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BrBRCVHe0034-71672010000200024

BrBRCVHe0034-71672010000200024

variedadeBr
Country of publicationBR
colégioLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN0034-7167
ano2010
Issue0002
Article number00024

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Doação de sangue: solidariedade mecânica versus solidariedade orgânica

INTRODUÇÃO A partir da experiência em uma unidade de hemoterapia, o texto discute a doação de sangue como solidariedade, ou seja, como vínculo do indivíduo à vida por meio de valores e atitudes que contribuem para salvar vidas, apresentando uma reflexão que pretende abordar o crescimento das doações como solidariedade orgânica no sentido apontado por Michel Maffesoli(1).

Inicialmente, as doações eram mais institucionalizadas quando determinados grupos eram conduzidos paratal, avançando para a modalidade vinculada a um paciente específico. À medida que a captação de doadores do hemocentro foi desenvolvendo projetos com estratégias para conquistar novos doadores e fidelizá-los, as doações foram se tornando, em sua maioria, espontâneas.

A partir da experiência, a perspectiva de reflexão que fazemos aborda a doação de sangue como um gesto vinculado à solidariedade orgânica, que é espontânea e refere-se ao afetual, à proxemia que significa estar junto. Este tipo de solidariedade encontra-se em oposição à solidariedade mecânica, concebida por Maffesoli como algo instituído, como uma obrigação, um dever-ser, diferente do que é característico da solidariedade orgânica, onde a ênfase se nas relações consigo e com o outro, ou ainda, quando o sentimento de potência, sentimento de cooperação que brota de dentro do ser(2).

O ser humano é essencialmente social, vivendo em comunidade, desempenhando papéis, dividindo tarefas, compartilhando espaços físicos, partilhando sentimentos, relacionando-se com os outros de forma harmoniosa ou mesmo conflituosa (lembrando que o conflito faz parte do nosso cotidiano e certamente tem sua importância no processo de viver humano). Este ser sofre influências da cultura do meio onde vive e com o qual mantém contato, experimentando uma diversidade de fatores que atuam em seu comportamento. Portanto, o ser humano se faz na sociedade e é feito por ela, o que torna fundamental compreendermos os contextos nos quais nos inserimos.

A contemporaneidade reflete diversos movimentos, como a globalização e o culto à velocidade. O impacto da globalização "está se fazendo sentir de forma cada vez mais forte e difusa"(3). Este movimento gerou entusiasmo,inicialmente. Com o passar do tempo, entretanto, foi dando espaço ao temor e ao desencanto. Mesmo com as facilidades que proporcionou, problemas foram surgindo e sendo potencializados, como o aumento do desemprego, a exclusão social, as crises financeiras, o individualismo e outros.

Vive-se em uma sociedade capitalista, competitiva, em uma época de fúria, quando não tempo para nada a não ser dar conta do que a sociedade impõe: trabalhar e trabalhar para produzir e consumir cada vez mais e, para isso, torna-se necessária a busca desenfreada pela capacitação e qualificação do ser humano(4).

É comum a sensação de que o tempo está fugindo. Para o autor, "(...) está sempre parecendo que o trem do tempo vai saindo da estação no exato momento em que chegamos à plataforma"(4). Como as exigências atuais são múltiplas, sempre a impressão de que o tempo é insuficiente. Tem-se a sensação do descontrole do tempo, pois ele corre desvairadamente. Dessa forma, valores como família, amigos e atitudes tal qual a doação de sangue como um ato de solidariedade ficam em segundo plano.

A doação de sangue é um aspecto que está posto na vida dos seres humanos de modo a que nem sempre seja percebido. Mesmo com toda a evolução tecnológica e científica, ainda não um substituto para este tecido, denominado sangue. Por isso a importância e a necessidade de doar sangue, ainda hoje. Entretanto,cabe ressaltar, que falar em sangue mexe com o imaginário social, suscitando a efervescência de sentimentos como medo, dor, vida e morte, sofrimento e alegria, entre outros.

A partir destes aspectos, consideramos relevante refletirmos sobre qual espaço ocupa a doação de sangue como solidariedade nesse contexto. Apresentamos, a seguir, como elementos para a reflexão um breve relato histórico da hemoterapia, algumas noções sobre como compreendemos o papel da solidariedade na doação e alguns dados que apóiam nossa argumentação de que uma tendência para a doação na perspectiva da doação por solidariedade orgânica.

