Experiência da família ao conviver com sequelas decorrentes da prematuridade do
filho
INTRODUÇÃO
Embora cada núcleo familial apresente suas próprias características na maneira
de viver e ou conduzir o seu cotidiano e de interagir entre si, algumas
questões são comuns, como o sofrimento por causa de uma doença entre seus
membros, de gravidez indesejada, de deficiências físicas e mentais, da morte
entre outros. Assim, famílias que têm um filho prematuro e com muito baixo peso
(PMBP) peso igual ou abaixo de 1500 gramas -, também experimentam situações em
comum, embora possuam uma trajetória única de vida e importante de ser estudada
(1).
O bebê prematuro com muito baixo peso aquele que nasce com menos de 34 semanas
de gestação pode apresentar condições clínicas instáveis e predisposição a
sérios e diferentes riscos relacionados à prematuridade. Interfere nessa
condição, a época e o peso ao nascer, pois quanto menores, maiores serão os
riscos para problemas pulmonares, neuromotores, e entre outros(2).
Os familiares dessas crianças, mais especificamente seus pais, são considerados
grupos de risco. Além das mudança que uma gestação normalmente provoca no
núcleo familiar, estas são exacerbadas quando a gestação tem complicações. Isso
gera nos pais sentimentos de medo, perda e angústia. Além de já estarem
debilitados com o sofrimento advindo das complicações da gravidez enfrentam,
após o nascimento, a situação crítica de saúde do filho e a consequente
necessidade de internação na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN),
geralmente, por longos períodos(1).
Com a internação do bebe na UTIN, os pais dão início a uma trajetória marcada
por momentos dolorosos e estressantes e também pela separação do filho do
núcleo familiar. O mundo do hospital e em particular o das UTIs é diferente e
cheio de aparatos tecno-lógicos. Nesse ambiente, os pais passam a conviver
inicialmente com a ansiedade pela estabilização do quadro clínico, com o ganho
e manutenção do peso e, por fim, com o período que antecede a alta hospitalar.
Na maioria das vezes, em função das inúmeras alterações em seu cotidiano, as
famílias tendem a perceber essa trajetória como longa, mesmo quando não o é de
fato.
Isso pode comprometer o estabelecimento de vínculo pais-filhos(3), de tal forma
que a auto- confiança dos pais pode ficar abalada e, por conseguinte,
interferir na capacidade de eles criarem o filho. Para complicar ainda mais, os
profissionais permanecem muito tempo envolvidos com a assistência ao PMBP. Na
maioria das vezes, não percebem que o cuidado prestado não inclui a família e
nem é desenvolvido com o intuito de promover e estimular o vínculo famíliar com
a criança, bem como de estabelecer um acompanhamento que represente apoio
efetivo para os pais(4). Embora a alta hospitalar seja desejada, no domicílio,
os pais tendem a apresentar inúmeras dúvidas e a sentirem-se inseguros até
mesmo em relação a alguns cuidados cotidianos(5).
Apesar do risco de morte, a sobrevida dos recém-nascidos prematuros aumentou
significativamente a partir da década de 1970, em decorrência do aprimoramento
tecnológico das UTIs neonatais e da existência de profissionais capacitados
para a intervenção e a condução adequada do processo de cuidar em neonatologia
(2).
Não obstante, uma preocupação dos profissionais da área de neonatologia e da
qual compartilhamos é a qualidade de vida futura dos PMBP, que pode estar
comprometida por causa das sequelas físicas e mentais muitas vezes irreparáveis
(1,5). Dessa forma, os profissionais precisam atentar para o fato de que ter
alta da UTIN não significa que a família esteja pronta para cuidar do filho.
Ela necessita de apoio para enfrentar as possíveis intercorrências durante o
crescimento e desenvolvimento da criança(1).
Cabe considerar que as famílias terão maior possibilidade de sucesso nessa
empreitada se puderem contar com o apoio de profissionais, pois quando
orientada e sensibilizada, ela desempenha papel importante na promoção da saúde
de seus membros. Esse apoio deve se fazer presente em todos os momentos:
durante a internação, por ocasião da alta hospitalar e durante o acompanhamento
ambulatorial, principalmente nos primeiros anos de vida, o que ainda no Brasil
se caminha a passos lentos(6-7).
