Produção de cuidado e subjetividade
INTRODUÇÃO
Compreende-se que a noção de subjetividade se estende por todos aqueles que
estão envolvidos na produção cotidiana do cuidado, usuários, trabalhadores,
equipes, gestores, familiares, que se encontram em territórios específicos, e,
por meio de uma multiplicidade de gestos, falam de sua produção de
subjetividade "acumulada" e "em ato", que se expande ou se recolhe, no momento
das interações necessárias ao cuidar.
Neste sentido, a produção de cuidados diz respeito ao cotidiano, ao lugar onde
se dão os acontecimentos, manifestações, detalhes e situações, relativos à
dimensão das minúcias que fazem parte da vida de todo dia e que se qualificam
como fatores de socialidade, carreando a imagem de que "a vida cotidiana é como
um território onde se enraízam as alegrias e as amarguras", território povoado
pelas microatitudes, pelas criações minúsculas, banais(1).
Numa primeira concepção, pode ser dito que cuidado é tudo aquilo que se
aglutina sob a forma de ações ou intervenções, que colaboram para gerar,
organizar ou (re)estabelecer esperança, autonomia, a liberdade de escolha, as
relações humanas e o sentido da vida.
A relação o mais simétrica possível entre as pessoas, capaz de possibilitar
atitudes e espaços de cuidado, abre-se para a responsabilização pelos laços
afetivos e para o encontro intersubjetivo, desloca a noção de cuidado de
sujeito-objeto para sujeito-sujeito, onde projetos de felicidade podem (e
devem) ser incluídos, na perspectiva da pluralidade dialógica e da intensidade
com que se estabelece a sintonia e o acolhimento do outro(2-4).
Estar ao lado, estar junto, envolvimento, confiança e responsabilização, ajudar
o outro a manifestar-se pelo que há de melhor em si (reforço da dimensão
saúde), oferecer suporte para superar limites ou adaptar-se a eles(2,5): eis um
primeiro e tímido balizamento conceitual sobre o cuidado em saúde, que pode
nascer da confluência destas noções, além do que "relações interpessoais e
interações sociais são compreendidas como a base do existir humano e antecedem
mesmo as técnicas terapêuticas, inscrevendo-se na dimensão cidadã e política do
cuidado"(6).
Pode ser dito que vivemos um contemporâneo no campo da saúde, no qual algumas
iniciativas tentam recuperar o humano no cuidado ao humano; esta retomada, de
certa forma, diz respeito à retomada do sujeito, em ação, em relação com o
mundo.
Neste sentido, parece urgente abrir passagem às características e desejos
singulares, com os quais o sujeito participa e se afirma no contexto de
existência social, política, cultural, ambiental, biológica e afetiva.
Características estas que lhe possibilita produzir relações, modos de vida e
linguagens, como também manifestações relacionadas ao processo saúde-doença.
A noção da subjetividade passa a ser compreendida, não mais pela dissociação
entre objetivo-subjetivo, entre concreto e abstrato, mas pela produção de
sentidos a partir de "aspectos, sociais, históricos, políticos, econômicos e
institucionais e suas ações estruturantes das subjetividades dos homens"(7), o
que corresponde à modos específicos de estar e funcionar do sujeito social
(individual e coletivo) nas várias modalidades de vida (papéis e interações)
que o mundo contemporâneo propõe:"E o que é da ordem da subjetividade, ou,
melhor dizendo, das subjetividades, escapa à mesmice, pode fazer o jogo, pode
ser capturado, mas, de repente salta e viaja em outras direções e sentidos,
criando outras trilhas. Nestes saltos e viagens, a subjetividade sempre está
afinada com o presente, entendido aqui no contexto dos sentidos e significados
do cotidiano"(8).
Remete à possibilidades de existência, constituição de experiências e história,
incorporação de escolhas e características sociais: "a raiz não só da palavra,
mas, sobretudo, do conceito de 'subjetividade' remete à experiência de sermos
sujeitos, no duplo sentido da palavra (aquele que é submetido e aquele que
realiza a ação), em cada tempo e em cada contexto"(9), podendo ser
compreendida, em sua essência, como a produção de sentido, nos vários planos em
que o sentido se faz presente. Inclusive na produção e no consumo das ações de
cuidado.
O objetivo deste trabalho foi de proceder à reflexão teórica onde houvesse a
conexão entre produção de cuidado e subjetividade, a fim de compreender as
idéias desenvolvidas para sustentar esta conexão. A discussão dos achados se
deu a partir de algumas noções da pós-modernidade, por meio da obra do
sociólogo francês Michel Maffesoli.