CONTEXTUALIZANDO A HISTÓRIA DA HEMOTERAPIA A hemoterapia é uma especialidade da medicina que atua de forma interdisciplinar, reunindo médicos, enfermeiros, bioquímicos e assistentes sociais entre outros profissionais da área da saúde. Através da hemoterapia é realizado o tratamento de doenças pela administração de sangue e/ou hemoderivados(5).

Enquanto a hematologia "é o ramo da ciência médica que trata da morfologia do sangue e dos tecidos formadores de sangue"(5).

A história da hemoterapia divide-se em dois períodos: o empírico, que remonta as primeiras referências gregas e perdura até 1900, e o científico, de 1900 até os dias atuais(6).

No primeiro período, os povos mais antigos untavam-se, banhavam-se, bebiam o sangue de jovens e bravos guerreiros para se beneficiarem de suas qualidades.

relatos de que, em 1492, estando o Papa Inocêncio VIII muito doente, na tentativa de salvar-lhe a vida, três jovens realizaram a primeira transfusão de sangue da história, resultando na morte dos quatro(6).

Em 1616, William Harvey descobriu a circulação sangüínea. A partir daí, alguns pesquisadores começaram a estudar a possibilidade de transfusão de sangue entre animais. Em 1667, foi realizada a primeira transfusão do sangue de um carneiro para um ser humano, que faleceu imediatamente após a transfusão.

As tentativas de transfusão de sangue passaram então para o sistema braço a braço, em que uma pessoa doava diretamente para outra. Essa terapia era aconselhada para socorrer pacientes com problemas de hemorragias graves. Na Europa, devido ao grande número de insucessos, essa prática ficou proibida por 150 anos. Até que em 1818, James Blundell, em Londres, realizou de forma bem sucedida a primeira transfusão de sangue de um homem para outro.

No período científico, a partir de 1900, o médico austríaco Karl Landsteiner, observando as hemácias, constatou que o sangue de algumas pessoas possuía certas particularidades quanto a sua parte vermelha. Nessa pesquisa ele descobriu que as pessoas têm diferentes tipos sangüíneos, denominando-os de "A", "B" e "AB", e um outro tipo, representado pelo número zero, substituído pela vogal "O".

A medicina passa a utilizar a transfusão de sangue de forma terapêutica em meados do século XX(6). Surge em 1921, em Londres, o primeiro serviço especializado, "The Voluntary Service" - Serviço de Transfusão de Sangue, patrocinado pela Cruz Vermelha Britânica. Nessa época, a transfusão era realizada por um aparelho que passava o sangue do doador diretamente para o organismo do receptor.

Em 1942, Landsteiner descobriu que 85% das pessoas têm fator diferente no sangue daqueles tipos descobertos, e 15% não possuem esse fator. A descoberta permitiu classificar o sangue das pessoas em fator Rh positivo (presença do fator) e fator Rh negativo (ausência do fator), possibilitando a compatibilidade da transfusão de sangue e seus componentes.

Outros progressos relacionados às descobertas de anticoagulantes, que permitiram iniciar o processo de armazenamento e estocagem do sangue, garantindo sua preservação in vitro(7).

O serviço de transfusão de sangue demonstrou sua eficiência principalmente durante a Primeira Guerra Mundial, ajudando a recuperar pacientes. Com a Segunda Grande Guerra, foi necessário armazenar sangue, o que passou a ser uma estratégia de segurança nacional, transformando, assim, toda uma cultura. Dessa forma, não era mais uma pessoa doando para um parente ou amigo, mas sim uma questão de patriotismo e solidariedade para com as pessoas que estavam na guerra. Assim, criou-se uma forte cultura da Doação Voluntária de Sangue na Europa.

A história da hemoterapia brasileira iniciou-se durante a década de 1930, com a criação de serviços de transfusão nos hospitais de pronto socorro e em outros centros importantes. As transfusões se davam diretamente de braço a braço, pois não eram utilizadas as técnicas de anticoagulação e preservação do sangue.

