Cuidar ou tratar? Busca do campo de competência e identidade profissional da
enfermagem
INTRODUÇÃO
Toda profissão precisa justificar a necessidade da sua prestação de serviços,
delimitar seu campo de competência e dar provas de sua indispensabilidade(1).
Todavia, estudos revelam que as enfermeiras não têm clareza acerca do objeto de
seu trabalho (o cuidado)(2-3). Esse fato prejudica a delimitação do campo de
competência da enfermagem, bem como a definição de sua identidade profissional.
Sabe-se que, após mais de um século de profissionalização, a identidade de
enfermagem continua sendo um alvo a ser alcançado(1). Além da falta de clareza
sobre o cuidar, outros fatores contribuem para tal. Dentre eles, destacamos: o
perfil maternal atribuído a seus atores, caracterizando a enfermagem como
carreira feminina, o que lhe confere menor valor social; a lógica capitalista
que regula e permeia a organização dos serviços de saúde; a formação que
privilegia a corrente ligada à tecnicidade centrada na doença; a hegemonia do
saber e poder médico no contexto da assistência à saúde com enfoque no curar/
tratar em detrimento do cuidar.
No cotidiano profissional, o resultado desse conjunto de fatores é traduzido
por um sentimento de exclusão, que caracteriza o (des)valor do trabalho entre
os próprios profissionais. E embora esse aspecto não exclua a(o) enfermeira(o)
do espaço de trabalho, deixa-a(o) em uma condição de vulnerabilidade. Como um
fator agravante, pacientes e familiares alegam não saber qual é o "real papel e
o valor do trabalho da enfermagem"(2,4).
A valorização da enfermagem está condicionada à comprovação de que seus
cuidados são a expressão e o cumprimento de uma ação indispensável em certas
circunstâncias da vida das pessoas, sendo esse serviço não coberto por outros
profissionais(1).
Nessa linha de argumentação, é preciso destacar que as relações de cuidado
manifestam-se por meio de hábitos cotidianos, na família, no ambiente de
trabalho, na vizinhança e até mesmo entre pessoas estranhas. Nesse contexto, os
cuidados de enfermagem são uma substituição dos cuidados que a pessoa não pode
temporariamente garantir a si própria, ou não pode ser garantido pelo seu
entorno social(5).
Desse modo, a determinação da necessidade dos cuidados de enfermagem não se faz
pura e exclusivamente pela presença ou ausência de um agravo de forma isolada.
É necessário considerar a inter-relação existente entre as possibilidades e
habilidade da pessoa que requer ajuda, bem como as possibilidades existentes em
seu meio social(5).
Outro aspecto que precisa ser considerado envolve as situações frente a um
diagnóstico e uma prescrição de tratamento médico. De forma análoga, caso esse
cuidado não possa ser assegurado pelo próprio paciente ou familiar, será
requerida a competência especializada da enfermeira(1). Portanto, o
estabelecimento da equação enfermeira = doença é muito simplista, cria
obstáculos na delimitação da competência profissional e compromete o valor
social do trabalho de enfermagem.
Sempre cabe à enfermagem avaliar o tipo de ajuda necessária, planejar e
implementar o plano de cuidados, que pode incluir o tratamento. Esse plano visa
despertar, acordar, estimular as capacidades de viver do paciente, uma vez que
a finalidade primeira dos cuidados de enfermagem é permitir transpor um limiar,
ultrapassar uma etapa, comunicar vida(1,5).
Nesse amplo cenário de possíveis ações, observa-se que o campo de competência
da enfermagem localiza-se numa zona de intercessão entre o campo de competência
do paciente e o do médico, situando-o entre o cuidado e o tratamento.
Entretanto, diferente do cuidar que objetiva desencadear tudo o que mobiliza a
energia de vida, o tratamento busca apenas circunscrever a doença, detê-la,
atenuar os seus efeitos, limitando seus prejuízos. Se a função de um órgão
acha-se impedida, o saber da medicina ajuda a natureza a remover a obstrução, e
nada mais, além disso, enquanto a enfermagem mantém a pessoa nas melhores
condições possíveis, a fim de que a natureza possa atuar sobre ela(6).
Em síntese, adverte-se que o tratamento nunca poderá substituir o cuidado.
