Doação de sangue: solidariedade mecânica versus solidariedade orgânica
INTRODUÇÃO
A partir da experiência em uma unidade de hemoterapia, o texto discute a doação
de sangue como solidariedade, ou seja, como vínculo do indivíduo à vida por
meio de valores e atitudes que contribuem para salvar vidas, apresentando uma
reflexão que pretende abordar o crescimento das doações como solidariedade
orgânica no sentido apontado por Michel Maffesoli(1).
Inicialmente, as doações eram mais institucionalizadas quando determinados
grupos eram conduzidos paratal, avançando para a modalidade vinculada a um
paciente específico. À medida que a captação de doadores do hemocentro foi
desenvolvendo projetos com estratégias para conquistar novos doadores e
fidelizá-los, as doações foram se tornando, em sua maioria, espontâneas.
A partir da experiência, a perspectiva de reflexão que fazemos aborda a doação
de sangue como um gesto vinculado à solidariedade orgânica, que é espontânea e
refere-se ao afetual, à proxemia que significa estar junto. Este tipo de
solidariedade encontra-se em oposição à solidariedade mecânica, concebida por
Maffesoli como algo instituído, como uma obrigação, um dever-ser, diferente do
que é característico da solidariedade orgânica, onde a ênfase se dá nas
relações consigo e com o outro, ou ainda, quando há o sentimento de potência,
sentimento de cooperação que brota de dentro do ser(2).
O ser humano é essencialmente social, vivendo em comunidade, desempenhando
papéis, dividindo tarefas, compartilhando espaços físicos, partilhando
sentimentos, relacionando-se com os outros de forma harmoniosa ou mesmo
conflituosa (lembrando que o conflito faz parte do nosso cotidiano e certamente
tem sua importância no processo de viver humano). Este ser sofre influências da
cultura do meio onde vive e com o qual mantém contato, experimentando uma
diversidade de fatores que atuam em seu comportamento. Portanto, o ser humano
se faz na sociedade e é feito por ela, o que torna fundamental compreendermos
os contextos nos quais nos inserimos.
A contemporaneidade reflete diversos movimentos, como a globalização e o culto
à velocidade. O impacto da globalização "está se fazendo sentir de forma cada
vez mais forte e difusa"(3). Este movimento gerou entusiasmo,inicialmente. Com
o passar do tempo, entretanto, foi dando espaço ao temor e ao desencanto. Mesmo
com as facilidades que proporcionou, problemas foram surgindo e sendo
potencializados, como o aumento do desemprego, a exclusão social, as crises
financeiras, o individualismo e outros.
Vive-se em uma sociedade capitalista, competitiva, em uma época de fúria,
quando não há tempo para nada a não ser dar conta do que a sociedade impõe:
trabalhar e trabalhar para produzir e consumir cada vez mais e, para isso,
torna-se necessária a busca desenfreada pela capacitação e qualificação do ser
humano(4).
É comum a sensação de que o tempo está fugindo. Para o autor, "(...) está
sempre parecendo que o trem do tempo já vai saindo da estação no exato momento
em que chegamos à plataforma"(4). Como as exigências atuais são múltiplas, há
sempre a impressão de que o tempo é insuficiente. Tem-se a sensação do
descontrole do tempo, pois ele corre desvairadamente. Dessa forma, valores como
família, amigos e atitudes tal qual a doação de sangue como um ato de
solidariedade ficam em segundo plano.
A doação de sangue é um aspecto que está posto na vida dos seres humanos de
modo a que nem sempre seja percebido. Mesmo com toda a evolução tecnológica e
científica, ainda não há um substituto para este tecido, denominado sangue. Por
isso a importância e a necessidade de doar sangue, ainda hoje. Entretanto,cabe
ressaltar, que falar em sangue mexe com o imaginário social, suscitando a
efervescência de sentimentos como medo, dor, vida e morte, sofrimento e
alegria, entre outros.
A partir destes aspectos, consideramos relevante refletirmos sobre qual espaço
ocupa a doação de sangue como solidariedade nesse contexto. Apresentamos, a
seguir, como elementos para a reflexão um breve relato histórico da
hemoterapia, algumas noções sobre como compreendemos o papel da solidariedade
na doação e alguns dados que apóiam nossa argumentação de que há uma tendência
para a doação na perspectiva da doação por solidariedade orgânica.