MÉTODO
Como parte de uma pesquisa bibliográfica necessária à confecção de um projeto
de pesquisa de doutorado, a busca de trabalhos que fizessem a conexão entre
cuidado e subjetividade foi realizada no Dedalus - Banco de Dados
Bibliográficos da Universidade de São Paulo, especificamente no catálogo on-
line das bibliotecas do Sistema Integrado de Bibliotecas.
Por meio do site www.usp.br/sibi, foi acessado o "Dedalus - catálogo on-line
global", a opção "super-busca", em seguida a "busca booleana por palavras",
selecionadas "todas as bases". Os termos utilizados foram subjetividade and
cuidado, o que gerou a quantidade de 26 registros.
Não foi realizado recorte temporal, no entanto os trabalhos localizados
correspondem à produção de 1998-2008, sendo 20 deles publicados nos últimos 5
anos.
O critério de inclusão e exclusão obedeceu à uma intencionalidade específica do
projeto de doutorado, uma vez que este pretendia, dentre outros objetivos,
identificar a conexão (ou não) entre produção de cuidado e subjetividade,
inclusive buscando compreender mais profundamente qual o sentido da palavra ou
do conceito "subjetividade", quando este é utilizado nos textos publicados,
referindo-se aos cuidados de saúde.
Optou-se por selecionar apenas trabalhos com resumos, assim foram eliminados
três deles, que não contemplavam este critério. Um artigo, mesmo não
apresentando resumo disponível no Dedalus, foi considerado, pois o trabalho na
íntegra foi acessado, sendo percebida a grande pertinência com o tema.
Após a leitura e compreensão dos resumos, 12 trabalhos foram escolhidos; alguns
para iniciar, outros para compor a reflexão.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Observa-se que alguns autores se referem à noção de subjetividade como parte de
uma dimensão global(7,10-13) necessária para compor a visão de integralidade do
ser humano e do cuidado, no entanto, sem apresentar uma definição ou um
conceito específico a respeito do termo, fazendo com que se possa interpretá-lo
de muitas formas.
A produção de subjetividades, a partir da intersubje-tividade(11,14-15,23)
favorece a idéia de que é algo que não se constrói no plano individual,
tampouco na mera relação trabalhador-usuário estabelecida para aquela
finalidade em si. Implica em coisas já anteriormente significadas/incorporadas
pelo usuário e pelo trabalhador a respeito de necessidades, hábitos, modos de
compreender e ofertar cuidado, modos de viver. Implica igualmente no processo
de negociações em torno das intenções de cada sujeito, no momento do
estabelecimento de determinadas ações/ modalidades de cuidado.
Assim sendo, conceber a intersubjetividade é validar "o caráter imediatamente
relacional e irremediavelmente contingente de nossas indentidades e
historicidades como indivíduos e grupos"(23).
A produção de subjetividade de quem cuida e de quem é cuidado(7,15-17) vem
reforçar, em muito, a idéia anterior, dada a clareza com que se coloca: não há
uma direção única nesta estrada; as vias, inevitavelmente se confundem no
momento em que há interação de mundos, buscas e representações, nas quais os
sujeitos da relação estão (ou supõe-se que estejam) implicados na produção de
vida, bem-estar, felicidade.
Encadeando a intersubjetividade ao cuidado e à mútua produção que é descrita
até aqui, o cotidiano aparece como território do real, da diversidade, no qual
a modalidade e a intensidade dos encontros diz respeito à maneira como os
sujeitos (e a organização dos serviços) lida com os detalhes da produção de
saúde, sobretudo com a perspectiva do sofrimento humano que, em grande parcela
do tempo, demanda iniciativas e alternativas frente ao instituído, pois
apresenta o inusitado, o multidimensional do processo, que aponta para
diferentes formas de sinalizar necessidades e interesses(17).
Encostando nesta significação do real, mas nela incluindo, cuidadosamente, o
plano do imaginário e do simbólico, o cotidiano visto como território de ação e
de socialidade passa a ser considerado como lócus de cuidado, à medida em que
"a vida é vista como uma rede sutil e complexa", manifestada em minúcias, a
pedir tecnologias de cuidado afinadas com o sensível(13).
Há autores(1,12,17) que apontam a dicotomia entre saber-fazer técnico e um
cuidado tido como sensível; a dificuldade em desfazer essa fronteira no
processo de cuidar e de acolher sujeitos, processos ainda muito marcados por
critérios biológicos e modelos burocratizados, centralizados na (pela)
intervenção funcional.
