Representações sociais sobre humanização do cuidado: implicações éticas e
morais
INTRODUÇÃO
A ciência da enfermagem envolve o conhecimento científico, o ético, o estético
e o pessoal(1). Ao se pensar a humanização no cuidado de enfermagem, traz-se à
tona que esta abarca relações interpessoais éticas numa dinâmica que envolve
potencialidades do ser humano, ao abordar a questão da criatividade e
sensibilidade, e um compromisso com o respeito à singularidade do outro, assim
como sua cidadania. Nesse sentido, o conceito de humanização articula-se ao de
cuidado, contribuindo para a ciência da enfermagem.
Além destes, exalta-se a questão política, já que a humanização requer
organização das pessoas e das instituições que prestam serviços à saúde, no
sentido de contemplar suas premissas de integralidade, universalidade e
eqüidade na saúde, que correspondem as do Sistema Único de Saúde (SUS)S(2).
A ciência da enfermagem, assim como, a humanização apresentam vieses éticos na
condução das ações em saúde. Neste sentido, a Política Nacional de Humanização
(PNH) enfoca a participação ativa dos usuários ao abordar a questão da
autonomia e protagonismo. Autonomia "significa autodeterminação, autogoverno, o
poder da pessoa humana de tomar decisões que afetem sua vida"(3). Nesta
orientação conceitual, a própria pessoa apresenta liberdade de decidir o que
fazer e quando deve fazer tal coisa, a partir de seus conhecimentos, valores,
experiências e idéias. Assim, autonomia está ligada à subjetividade de uma
pessoa(3).
Partindo deste pressuposto, o cliente, ao enunciar o papel de protagonista no
sistema de saúde, poderá exigir dos profissionais de saúde e gestores atitudes
que o valorize como sujeito do cuidado, além de exigir e lutar pelos seus
direitos.
Assim, a ética se configura na relação profissional e cliente, da mesma maneira
que a humanização no cuidado se refere à atitude de preocupação,
responsabilização com o outro e relação dialógica/informativa do cuidado; logo,
a ética e a humanização no cuidado caminham unidas(4-5).
Com base nestas premissas, esta pesquisa buscou responder a seguinte questão:
Para os clientes, a humanização no cuidado hospitalar se ampara em questões
éticas? Nesta consideração, os objetivos foram: identificar os aspectos éticos
implicados nas representações sociais de clientes sobre a humanização; e
discutir as implicações de tais representações para o campo do cuidado de
enfermagem.
Esta pesquisa justifica-se por tratar de questões que fundamentam a perspectiva
ética do cuidado de enfermagem que se relacionam aos direitos dos clientes
frente cuidado, como também por ser um tema em voga nas políticas públicas de
saúde(1-3). Deste modo, contribui para se pensar a ética no cuidado de
enfermagem.
MÉTODO
Esta pesquisa foi de natureza qualitativa e teve como referencial a Teoria das
Representações Sociais (TRS), na vertente processual(6-7). Desta forma, o
objeto, os sujeitos e os processos de conhecimento são entendidos à luz da
epistemologia desta área, de acordo como a TRS se estrutura em teoria
explicativa para os fenômenos.
Os sujeitos foram 24 clientes, sendo 10 homens e 14 mulheres, adultos, na faixa
etária de 19 a 89 anos, que estavam hospitalizados nos setores de clínica
médica de um hospital universitário, público e federal. Os critérios de
inclusão foram: serem adultos de ambos os sexos internados nos setores eleitos
para a realização da pesquisa, orientados no tempo e espaço, com capacidade de
expressão verbal preservada e concordar em participar da pesquisa. Os clientes
que não atenderam a esses critérios foram excluídos.
As técnicas de coleta de dados foram a entrevista semi-estruturada baseada em
um roteiro, para que fosse acessado o processo de construção do pensamento
sobre o objeto de estudo e a observação participante. Os dados foram
registrados em fita magnética orientada por um roteiro previamente elaborado,
com o objetivo de observar as práticas sociais e mostrar de forma fidedigna a
ocorrência do fenômeno em estudo, conforme o mesmo se dá no cotidiano. O
registro foi feito em um diário de campo com o apoio teórico da descrição densa
(8). A observação foi realizada no período diurno, totalizando 30 horas. A
associação das técnicas de entrevista semi-estruturada com a observação
participante possibilitou o confronto do que foi dito com o que foi vivenciado
no cotidiano do cuidado na unidade de internação hospitalar. A utilização de
multi-técnicas visou obter mais segurança quanto aos resultados da pesquisa.