Pode-se viver sem tratamento, mas não se pode viver sem cuidado. Logo, as ações
de cuidado não podem ser postas à parte, ou mesmo excluídas do tratamento(1).
Todavia, no campo da saúde humana, a hiperespecialização da medicina tem
favorecido que nas instituições de saúde as representações de cuidado sejam
identificadas com as ações que cobrem, prioritariamente, o que é de domínio do
tratamento. O conceito de tratar invadiu insidiosamente o conceito de cuidar,
apropriando-se dele(1).
Sendo assim, há um hiato entre o real objeto epistemológico da enfermagem - o
cuidado em suas múltiplas acepções e a sua prática no cotidiano de trabalho,
sobretudo no espaço hospitalar(7). Faz-se necessário tornar claro que a
finalidade dos cuidados de enfermagem não é curar/tratar, e sim desenvolver
atitudes e comportamentos que "visem aliviar o sofrimento, manter a dignidade e
facilitar meios para manejar com as crises e com as experiências do viver e do
morrer"(3).
Nessa perspectiva, é essencial explicitar as diferenças entre os conceitos de
cuidar e tratar. A não-delimitação das intercessões e dos limites entre cuidar
e tratar impede a identificação do campo de competência do cuidado de
enfermagem à medida que o confunde com o próprio trabalho médico.
Em outras palavras, afirma-se que a falta de clareza sobre o verdadeiro
significado de cuidar e a indistinção entre ele e o tratar mascararam as ações
dos cuidados de enfermagem, comprometendo sua representação, sua prática.
Dessa forma, a possibilidade de mudança sobre a representação dos cuidados de
enfermagem implica obrigatoriamente na reelaboração de novas interpretações
sobre ele. Pode-se dizer que as representações sociais são tanto produto como
processo de uma atividade de apropriação da realidade externa ao pensamento e
de uma elaboração psicológica e social dessa realidade(8).
Assim, a representação sobre o cuidado deve permitir à enfermagem conferir
sentido aos seus procedimentos, entender a realidade mediante seu sistema de
referências, adequar e determinar, deste modo, um lugar para si no mundo do
trabalho em saúde(9).
É nas interações sociais diárias que se constroem mutuamente tanto o objeto do
trabalho (cuidado) quanto a representação da profissional (identidade). Então,
será a partir de novas interpretações sobre uma nova maneira de cuidar que se
poderão transformar as crenças e os valores frente aos diferentes grupos que
interagem no espaço profissional da assistência à saúde, resultando no
reconhecimento do valor social da enfermagem(9).
Estruturalmente, uma representação é composta pelos seus sistemas central e
periférico, que se apresentam como duplo sistema, em que cada um tem um papel
especifico e complementar ao outro(9).
O sistema periférico permite que a representação se ancore na realidade do
momento, adaptando-se com facilidade ao discurso "politicamente correto" da
moda. Sendo assim, seus elementos são mais vivos, mais concretos e de grande
mobilidade.
Por outro lado, o núcleo central é dado pela análise da história de vida de
determinado grupo e suas experiências, o que corresponde às suas bases
histórica, social e psicológica. Por isso, o núcleo central confere o caráter
de estabilidade à representação e marca sua resistência às mudanças.
Diante disso, o objetivo deste estudo foi identificar o núcleo central das
representações sociais dos profissionais de enfermagem acerca dos conceitos de
cuidar e tratar. Busca-se favorecer a clarificação sobre o cuidado de
enfermagem, bem como a delimitação de sua identidade profissional.