Este fato por si só já constituiria um indicativo da necessidade de
acompanhamento dessas famílias em longo prazo, com o intuito de compreender
melhor suas necessidades, subsidiar profissionais e políticas públicas, no
apoio e na intervenção junto delas. Diante do exposto, o objetivo do presente
estudo foi compreender como é a experiência da família de conviver com as
sequelas da prematuridade nos primeiros anos de vida da criança.
MÉTODO
Trata-se de um estudo qualitativo o qual adotou como linha metodológica uma
associação entre os princípios da etnografia e da história de vida. Em suas
experiências e sentimentos, as pessoas que compartilham um histórico
culturalmente semelhante, como o nascimento de um filho prematuro,
caracterizam-se como grupos culturais que tiveram experiências comuns ao
conviverem com esse filho nos primeiros anos de vida. Com esta associação,
valorizamos e reconhecemos a relação entre a vida individual e a social, assim
como a necessidade de conhecer o fenômeno em estudo, pautado na visão de mundo,
crenças, valores, saberes e práticas de quem o experimenta(8).
O estudo foi desenvolvido no município de MaringáPR, com oito famílias de
crianças residentes no município, nascidas PMBP e que estiveram internadas na
UTIN do Hospital Universitário de Maringá. Ele é uma instituição de referência
para os 115 municípios da macrorregião noroeste do Paraná, na área de
neonatologia.
Optou-se por estudar as famílias de crianças que passaram pelo serviço em seus
três primeiros anos de funcionamento (1998 a 2000), com os filhos em idade de
cinco a sete anos, por entender que elas já teriam acumulado experiências
importantes na trajetória de vida relacionada ao cuidado e ao acompanhamento do
crescimento e desenvolvimento do filho. Elas foram selecionadas a partir do
livro-registro da UTIN. Neste período, estiveram internadas na UTIN 116
crianças PMBP. Destas, 35 evoluíram para óbito. Das 81 que receberam alta, 36
residiam no município de Maringá e tinham registro completo de endereço
residencial e telefone. Mas, só 11 foram localizadas e três delas se recusaram
a participar da pesquisa.
Os dados foram coletados no período de janeiro a junho de 2006, por meio de
consulta documental e entrevistas abertas. Os prontuários foram consultados
para complementar e esclarecer informações relacionadas aos diagnósticos
médicos (na hospitalização e acompanhamento ambulatorial), tempo de
hospitalização, idade gestacional e peso ao nascer. As entrevistas foram
previamente agendadas, realizadas no domicílio e gravadas após consentimento.
Elas tiveram uma duração média de duas horas e meia e foram realizadas,
considerando-se a seguinte questão norteadora: Como foi para família criar este
filho? As mães foram as informantes principais mas, em três famílias tios e
avós maternos participaram efetivamente como ouvintes e depoentes.
Para cada uma das crianças foi estruturado uma espécie de "dossiê", composto
de: dados de identificação, notas de campo e dados de entrevista e os obtidos
do prontuário. As informações foram submetidos a um processo de análise de
conteúdo(8). Para tanto, inicialmente, as entrevistas foram transcritas na
íntegra, e em seguida, submetidas a um processo exaustivo de leitura. As
experiências das famílias foram agrupadas em ordem cronológica modo a permitir
a identificação dos aspectos semelhantes e dos específicos experimentados por
cada uma das famílias.
O desenvolvimento do estudo obedeceu aos preceitos éticos disciplinados pela
Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde e o projeto foi aprovado pelo
Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Maringá (Parecer 382/
2005). Todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido em duas vias. Na apresentação dos resultados, os discursos dos
sujeitos estão identificados com a posição dos entrevistados na família (mãe,
avós, tios e outros), seguido de um nome fictício, retirado das personagens dos
desenhos animados.
RESULTADOS
Conhecendo algumas características das crianças e suas mães
As mães das crianças em estudo (duas meninas e seis meninos), na época do
parto, tinham idade que variou de 16 a 34 anos e escolaridade média de oito
anos completos. Cinco delas eram casadas. Apenas duas haviam planejado a
gravidez. Por ocasião do estudo, três não exerciam atividades fora do lar (mães
de Moranguinho, Limãozinho e Homem-Elástico) e duas trabalhavam em empresa
familiar (mães de Faísca e Jimmy Nêutron). Das outras três, uma era diarista
(mãe de Flecha), outra professora (mãe de He Man) e a terceira trabalhava no
serviço de apoio de um hospital (mãe de Pão-de-Mel). A idade gestacional variou
de 26 a 33 semanas, e o peso de nascimento, de 645 a 1445 gramas. Vale
ressaltar que seis crianças nasceram com 26 a 29 semanas de gestação e foram
consideradas prematuros extremos, pois tinham peso inferior a 1000 gramas.