Em 1944 surgiu o Banco de Sangue da Lapa, que originou o atual Centro de Hematologia e Hemoterapia do Estado do Rio de Janeiro - HEMORIO. Em 1949, foi realizado o Primeiro Congresso Nacional de Hematologia e Hemoterapia no Brasil.

A Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia foi fundada em 1950. Ainda em 1949, foi criada a Associação de Doadores Voluntários de Sangue, cuja posição era contrária à comercialização desse tecido. Nessa época, era comum a doação remunerada no Brasil, através dos bancos de sangue privados surgidos a partir da Segunda Guerra Mundial, contribuindo para a comercialização e a lucratividade do sangue. Os doadores eram os menos indicados, envolvendo inclusive pessoas doentes, o que colocava em risco a vida dos receptores. Dessa forma, houve o aumento de doenças transmitidas pelo sangue, como hepatite A e B, sífilis, doença de Chagas e malária, alertando a sociedade para a necessidade de buscar soluções para a prevenção desses problemas.

O advento da AIDS, na década de 1980, desperta a preocupação do governo com o processo da doação de sangue, sancionando Portarias e Decretos com o objetivo de disciplinar o processo da doação de sangue. Nesse mesmo ano é criado o Programa Nacional de Sangue e Hemoderivados (Pro-Sangue), através da Portaria Interministerial 7(8).

Em muitos países, principalmente em razão das duas guerras mundiais, surgiram os hemocentros, sendo que no Brasil, os dois primeiros hemocentros públicos foram instalados somente a partir de 1982, em Pernambuco e Ceará. Desde então, estes serviços, em todo o país, enfrentam situações críticas e, problemas por terem seus estoques reduzidos, devido a uma série de dificuldades comas quais se deparam no dia-a-dia.

A Constituição Federal, em seus artigos 197 e 199, confere ao poder público a regulamentação, a fiscalização e o controle das ações referentes ao uso de hemoderivados proibindo a comercialização de sangue, sob qualquer forma, em todo território nacional(9). Outros decretos e leis vão surgindo com o objetivo de regularizar as ações referentes à hemoterapia, por exemplo, a Lei 10.205, de 21 de março de 2001(10).

Paralelo a todo este processo, vai se configurando que as doações de sangue realizadas espontaneamente, de forma altruísta e não-remunerada, apresentam menor prevalência de infecções transmissíveis por transfusão.

Diante dos avanços da medicina e das ciências em geral, muito ainda a pesquisar. Nos últimos 20 anos, esforços têm sido dispensados na formulação e no preparo de substitutos dos glóbulos vermelhos, também chamados de concentrado de hemácias. Apesar dos altos investimentos na busca de um substituto para o sangue, ainda não existe um elemento que o substitua. Sabe-se que apenas o HemAssis (tem a função de substituir hemácias) aprovado para uso humano e que estudos têm sido realizados, apesar dos inúmeros inconvenientes e problemas que possam causar os substitutos para o sangue(6). A possibilidade de causarem lesão renal é em razão da falta de proteção da membrana celular, que a molécula de hemoglobina é degradada rapidamente no plasma, e seus fragmentos são excretados na circulação(6). Em vista disso, a reposição de sangue e derivados em pacientes de diversas doenças, ou vítimas de trauma de qualquer etiologia, permanece como um dos principais fatores para a preservação da vida. Portanto, a importância da doação de sangue e da busca de novos doadores para a sua fidelização que significa tornar o doador como doador de repetição, ou seja, conquistá-lo para que doe sangue regularmente.

DANDO SIGNIFICADO AO SANGUE O vocábulo "sangue", de origem latina - sanguen -, possui forte conotação emocional na cultura cristã. Associado ao coração, o "sangue" está presente com muita força na literatura, nas artes em geral e, é claro, nas ciências, especificamente quando estudado biologicamente. Mas, enquanto o coração simboliza o amor romântico, sonhador, o sangue traduz emoções fortes, ardentes, arrebatadoras e até violentas.

Em nossa cultura, muitas são as expressões com a palavra "sangue" denotando diversos significados, como, por exemplo, "suar sangue" com o sentido de trabalhar em excesso; "subir o sangue à cabeça", com o significado de ficar enfurecido; "ter o sangue quente", cuja acepção é a mesma que "ter sangue nas veias", denotando ser genioso e irritadiço,,além de tantos sentidos, significa cultura, existência, família e raça.