Para a análise dos dados foi utilizada a análise temática de conteúdo(9), na
busca do significado das mensagens (núcleos de sentido), contextualizando-as.
No atendimento dos objetivos traçados, delimitaram-se três categorias,
denominadas "Concretude do cuidado", "Figura tipo profissional" e "Grau de
merecimento dos clientes no cuidado".
A pesquisa respeitou a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde que trata
de pesquisas com seres humanos, sendo aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa
sob o protocolo de nº. 056/08. A identificação dos sujeitos foi feita por
códigos alfa-numéricos o qual a consoante C significa cliente, seguida de "m"
(masculino) ou "f" (feminino) e o número sequencial de ocorrência das
entrevistas.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A humanização se traduz no bom trato e no ser mal tratado, pautado na ação
técnica/científica, amparada, também, no aspecto psicossocial/expressivo do
cuidado. O atendimento à saúde abarca aspectos psicossociais / subjetivos,
éticos e técnico-científicos, sendo necessário o encontro destes no tratamento
dado pelo profissional de saúde na promoção de um cuidado humanizado(2).
A questão ética é verificada majoritariamente nos depoimentos de clientes do
sexo masculino, marcando a questão de gênero na diferenciação dos grupos de
pertença dos sujeitos da pesquisa. Sobre a formação de grupos por sexo, Freud e
Lacan aludem que o ser feminino é algo intangível, abstrato e misterioso, e o
homem é um ser objetivo e tangível capaz de formar um grupo homogêneo diferente
das mulheres (10-11). Estudos demonstram que as teorias feministas formulam as
bases teóricas científicas amparadas na perspectiva subjetiva das metodologias
de pesquisa, justamente para captar o intangível que marca as experiências e os
modos de construção dos sentidos femininos.
A concretude do cuidado
A categoria temática denominada 'Concretude do cuidado' abarca a representação
dos sujeitos sobre a questão ética entrelaçada com o cuidado humanizado no
respeito às informações prestadas aos clientes, e a construção da cidadania do
outro, na realização das ações profissionais presentes no código de ética e na
preservação do momento de visita hospitalar. Todas estas questões estão
presentes na Política Nacional de Humanização, já que pauta-se no respeito ao
outro como cidadão, além do auxílio à construção da cidadania(2).
Os depoimentos também retratam a questão de cidadania que envolve a atenção em
saúde, que é estritamente ligada à humanização, pois a origem do seu
significado retoma questões de ética e de direitos dos indivíduos(12).
É você ter um atendimento. As pessoas respeitarem seus direitos. Eu
fui bem tratado (...). Quando você é bem tratado, você sente que você
é alguém.(Cm10)
É ser tratado com humanidade, com igualdade... O bem tratado no
hospital é ter o tratamento que lhe é de direito, que é direito ao
trabalhador, por exemplo, se a pessoa trabalha, o mínimo que ele tem
que ter é um atendimento médico, porque ele desconta afinal de contas
11% mensalmente.(Cm5)
Deste modo, o respeito e construção da cidadania com o outro, que são abordados
pela PNH apresenta-se latente no pensamento dos sujeitos. A PNH pauta-se no
respeito ao outro como cidadão, e também auxílio a construção da cidadania(2).
Nas representações dos sujeitos, a cidadania emerge quando aludem sobre algo
que lhe é de direito, e que necessita ser respeitado. Deste modo, se identifica
as marcas do caráter normativo da cidadania, pautado nos direitos e deveres
(12).
No entanto, verifica-se que, apesar dos depoimentos ressaltarem a igualdade no
trato como uma questão de direito, emerge, aliado a isto, a noção de
humanidade. Logo, igualdade e humanidade caminham juntas formando a noção de
humanização no trato com o cliente. Isto foi captado na análise de co-
ocorrência na qual se verificou a presença destes dois termos na formação da
representação dos sujeitos.
O contraponto sobre a humanização foi dado pelo mau trato presente nos
depoimentos que versam sobre a não resolutividade no atendimento aos clientes.