No Quadro_1, são apresentadas algumas características relacionadas ao
nascimento, crescimento e desenvolvimento das crianças e nele se observa, por
exemplo, que o tempo de permanência na UTIN variou de 15 a 120 dias (média de
68 dias). As crianças nascidas com mais de 1000g (Pão-de-Mel e Jimmy Nêutron)
são as que apresentaram um desenvolvimento neuromotor mais próximo da
normalidade e permaneceram menos tempo na UTIN.
A família identificando diferenças no crescimento e desenvolvimento do filho
PMBP
A identificação de "diferenças" no desenvolvimento infantil do PMBP foi uma das
representações encontradas em todos os discursos, e contemplou a percepção
construída pela família no convívio com o filho após a alta hospitalar. Os
relatos permitiram perceber que nos casos de Pão-de-Mel e Jimmy Nêutron, que
nasceram com mais de 1000g, as diferenças foram percebidas de forma mais
acentuada só nos primeiros meses de vida e estavam mais relacionadas à
aparência física:
...todo mundo queria ver, porque ele era muito pequeno (mãe de Jimmy
Nêutron)
Eu peguei uma boneca pequena e coloquei do lado dela...ela cabia
dentro da cama da boneca, tirei umas fotos. Você vê a foto hoje e
fica abismada. A tia do meu marido chegou a dizer que ela era
parecida com lagartixa, eu fiquei muito triste... (mãe de Pão-de-Mel)
Essas diferenças, no entanto, segundo elas, foram minimizadas e, para algumas,
crianças até desapareceram no decorrer do crescimento:
Aí, depois dos dois anos, ele pegou mais saúde... ninguém fala que
nasceu prematuro. (mãe de Jimmy Nêutron)
Nos demais casos, quando as crianças foram para casa, as famílias já haviam se
acostumado com a aparência física. As diferenças, embora percebidas também nos
primeiros meses de vida, eram mais relacionadas com a maneira de a criança se
comportar. Apresentavam muita irritabilidade, alteração na postura, no sono,
entre outros, e tornaram-se mais evidentes quando os pais comparavam o seu
desenvolvimento com o de outros filhos ou de crianças da mesma idade.
Os discursos são reveladores do quanto algumas famílias estavam desinformadas
em relação às possibilidade de complicações decorrentes da prematuridade.
Eu não sabia que ele poderia ter convulsão. Ele começou a babar, a
repuxar os dedinhos da mão, vomitou, virou o olho e tudo mais... (mãe
de Limãozinho)
Contudo, ao mesmo tempo em que pudemos inferir que estas famílias não foram
devidamente alertadas sobre as possibilidades de sequelas e ou complicações. E
preciso reconhecer que algumas famílias muitas vezes não aceitam os
diagnósticos informados e por essa razão os nega ou então não procuram conhecer
mais sobre eles. Isto constitui uma das formas de enfrentamento encontradas
pelas famílias para não sofrerem por antecipação. Por exemplo, Faísca recebeu
alta da UTIN com indicação de uso de anticonvulsivante, mas esta terapêutica
não foi seguida, pois a família, por interferência da avó materna, não se
convenceu quanto à necessidade e à importância do medicamento e acreditava que
a criança não necessitava dele:
...um dia, ele passou super mal, no outro dia como não melhorava, fui
no médico e ela falou que era convulsão, eu nunca tinha visto ele
assim ... mas uma coisa é que minha mãe não deixou dar remédio porque
ela acreditava muito em Deus, aí não sei se foi por isso... (mãe de
Faísca)
Eu só fui descobrir a realidade, quando eu saí e fui atrás do
diagnóstico da minha filha. Foi uma coisa que marcou muito, magoou
muito. Se eu estou aqui é porque eu corri atrás... (mãe de
Moranguinho)
Este fato demonstra a importância de os profissionais de saúde considerarem os
aspectos culturais e religiosos das famílias em seus planos de cuidado,
oferecendo subsídios, durante todo o período de internação, para que elas
possam compreender a importância de determinadas condutas a curto, médio e
longo prazos. Se as famílias não compreendem essa importância, provavelmente
vão fazer valer sua percepção. Ademais, o fato de a família decidir não
oferecer o medicamento ao filho demonstra o quanto ela necessitava de apoio e
orientação, pois as convulsões no período neonatal constituem manifestação
clínica de uma grave doença de base, que pode produzir lesão cerebral
irreversível (1,3,9).