Ao mencionar o cuidado sob a estratégia saúde da família, tem-se: "Os
trabalhadores, formados sob a ótica do paradigma flexneriano, permanecem
predominantemente no território referencial do modelo médico-assistencial
privatista, da divisão por especialidades e por disciplinas, aceitando a idéia
de produção social da saúde mais no caráter da multicausalidade, sem se dar
conta das implicações a que está sujeito por se tratar de um processo
histórico, social, cultural, econômico, político e ético inerente, e com
dificuldades de incorporar a imprevisibilidade e a incerteza como parte do
processo, não contando com instrumental coerente para agir"(17).
Na tarefa de investigar ações humanizadoras em terapia intensiva(12),
identifica-se esta dicotomia distribuída em "pólos distintos e difíceis de
serem conciliados no ato complexo de cuidar", ainda que se procure visualizar
"o reconhecimento dos usuários como cidadãos, em sua integralidade e
subjetividade".
Na discussão sobre a revisão de modelos capazes de dissolver ou desconstruir
esta dicotomia, alguns trabalhos(16-18) anunciam as possibilidades deste novo,
que intenciona romper a exclusividade do modelo curativo, mencionando também o
novo objeto: o sujeito social, o cuidar em relação, a noção de vínculo
avançando sobre as tecnologias de cuidado, como formas de acessar a rede de
subjetividades que cerca o cuidado em saúde, que cerca os sujeitos do cuidado,
trabalhadores e usuários, o que não deixa de representar um enorme desafio, já
que isso demanda, sobretudo, a revisão dos instrumentos e das intenções de
cuidado.
Entretanto, é preciso perceber que "não existe ainda o novo paradigma pronto e,
por conseguinte, não existe uma forma pronta para assistir e para educar a
assistir", atrelando esta afirmativa à usual leitura de sinais do processo
saúde-doença, sustentada por referenciais que emanam do plano orgânico,
biológico, fisiológico, químico, bioquímico, a gerar e orientar ações de
cuidado, que não integram o sujeito do cuidado como sujeito da relação(19).
Abordado de outro modo, ao avaliar o ensino de enfermagem vinculado ao
referencial teórico do relacionamento interpessoal, como uma via a considerar o
sujeito do cuidado, identifica-se a mesma dicotomia, com a prevalência da
"existência de um olhar que se volta para o tecnicismo, com toda a rigorosidade
de pensar, produzir e fazer", distanciando o cuidado daquilo que possa resgatar
o sujeito e as questões relativas à produção de subjetividade. Permanecem,
portanto, em campos afastados e distintos, uma porção do cuidado concebida como
abstrata/subjetiva e outra porção como concreta/objetiva(7).
Compreende-se que as conexões entre produção de cuidado e subjetividade
identificadas nos trabalhos citados remetem à existência de uma tensão nos
territórios de cuidado em saúde, constituída, basicamente, por duas forças.
A primeira aparece na dicotomia entre o saber-fazer técnico e o cuidado
sensível, dicotomia sinalizada pela fissura entre objetivo/subjetivo, concreto/
abstrato, onde o plano do tecnicismo prevalece e é ativado como instrumento e
finalidade do cuidado a apagar/ afastar outros planos, dentre eles o plano da
produção de subjetividades.
Assim, coloca-se como privilegiada a perspectiva sujeito-objeto, direcionada à
doença, às alterações funcionais e não exatamente ao sujeito onde a vida
acontece, ao sujeito que faz a vida acontecer, em toda a sua complexidade.
Fica posta a cena em que o lugar do sujeito (da ação) está nublado(17,19), pois
não é possível vê-lo agir, ele está capturado da ação, está sob efeito da
passividade e da razão científica soberana de um modo de produzir cuidados que
versa sobre sua vida, mas o desconsidera, como produtor de hábitos, tradições,
cultura, sabedoria, saberes, socialidade.
A superação da racionalidade instrumental (concepção "em que toda coisa vale
somente na medida em que serve"), que caracterizava a modernidade, não
justifica no contemporâneo, adotar o equivocado gesto de abrir mão da razão;
entre a razão e a irracionalidade há o não-racional, a razão sensível, presente
nas manifestações do cotidiano (afeto, emoção, intuição, religação ao místico).
A razão sensível abre possibilidades para acontecer a sinergia de elementos do
arcaico e do tecnológico, do saber técnico e do saber leigo, diferenças que não
se excluem, pelo contrário, se sobrepõem num mosaico, com sua imagem de
agregação de pequenos heterogêneos a compor o desenho maior, o corpo social,
suas repetições e irregularidades(1,20).
