Polifarmácia: interações e reações adversas no uso de medicamentos por idosos
INTRODUÇÃO
O uso de medicamentos constitui-se hoje uma epidemia entre idosos, cuja
ocorrência tem como cenário o aumento exponencial da prevalência de doenças
crônicas e das seqüelas que acompanham o avançar da idade, o poder da industria
farmacêutica e do marketing dos medicamentos e a medicalização presente na
formação de parte expressiva dos profissionais da saúde.
As consequências do amplo uso de medicamentos têm impacto no âmbito clínico e
econômico repercutindo na segurança do paciente. E, a despeito dos efeitos
dramáticos que as mudanças orgânicas decorrentes do envelhecimento ocasionam na
resposta aos medicamentos, a intervenção farmacológica é, ainda, a mais
utilizada para o cuidado à pessoa idosa(1).
No Reino Unido, cerca de dois terços dos idosos utilizam medicamentos
prescritos ou não, e um terço de todas as prescrições é feito para estas
pessoas(2-3) . Nos Estados Unidos os idosos foram responsáveis pela aquisição
de um terço das prescrições médicas emitidas, e por 40% dos medicamentos
vendidos sem receita médica(4). No Brasil estima-se que 23% da população
consome 60% da produção nacional de medicamentos, especialmente as pessoas
acima de 60 anos(5). O Estudo Saúde, Bem-estar e Envelhecimento (SABE)
realizado com 2.143 idosos da cidade de São Paulo apontou que 84,3% deles
usaram medicamentos(6). Em outras cidades brasileiras de diferentes estados,
observou-se que 69,1% a 85% dos idosos usava um medicamento prescrito,
demonstrando a alta prevalência de consumo nesta faixa etária(7-9)
Os prejuízos e desfechos negativos do uso de medicamentos por idosos são bem
reconhecidos e estudados(1-4,10). A freqüência de eventos adversos relacionados
aos medicamentos é maior nesta faixa etária, aumentando expressivamente de
acordo com a complexidade da terapia. O risco de ocorrência aumenta em 13% com
o uso de dois agentes, de 58% quando este número aumenta para cinco, elevando-
se para 82% nos casos em que são consumidos sete ou mais medicamentos(10).
As repercussões potenciais desse uso podem ser consideradas um importante
problema de saúde pública, pois estão relacionadas ao aumento da
morbimortalidade. Nos Estados Unidos, para cada dólar gasto em medicamento são
gastos US$ 1,33 para tratar adversidades relacionadas à toxicidade(1). No
Brasil, a despeito da importância econômica dos problemas decorrentes do uso de
medicamentos, ainda não existem estudos que tenham avaliado tal repercussão no
sistema de saúde.
Tendo em vista que entre os idosos, os eventos adversos associados aos
medicamentos têm a polifarmácia como principal protagonista e que as reações
adversas a medicamentos (RAM), bem como as interações medicamentosas (IM)
representam as conseqüências mais diretamente relacionadas, buscou-se refletir
o impacto desses elementos na saúde do idoso.
POLIFARMÁCIA
A polifarmácia definida como o uso de cinco ou mais medicamentos, aumentou de
modo importante nos últimos anos, apesar de não ser uma questão contemporânea.A
magnitude deste fenômeno evidenciou-se nos Estados Unidos, quando esta prática
passou a configurar como um dos problemas de segurança relacionado ao uso de
medicamento(1,3). Sua etiologia é multifatorial. Todavia, as doenças crônicas e
as manifestações clínicas decorrentes do envelhecimento, apresentam-se como os
principais elementos.
Nos países desenvolvidos, estima-se que 20% a 40% dos idosos utilizem múltiplos
agentes associados e no mínimo 90% das pessoas neste grupo recebem pelo menos
um agente, sendo estimada uma média de quatro por individuo(3,10). No Brasil,
cujo numero de medicamentos disponíveis no mercado aumentou em 500% nos últimos
anos, apresentando cerca de 17.000 nomes genéricos/comercias o consumo de
múltiplos medicamentos ocorre em distintas cidades(11). No Estudo SABE
verificou-se a polifarmácia em 31,5% da amostra(6). Na cidade de Fortaleza
observou-se que 13,6% dos idosos usava cinco ou mais medicamentos prescritos
(9).