É importante ressaltar que as alterações no comportamento nem sempre são
percebidas como prováveis manifestações patológicas. A possibilidade do choro,
da irritabilidade e da agitação estarem associados à fome ou ao desconforto
constitui causa de confusão para os pais. A persistência destes sintomas é que
vai despertá-los para um possível problema. A mãe de Moranguinho, por exemplo,
relata que a filha apresentava choro constante e irritabilidade intensa, o que
era muito diferente da forma como os outros três filhos haviam se comportado:
Porque ela não se comportava como uma criança da idade dela, porque
além dela ser prematura, eu não sabia lidar com ela na parte do
choro, da agitação. (mãe de Moranguinho)
O impacto do diagnóstico de seqüelas e complicações nos primeiros anos de vida
Esta categoria aborda as referências sobre sequelas que os PMBP apresentaram no
decorrer da infância e o modos de enfrentamento experimentados pelas famílias.
Em seus discursos, as famílias revelaram que à medida que, a criança crescia,
elas começaram a perceber déficit em seu desenvolvimento, notado inicialmente
pela demora em sentar, seguido do engatinhar, andar, falar e, posteriormente,
no desempenho de habilidades motoras e mentais. Essas constatações eram
norteadas principalmente pela comparação entre os irmãos.
...a primeira coisa que eu fui procurar realmente foi o que a
Moranguinho tinha, porque ela não se comportava como uma outra
criança da idade dela, e eu já tinha três filhos, sabia que não
estava nada certo... A diferença era o choro, a irritação não eram
normais. (mãe de Moranguinho)
O recém-nascido PMBP está sujeito a complicações cerebrais e é vulnerável a
lesões isquêmicas causadas por fluxo sanguíneo cerebral variável, que pode ser
tanto aumentado quanto diminuído, decorrente da asfixia neonatal(1,5,9). Além
disso, existem alguns fatores de risco que predispõe o PMBP à complicação
neuromotoras. Como exemplos, destacam-se dois: os biológicos (quanto menor a
idade gestacional e o peso ao nascer, maiores serão os riscos) e os ambientais
que incluem deficiência nas condições socioeconômicas e culturais - uso de
drogas na gestação, baixa renda, acompanhamento pré-natal inadequado, gravidez
na adolescência, entre outros(4).
As seis crianças nascidas com menos de 1000 gramas (Moranguinho, Homem
Elástico, Flecha e Limãozinho, Faísca e He Man) tiveram diagnóstico de anóxia
neonatal e, em decorrência, apresentam danos físicos e mentais. Moranguinho e
Homem-Elástico são os mais comprometidos e apresentam inclusive tetraplegia e
microcefalia.
O oftalmo falou Mãe, sua filha pode ter um problema neurológico. É
microcefalia, a cabeça dela é pequena demais, vamos investigar... Daí
que eu fui atrás do neuro pediatra em Maringá, aí veio o diagnóstico
de hidrocefalia, problema motor... e voce vai ter que colocar sua
filha numa escola especial. (mãe de Moranguinho)
Lá em Curitiba, o médico disse que a retina dele não desenvolveu,
devido ao uso de corticóide, oxigênio... e não poderia deixar ninguém
mexer para não piorar mais ainda. Ainda disse assim, daqui uns dez
anos, quem sabe a medicina descubra alguma coisa nova que ele possa
enxergar. Eu estava sozinha, voltei de lá super abalada. Depois, fui
para São Paulo, e a doutora disse a mesma coisa... (Mãe de Homem-
Elástico)
Apesar do importante papel do serviço de saúde na monitoração do
desenvolvimento da criança, a família pode desempenhar um papel fundamental no
diagnóstico precoce dos déficit dos PMBP. Isso é importante, pois, quanto mais
precocemente forem diagnosticadas, mais poderão ser minimizadas as deficiências
físicos e mentais(5). Não podemos nos esquecer que a família, dada à
proximidade e convivência diuturna, tem maiores condições de primeiramente
perceber limitações e alterações. Mas, para isso, ela precisa estar devidamente
esclarecida e preparada para aceitar a possibilidade de que seu filho conviva
com algum tipo de complicação:
Ele não andou quando bebê, só se arrastava. (mãe de Flecha)
[...] eu levei no ortopedista porque ele demorou andar, com um ano e
nove meses. (mãe de He Man)
É interessante observar que as famílias, muitas vezes, são "culpabilizadas" por
não terem procurado mais precocemente melhores recursos para o problema do
filho:
O médico falou que demorou muito para levar na escola especial, que
faltou estimulação, por isto ele usa a cadeira de rodas, não anda....
