, das universidades e cursos técnicos das profissões de saúde, de
temáticas e discussões relacionadas com a humanização e com os direitos dos
usuários dos serviços de saúde necessita ganhar destaque. Uma divulgação mais
intensiva pela mídia e pelas organizações da sociedade civil dos direitos dos
pacientes, em particular daqueles hospitalizados, bem como ações pró-ativas
para sua consecução também necessita acontecer para que efetivamente vá se
moldando e construindo essa atenção mais humanizada e humanizadora.