O cuidado, pensado sob o paradigma moderno, vale na medida em que serve ao
afastamento do risco, do perigo que a doença representa, ou seja, é movido pela
preocupação em alcançar o "sucesso da ação técnica", a partir da qual agrega o
valor racional(7).
Na clássica ação prescritiva (para hipertensão, dieta, exercício e anti-
hipertensivo) destaca-se a lógica finalista, com seu padrão de repetição,
redução e redundância(1,20), que esgota e menoriza a circulação do próprio
sentido de cuidado. Não se questiona quem é o sujeito do cuidado, tampouco o
que ele tem a expressar, manifestar, produzir, confrontar, trocar, afirmar.
Quanto à superação da racionalidade instrumental moderna, parece estar claro
que o cuidado sensível, como uma possibilidade pós-moderna, se afasta da noção
utilitária de manejar a doença e seus desdobramentos restritivos, para se
dirigir, à princípio, aos significados contidos no cotidiano de cuidados e à
alteridade dos sujeitos ali presentes(3,8).
Sem afastar a importância da ação clínica, quando ela acontece, acontece,
inevitavelmente, no contexto da proximidade entre sujeitos, que comungam, em
variadas circunstâncias e intensidades, emoções e sensações de um encontro que
é mediação para o ato cuidador, pois "quanto mais o que se troca é minúsculo,
mais essa troca favorece a proximidade"(1).
Supõe que, ao menos na coleta de uma boa história clínica, seja importante
criar espaços para que se possa falar das relações que o sujeito vive no espaço
da família, no mundo do trabalho, no plano afetivo-sexual, na dimensão do
imaginário, da cultura e do lazer, com a mesma importância que se fala sobre o
que se come, como é o padrão de sono, da pressão arterial, onde nasceu, se já
teve doenças, sofreu cirurgias, quais os antecedentes familiares, se há
tabagismo, etc. É investir num heterogêneo que monta a vida, a partir de
minúsculos encaixes: superficialidades e enraizamentos, sombra e luz, aparência
e essência.
Longe de "valer na medida em que serve", o cuidado passa a servir à algo
incontrolável, que é a expansão da vida. Para isso, o sujeito é convidado a
retornar à cena, trazendo suas formas de expandir (e recolher) a própria vida e
os sentidos atribuídos a este movimento dinâmico e contínuo de produção, que
não comporta mais os grandes sistemas explicativos a discorrer sobre os
fenômenos miúdos e singulares do dia-a-dia, "o princípio causal simples
caducou"(1).
A perspectiva colocada na correspondência entre sujeito-sujeito permite que o
cuidado seja remetido à um sujeito em particular e sua produção de
subjetividade(2,21).
No entanto, ao utilizar o horizonte perceptivo de novo x antigo/ arcaico, deve-
se observar que uma das características do contemporâneo às vezes impede que
falemos de superação e sim de sobreposição de aspectos heterogêneos(22), muito
embora tenhamos o desejo de fazer desaparecer certos mundos para concebê-los
como superados.
Como a segunda força a compor a tensão descrita, vem os achados relativos à:
dimensão global, integralidade, intersubjetividade, subjetividade de quem cuida
e quem é cuidado, cotidiano como lócus de cuidado, novo objeto, o ser social, o
cuidar em relação.
Este conjunto de categorias parece considerar a indissociabilidade entre a
produção de cuidados e a produção de subjetividades dos sujeitos, e, de certa
forma, o cuidado adquire uma finalidade maior de (re) construção de felicidade,
de alegria, de vitalidade, à medida em que lança luz sobre o cotidiano, onde as
relações se constituem, em geral, no plano sujeito-sujeito.
Neste sentido, deslocar a lógica do cotidiano de cuidados para a relação
sujeito-sujeito e compreender que ela se destina a projetos de felicidade(23),
é apostar na revisão de instrumentos, concepções e gestos que cercam os
cenários de cuidado construídos para a ação, para a compreeensão e o uso da
razão sensível, como perspectiva de aproximação e diálogo com o sujeito do
cuidado.
O cuidado passa, naturalmente, a operar na perspectiva de uma integralidade que
nunca se esgota e nunca se alcança, pois sempre está a agregar mais e mais
aspectos da existência do sujeito e de microelementos que compõem seu
cotidiano: com a explosão de um centro único, de um referencial nuclear de
controle e análise dos fenômenos, na pós-modernidade há de se considerar a
multiplicidade de centros, de aspectos, de forças, de afetos e fluxos
renováveis(1) e, portanto, de outras leituras que precedam as ações de cuidado.