(mãe de Homem- Elástico)
Os relatos maternos acerca do desenvolvimento permitiram confirmar que os PMBP
nem sempre passam ou seguem as fases do rolar, sentar, engatinhar e andar. Ao
abordar o desenvolvimento dos prematuros, alguns estudos(2,7,9) apontam que
existe uma desordem no crescimento e desenvolvimento, comprometendo as
habilidades motoras nos primeiros anos de vida. Limãozinho foi o que mais
demorou a andar:
Ele andou com quatro anos, minha mãe nunca esqueceu, ela fala que foi
um milagre de Deus, nós achamos que ele nunca ia conseguir .(mãe de
Limãozinho)
Esta criança frequenta até hoje o ambulatório de ortopedia no HUM e é
acompanhada pela fisioterapia desde um ano de idade. Ainda assim, mãe e avó se
ressentem da falta de informações
Ele, às vezes, quando corre ainda cai muito [...] mas quem diz que
quer ajuda (avó de Limãozinho)
Foi difícil, a gente fica sem saber o que fazer mais, ninguém fala
porque ele ficou assim. (avó de Limãozinho)
Observa-se que a família se inquieta com o fato de estar pouco esclarecida a
respeito dos problemas do filho. Alguns estudos têm demonstrado que as
orientações da equipe de saúde foram isoladas, esporádicas, não-sistemáticas e
nem individualizadas e, por esta razão, não foram capazes de acabar com a
insegurança materna no cuidado ao filho prematuro(10). Para isso, independente
das orientações recebidas durante o período de hospitalização, seria necessário
existir um serviço de atenção e suporte no domicílio, pois é neste ambiente e
no cotidiano que as dúvidas se fazem presentes.
Em alguns casos, no decorrer do crescimento da criança, ou seja, depois que a
criança alcança certa independência determinada pelo andar e o falar, parece
que as famílias diminuem a ansiedade relacionada com o desenvolvimento motor.
Só passam a perceber que existe algum déficit quando a criança entra na fase/
idade escolar. Isso porque, além de a criança manter contato mais frequente com
outros da mesma faixa etária, essa é uma etapa cujas exigências de
desenvolvimento são mais conhecidas pelos leigos. Isso permite que eles
percebam mais facilmente as alterações, como a deficiência na aprendizagem e na
maturidade da criança, que se mostra impróprio para a idade:
[...] minha menina tem dois anos e é muito diferente. Não parece que
ele tem sete anos. Então eu acho assim, a professora fala que ele
quer brincar embaixo da mesa, as atitudes dele é diferente, na frente
das pessoas. As pessoas tratam diferente, ele se sente diferente...
(mãe de Flecha)
De fato, as crianças nascidas PMBP apresentam maior dificuldade de concentração
com baixo desempenho escolar. No entanto, embora a prematuridade constitua um
fator de risco para as dificuldades de adaptação e desempenho escolar, não é um
fator unicausal, já que as condições econômicas, culturais e ambientais também
são apontadas como contribuintes diretos para o desenvolvimento escolar dessas
crianças(7). O desenvolvimento cognitivo de prematuros com muito baixo peso
também é influenciado pela escolaridade e idade materna(6). A escolaridade
materna foi considerada o indicador mais adequado para medir indiretamente a
estimulação cultural recebida em casa. E é mais efetiva quando as mães têm nove
ou mais anos de escolaridade. As mães adolescentes, por sua vez, podem
comprometer a qualidade do estimulo e acompanhamento dessas crianças, em
decorrência da falta de comprometimento com horários e datas de agendamentos,
privando a criança de receber tratamento adequado.
Em relação a esta variável cabe considerar que, embora os índices de
escolaridade materna tenha aumentando nos últimos anos, ainda se apresenta como
um fator determinante da qualidade do cuidado junto aos filhos com necessidades
especiais. Isso porque normalmente os contatos com os profissionais de saúde
são permeados por uso de termos técnicos, de forma que as mães e os familiares,
de forma geral, apresentam dificuldades em compreender a importância e os
significados de estimular e encaminhar precocemente o filho PMBP para serviços
e profissionais especializados.
