Doação e transplante de órgãos: produção científica da enfermagem brasileira
INTRODUÇÃO
Em 1968, o Brasil publicou sua primeira legislação para transplantes, a lei
5.479(1), que regulamenta a retirada e transplante de tecidos, órgãos e partes
de cadáveres para finalidade terapêutica e científica.
Essa lei sofreu algumas alterações, sendo promulgada em 1997 a lei 9.434(2),
que com a 10.211/01(3) e a Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM)
1.480/97(4), estabelece as diretrizes para a política nacional de doação e
transplante de órgãos e tecidos até a atualidade.
Na prática, essa política constitui um processo, que se divide em: detecção,
avaliação e manutenção do potencial doador, diagnóstico de morte encefálica,
consentimento familiar ou ausência de negativa, documentação de morte
encefálica, remoção e distribuição de órgãos e tecidos, transplante e
acompanhamento de resultados(5).
Diversos atores estão envolvidos nessas etapas, entre eles os enfermeiros.
Estes profissionais integram as equipes transplantadoras e as organizações de
procura de órgãos e participam de diversas atividades, determinadas pela
Resolução COFEN 292/2004(6). Alguns exemplos são: notificar as Centrais de
Captação e Distribuição de Órgãos (CNNCDO) da existência de potenciais
doadores, entrevistar o responsável legal do doador e fornecer informações
sobre o processo, aplicar a Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE)
ao receptor(7).
Diferentes autores analisaram o papel direto do enfermeiro neste processo, como
Moraes e Massarollo(1), Guetti e Marques(8), Cintra e Sanna(9), Silva e Silva
(10). Porém, essas publicações se restringem à atuação da enfermagem nas áreas
da assistência, gerenciamento e ensino, havendo uma escassez de estudos que
analisem a atuação dos enfermeiros nas pesquisas sobre doação e transplante de
órgãos e tecidos.
No final dos anos 1970, iniciaram-se os investimentos em pesquisas científicas
de enfermagem no Brasil. E, desde então, com a criação dos cursos de pós-
graduação, verificou-se uma evolução nesses trabalhos(11), ocorrendo um aumento
da atuação dos enfermeiros como pesquisadores. Mas como isso se refletiu na
área de doação e transplante de órgãos? Especialmente após o ano de 1997, com a
lei 9.434, de grande repercussão na mídia, como tem se caracterizado a produção
científica da enfermagem brasileira nessa área?
Sendo a enfermagem atuante no processo doação-transplante, ela deve ser capaz
de suprir as necessidades básicas de um transplante, considerando o grau de
complexidade que este envolve, precisando estar muito bem treinada, capacitada
e atualizada, acompanhando a evolução tecnológica e científica(9).
Um modo eficaz de atingir essas capacidades é por meio da elaboração de
pesquisas científicas. A caracterização dos tipos de trabalhos publicados é
fundamental para conhecer quais os pontos de maior interesse e aqueles que não
têm despertado a mesma atenção, e assim estimular a realização de estudos que
preencham as lacunas existentes. Além disso, conhecer o perfil das publicações
de enfermagem nesta área auxilia na identificação do que é necessário para o
aprimoramento das ações desses profissionais.
Considerando a importância da enfermagem nessa área e a inexistência de estudos
que indiquem todo o produzido no Brasil, surgiu o presente estudo, com os
objetivos de: identificar e caracterizar as produções científicas de enfermagem
em doação e transplante de órgãos publicadas em periódicos nacionais no período
de 1997 a 2007.
MÉTODO
Este estudo consistiu em uma pesquisa bibliográfica, que tinha como objeto os
artigos de enfermeiros brasileiros sobre aspectos da doação e transplante de
órgãos, publicados em periódicos nacionais no período de 1997 a 2007.
A busca foi realizada nas bases de dados LILACS, MEDLINE, BDENF, PERIENF E
DEDALUS (da Escola de Enfermagem da USP - EEUSP), utilizando-se as palavras-
chave: "enfermagem e transplante" e "enfermagem e doação".
Após a localização dos artigos e leitura dos resumos, excluíram-se as produções
referentes a transplante de tecidos (medula óssea, ossos, córneas), uma vez que
o "processo doação-trasplante" refere-se aqui a órgãos sólidos; aquelas cujo
primeiro autor não era enfermeiro ou estudante de enfermagem e as que não
tinham a doação ou transplante de órgãos como o foco do trabalho.
Os artigos incluídos nesta pesquisa foram organizados em uma planilha no
Excel®, com as seguintes informações: ano de publicação, titulação do primeiro
autor, Estado da federação, classificação do periódico, tipo de publicação,
abordagem metodológica, cenário, objeto e sujeito do estudo e tema.