A história da humanidade está ligada ao significado de sangue como vida desde seus primórdios.

Na Antigüidade, o sangue era concebido como fluido vital que além de vida proporcionava juventude. Por isso, os povos primitivos untavam-se, banhavam-se e bebiam o sangue de jovens e corajosos guerreiros, esperando adquirir suas qualidades. E hoje o sangue é transfundido como uma das formas de preservar sua vida.

Na Bíblia encontramos muitas passagens relacionadas ao sangue. Um dos acontecimentos mais importantes, para a cultura cristã, refere-se à transubstanciação do vinho em sangue por Jesus Cristo. Esse ritual tem um significado profundo para o cristão: o próprio sangue de Cristo se faz presente para a humanidade através da continuidade da consagração. O sangue derramado por Cristo, pregado na cruz, significa a remissão dos pecados dos cristãos, com o sentido de vida, libertação, salvação e purificação.

Pela cultura de muitos povos sabemos que estes selam pactos de amizade, de amor, de vida ou mesmo, paradoxalmente, de morte com sangue. Sabemos que outros executam vinganças e extravasam ódios com derramamento de sangue.

Poderiam ser escritas páginas e mais páginas com passagens, fatos e rituais ligados à palavra "sangue", tanto no que diz respeito à cultura popular como à erudita, expressando sentimentos e sentidos.

O sangue permite o provimento de substâncias vitais, oxigena todos os órgãos do corpo humano, e assim, defende o organismo contra agentes invasores de diversas naturezas. Enfim, Sangue é fonte de vida! É assim que a doação de sangue como ato solidário à manutenção da vida, constitui um desafio para cada um de nós.

DOAÇÃO COMO SOLIDARIEDADE UM ENCONTRO COM NOSSO COTIDIANO A solidariedade é um valor ético que se fazia presente na filosofia política do Iluminismo(11). dizia um filósofo francês, considerado como um dos mais notáveis filósofos iluministas, que a solidariedade tem a capacidade de manter unida uma coletividade, composta de indivíduos isolados(11). Hoje, a solidariedade é concebida como ajuda mútua e apoio.

autores que defendem a solidariedade como uma lei da natureza, um sentimento incontestável de adesão ao grupo e à espécie, em que a moral não pode ser vista como compromisso de deveres e normas, mas como a busca do prazer e a repulsa da dor(12,13).

Durkheim, sociólogo francês, em obras como Formas elementares da vida e divisão do trabalho social(14) designa a solidariedade como forças que mantêm unidos os membros de uma coletividade(14) A divisão do trabalho além de ter efeito econômico, produz efeito moral, cuja função é criar entre duas ou mais pessoas um sentimento de solidariedade(15). Isso, como diriam os economistas, não é apenas porque ela faz de cada indivíduo um "trocador", mas "é porque ela cria entre os homens todo um sistema de direitos e deveres que os ligam uns aos outros de maneira duradoura".

A solidariedade social é concebida como mecânica e orgânica(15). A solidariedade mecânica é vista como própria das sociedades "inferiores", ou seja, não complexas, nas quais os indivíduos pouco diferenciados compartilham idéias, costumes, crenças, hábitos, valores e sentimentos comuns(15).

Com a divisão do trabalho e, consequentemente, com a especialização dos trabalhadores, portanto em sociedades "complexas", emerge a solidariedade orgânica que faz com que indivíduos interdependentes comportem-se como um organismo.

"Existem momentos em que (...) a acomodação no mundo é essencialmente "abstrativa" (mecânica, racional, instrumental), mas, existem outros em que ela remete à "Einfühlung" (orgânica, imaginária, afetual). Mas, como indiquei, épocas em que, segundo ponderações diferenciadas, encontramos essas duas perspectivas juntas"(1).

Maffesoli nos traz contribuições importantes para refletirmos sobre a solidariedade. O autor francês contemporâneo propõe a paixão pelo social tal como ele é, tal como se e não como deveria ser(1). Estuda o ser humano em suas várias dimensões, abrangendo não apenas a relação interindividual, mas também a que o liga a um território, a um meio ambiente natural que partilha com outros.