REVISÃO DA LITERATURA
Natureza dos cuidados humanos quanto à finalidade
A variedade dos cuidados estará diretamente relacionada à sua finalidade. Sendo
assim, são vitais e distinguem-se em(5):
- Cuidados de estimulação: centrados no despertar das capacidades mais
fundamentais da vida - respirar, mamar, sentir, ouvir, ver -, buscam
desenvolver as capacidades motoras e estão na base de todo o desenvolvimento
psicomotor;
- Cuidados de confortação: encorajam, permitem adquirir segurança, favorecem a
renovação e a integração da experiência, para que haja aquisição de novas
habilidades. O cuidado de confortação não deve ser confundido com
aconselhamento, ou qualquer segurança ilusória ("tudo vai correr bem");
- Cuidados de manutenção da vida: sustentam e mantêm as capacidades adquiridas
para fazer face às necessidades da vida cotidiana, como a alimentação, a
higienização, a eliminação, vestir-se, deslocar-se, etc;
- Cuidados de parecer: suporte da comunicação não-verbal, contribuem para
promover positivamente a imagem de si próprio, favorecendo a emergência da
valorização, a construção da identidade e o sentimento da pertença de grupo. A
carência desses cuidados pode levar à autodepreciação da imagem;
- Cuidados de compensação: visam substituir o que ainda não foi adquirido ou
que foi só parcialmente adquirido. É dispensado ao bebê ou à criança pequena.
Visam compensar o que a criança ainda não é capaz de assegurar à sua própria
vida. Vão diminuindo à medida que a criança cresce biológica e afetivamente.
Podem ser necessários na vida adulta quando por ocasião de um acidente ou
doença e tornam-se predominantes no final da vida;
- Cuidados de apaziguamento: permitem o alívio da dor e contribuem para
permitir suportar melhor os momentos de grande sofrimento. Favorece a
utilização dos recursos psicoafetivos, atenuam a dor e sua repercussão
psicomental. Também chamados de "cuidados de relaxamento", esses cuidados são
conhecidos há séculos e estão sendo resgatados nas novas concepções de saúde da
modernidade.
Conforme se pode constatar, independentemente do seu nível de desenvolvimento
tecnológico, nenhuma sociedade pode abdicar dos cuidados vitais que alimentam e
acompanham as grandes passagens da vida humana. Daí se conclui que os cuidados
vitais são insubstituíveis frente à vida ou frente à morte. Eles caracterizam o
campo de competência da enfermagem e são ações terapêuticas que exigem
discernimento, reflexão e uso de competências e habilidades diversificadas(5).
Domínios e competências do campo de enfermagem
Existe uma enorme diferença quanto à natureza da finalidade dos cuidados (care)
e dos tratamentos (cure). Enquanto, os cuidados (care) são dispensados no
cotidiano da vida, os cuidados (cure) ganham relevância diante das doenças.
Embora vitais a manutenção da homeostase humana, mudam de foco diante do
contexto da saúde ou da doença.
Sendo assim, é sempre necessário identificar o campo de atuação de total
autonomia e depende pura e exclusivamente da decisão e da iniciativa da
enfermeira, o campo de atuação do médico e diz respeito à prescrição e o campo
de atuação de responsabilidades compartilhadas, que depende da enfermeira no
que diz respeito à iniciativa para execução do tratamento(5):
- o que depende diretamente da iniciativa da enfermeira - esse domínio refere-
se a todos os cuidados de acompanhamento, de estimulação do desenvolvimento e
de manutenção da vida. Podem-se denominá-los cuidados primários, ou seja, o que
está na raiz, vem primeiro, é fundamental e vitalmente necessário, tanto
durante as grandes passagens da vida, nas crises, nas rupturas e de situações
irreversíveis, a exemplo da morte, quanto diante de uma situação que pode
inclui uma patologia;
- o que depende da decisão médica - a competência médica diz respeito ao
diagnóstico e a prescrição do tratamento da doença. Objetiva limitar a
progressão da doença e deter a evolução do que é curável;
- o que depende da enfermeira após a prescrição médica - durante o tratamento,
os cuidados se intensificam e mudam seu foco. Assim, é preciso determinar o
campo de complementaridade entre a competência médica e a competência da
enfermeira, determinando o domínio que corresponde aos cuidados (care) e o
domínio dos cuidados de tratamento (cure)(5).