De acordo com a TRS, os sujeitos pensam sobre os objetos e, a partir daí,
conduzem suas práticas. Na tentativa de entender as ações cotidianas dos
profissionais em relação ao cuidado junto aos clientes, os sujeitos explicam
que a não resolutividade, em algumas situações, podem estar associada ao
estabelecimento, pelos profissionais, de estratificação entre os clientes,
havendo aqueles que mereçam mais e os que mereçam menos atenção e qualidade no
cuidado. Aliado a isso, o humor dos profissionais também influi na qualidade do
atendimento, o que denota a importância de aspectos subjetivos no cuidado,
segundo a ótica dos clientes.
A ausência de acompanhamento terapêutico ou inadequação deste acompanhamento
provoca ações incompatíveis com os anseios dos clientes, pois estes esperam
ações que possibilitem o seu restabelecimento e cura. Desta forma, não realizar
avaliações clínicas e/ou realizá-las inadequadamente leva insatisfação ao
cliente e entendimento de estar sendo mal tratado.
O médico só aparecia lá uma vez e acabou, não vinha mais. A
enfermeira... a gente pedia uma coisa: "Ah, espera aí, espera aí,
espera aí". E não aparecia e ficava assim. A gente ficava abandonado,
sem contar que era tudo misturado: quem tava com doença infecciosa
misturado com que não tava.(Cm2)
Os enfermeiros e os médicos, às vezes, também não tratam também bem e
só examinam de qualquer forma e vai embora.(Cf2)
Para os clientes, estes exemplos demonstram ações técnicas-científicas não
humanizadas, pois, ao dar a eles um atendimento de baixa qualidade ou não
resolutivo, estão comunicando que eles não são merecedores do bom atendimento,
ou seja, são inferiores. E ainda impossibilita a promoção da vida pelo combate
à doença(13-14).
O sentimento de inferioridade traz à tona a diferença entre as pessoas, seja
por raça, etnia, classe social e econômica. Tal fato é refutado pela
perspectiva da humanização, pois preconiza a valorização do outro e o respeito
a sua subjetividade(13,2). Assim, pode-se perceber que as ações técnicas-
científicas são orientadas pela formação que conduzirá a atuação do
profissional, seja no âmbito preciso da técnica, seja no âmbito das habilidades
relacionais humanas, muito a reboque da visão de mundo das pessoas.
Em atenção a isso, a PNH se apresenta como um apoio teórico e prático para
guiar a atuação dos profissionais, com vistas a proporcionar bem-estar físico e
emocional aos clientes. Deste modo, preconiza ações seguras a partir de
qualificação profissional, responsabilidade com o outro e ética, para que não
sejam provocadas iatrogenias durante o atendimento clínico(2).
O que os clientes mostram ao construírem os sentidos sobre a humanização e a
não humanização no cuidado, é que a realização de ações técnico-científicas não
se vincula ao respeito ou a falta de habilidade e conhecimento dos
procedimentos e seus influentes, como atenção durante o procedimento, destreza,
dentre outros, mas à postura do profissional diante do cliente caracterizada
pela questão relacional, que se ampara na postura ética, responsável e
compromissada.
Mal tratado é quando a enfermeira não liga, eu já tive aqui à noite
duas pessoas, que eu não vou falar; da noite, que deixou a desejar,
me deixou dormindo molhada a noite toda, só isso, mas o resto...
Porque a gente tem que falar o que sente bem, se sente bem, a gente
diz, se sente mal a gente fala.(Cf12)
Apenas tem setor que pessoas não respeitam o paciente, chama e não
vem, a comida na hora, ficar sofrendo aí não dá.(Cm7)
Os depoimentos de Cf12 e Cm7 ilustram ações de não compromisso ético e falta de
responsabilidade com o outro no cuidado. E, ainda, se pode perceber que a
questão relacional embutida no trato dos profissionais de saúde com os clientes
marca suas ações no cuidado técnico-científico. Logo, a qualidade profissional
abrange o aperfeiçoamento técnico e posturas responsabilizadas com o outro no
ato de cuidar e são essenciais na atenção à saúde. E esta tem sido a grande
dificuldade da política de humanização, uma vez que a questão relacional é
desvalorizada pelos profissionais de saúde, não suscitando interesse dos mesmos
em envidar esforços em desenvolvê-la(2,13-15).
Além disso, ao pensarem sobre a humanização no cuidado, os clientes trouxeram à
tona a questão das visitas. Esta é de direito do cliente em suas concepções, e
para eles este direito não se restringe à permissão da entrada dos parentes e
amigos no hospital, mas é imprescindível que as mesmas sejam bem recepcionadas
e conduzidas até o leito do cliente.