A polifarmácia esta associada ao aumento do risco e da gravidade das RAM, de
precipitar IM, de causar toxicidade cumulativa, de ocasionar erros de
medicação, de reduzir a adesão ao tratamento e elevar a morbimortalidade.
Assim, essa prática relaciona-se diretamente aos custos assistenciais, que
incluem medicamentos e as repercussões advindas desse uso. Neste são
incorporados os custos de consulta a especialistas, atendimento de emergência e
de internação hospitalar. Em paises desenvolvidos o custo anual foi de 76,6
bilhões de dólares(10).
O risco de RAM aumenta de três a quatro vezes em pacientes submetidos a
polifarmácia, podendo imitar síndromes geriátricas ou precipitar quadros de
confusão, incontinências e quedas(4,12-13. É frequente o idoso apresentar de
duas a seis receitas médicas e utilizar a automedicação com dois ou mais
medicamentos, especialmente para aliviar sintomas como dor e constipação
intestinal. Esta situação pode ocasionar eventos adversos, uma vez que o uso
simultâneo de seis medicamentos ou mais pode elevar o risco de IM graves em até
100%(11). Uma revisão sobre os óbitos mostrou que 18,2% das mortes foram
diretamente associadas ao uso de mais de um medicamento(14).
A incidência de erros de medicação, como conseqüência da polifarmácia, foi de
15% quando o idoso utilizou um medicamento, elevando-se para 35% quando o
número foi igual ou superior a quatro(3).
REAÇÕES ADVERSAS A MEDICAMENTOS
A RAM é a resposta a um medicamento que seja prejudicial, não intencional e que
ocorre em doses normalmente utilizadas no ser humano(15).
Em idosos as RAM representam um importante problema de saúde pública, cuja
relação de risco é bem estabelecida(16). Estima-se que o risco para RAM e de
hospitalização decorrente seja, respectivamente sete e quatro vezes maior em
idosos do que em jovens(1). Na Europa 20% dos idosos procuraram serviço
ambulatorial devido a RAM, e cerca de 10-20% das internações em hospitais
geriátricos foram relacionadas a elas(17). Em idosos que utilizaram agentes
impróprios, a prevalência foi de 30,4%(14,17).
Embora entre os idosos as RAM apresentem-se com maior gravidade que entre os
jovens, não são, muitas vezes, identificadas ou relatadas. A idade por si só
não representa um fator de risco, mas um indicador para co-morbidade, pois
neste grupo a farmacocinética alterada e a polifarmácia são as variáveis mais
diretamente associadas as RAM(1-3).
De modo geral, as RAM são associadas a desfechos negativos da terapia. Elas
podem influenciar a relação médico-paciente, uma vez que a confiança no
profissional pode ser abalada; retardar o tratamento, pois muitas por
assemelhar-se a manifestações clínicas típicas de doenças, demoram a serem
identificadas, limitar a autonomia do idoso e afetar a qualidade de vida.
Em muitos casos o tratamento da RAM inclui a inclusão de novos medicamentos a
terapêutica, elevando o risco da cascata iatrogênica. O ideal, quando possível,
é realizar a suspensão ou redução da dose do medicamento.
Alguns dos medicamentos ou classes terapêuticas envolvidas em RAM, que
apresentam conseqüências graves nos idosos são ilustradas no Quadro_1(12-14,16-
18).
INTERAÇÕES MEDICAMENTOSAS
Uma interação ocorre quando um medicamento influencia a ação de outro(19). A
gravidade, prevalência e possíveis conseqüências das IM estão relacionadas a
variáveis como condições clínicas dos indivíduos, número e características dos
medicamentos. Esses fatores são agravados pelo mau uso não intencional que
ocorre devido a problemas visuais, auditivos e de memória. Deste modo, idosos
representam o grupo mais vulnerável, visto que a maioria das IM ocorre através
de processos que envolvem a farmacocinética e/ou farmacodinâmica do
medicamento.
Quadro_2
Estima-se que o risco de apresentar IM seja de 13% para idosos que usam dois
medicamentos, de 58% para aqueles que recebem cinco. Nos casos em que o uso
desses agentes é igual ou superior a sete, a incidência eleva-se para 82%(12).