Ratifica-se que não há disjunção entre os domínios de cuidado (care) e cure,
ambos frente a doença e/ou ao envelhecimento, apenas mudam de foco, mas mantém-
se sob a responsabilidade da enfermagem. Então:
- os cuidados de compensação visam compensar os efeitos das perdas e o desgaste
que ocasiona diminuições sensório-motoras (auditivas, visuais, táteis, motoras,
esfincterianas, elasticidade da pele etc.);
- os cuidados de estimulação permitem a reaquisição das capacidades diminuídas
ou perdidas, a exemplo de hemiplegia, uma intervenção cirúrgica, acidentes e
coma;
- os cuidados de confortação permitem confortar, fortalecer a segurança física
e afetiva necessária para manter as capacidades existentes e reconquistar o que
pode ser recuperado. A falta de atenção a esse tipo de necessidade pode
ocasionar a instalação irreversível de uma dependência total;
- os cuidados de parecer permitem limitar e atenuar a degradação da imagem
corporal. Pois, o sentimento de decadência pode ocasionar sofrimentos morais,
algumas vezes tão intoleráveis quanto os sofrimentos físicos. Esse tipo de
atenção é fundamental para manutenção do desejo de comunicação e partilha; e
- os cuidados de apaziguamento visam aliviar a dor, contribuem para permitir
suportar melhor o sofrimento físico, afetivo, mental e espiritual. As
massagens, por exemplo, são cuidados acertados e positivos em casos de dor.
Por conseguinte, os cuidados (cure) são intencionais e focados no objetivo de
compartilhar a responsabilidade no tratamento. Por se tratar de processo, não
há preocupação com sua finalização, devendo sim, manter o alvo na dignidade e
facilitar os meios para manejar as crises advindas da enfermidade.
MÉTODO
Tratou-se de um estudo qualitativo com base na Teoria das Representações
Sociais, realizado com 45 profissionais entre 18 e 65 anos de idade que atuam
no Distrito Federal. A coleta dos dados foi realizada em fevereiro de 2009. Os
critérios de inclusão foram: ter idade maior de 18 anos e curso de graduação em
enfermagem. Como instrumento de pesquisa de coleta utilizou-se dois
questionários: o primeiro foi composto por perguntas fechadas e objetivava
desenhar do perfil dos entrevistados; no segundo foi empregada a técnica de
livre associação, que consistiu em apresentar as palavras indutoras - cuidar e
tratar -, solicitando-se aos sujeitos a produção de todas as palavras,
expressões e/ou adjetivos que lhe viessem à mente. Sua finalidade foi apreender
as representações sociais dos participantes. Os dados obtidos foram transcritos
e analisados com o auxílio do software Evoc(10). As palavras evocadas de forma
mais frequente devem provavelmente constituir elementos centrais de
representação.
Assim, o software Evoc permitiu vislumbrar o núcleo central em função de duplo
critério: frequência e ordem de evocação das palavras.
A partir do cruzamento dos critérios de frequência e evocação, foi definida a
relevância dos elementos associados (palavras, frases e expressões) ao termo
indutor. Esses resultados são apresentados em quatro quadrantes, organizados em
dois eixos. O eixo vertical contempla a frequência, enquanto o eixo horizontal
a ordem de evocação.
No quadrante superior esquerdo aparecem os elementos mais relevantes que surgem
nos primeiros lugares da ordem de evocação com uma frequência
significativamente mais elevada (núcleo central). Nos quadrante superior
direito e inferior esquerdo são contemplados os elementos menos nítidos quanto
ao seu papel na estrutura da representação, embora significativos em sua
organização. Esses quadrantes constituem a primeira periferia e a segunda
periferia(10).
Obedecendo à Resolução 196/96, os dados foram coletados após aprovação do
projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética da Faculdade de Ciências da Saúde sob
o parecer nº. 140/08. As participantes do estudo, após concordarem em
participar da pesquisa, assinaram o Termo de Consentimento Informado.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A análise do primeiro questionário permitiu identificar o perfil dos
entrevistados que cuja caracterização ficou assim composta: quanto à faixa
etária. Doze dos entrevistados (26,6%) tinham entre 18 e 30 anos; 10 (22,2%)
tinham entre 31 e 42 anos; 18 (40%) tinham entre 43 e 55 anos; quatro (8,8%)
tinham entre 55 e 65 anos; e apenas um (2,2%) tinha idae maior de 70 anos.
Quanto ao sexo, 34 dos entrevistados (76%) eram do sexo feminino e 11 (24%) do
sexo masculino;
Quanto à escolaridade, 13 (28,8%) eram graduados, 27 (60%) eram especialistas,
dois (4,4%) eram mestres; e três (6,6%) eram doutores.