Por exemplo, a comida, o atendimento. O atendimento tem que ser: vem
a pessoa me visitar e a pessoa leva na cama, e olha: "_Ela está no
leito tal". Porque não é só comigo, é com as outras pessoas também.
Agora, já se fosse uma clínica do estado, eu já não teria um bom
atendimento. Veja bem, você vê televisão, você vê as coisas como
acontece, isso aí não é preciso te explicar.(Cf14)
Os depoimentos, de um modo geral, mencionam exemplos de ocorrências
transmitidas pela mídia, principalmente a impressa e televisiva. Cotidianamente
estes meios de comunicação mostram a precariedade e ineficiência do atendimento
da saúde, em muito destacado em virtude dos baixos recursos materiais, humanos
e financeiros. Deste modo, é preciso considerar que a PNH, ao propor mudanças
no atendimento, destaca a necessária revisão da gestão institucional(2).
As notícias que circulam nos meios de comunicação de massa contribuem
sobremaneira para a construção e elaboração de representações, visto que
propiciam as conversações dos grupos, a revisão de opiniões e a elaboração de
teorias leigas sobre as situações que se lhes apresentam, dado que a
"representação social é sempre uma unidade do que as pessoas pensam e do modo
como fazem", compreendendo a prática social dos sujeitos(16).
Eu também tenho medo de falar, é, com pé atrás, e também eu acho que
não deve se falar mal de ninguém, não pode dar nome, nunca vou dar
nome, mas tem plantões que são horríveis outros são maravilhosos, com
atenção. Atenção tem sido tanta pra um e pra outro, mas não, mas, às
vezes, tu vê que não é o que acontece, ela exclui, te esquece aqui,
aí tu fica perdido.(Cm3)
Via de regra, os clientes adotam postura submissa diante das situações que
vivenciam no cuidado hospitalar, e não reivindica seus direitos a um bom
atendimento. O medo de represálias é uma tônica que marca os depoimentos dos
clientes. Na observação participante foi possível constatar tais
comportamentos, quando uma cliente que estava com sinais e sintomas de
infiltração em um acesso venoso periférico, informou ao técnico de enfermagem.
Este foi até o leito e interrompeu a administração do medicamento; no entanto,
não procedeu a retirada dos artefatos e não tomou medidas imediatas para
amenizar a dor e o desconforto da cliente. A cliente permaneceu com dor em
virtude do edema formado, passivamente aguardando até que as providências para
alívio dos sintomas fossem tomadas.
Por outro lado, observou-se que os acompanhantes são mais ativos no exercício
dos direitos à atenção, indagando aos médicos sobre a terapêutica, à
nutricionista sobre a alimentação e atuando conjuntamente com a enfermeira no
procedimento de curativo.
Figura tipo do profissional
Na consideração do cuidado instrumental, retratado na concretude do cuidado,
esta categoria abarca a figura tipo do profissional de saúde comprometido com a
humanização da atenção à saúde, na realização deste tipo de cuidado.
A representação social não retrata fielmente a realidade, mas promove a
interpretação da mesma, deste modo é influenciada pela subjetividade dos
membros dos grupos sociais e contexto histórico e social(10,17). Assim, a
análise de conteúdo dos depoimentos revelou que os profissionais de saúde são
classificados em dois grandes grupos: os que praticam o cuidado humanizado e os
que não o praticam, segundo suas práticas de saúde determinadas no cotidiano do
cuidado hospitalar.
Neste entendimento, os profissionais promovem um cuidado humanizado quando
contribuem para o restabelecimento do cliente a partir do diagnóstico com base
no exame físico e anamnese, e terapêutica imediata, além de permitir ao cliente
expor sobre sintomas antes não revelados.
Eles se baseiam mais assim, opiniões dos outros colegas dele (...).
Eu achava que deveria vir ao paciente também, não é ir só pelos
outros, porque uma pessoa pesquisou e tal, examinou e tal, tudo bem,
mas aí de repente o paciente esqueceu de falar alguma coisa pra ele
que de alguma outra dúvida (...) deveria te examinar novamente ou te
dar uma outra chance.(Cm2)
Vai ser um médico, olha pra sua cara, te dá remédio só te olhando,
pra mim não é médico. O médico ele tem que te examinar, ele tem que
conversar com você: "Oh, vou passar esse remédio, se não tiver legal
tu me fala, eu vou trocar". Até achar um remédio, porque também ele
não é Deus.(Cm9)
A ausência de acompanhamento terapêutico dos profissionais reforça a
necessidade de se propor caminhos para a realização do cuidado humanizado. Este
fato tem como guia teórico e prático a política de humanização, que está sendo
implementada por várias instituições de saúde propiciando a humanização da
saúde, que é o propósito da PNH(2).