Integralidade sobre a qual não é possível usar critérios de regularidade, pois
cada sujeito é feliz em circunstâncias particulares, pensando a felicidade como
algo que se funda em processos históricos, sociais, hereditários e biológicos,
espaços de expressão cultural, ambiental, sempre em planos relacionais e
intercambiáveis entre si(23).
Posto como um desafio, não é fácil a adoção de projetos de cuidado que
transitem pela noção de felicidade, num contemporâneo que se apega "à
negatividade da doença para definir saúde, e ao conhecimento de suas
regularidades para saber como controlá-las", dado o extenso uso que se faz do
discurso do risco, a estabelecer horizontes normativos no campo das práticas de
saúde(23).
É preciso manter a crítica sobre esta lógica, caso contrário, o foco deixa de
estar no sujeito, mas naquilo que o ameaça, e pode torná-lo menos feliz, menos
inteiro e funcional, o que faz a concepção retornar à dimensão da racionalidade
instrumental de um modelo explicativo-intervencionista insuficiente,
empobrecido, esvaziado, que, em grande medida, discrimina a fissura entre
aspectos objetivos e subjetivos do cuidado. Apagando o sujeito da relação e,
nele, a produção de sentidos.
Além disto, os projetos de felicidade, ao serem considerados, pensados e
construídos entre os sujeitos (profissional-usuário) favorecem a produção de
subjetividades em fluxo mútuo, problematizando inclusive aquilo que pode ou não
ser considerado como produção de cuidado, pois "um valor não vale por si mesmo,
mas unicamente quando me une a outros"(1).
Nesse processo, a linguagem ocupa uma posição de destaque, porque adentramos a
idéia do cuidar em relação, onde ela representa a matéria prima do diálogo,
"desse mútuo engendramento de sujeitos e de mundos", compreendendo que
"sujeitos são diálogos"(23).
Dialogar, visto neste enquadre, não é pouco. É ter disposição para chamar para
a cena lógicas (pontos de vista diferentes, que se agregam, se chocam, se
fundem e se complementam), interesses, necessidades, saberes, códigos
culturais, rituais institucionais, ingredientes científicos e outros do campo
social.
A expressão dialógica é uma forte característica deste processo
multidimensional qualificado como cuidado, que põe em relação a
indissociabilidade de "seres de subjetividade/intersubjetividade/objetividade",
que dispara seqüências de afetos e ligações, da ordem da subjetividade(24) e,
sobretudo, um cuidado que só pode acontecer diante de um incessante fluxo
intersubjetivo, em que pessoas, instrumentalizadas com determinados
conhecimentos e qualidades humanas, se aproximam(25).
Sob esta perspectiva, o diálogo permite a circulação de elementos, muitas vezes
contraditórios, dissonantes, tensos, pois reservam-se à alteridades em
interação, em contato, em vinculação; nem sempre visível ou perceptível para o
trabalhador, a equipe, ou o serviço de saúde, que, em tese, coordena as ações
de cuidado.
Assim, as vias de produção do cuidado individual ou coletivo são resultantes de
forças e recursos que agem e reagem nesse território de produção, onde os
sujeitos, profissional e usuário, se encontram, se reconhecem e se movimentam,
enquanto assistem e são assistidos, enquanto escutam e são escutados, cada qual
em seu conjunto dinâmico de intenções e significações (re) elaboradas no plano
da subjetividade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os achados permitem dizer que recuperar o sujeito e sua respectiva produção de
subjetividades é recuperar, igualmente, um cuidado que confunda os limites
fronteiriços do que é qualificado como objetivo/subjetivo e aposte numa visão
integrada daquilo que diz respeito às produções e ações humanas.
O cuidado no campo da saúde esbarra em elementos relacionados à uma produção
mútua (trabalhador e usuário), na medida em que valores e modos de cuidar são
compartilhados e construídos nos encontros necessários para o estabelecimento e
negociações das ações de cuidado.
Não se trata de privilegiar isto ou aquilo: a razão sensível como instrumento
de cuidado se configura como uma possibilidade de favorecer a produção de
subjetividades, encadeada à ação técnica/ clínica, já que o cuidado concebido
como integral requer também cuidados específicos direcionados ao corpo físico e
à funcionalidade dele esperada.
A conexão entre produção de cuidados e subjetividade suscita uma série de
elementos que alimentam discussões sobre novas e antigas modalidades de
cuidado, que não provocam, na realidade, um fenômeno de superação de uma ou
outra, mas de sobreposição, fazendo com que os recortes temporais e teóricos
sobre o tema apareçam mesclados, sob a forma de traços do racionalismo
instrumental e tentativas de revisá-lo.