A análise dos resultados dos questionários de livre associação permitiu
aprender, os valores, as crenças e a prática dos respondentes quanto aos dois
conceitos apresentados. Sendo assim, passa-se a análise em separado dos
referidos termos.
Representações sobre o cuidar
Frente à palavra indutora cuidar, os sujeitos evocaram, mais prontamente, as
palavras amor; atenção; dedicação e respeito (Figura1).
![](/img/revistas/reben/v63n5/21f01.jpg)
O termo amor obteve destaque, apontando o provável núcleo central das
representações sociais do cuidar. Esse resultado ratifica pesquisa em que o
amor também emergiu como o provável núcleo central da representação dos
profissionais de enfermagem(11).
A presença dos outros termos permitiu inferir que, para os entrevistados, a
representação de cuidar organiza-se em torno de quatro elementos nucleares: o
amor, a atenção, a dedicação e o respeito. A manifestação dos sentimentos
subjacentes à palavra respeito remete a expressão máxima do amor e traduz a
capacidade de acolher o outro, sem julgamento pelo que sente, fala ou faz(12).
Tratando-se de uma representação do núcleo central, ou seja, daquela que se
mantém resistente a mudanças, observa-se que mesmo diante do apelo das
racionalidades biomédicas que tendem a objetivar e restringir a dimensão
corporal, excluindo desse corpo às dimensões sociais e afetivas, fica explicito
que para os entrevistados, o núcleo duro da representação de cuidar afronta o
dualismo mente-corpo.
Dessa forma, as premissas constantes na sua representação asseveram que o amor
constitui a base do fundamento biológico do social, sendo responsável por todas
as implicações éticas advindas da dinâmica biopsicossocial. Sendo assim, o ato
de cuidar com amor cultiva os sonhos, dá atenção aos projetos e dedica-se a
sustentar a esperança e alegria do viver humano. O amor significa a aceitação
do outro junto a nós, sem amor não há socialização, e sem esta não há
humanização(13).
Amor e respeito têm sido apontados como as condições básicas do reconhecimento
e da identificação da humanidade(13). No cuidado de enfermagem, humanizar
traduz uma atitude intencional de deixar fluir os saber técnico articulando-
o ao saber não técnico, ou seja, coloca a cabeça e o coração no serviço a ser
prestado.
Nessa perspectiva, o cuidado de enfermagem requer escolher e adotar uma atitude
empática de colocar-se no lugar daquele que é cuidado, a fim de identificar,
pelo sentir, suas reais necessidades. Essa atitude abre espaço para o diálogo,
compartilha responsabilidades e reconstrói as identidades, opta então, por não
perder de vista o conjunto familiar e/ou institucional, garantindo a satisfação
das necessidades dos envolvidos no processo de cuidado naquele contexto.
Dando sequência a análise dos resultados, observa-se que na primeira periferia
aparecem os termos: carinhoso, compromisso e zelo, que constituem a filologia
da palavra cuidado. Então, os termos que emergem na primeira periferia
organizam a representação de cuidado que significa desvelo, solicitude,
diligência, zelo, atenção, bom trato(14). Mais uma vez, constata-se que a
manifestação dos sentimentos subjacentes a essas palavras está em consonância
com a raiz essencial da profissão, ou seja, o amor ao próximo, cujo objetivo
principal era: a preocupação com os sentimentos de próximo, o respeito e a
compaixão, o contacto direto com o paciente, a busca de valores humanos e
espirituais e a reflexão sobre o homem e a concepção da vida(15).
Na segunda periferia, os termos: estar e paciente ratificam a importância de
estar presente de forma autêntica diante do paciente- a pessoa humana. Essa
idéia implica em exercer a capacidade de ser real e mostrar-se ao outro de
forma genuína, por meio de palavras e atos(11).
Insurge aqui a valorização da relação interpessoal e habilidades comunicativas
cruciais no processo de cuidar. Ressalta-se, que não se trata de comunicação
como sinônimo de informação. Mas sim, como meio de expressar com palavras,
posturas e atitudes (comunicação verbal e não-verbal) mensagens que traduzam
presença autentica a pessoa que manifesta uma carência(16).
Representações sobre o tratar
Frente ao termo indutor tratar, as palavras mais evocadas foram: conhecimento e
medicar.