A experiência da família de Flecha ilustra bem esse contexto. O histórico da
hospitalização revelou que, por diversas vezes, a criança esteve entre a vida e
a morte, pois além do tempo demasiadamente longo na ventilação mecânica, a
criança também foi submetida a dois procedimentos cirúrgicos de alta
complexidade. Mas, a família, por meio de sua mãe, não parece reconhecer
possíveis repercussões neurológicas que o filho possa desenvolver ao longo da
vida, e nem suspeitar que se trata de uma criança que necessita de cuidados
especiais. As atitudes e os comportamentos do filho levaram a mãe a perceber
problemas relacionados com a adaptação e socialização da criança. Só por
ocasião do ingresso na escola, é que a criança recebeu um encaminhamento formal
relacionado com a necessidade de procurar um serviço de neurologia. A mãe
revelou, porém, estar com uma solicitação de tomografia de crânio há mais de um
ano e que ainda não tinha nem idéia de quando o exame seria realizado.
Este fato, sem dúvida, revela a ineficiência do serviço público de saúde junto
às crianças com necessidades especiais e que deveriam ter prioridade no
atendimento.
Durante a infância do filho PMBP, a família percebe o desenvolvimento
comprometido e se depara muitas vezes com alterações que são difícieis de serem
explicadas e percebidas como anormais. Por essa razão, o parâmetro mais
utilizado pelos pais no cotidiano, é mais uma vez a comparação, em especial,
entre os próprios filhos. Isso lhes permite definir se o comportamento e as
atitudes observadas estão alterados ou não.
O desenvolvimento dele aconteceu depois de um aninho. Eu vi pelo meu
segundo filho, nasceu bem depois que ele mas sentou e falou bem
rápido, e ele não, demorou muito... (mãe de Homem-Elástico).
No entanto, a comparação, poderia ser aprimorada e se tornar uma ferramenta
mais segura e confiável, se as orientações dos profissionais de saúde quanto às
possíveis alterações que o PMBP possa vir a apresentar fossem mais claras. As
mães revelaram que, diante da dificuldade em lidar com as diferenças e o
comportamento "difícil" do filho, o que mais lhes marcou foi a falta de
conhecimento e esclarecimentos sobre o que seria ter um filho prematuro.
Nos primeiros meses depois que saiu da UTI, tudo já vinha aparecendo:
era o choro demais, a irritação, não eram normais, como eu não tinha
um conhecimento..., eu desconhecia e daí fui atrás de buscar esse
conhecimento... orientação médica, pesquisa... como ela aprendeu a
dar beijo? Começou a falar os fonemas? Tudo foi o estímulo que a
gente deu. (mãe de Moranguinho)
Observe-se que, mesmo a mãe de Moranguinho que já tinha tido dois filhos e
formação na área da saúde e permaneceu mais de três meses com a criança na
UTIN, não conseguia distinguir e nem ter clareza quanto às alterações
percebidas no comportamento da filha, quanto à sua normalidade ou não. Isso
revela, mais uma vez, a importância do acompanhamento dessas famílias após a
alta hospitalar. Aponta também quão necessário é que os profissionais das UTINs
atentem para estes aspectos no momento de realizar orientações junto aos pais.
É importante que reconheçam que estes, até em função de experimentarem vários
sentimentos relacionados à hospitalização, nem sempre conseguem processar
muitas informações ao mesmo tempo. É necessário fazer várias aproximações com
os temas de maior interesse para a sustentação do cuidado no domicílio.
Por outro lado, ao manifestarem suas percepções de que o filho apresentava
atitudes inadequadas para a idade, as mães revelam que as famílias do PMBP
podem deparar-se com alterações de comportamento desde o nascimento e em
diferentes momentos da vida da criança:
Ele sempre foi assim, desde bebê, a gente não conseguia controlar.