CONTEXTUALIZANDO A HISTÓRIA DA HEMOTERAPIA
A hemoterapia é uma especialidade da medicina que atua de forma
interdisciplinar, reunindo médicos, enfermeiros, bioquímicos e assistentes
sociais entre outros profissionais da área da saúde. Através da hemoterapia é
realizado o tratamento de doenças pela administração de sangue e/ou
hemoderivados(5).
Enquanto a hematologia "é o ramo da ciência médica que trata da morfologia do
sangue e dos tecidos formadores de sangue"(5).
A história da hemoterapia divide-se em dois períodos: o empírico, que remonta
as primeiras referências gregas e perdura até 1900, e o científico, de 1900 até
os dias atuais(6).
No primeiro período, os povos mais antigos untavam-se, banhavam-se, bebiam o
sangue de jovens e bravos guerreiros para se beneficiarem de suas qualidades.
Há relatos de que, em 1492, estando o Papa Inocêncio VIII muito doente, na
tentativa de salvar-lhe a vida, três jovens realizaram a primeira transfusão de
sangue da história, resultando na morte dos quatro(6).
Em 1616, William Harvey descobriu a circulação sangüínea. A partir daí, alguns
pesquisadores começaram a estudar a possibilidade de transfusão de sangue entre
animais. Em 1667, foi realizada a primeira transfusão do sangue de um carneiro
para um ser humano, que faleceu imediatamente após a transfusão.
As tentativas de transfusão de sangue passaram então para o sistema braço a
braço, em que uma pessoa doava diretamente para outra. Essa terapia era
aconselhada para socorrer pacientes com problemas de hemorragias graves. Na
Europa, devido ao grande número de insucessos, essa prática ficou proibida por
150 anos. Até que em 1818, James Blundell, em Londres, realizou de forma bem
sucedida a primeira transfusão de sangue de um homem para outro.
No período científico, a partir de 1900, o médico austríaco Karl Landsteiner,
observando as hemácias, constatou que o sangue de algumas pessoas possuía
certas particularidades quanto a sua parte vermelha. Nessa pesquisa ele
descobriu que as pessoas têm diferentes tipos sangüíneos, denominando-os de
"A", "B" e "AB", e um outro tipo, representado pelo número zero, substituído
pela vogal "O".
A medicina passa a utilizar a transfusão de sangue de forma terapêutica em
meados do século XX(6). Surge em 1921, em Londres, o primeiro serviço
especializado, "The Voluntary Service" - Serviço de Transfusão de Sangue,
patrocinado pela Cruz Vermelha Britânica. Nessa época, a transfusão era
realizada por um aparelho que passava o sangue do doador diretamente para o
organismo do receptor.
Em 1942, Landsteiner descobriu que 85% das pessoas têm fator diferente no
sangue daqueles tipos descobertos, e 15% não possuem esse fator. A descoberta
permitiu classificar o sangue das pessoas em fator Rh positivo (presença do
fator) e fator Rh negativo (ausência do fator), possibilitando a
compatibilidade da transfusão de sangue e seus componentes.
Outros progressos relacionados às descobertas de anticoagulantes, que
permitiram iniciar o processo de armazenamento e estocagem do sangue,
garantindo sua preservação in vitro(7).
O serviço de transfusão de sangue demonstrou sua eficiência principalmente
durante a Primeira Guerra Mundial, ajudando a recuperar pacientes. Com a
Segunda Grande Guerra, foi necessário armazenar sangue, o que passou a ser uma
estratégia de segurança nacional, transformando, assim, toda uma cultura. Dessa
forma, não era mais uma pessoa doando para um parente ou amigo, mas sim uma
questão de patriotismo e solidariedade para com as pessoas que estavam na
guerra. Assim, criou-se uma forte cultura da Doação Voluntária de Sangue na
Europa.
A história da hemoterapia brasileira iniciou-se durante a década de 1930, com a
criação de serviços de transfusão nos hospitais de pronto socorro e em outros
centros importantes. As transfusões se davam diretamente de braço a braço, pois
não eram utilizadas as técnicas de anticoagulação e preservação do sangue.
Em 1944 surgiu o Banco de Sangue da Lapa, que originou o atual Centro de
Hematologia e Hemoterapia do Estado do Rio de Janeiro - HEMORIO. Em 1949, foi
realizado o Primeiro Congresso Nacional de Hematologia e Hemoterapia no Brasil.
A Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia foi fundada em 1950. Ainda
em 1949, foi criada a Associação de Doadores Voluntários de Sangue, cuja
posição era contrária à comercialização desse tecido. Nessa época, era comum a
doação remunerada no Brasil, através dos bancos de sangue privados surgidos a
partir da Segunda Guerra Mundial, contribuindo para a comercialização e a
lucratividade do sangue. Os doadores eram os menos indicados, envolvendo
inclusive pessoas doentes, o que colocava em risco a vida dos receptores. Dessa
forma, houve o aumento de doenças transmitidas pelo sangue, como hepatite A e
B, sífilis, doença de Chagas e malária, alertando a sociedade para a
necessidade de buscar soluções para a prevenção desses problemas.
O advento da AIDS, na década de 1980, desperta a preocupação do governo com o
processo da doação de sangue, sancionando Portarias e Decretos com o objetivo
de disciplinar o processo da doação de sangue. Nesse mesmo ano é criado o
Programa Nacional de Sangue e Hemoderivados (Pro-Sangue), através da Portaria
Interministerial nº 7(8).
Em muitos países, principalmente em razão das duas guerras mundiais, surgiram
os hemocentros, sendo que no Brasil, os dois primeiros hemocentros públicos
foram instalados somente a partir de 1982, em Pernambuco e Ceará. Desde então,
estes serviços, em todo o país, enfrentam situações críticas e, problemas por
terem seus estoques reduzidos, devido a uma série de dificuldades comas quais
se deparam no dia-a-dia.
A Constituição Federal, em seus artigos 197 e 199, confere ao poder público a
regulamentação, a fiscalização e o controle das ações referentes ao uso de
hemoderivados proibindo a comercialização de sangue, sob qualquer forma, em
todo território nacional(9). Outros decretos e leis vão surgindo com o objetivo
de regularizar as ações referentes à hemoterapia, por exemplo, a Lei 10.205, de
21 de março de 2001(10).
Paralelo a todo este processo, vai se configurando que as doações de sangue
realizadas espontaneamente, de forma altruísta e não-remunerada, apresentam
menor prevalência de infecções transmissíveis por transfusão.
Diante dos avanços da medicina e das ciências em geral, muito ainda há a
pesquisar. Nos últimos 20 anos, esforços têm sido dispensados na formulação e
no preparo de substitutos dos glóbulos vermelhos, também chamados de
concentrado de hemácias. Apesar dos altos investimentos na busca de um
substituto para o sangue, ainda não existe um elemento que o substitua. Sabe-se
que apenas o HemAssis (tem a função de substituir hemácias) aprovado para uso
humano e que estudos têm sido realizados, apesar dos inúmeros inconvenientes e
problemas que possam causar os substitutos para o sangue(6). A possibilidade de
causarem lesão renal é em razão da falta de proteção da membrana celular, já
que a molécula de hemoglobina é degradada rapidamente no plasma, e seus
fragmentos são excretados na circulação(6). Em vista disso, a reposição de
sangue e derivados em pacientes de diversas doenças, ou vítimas de trauma de
qualquer etiologia, permanece como um dos principais fatores para a preservação
da vida. Portanto, a importância da doação de sangue e da busca de novos
doadores para a sua fidelização que significa tornar o doador como doador de
repetição, ou seja, conquistá-lo para que doe sangue regularmente.
DANDO SIGNIFICADO AO SANGUE
O vocábulo "sangue", de origem latina - sanguen -, possui forte conotação
emocional na cultura cristã. Associado ao coração, o "sangue" está presente com
muita força na literatura, nas artes em geral e, é claro, nas ciências,
especificamente quando estudado biologicamente. Mas, enquanto o coração
simboliza o amor romântico, sonhador, o sangue traduz emoções fortes, ardentes,
arrebatadoras e até violentas.
Em nossa cultura, muitas são as expressões com a palavra "sangue" denotando
diversos significados, como, por exemplo, "suar sangue" com o sentido de
trabalhar em excesso; "subir o sangue à cabeça", com o significado de ficar
enfurecido; "ter o sangue quente", cuja acepção é a mesma que "ter sangue nas
veias", denotando ser genioso e irritadiço,,além de tantos sentidos, significa
cultura, existência, família e raça.
A história da humanidade está ligada ao significado de sangue como vida desde
seus primórdios.