A questão do afeto, tão relevante para Maffesoli(1), também erareconhecida por Durkheim(14), atribui ao grupo uma 'fonte de vida sui generis', desprendendo calor que aquece e reanima os corações e que os abre à simpatia.

Maffesoli ressalta que Durkheim refere-se analogicamente ao corpo individual e ao social, afirmando que ambos são organismos complexos, em que o funcionamento e a disfunção se ajustam da melhor maneira possível(1,14). Dessa forma, ao se comparar a divisão do trabalho social e o trabalho fisiológico, ambos aparecem no seio das massas policelulares dotadas de certa coesão. Esse fato demonstra, então, uma concepção orgânica. Portanto, a sociedade não se resume a uma mecanicidade racional qualquer, ela vive e se organiza através dos reencontros, das situações e pelas experiências vividas em cada grupo. Segundo a proposta maffesoliana, as tribos constituem-se como grupos que surgem a partir do afetual (atração - repulsa), da identificação, enfim do que as aproxima. É na mesma perspectiva que a solidariedade orgânica é vista como a que tem ligação com o outro, ou ainda, como vontade de ser/estar com o outro(1).

Assim, o grupo de doadores de sangue pode constituir-se como uma tribo que " (...) se faz a partir do sentimento de pertença, em função de uma ética específica e no quadro de uma rede de comunicação"(1). O grupo de doadores é formado por indivíduos heterogêneos que também compõem outras tribos. Esses seres humanos heterogêneos estão ligados aos hemocentros, à tribo de doadores, por sentimentos que lhes são comuns e que lhes possibilitam uma pertença.

A maioria das doações de sangue efetivadas no HEMOSC de Florianópolis(16) tem se apresentado, nos últimos anos, conforme dados estatísticos obtidos no banco de dados da instituição, na perspectiva de solidariedade orgânica, ou seja, de forma espontânea, voluntária, por querer estar com o outro, pelo afetual e pela ética da estética.

A solidariedade orgânica é concebida como algo afetual que é espontâneo e originado pelo sentimento do querer estar junto do outro(1,3). A aproximação entre os indivíduos se pela identificação, talvez pela vontade de preservar a vida humana. A solidariedade orgânica é compreendida como aquela que brota de dentro do ser humano.

Ao se fazer referência à doação de sangue, pode-se dizer que o sangue do doador, que é parte do seu ser, através da doação seguida pela transfusão, estará junto com o do outro. A solidariedade orgânica encontra-se, embebida de amor pelo próximo, pelo presente, pelo aqui e agora. Apresenta-se, então, a importância da preservação da natureza. É a "perdurância" do ser, a continuidade da vida. É uma transcendência imanente, uma aura, um valor englobante. É uma ética que serve de cimento aos diversos grupos que participam desse espaço-tempo. Através da solidariedade orgânica evidencia-se a alegria do estar junto, reiterada pela idéia de perdurância da vida.

Assim, enfatiza-se, novamente, a idéia de que os doadores de sangue constituem uma tribo através da qual, em lugar do individualismo, formam-se estruturas de comunicação, ao mesmo tempo intensivas e reduzidas no espaço(1,3). "Podemos dizer que as redes, que pontuam nossas megalópoles, retomam as funções de ajuda mútua, de convivialidade (...)"(1) e, pode-se acrescentar, de reciprocidade, de solidariedade, materializadas pelas palavras de uma doadora de sangue do HEMOSC de Florianópolis que dizia que ao abrir os braços, experimentava a alegria de doar, de um mundo livre e solidário.

Maffesoli ao se referir a ajuda mútua, afirma que "(...) ajuda mútua por força das coisas e não se trata de algo totalmente desinteressado, pois a ajuda dada poderá ser recompensada quando eu mesmo precisar ser ajudado. Mas, dessa forma, cada um se insere num processo de conexão, de participação, que privilegia o corpo coletivo"(2).

E, ainda, sobre a referência acima, menciona: "(...) ajuda mútua, que não se resume unicamente às ações mecânicas das relações de boa vizinhança. Na verdade, a ajuda mútua, como a entendemos aqui, insere-se numa perspectiva orgânica em que todos os elementos, em sinergia, fortalecem a totalidade da existência. Assim, a ajuda mútua seria a resposta animal, "não consciente", do querer-viver social"(2).