O termo conhecimento recebeu destaque, sinalizando o provável núcleo central
das representações sobre o tratar (Figura_2). A presença do termo medicar
propiciou apreender que, na perspectiva dos entrevistados, o tratar organiza-se
em torno dos elementos nucleares ilustrados como conhecimento e medicar.
[/img/revistas/reben/v63n5/21f02.jpg]
Diante desse resultado, pode-se inferir que a representação guarda estreita
relação com a ação de administrar medicações e ressalta a necessária
competência técnica acerca do conhecimento especializado de farmacologia e
terapêutica médica no que diz respeito a ação, dose, efeitos colaterais,
métodos e precauções na administração de remédios.
Essa representação alinha-se a estudo que aponta como foco dos registros
realizados pela enfermagem as práticas médicas e aquelas que delas se desdobram
ou a ela dão suporte(7). Assim, pode-se inferir que na perspectiva do tratar a
enfermagem a prioriza o registro da terapêutica médica, sobretudo, a
medicamentosa(7).
Essas interpretações apontam para o nó górdio da prática da enfermagem, ou
seja, o dilema entre cuidar e tratar. Nesse sentido, tratando-se de uma
representação central também exercida na prática de enfermagem merece discussão
o fato de que a ação de administrar um medicamento prescrito com base no saber
anátomo-clínico do corpo doente não justifica a mudança de foco da pessoa para
a doença da pessoa.
Embora ciente de que no campo de compartilhamento de responsabilidades sobre o
tratamento o saber da enfermagem busca se apropriar, se mantém e se consolida,
também a partir do saber médico, o domínio dos cuidados de enfermagem segue
sendo de competência da enfermeira.
Nesse enfoque, a competência da enfermeira no domínio da técnica clínica não
pode ser considerada pelas cuidadoras uma tarefa mais importante ou mesmo
isolada no contexto do cuidado. Sendo assim, diante de um quadro de
enfermidade, medicar representa um ato complementar aos cuidados de enfermagem
e só pode ser realizado a partir da consideração da pessoa doente e da doença
da pessoa(5).
Cabe salientar, que os cuidados de enfermagem são constituídos pelo que compõe
a sua essência - relação interpessoal - e pelo acessório da prática do cuidar -
meios (técnicas, protocolos, terminologia, formas de organização, contextos dos
cuidados etc.)(17).
Se o cuidado estiver centrado na técnica traduzirá apenas uma tarefa e a
profissional privilegiará apenas a dimensão do acessório. Em contrapartida, o
cuidado realizado como um ato criativo na perspectiva da articulação dos
saberes, da integralidade e do acompanhamento singular da carência humana se
centrará na dimensão do essencial. Nessa linha de raciocínio o ato de cuidar em
enfermagem precisa ser capaz de transformar a ação numa ajuda significativa, em
que as duas dimensões, acessória e essencial, estejam unidas(18).
Nessa vertente, ratifica-se que embora a prescrição medicamentosa seja de
competência médica, o domínio de decisão do início, da execução e do
acompanhamento dos medicamentos é de competência da enfermagem que não poderá
negligenciar as interações existentes entre os cuidados e o tratamento, bem
como a intersubjetividade entre da cuidadora e o sujeito do cuidado.
A análise os termos que emergiram na primeira periferia, curar e medicação,
renovam a intenção de organizar a representação central. Aqui fica explicitado
o equívoco de olhar o tratamento como tarefa parcelar, que caracteriza uma
intervenção focal e não um processo, que exige a consideração de diferentes
tempo e espaços numa articulação direta entre os saberes e os afetos presentes
na ação.
Sendo assim, é preciso apreender que a implementação do tratamento sem a
abordagem cuidativa pode prejudicar ainda mais a pessoa doente.
Consequentemente, medicar não é igual a curar, porque nenhum medicamento ou
saber profissional pode curar alguém. O que realmente cura é a força vital
existente em cada pessoa, associada ao seu desejo de viver; é da competência
dos cuidados de enfermagem ajudar a despertá-la(6).
Os termos doença e ser-impessoal aparecem na segunda periferia e evidenciam a
imperiosidade de considerar que a noção de doença, implica na representação de
uma pessoa doente. Então, pensar a doença é pensar o corpo de uma pessoa doente
que carece de cuidados.