Na Antigüidade, o sangue era concebido como fluido vital que além de vida
proporcionava juventude. Por isso, os povos primitivos untavam-se, banhavam-se
e bebiam o sangue de jovens e corajosos guerreiros, esperando adquirir suas
qualidades. E hoje o sangue é transfundido como uma das formas de preservar sua
vida.
Na Bíblia encontramos muitas passagens relacionadas ao sangue. Um dos
acontecimentos mais importantes, para a cultura cristã, refere-se à
transubstanciação do vinho em sangue por Jesus Cristo. Esse ritual tem um
significado profundo para o cristão: o próprio sangue de Cristo se faz presente
para a humanidade através da continuidade da consagração. O sangue derramado
por Cristo, pregado na cruz, significa a remissão dos pecados dos cristãos, com
o sentido de vida, libertação, salvação e purificação.
Pela cultura de muitos povos sabemos que estes selam pactos de amizade, de
amor, de vida ou mesmo, paradoxalmente, de morte com sangue. Sabemos que outros
executam vinganças e extravasam ódios com derramamento de sangue.
Poderiam ser escritas páginas e mais páginas com passagens, fatos e rituais
ligados à palavra "sangue", tanto no que diz respeito à cultura popular como à
erudita, expressando sentimentos e sentidos.
O sangue permite o provimento de substâncias vitais, oxigena todos os órgãos do
corpo humano, e assim, defende o organismo contra agentes invasores de diversas
naturezas. Enfim, Sangue é fonte de vida! É assim que a doação de sangue como
ato solidário à manutenção da vida, constitui um desafio para cada um de nós.
DOAÇÃO COMO SOLIDARIEDADE UM ENCONTRO COM NOSSO COTIDIANO
A solidariedade é um valor ético que já se fazia presente na filosofia política
do Iluminismo(11). Já dizia um filósofo francês, considerado como um dos mais
notáveis filósofos iluministas, que a solidariedade tem a capacidade de manter
unida uma coletividade, composta de indivíduos isolados(11). Hoje, a
solidariedade é concebida como ajuda mútua e apoio.
Há autores que defendem a solidariedade como uma lei da natureza, um sentimento
incontestável de adesão ao grupo e à espécie, em que a moral não pode ser vista
como compromisso de deveres e normas, mas como a busca do prazer e a repulsa da
dor(12,13).
Durkheim, sociólogo francês, em obras como Formas elementares da vida e divisão
do trabalho social(14) designa a solidariedade como forças que mantêm unidos os
membros de uma coletividade(14) A divisão do trabalho além de ter efeito
econômico, produz efeito moral, cuja função é criar entre duas ou mais pessoas
um sentimento de solidariedade(15). Isso, como diriam os economistas, não é
apenas porque ela faz de cada indivíduo um "trocador", mas "é porque ela cria
entre os homens todo um sistema de direitos e deveres que os ligam uns aos
outros de maneira duradoura".
A solidariedade social é concebida como mecânica e orgânica(15). A
solidariedade mecânica é vista como própria das sociedades "inferiores", ou
seja, não complexas, nas quais os indivíduos pouco diferenciados compartilham
idéias, costumes, crenças, hábitos, valores e sentimentos comuns(15).
Com a divisão do trabalho e, consequentemente, com a especialização dos
trabalhadores, portanto em sociedades "complexas", emerge a solidariedade
orgânica que faz com que indivíduos interdependentes comportem-se como um
organismo.
"Existem momentos em que (...) a acomodação no mundo é essencialmente
"abstrativa" (mecânica, racional, instrumental), mas, existem outros em que ela
remete à "Einfühlung" (orgânica, imaginária, afetual). Mas, como já indiquei,
há épocas em que, segundo ponderações diferenciadas, encontramos essas duas
perspectivas juntas"(1).
Maffesoli nos traz contribuições importantes para refletirmos sobre a
solidariedade. O autor francês contemporâneo propõe a paixão pelo social tal
como ele é, tal como se dá e não como deveria ser(1). Estuda o ser humano em
suas várias dimensões, abrangendo não apenas a relação interindividual, mas
também a que o liga a um território, a um meio ambiente natural que partilha
com outros.
A questão do afeto, tão relevante para Maffesoli(1), também já erareconhecida
por Durkheim(14), atribui ao grupo uma 'fonte de vida sui generis',
desprendendo calor que aquece e reanima os corações e que os abre à simpatia.