A seguir, apresentamos a evolução das doações de sangue nos últimos dezoito anos no cotidiano do HEMOSC de Florianópolis a fim de tornar visível o processo da doação de sangue de forma quantitativa com o objetivo de remeter o leitor a uma reflexão e possível interpre-tação(16) (Figura_1).

Na Figura_2, tem-se as doações espontâneas, voluntárias e as vinculadas, aquelas realiza-das em nome de um paciente sendo que, em 2006, obteve-se 77,4% de doações espontâneas em oposição às doações vinculadas, com 22,6%. Em 2007, obteve-se 5.825 doações vinculadas e 23.802 doações espontâneas, significando 80,3% de doações espontâneas e 19,6% de doações vinculadas. E, no ano de 2008, obteve-se 25.000 doações espontâneas e 5.218 de doações vinculadas, ou seja, 82% de doações espontâneas e, 17,2% de doações vinculadas.

Entendemos que as doações espontâneas podem ser conside-radas como expressão da solida-riedade orgânica. E as doações vinculadas? Seriam uma manifes-tação de solidariedade mecânica, pois as pessoas, ao serem solici-tadas a doarem sangue para um paciente, muitas vezes sentem-se obrigadas a realizarem esse ato, sem que, na verdade, queiram ou estejam dentro das condições adequadas e permitidas para a doação. Ou significam, também, a solidariedade orgânica, que podem ser pontuadas por uma ética da estética, ou seja, emoldurando um sentir junto, um re-ligare pelo símbolo da fonte da vida que é o sangue? Nos últimos anos, a doação de sangue como solidariedade orgânica vem se sobressaindo à solidariedade mecânica conforme pode ser visualizado no gráfico abaixo. Esta é da ordem do instituído, do obrigatório, contrária ao afetual, ao querer estar junto, à ética da estética que vem tomando espaço em nossa sociedade contemporânea.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A doação de sangue é um ato voluntário de solidariedade que pode ser espontâneo ou vinculado a um determinado paciente. Percebe-se que, mesmo com as dificuldades vivenciadas no cotidiano da sociedade contemporânea, a doação de sangue vem se expressando, cada vez mais, como solidariedade orgânica.

Dessa forma, nota-se no contexto atual do HEMOSC de Florianópolis que a solidariedade mecânica vem dando espaço à solidariedade orgânica, materializando-se na vivência em uma sociedade onde a diversidade impera e a vontade de estar com o outro contribui para a identificação entre os participantes de uma determinada tribo. Fica, então, caracterizado o grupo de doadores de sangue como uma tribo, na qual a solidariedade orgânica se sobressai à solidariedade mecânica, embora ambas possam, por vezes, encontrar- se em um mesmo ato de doação. Ora os doadores doam sangue de forma espontânea, ora de forma vinculada quando solicitados por amigos e/ou familiares a doarem sangue para um determinado paciente, aproximando em determinadas épocas essas duas perspectivas.

O ato de doar sangue é um ato de ajuda mútua, não totalmente desinteressado, pois o doador poderá ser recompensado e retribuído quando, por sua vez necessitar. A solidariedade como ajuda mútua privilegia o coletivo em um processo de conexão e de participação.

Assim, mesmo em um contexto no qual não se encontra tempo para o convívio familiar e com os amigos, para o lazer e para o cuidado de si, desvela-se a solidariedade orgânica emergindo através da doação espontânea de sangue.

Percebe-se que um dos fatores que prejudicam o índice de doações refere-se à cultura disseminada da pressa, que leva as pessoas a fazer tudo imediatamente e contribui para a falta de paciência e de tempo para a doação de sangue.

Contudo, mesmo com todos os fatores que contribuem negativamente, ainda assim tem-se uma tribo de doadores que doam sangue regularmente e que atuam de forma a conquistar mais adeptos a esse ato de solidariedade tão necessário à manutenção da sociedade, numa perspectiva de viver mais saudável que não existe um substituto para o sangue.

Vale ressaltar a importância do tema aqui discutido, não somente pela carência de produções sobre o assunto, mas a fim de suscitar o leitor à reflexão sobre a importância da doação de sangue como uma forma de solidariedade orgânica, do querer estar junto do outro mesmo em meio a tantos fatores que contribuem para o culto da velocidade e para a superficialidade da vida humana.


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