Ora, se o cuidado de enfermagem requer carinho, compromisso e zelo, conforme a
expressão dos entrevistados nessa mesma pesquisa. Seguramente pode-se,
parafrasear a idéia de que no contexto dos cuidados de enfermagem não cabe
tratar pessoas como coisas de forma objetiva e distanciada(19). Nessa linha de
argumentação, o ato de prestar cuidado a uma pessoa sob tratamento
medicamentoso é incompatível com a possibilidade de ser impessoal. As noções de
cuidado e impessoalidade são excludentes. A zona de intercessão que os cuidados
de enfermagem ocupam entre as ações de cuidar e tratar exige parceria.
Nesse contexto, a relação de cuidado profissional não poderá ser com a doença.
Ao relacionar-se com a doença o profissional ocupa lugar de adversário - aquele
que luta contra o mal. Relacionando-se com a pessoa ele ocupa o lugar de
parceiro(19). Nesse sentido, é preciso desconstruir no domínio do cuidado
(cure) a representação de tratar que traduz certo afastamento entre as pessoas;
favorecendo, o desdém pela intersubjetividade, fator terminante no processo de
cuidar.
Cabe explicitar que esse tipo de ação impessoal com a doença é forjado num
contexto de trabalho fragmentado e de baixa intensidade de reflexão. Nele, as
intervenções de enfermagem podem ser realizadas, mas o cuidado não se processa.
Esse cenário compromete a prestação qualificada do cuidado, a delimitação de
seu campo de competência e, consequentemente, a comprovação da
indispensabilidade do serviço de enfermagem(1).
Trata-se, então, de compenetrar-se que haja tratamento ou não, os cuidados de
enfermagem frente à vida, a doença ou à morte são vitalmente indispensáveis. No
mundo do trabalho eles devem ser orientados, intencionais e explicitar as
competências e as habilidades que fazem das cuidadoras profissionais de
enfermagem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A distinção entre amar - o provável núcleo central das representações sociais
sobre o cuidar - e conhecimento - o provável núcleo central das representações
sociais sobre o tratar - revela a existência de um dilema que compromete a
finalidade da prática profissional da enfermagem, prejudicando a delimitação de
seu campo de competência, bem como sua valorização social.
Os resultados evidenciam que para os profissionais a representação de cuidar
guarda uma relação estreita com a ética, a promoção da vida e a humanização dos
cuidados de saúde; remetendo a uma forma complexa e integral na produção do
serviço de enfermagem. Enquanto a representação de tratar ancora-se no modelo
biomédico, no qual a fragmentação do sujeito em partes privilegia a atenção à
doença e resulta em uma tarefa parcelar, sem significado e sentido para o
sujeito doente e o sujeito que cuida.
O que é relevante destacar é que o ato de tratar no contexto do cuidado de
enfermagem não precisa opor-se ao ato de cuidar; ao contrário, deve aliar-se a
ele, pois as duas ações fundam os pilares das habilidades técnica e
interpessoal requeridas no campo de competência do cuidar profissional.
Dessa maneira, o desafio da profissão, consiste em resgatar e incorporar, na
prática cotidiana moderna, os valores estruturantes, fundamentais e
inalienáveis que fundaram e profissão de enfermagem e permanecem imutáveis na
concepção do cuidar. É forçoso buscar estratégias para dar visibilidade e fazer
compreender, aos próprios profissionais de enfermagem, à sociedade em geral e
aos demais profissionais de saúde, que o lugar e as contribuições dos cuidados
de enfermagem nas práticas de saúde são insubstituíveis.
Por fim, entende-se que o primeiro grande passo nesse sentido deve ser dado
encarando as necessárias mudanças no espaço da formação profissional. Ciente da
complexidade que permeia o campo de saberes e poderes na área da saúde, não se
pode negar que o atual modelo de formação da enfermagem legitima, reforça e
retro-alimenta o processo de tecnologização de um saber/tratar que é
qualificado como científico, em contraposição ao saber/cuidar (des) qualificado
como não cientifico, fruto da intuição e da sensibilidade que caracterizavam o
feminino e posicionam o cuidado de enfermagem num lugar de menor valia social.