A partir destas informações, realizou-se uma análise das freqüências simples de
cada evento e a confecção de tabelas e gráficos para melhor interpretação dos
dados obtidos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
No presente estudo, foram apenas 30 os artigos que atenderam aos critérios de
inclusão, constituindo o objeto do trabalho. E para esse número de publicações
há algumas hipóteses.
A divulgação de pesquisas em enfermagem ocorre principalmente por eventos
científicos, sendo o número de artigos ainda restrito(12). E este trabalho
analisou somente os artigos, excluindo as pesquisas apresentadas em eventos ou
que constituíram dissertações, teses ou monografias e não foram publicados em
periódicos.
Outro possível motivo para o pequeno tamanho dessa amostra pode ser a pouca
abordagem do tema nos cursos de graduação em enfermagem. Há uma lacuna na
formação do graduando quanto ao tema doação de órgãos e a compreensão sobre
morte encefálica é falha para a maioria dos estudantes(10).
Ao longo dos onze anos estudados não houve diferenças estatisticamente
significativas quanto ao número de publicações (Figura_1). Pode-se destacar
apenas a tendência de aumento de pesquisas após o ano de 2001, coincidindo com
a promulgação da lei 10.211(3).
Essa lei "dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano
para fins de transplante e tratamento" e determina que "as manifestações de
vontade relativas à retirada 'post mortem' de tecidos, órgãos e partes,
constantes da Carteira de Identidade Civil e da Carteira Nacional de
Habilitação, perdem sua validade". Assim, pode-se supor que o tema doação e
transplante de órgãos e tecidos tenha sido mais discutido na sociedade,
estimulando a realização de estudos (Figura_2).
A pequena atenção dada pelas instituições de ensino superior de enfermagem aos
temas morte e doação de tecidos(10), pode justificar o reduzido número de
publicações cujo autor principal era graduando dessa carreira (7%).
Ao discorrer sobre a produção de conhecimento da enfermagem brasileira,
Carvalho(11) ressaltou a pequena participação dos enfermeiros assistenciais
como autores de pesquisas, mostrando o predomínio de autores da área acadêmica.
Porém, o presente estudo retratou outra situação.
Observou-se que em relação ao tema estudado o maior número de autores foi de
enfermeiros que atuavam na assistência (42%). O pouco conhecimento obtido na
graduação, o reduzido número de cursos de pós-graduação sobre os assuntos e a
necessidade de entendimento do tema para a prática profissional podem ter
estimulado a realização de pesquisas entre enfermeiros assistenciais.
A maior parte dos estudos foi elaborada na região Sudeste do Brasil (76%), na
Sul foram produzidos 10% e as regiões Centro-Oeste e Nordeste contribuíram com
7% cada. A prevalência de trabalhos oriundos do Sudeste foi semelhante ao
encontrado em outros estudos, como o produzido por Araújo et al(13), que
analisou a produção científica de enfermagem nas áreas de Hematologia,
Hemoterapia e Transplante de Medula Óssea. As hipóteses levantadas pelas
autoras foram à concentração de escolas de enfermagem, hospitais e cursos de
pós-graduação no sudeste. Justificativa adequada, também a este trabalho aliado
a fato de que a região é responsável pelo maior número de equipes médicas
cadastradas para realizar transplante e de Comissões Intra-hospitalares de
Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (CIHDOTT).
Analisando-se com mais detalhes a origem das publicações, notou-se que a
maioria foi produzida no Estado de São Paulo (53,3%). O que pode ser atribuído
à justificativa utilizada para explicar os dados da Região Sudeste (Tabela_1).
Os transplantes se iniciaram em São Paulo em meados da década de 1960,
promovendo regulamentações e organiza-ções dessa atividade que se anteciparam
às legislações nacionais sobre o assunto(14).
São Paulo é o Estado da Federação onde se realiza o maior número de
transplantes. Dados do Sistema Nacional de Transplantes(15) mostraram que no
ano de 2008, dos 19.125 transplantes ocorridos no Brasil, 8.687
(aproximadamente 45%) ocorreram em território paulista.
Qualis é o conjunto de procedimentos utilizados pela CAPES (Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) para estratificação da qualidade
da produção intelectual dos programas de pós-graduação a partir da análise da
qualidade dos periódicos científicos e anais de eventos. Esses veículos de
divulgação são enquadrados em estratos indicativos da qualidade - A1, o mais
elevado; A2; B1; B2; B3; B4; B5; C - com peso zero(16-17).