Maffesoli ressalta que Durkheim refere-se analogicamente ao corpo individual e
ao social, afirmando que ambos são organismos complexos, em que o funcionamento
e a disfunção se ajustam da melhor maneira possível(1,14). Dessa forma, ao se
comparar a divisão do trabalho social e o trabalho fisiológico, ambos aparecem
no seio das massas policelulares dotadas de certa coesão. Esse fato demonstra,
então, uma concepção orgânica. Portanto, a sociedade não se resume a uma
mecanicidade racional qualquer, ela vive e se organiza através dos reencontros,
das situações e pelas experiências vividas em cada grupo. Segundo a proposta
maffesoliana, as tribos constituem-se como grupos que surgem a partir do
afetual (atração - repulsa), da identificação, enfim do que as aproxima. É na
mesma perspectiva que a solidariedade orgânica é vista como a que tem ligação
com o outro, ou ainda, como vontade de ser/estar com o outro(1).
Assim, o grupo de doadores de sangue pode constituir-se como uma tribo que "
(...) se faz a partir do sentimento de pertença, em função de uma ética
específica e no quadro de uma rede de comunicação"(1). O grupo de doadores é
formado por indivíduos heterogêneos que também compõem outras tribos. Esses
seres humanos heterogêneos estão ligados aos hemocentros, à tribo de doadores,
por sentimentos que lhes são comuns e que lhes possibilitam uma pertença.
A maioria das doações de sangue efetivadas no HEMOSC de Florianópolis(16) tem
se apresentado, nos últimos anos, conforme dados estatísticos obtidos no banco
de dados da instituição, na perspectiva de solidariedade orgânica, ou seja, de
forma espontânea, voluntária, por querer estar com o outro, pelo afetual e pela
ética da estética.
A solidariedade orgânica é concebida como algo afetual que é espontâneo e
originado pelo sentimento do querer estar junto do outro(1,3). A aproximação
entre os indivíduos se dá pela identificação, talvez pela vontade de preservar
a vida humana. A solidariedade orgânica é compreendida como aquela que brota de
dentro do ser humano.
Ao se fazer referência à doação de sangue, pode-se dizer que o sangue do
doador, que é parte do seu ser, através da doação seguida pela transfusão,
estará junto com o do outro. A solidariedade orgânica encontra-se, embebida de
amor pelo próximo, pelo presente, pelo aqui e agora. Apresenta-se, então, a
importância da preservação da natureza. É a "perdurância" do ser, a
continuidade da vida. É uma transcendência imanente, uma aura, um valor
englobante. É uma ética que serve de cimento aos diversos grupos que participam
desse espaço-tempo. Através da solidariedade orgânica evidencia-se a alegria do
estar junto, reiterada pela idéia de perdurância da vida.
Assim, enfatiza-se, novamente, a idéia de que os doadores de sangue constituem
uma tribo através da qual, em lugar do individualismo, formam-se estruturas de
comunicação, ao mesmo tempo intensivas e reduzidas no espaço(1,3). "Podemos
dizer que as redes, que pontuam nossas megalópoles, retomam as funções de ajuda
mútua, de convivialidade (...)"(1) e, pode-se acrescentar, de reciprocidade, de
solidariedade, materializadas pelas palavras de uma doadora de sangue do HEMOSC
de Florianópolis que dizia que ao abrir os braços, experimentava a alegria de
doar, de um mundo livre e solidário.
Maffesoli ao se referir a ajuda mútua, afirma que "(...) há ajuda mútua por
força das coisas e não se trata de algo totalmente desinteressado, pois a ajuda
dada poderá ser recompensada quando eu mesmo precisar ser ajudado. Mas, dessa
forma, cada um se insere num processo de conexão, de participação, que
privilegia o corpo coletivo"(2).
E, ainda, sobre a referência acima, menciona: "(...) ajuda mútua, que não se
resume unicamente às ações mecânicas das relações de boa vizinhança. Na
verdade, a ajuda mútua, como a entendemos aqui, insere-se numa perspectiva
orgânica em que todos os elementos, em sinergia, fortalecem a totalidade da
existência. Assim, a ajuda mútua seria a resposta animal, "não consciente", do
querer-viver social"(2).