(mãe de Flecha)
Os discursos revelaram também outros déficits, além do motor. Das oito
crianças, seis (Moranguinho, Homem-Elástico, Limãozinho, Faísca, He Man e Jimmy
Nêutron) são portadores de problema visual. Moranguinho e Homem-Elástico
apresentam perda total da visão decorrente de retinopatia. As demais apresentam
perda parcial, com necessidade rotineira de óculos de graus variados:
A primeira coisa que eu reparei aos dois anos foi que ele, tudo que
ia ver aproximava do olho, brinquedo[...] era tudo de pertinho, daí
veio o óculos, de 12 graus num olho e 13 no outro.Agora, (aos sete
anos) é sete e oito, mas ainda é muito. (mãe de Limãozinho)
Descobrimos o problema dele porque um dia tava passando um avião e
nós mostramos e ele não enxergava..., ai o médico lá no HU falou que
era problema no nervinho. (mãe de Faísca)
Levei no oftalmologista com menos de um ano, ele usa óculos desde
bebê, cinco graus de miopia. (mãe de He Man)
A família de Moranguinho tomou conhecimento da retinopatia aos oito meses, mas
a do Homem-Elástico só aos três anos. Justificam porque até então estavam todos
preocupados e envolvidos com as inúmeras internações decorrentes da
insuficiência respiratória:
Aos três anos, eu soube o que aconteceu foi que a retina dele não
desenvolveu, devido ao uso de corticóide, oxigênio e a gente não pode
mexer. (mãe de Homem Elástico)
Nas crianças com maior comprometimento da função visual, a trajetória até o
diagnóstico foi mais desgastante e doloroso:
Antes de um ano, ela foi encaminhada para um retinólogo. Passei por
vários lugares até receber o diagnóstico da retinopatia. (mãe
Moranguinho)
O fato de essa complicação estar associada à prematuridade e aos riscos que
essas crianças viveram ao nascer, desencadeia no âmbito familial sentimentos de
perda. Perda do filho perfeito e esperado ou da parte comprometida de seu
corpo. Vive-se aqui, o sentimento de luto, uma vez que não só a morte significa
perder ou separar-se daquilo que se ama, mas também a perda segmentar do corpo,
nesse caso, a visão.
Algumas famílias também se depararam com a suspeita ou confirmação de déficit
na acuidade auditiva. O diagnóstico tardio dessa complicação é revelador de
quanto os serviços de saúde são deficientes na assistência aos PMBP, pois o
risco de um prematuro apresentar perda auditiva neurossensorial bilateral é de
6 a 12 vezes maior do que em neonatos saudáveis(11). Além disso, esta condição
poderia ser diagnosticada precocemente por meio da aplicação de testes
específicos em bebês de risco - aqueles que apresentaram anóxia neonatal, uso
de medicamentos ototóxicos, peso ao nascer igual ou inferior a 1500 gramas,
permanência em incubadoras por mais de sete dias e internação prolongada em
UTIN(11).
Esses testes, porém, apenas são utilizados como rotina em grandes centros o que
revela a deficiência na assistência:
O pessoal da escola, quando iniciei (após os três anos) me disse que
ele precisava de estimulação e também realizar o teste de
audiometria... (mãe Homem-Elástico)
Dentre outras complicações percebidas e relatadas nos discursos, encontram-se
as cardíacas e pulmonares, que, de fato, são muito frequentes em crianças
nascidas PMBP(5). Entre as crianças do estudo, três delas necessitaram de
investigação ou acompanhamento cardiológico nos dois primeiros anos de vida:
[...] o cardiologista suspeitava de sopro. (mãe de Limãozinho)
Fiz três ecocardiograma mas não deu nada. (mãe de He Man)
Ele ficou no ambulatório da cardio até os dois anos, depois não deu
mais nada. (mãe de Faísca)
As complicações pulmonares, por sua vez, mostraram-se mais presentes e mais
graves, revelando que, na concepção das famílias, essas complicações são mais
difícieis de se resolverem:
Ela fez muito tempo fisioterapia respiratória (mãe de Moranguinho);
Até os três anos, ele era no oxigênio direto [...] (mãe de Homem-
Elástico)
Ele teve muita penumonia até os dois anos, era direto no hospital
(mãe de Flecha); Ele fazia fisioterapia respiratória e motora, porque
ele tinha displasia. (mãe de He Man)
A displasia broncopulmonar foi um dos diagnósticos encontrados na maioria dos
registros dos prontuários das crianças durante o tempo de internação na UTIN.
Essa patologia é crônica e interfere decisivamente no crescimento e
desenvolvimento da criança(2,5).
As doenças hemorrágicas decorrentes da prematuridade, mais frequentemente
referidas na literatura, são a paralisia cerebral, convulsões e hidrocefalia
(1,9,12) e todas elas foram identificadas nos relatos das mães:
Aí, veio o diagnóstico de hidrocefalia e o problema motor, a
paralisia. (mãe de Moranguinho)
Na tomografia e ressonância magnética deu mancha no cérebro. Segundo
o médico, essas manchas foram das paradas cardíacas que ele teve na
UTIN, pela falta de oxigênio. (mãe de Limãozinho)
Quando eu levei na pediatra, ela suspeitou de hidrocefalia devido o
perímetro cefálico estar crescendo muito rápido. Daí, a neuro disse
que não, que o cérebro dele tinha sofrido muito, mas iria recuperar.