Desse modo, ao se analisar a Enfermagem como área de avaliação dos periódicos
incluídos nesse estudo, pode-se perceber que a maioria (70%) foi classificada
em B (B1 = 30%, B2 = 17% e B3 = 17%), nível médio de estratificação, e apenas
30% estava incluída no estrato A, mais especificamente em A2.
Essa constatação tem um significado ruim para a enfermagem em doação e
transplantes de órgãos, visto que as revistas em que os artigos foram
publicados têm qualidade média, não sendo de grande impacto sobre a comunidade
científica.
Quanto aos tipos de pesquisa, os estudos de caso somaram 6,7% do total, as
revisões bibliográficas 33,3% e a maioria correspondeu a "pesquisas de campo"
(60%), ou seja, estudos realizados em hospitais, universidades, escolas e
outros campos. Esse predomínio era esperado, pois havendo poucas publicações
sobre o tema, como exemplificado pela amostra deste estudo, o número de
pesquisas práticas seria superior ao de revisões. Comportamento também
identificado por Araújo et al(13).
As revisões bibliográficas somaram 33,3% e os estudos de caso 6,7%.
Adicionalmente nas pesquisas de campo, notamos predomínio de estudos realizados
em âmbito hospitalar (72%), o que pode se dever a reduzida abordagem do tema em
outros contextos, mesmo nas Universidades, como observaram Silva e Silva(10) ao
analisarem os graduandos em enfermagem. E ainda pela maior participação de
enfermeiros assistenciais na autoria das pesquisas, como descrito
anteriormente.
Os outros locais citados para a realização das pesquisas corresponderam a 5,6%
cada e foram eles: Universidade, OPO's (Organizações de Procura de Órgãos),
ENEEn (Encontro Nacional dos Estudantes de Enfermagem), escola e residência.
O estudo revelou, ainda que os sujeitos pesquisados na maioria (81,3%)
correspondiam a pessoas ligadas à área da saúde, seja como profissionais ou
pacientes e seus familiares. Assim, pode-se inferir que há poucos estudos que
relacionem a sociedade com a doação e transplante de órgãos. A maior parte dos
estudos foi realizada com pessoas que tem ligação com o tema.
Analisando-se os tipos de abordagem metodológica utilizados, observou-se que
foi maior o número de pesquisas qualitativas (66,7%), assim como observado por
Araújo et al(13). Entretanto, as razões que expliquem esse dado fogem aos
objetivos investigativos da presente pesquisa (Tabela_2).
A partir das palavras-chave descritas em cada publicação foram organizados os
temas abordados. No item "Doações de órgãos" foram incluídos os estudos com os
temas: morte encefálica, captação, manutenção do potencial doador e OPOs
(Tabela_3).
Os trabalhos que tiveram os diferentes tipos de transplantes como temas
constituí-ram a maioria (53,3%), seguidos por aqueles que abordaram a doação de
órgãos (26,7%).
A doação de órgãos, apesar de ser a única possibilidade para a realização do
transplante, não tem a visibilidade e investimento institucional para mudar as
baixas taxas de doadores falecidos, os quais no Brasil, em 2008, foram cerca de
6,5 doadores por milhão de habitantes ano, enquanto a Espanha têm 35,5 doadores
pmp/ano(18).
Ao analisar os tipos de transplantes estudados, percebeu-se que a maioria se
referiu aos renais e hepáticos, ambos com valor igual a 31% (Figura_3). Esses
dados vieram de encontro ao número de trans-plantes realizados no Brasil. Em
2008, dos 4718 transplantes de órgãos, 3154 (66,8%) foram renais isolados e
1110 (23,5%) hepáticos(15). E ainda, os transplantes renais foram os primeiros
realizados neste país, em meados da década de 1960.
Sendo a pesquisa uma ferramenta eficaz para se desenvolver conhecimento e
aprimorar a atuação dos enfermeiros nessa área, conclui-se que se faz
necessário um maior número de estudos científicos, desenvolvidos pela
enfermagem de todo o Brasil, sobre os diversos aspectos da doação e transplante
de órgãos(19).
CONCLUSÃO
O número de publicações de enfermagem na década estudada foi reduzido,
concentrou-se na temática transplante, especialmente renal e hepático,
desenvolvido por enfermeiros assistenciais ligados aos centros transplantadores
da Região Sudeste do país. A temática não foi suficientemente incorporada na
formação de profissionais de saúde no nível de graduação e pós-graduação.
Os periódicos que veiculam as publicações dos enfermeiros brasileiros foram
classificados como de impacto mediano, segundo a estratificação da qualidade da
produção intelectual dos programas de pós-graduação a partir da análise da
qualidade dos periódicos científico realizada pela CAPES.
A maioria dos trabalhos teve seus cenários, objetos ou sujeitos de investigação
ligados à área da saúde.