A seguir, apresentamos a evolução das doações de sangue nos últimos dezoito
anos no cotidiano do HEMOSC de Florianópolis a fim de tornar visível o processo
da doação de sangue de forma quantitativa com o objetivo de remeter o leitor a
uma reflexão e possível interpre-tação(16) (Figura_1).
Na Figura_2, tem-se as doações espontâneas, voluntárias e as vinculadas,
aquelas realiza-das em nome de um paciente sendo que, em 2006, obteve-se 77,4%
de doações espontâneas em oposição às doações vinculadas, com 22,6%. Em 2007,
obteve-se 5.825 doações vinculadas e 23.802 doações espontâneas, significando
80,3% de doações espontâneas e 19,6% de doações vinculadas. E, no ano de 2008,
obteve-se 25.000 doações espontâneas e 5.218 de doações vinculadas, ou seja,
82% de doações espontâneas e, 17,2% de doações vinculadas.
Entendemos que as doações espontâneas podem ser conside-radas como expressão da
solida-riedade orgânica. E as doações vinculadas? Seriam uma manifes-tação de
solidariedade mecânica, pois as pessoas, ao serem solici-tadas a doarem sangue
para um paciente, muitas vezes sentem-se obrigadas a realizarem esse ato, sem
que, na verdade, queiram ou estejam dentro das condições adequadas e permitidas
para a doação. Ou significam, também, a solidariedade orgânica, já que podem
ser pontuadas por uma ética da estética, ou seja, emoldurando um sentir junto,
um re-ligare pelo símbolo da fonte da vida que é o sangue?
Nos últimos anos, a doação de sangue como solidariedade orgânica vem se
sobressaindo à solidariedade mecânica conforme pode ser visualizado no gráfico
abaixo. Esta é da ordem do instituído, do obrigatório, contrária ao afetual, ao
querer estar junto, à ética da estética que vem tomando espaço em nossa
sociedade contemporânea.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A doação de sangue é um ato voluntário de solidariedade que pode ser espontâneo
ou vinculado a um determinado paciente. Percebe-se que, mesmo com as
dificuldades vivenciadas no cotidiano da sociedade contemporânea, a doação de
sangue vem se expressando, cada vez mais, como solidariedade orgânica.
Dessa forma, nota-se no contexto atual do HEMOSC de Florianópolis que a
solidariedade mecânica vem dando espaço à solidariedade orgânica,
materializando-se na vivência em uma sociedade onde a diversidade impera e a
vontade de estar com o outro contribui para a identificação entre os
participantes de uma determinada tribo. Fica, então, caracterizado o grupo de
doadores de sangue como uma tribo, na qual a solidariedade orgânica se
sobressai à solidariedade mecânica, embora ambas possam, por vezes, encontrar-
se em um mesmo ato de doação. Ora os doadores doam sangue de forma espontânea,
ora de forma vinculada quando solicitados por amigos e/ou familiares a doarem
sangue para um determinado paciente, aproximando em determinadas épocas essas
duas perspectivas.
O ato de doar sangue é um ato de ajuda mútua, não totalmente desinteressado,
pois o doador poderá ser recompensado e retribuído quando, por sua vez
necessitar. A solidariedade como ajuda mútua privilegia o coletivo em um
processo de conexão e de participação.
Assim, mesmo em um contexto no qual não se encontra tempo para o convívio
familiar e com os amigos, para o lazer e para o cuidado de si, desvela-se a
solidariedade orgânica emergindo através da doação espontânea de sangue.
Percebe-se que um dos fatores que prejudicam o índice de doações refere-se à
cultura disseminada da pressa, que leva as pessoas a fazer tudo imediatamente e
contribui para a falta de paciência e de tempo para a doação de sangue.
Contudo, mesmo com todos os fatores que contribuem negativamente, ainda assim
tem-se uma tribo de doadores que doam sangue regularmente e que atuam de forma
a conquistar mais adeptos a esse ato de solidariedade tão necessário à
manutenção da sociedade, numa perspectiva de viver mais saudável já que não
existe um substituto para o sangue.
Vale ressaltar a importância do tema aqui discutido, não somente pela carência
de produções sobre o assunto, mas a fim de suscitar o leitor à reflexão sobre a
importância da doação de sangue como uma forma de solidariedade orgânica, do
querer estar junto do outro mesmo em meio a tantos fatores que contribuem para
o culto da velocidade e para a superficialidade da vida humana.