(mãe de He Man)
Nestes relatos, dois aspectos merecem destaque: primeiro é que os pais sofrem
com os defeitos físicos dos filhos, aqueles que são aparentes, pois estes
alteram sua forma e estrutura; mas sofrem também com a suspeita e a demora na
confirmação de diagnósticos. Segundo, é que nem sempre as orientações
fornecidas pelos profissionais são compreendidas pelas famílias. Interfere
nesta compreensão, a forma como as orientações são feitas e os termos
utilizados, de modo que, as informações oferecidas não conseguem reduzir ou
amenizar a ansiedade e nem suprir a necessidade de esclarecimento dos pais
(13,14). Pelo contrário, muitas vezes, contribui para aumentá-las.
Assim, os profissionais precisam compreender que o preparo para a alta dessas
crianças inicia-se já por ocasião de sua admissão na UTIN(15) . Nesse processo,
é imprescindível identificar a percepção que a família tem da situação, é
preciso usar uma linguagem que seja passível de compreensão pelos pais e que as
informações oferecidas atendam às suas reais necessidades. Além disso, é
importante estender a assistência para além dos muros hospitalares, por meio de
seguimento ambulatorial do crescimento e desenvolvimento dessas crianças e, se
possível, realizar também acompanhamento do cuidado prestado no domicílio(16).
As famílias de PMBP necessitam de ajuda e amparo por parte dos serviços de
saúde(17). O acompanhamento no domicílio representa um apoio protetor, pois
possibilita que elas sejam fortalecidas no desenvolvimento de cuidados e ações
voltadas à promoção da saúde dessas crianças ao longo da vida. Sobretudo, por
permitir detectar precocemente anormalidades no desenvol-vimento infantil, e
assim auxiliar a família na procura e no direcionamento do tratamento dentro
dos serviços de saúde.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As famílias do estudo revelaram que conviver com um filho nascido PMBP não é
uma tarefa fácil, pois, desde o nascimento, enfrentam momentos de luta e busca
pela compreensão do diagnóstico e tratamento dos problemas de saúde da criança.
Ressalta-se que todas as famílias revelaram ter sofrido muito ao se depararem,
de forma inesperada, com sequelas e complicações. Muitos dos problemas de saúde
constatados, como o déficit motor, deficiência de aprendizagem e visual,
retinopatia, agitação, paralisia cerebral, tetraplegia espática, entre outros,
foram percebidos e diagnosticados aos poucos, ou seja, ao longo dos anos e a
partir da convivência e dos acompanhamentos médicos hospitalares.
Assim, além do sofrimento, algumas famílias demonstraram também dificuldade de
compreender e aceitar as deficiências encontradas, mobilizar-se adequadamente
na utilização e na busca de recursos formais e informais relacionados com a
assistência às crianças com necessidades especiais. Neste contexto, o ingresso
na escola também se mostrou ser uma fase na vida da criança que foi vivenciada
com angústia pela família, em decorrência tanto dos déficit de aprendizagem
como daqueles relacionados com a adaptabilidade e a socialização dela.
Isso constitui um indicativo da necessidade de crianças nascidas PMBP serem
acompanhadas longitudinalmente por equipe multidisciplinar. Destarte, suas
famílias também necessitam de apoio e incentivo para cuidá-los com qualidade.
Para tanto, elas precisam ser informadas sobre possíveis complicações
decorrentes da prematuridade. No entanto, segundo as informantes, os
profissionais de saúde, via de regra, não informaram e nem anteciparam
possíveis complicações que as crianças pudessem vir a apresentar em sua
trajetória de vida.
Acreditamos que os profissionais, além de considerarem a interferência de
aspectos socioeconômicos e culturais nas condições de vida da criança nascida
PMBP, precisam reconhecer seu papel relevante com a essas famílias. Os serviços
de saúde ainda não estão devidamente preparados para atenderem esses clientes e
que os recursos disponíveis na rede pública são insuficientes para garantirem o
cuidado necessário a essas crianças, que podem apresentar uma gama de problemas
e necessidades decorrentes da prematuridade extrema.