Em pacientes clínicos observou-se que a média de medicamentos prescritos na
alta foi maior (6) do que na admissão (4.5), e que em 47,8% da amostra, o
número de IM potenciais identificadas na admissão hospitalar foi igual ao da
alta, demonstrando que nem sempre o idoso no domicilio é menos susceptível ao
evento(19). No Brasil estudo realizado em hospital público mostrou que 61,8%
dos idosos apresentaram pelo menos uma RAM, sendo que 15% foram relacionadas à
IM potenciais(20).
Muitos medicamentos comumente usados por idosos como, por exemplo,
antiinflamatórios não esteroidais (AINE), beta-bloqueadores, inibidores da
enzima conversora de angiotensina (IECA), diuréticos, digoxina,
antilipidêmicos, depressores do sistema nervoso central são potencialmente
interativos. Há, ainda, os indutores (fenitoina, carbamazepina) e inibidores
enzimáticos como, por exemplo, cimetidina, omeprazol que, freqüentemente,
encontram-se envolvidos nas IM, que ameaçam a saúde do idoso(10,12,16,18-20).
Apesar do difícil estabelecimento de relação causal, é possível predizer
algumas IM. Deste modo, é fundamental que os profissionais conheçam esses
medicamentos potencialmente interativos, no intuito de prevenir eventos
adversos decorrentes da combinação terapêutica.
A amiodarona e a digoxina usadas por muitos idosos que apresentam doenças
cardiovasculares são implicadas em IM graves que podem causar, respectivamente
cardiotoxicidade e intoxicação digitálica. Muitas das IM apresentam grande
magnitude podendo resultar em morte, hospitalização, injúria permanente do
paciente ou insucesso terapêutico. Todavia, há IM que não causam dano aparente
no idoso, porém o impacto é silencioso, tardio e, às vezes, irreversível. A
terapia combinada dos AINE e diuréticos tiazidicos, bem como dos IECA e AINE
podem causar alteração da função renal, desequilíbrio eletrolítico, além de
afetar a eficácia da terapia antihipertensiva. Alguns dos medicamentos, que
apresentam características potencialmente interativas foram ilustrados no
Qauadrio 2 com as respectivas interações potenciais e desfechos clínicos(3-
4,10,12,16,18-20).
Os riscos estimados nos estudos provenientes principalmente de paises
desenvolvidos podem, inicialmente, parecer elevados e não fornecer uma analise
risco-benefício para terapia individual. Todavia, RAM e IM são subestimadas no
mundo inteiro. Muitos desses eventos não são reconhecidos pelo paciente,
familiar, tampouco pelos profissionais, especialmente quando a polifármacia é
demasiadamente complexa. Além disso, muitos profissionais imaginam as RAM e IM
em termos de desfechos catastróficos como arritmias, convulsões, morte, que
embora sejam respostas possíveis, representam somente a ponta do iceberg. No
dia-a-dia, as conseqüências desses eventos como tontura, sedação, hipotensão
postural, quedas, confusão, frequentes em idosos e aparentemente menos
dramáticas, podem aumentar o perfil de morbimortalidade deste grupo etário.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A vulnerabilidade dos idosos aos eventos adversos relacionados a medicamentos é
bastante alta, o que se deve a complexidade dos problemas clínicos, à
necessidade de múltiplos agentes, e às alterações farmacocinéticas e
farmacodinâmicas inerentes ao envelhecimento.
Neste cenário, o grande desafio dos enfermeiros no Brasil que esta envelhecendo
é contribuir na promoção do uso racional dos medicamentos. A educação dos
usuários, especialmente no que concerne à prática da automedicação, inclusive
de fitoterápicos; a orientação acerca dos riscos da interrupção, troca,
substituição ou inclusão de medicamentos sem conhecimento dos profissionais da
saúde; o aprazamento criterioso dos horários da prescrição/receita médica, de
modo a evitar a administração simultânea de medicamentos que podem interagir
entre si ou com alimentos; o monitoramento das RAM implicadas em desfechos
negativos são algumas estratégias que podem ajudar a prevenir e minimizar os
eventos adversos.
Além disso, esforços coletivos podem otimizar essas iniciativas. Os programas
específicos de atenção ao idoso como os existentes nos centros de referencia e
nas universidades da terceira idade podem funcionar como ancoras para
realização de cursos ou programas educativos, que ofereçam subsídios para que
cuidadores, familiares e o próprio idoso possam utilizar os medicamentos de
maneira mais segura.