As práticas de saúde em todo o Brasil retratam o despreparo dos profissionais
para garantir atenção à saúde da população tanto na esfera subjetiva quanto
instrumental/técnica. A qualificação técnica permite minimizar os riscos de
iatrogenias, além de contribuir para o restabelecimento e cura do cliente(2).
Outra dimensão da qualidade é o cliente ser cidadão mesmo doente, pois este
necessita de respeito às suas emoções, atendimento individualizado e integral
(18-19). Além disso, considerar o direito à informação sobre seu estado de
saúde.
É sempre tem uns, que eles, assim, te dão mais atenção. Até que ontem
quem veio me atender, assim, dá primeira vez, me tratou melhor que a
segunda, porque a segunda, ela já não falou é, a temperatura que eu
tava (...). Só anotou, eu tive que perguntar.(Cf2)
A informação compreende a perspectiva ética da humanização e envolve a
comunicação sobre as condições de saúde do cliente e as referentes à
instituição de saúde. A PNH pauta-se na ética das relações profissional-cliente
utilizando como uma das estratégias, a informação. Deste modo, caracteriza que
os profissionais devem assumir uma postura dialógica com os clientes,
comunicando e explicando as informações referentes à sua doença, além de
entender a subjetividade de cada um e adequar estas informações à linguagem e
ao modo de vida dos mesmos(2).
A partir dos elementos constantes nas representações dos sujeitos sobre a
humanização no cuidado, se observa que, para eles, a prática desta se associa a
algumas características técnico-profissionais, como: ser resolutivo no cuidado,
fazer avaliação clínica, e dar informações ao cliente sobre sua saúde e
cuidado. Além de características pessoais como: ter bom humor, demonstrar
atenção e dedicação no bom trato ao cliente, preocupando-se com ele. Desta
forma, a figura-tipo do profissional na efetivação da humanização abarca
características técnicas que marcam a concretude do cuidado fazendo valer sua
vertente instrumental, mas também características expressivas que dão qualidade
humana ao cuidado.
Grau de merecimento dos clientes no cuidado
Esta categoria versa sobre o grau de merecimento dos clientes em receber os
cuidados em saúde. Esta emergiu dos conteúdos das representações na
demonstração de que, na dependência dos aspectos comportamentais e morais dos
clientes, estes podem merecer mais ou menos cuidado dos profissionais. Desta
forma, os sujeitos tentam compreender e explicar o porquê das diferenças no
trato no cuidado hospitalar.
É interessante destacar o aspecto comportamental como influência no merecimento
dos cuidados pelos clientes. Deste modo, os sujeitos quando questionados acerca
do merecimento do bom trato discursam da seguinte forma:
[...] desde que ele respeite também o profissional, tem que ser bem
tratado. Tem uns que são grossos. Esses não merecem ser, respondem
muito as enfermeiras. Tem uns que são legais, educados.(Cm7)
À luz da análise de conteúdo dos depoimentos, identifica-se que o maior
merecedor dos cuidados são os clientes que têm características de simpatia,
respeito e gentileza, e o menos merecedor são os que desrespeitam as pessoas as
tratam com grosseria.
A humanização introduziu nas práticas de saúde a valorização da subjetividade e
particularidade do outro, e esta valorização deve servir para possibilitar um
cuidado melhor ao cliente, sendo de acordo com suas particularidades como
cultura, nível sócio-econômico e outros resgatando a cidadania do mesmo(2). Os
clientes mostram amadurecimento quando comunicam seu entendimento sobre as
questões que perpassam os direitos das pessoas, pois aludem que o bom trato
deve ser recíproco no cuidado e não somente do profissional para o cliente.
No entendimento dos clientes, a bondade e a maldade são inerentes à natureza
das pessoas, e a primeira suplanta a segunda.
Têm pessoas ruins, e a gente tem que cuidar deles sendo ruim também,
por mais que a pessoa boa não faça isso ... Porque os bons não tem a
natureza de fazer eles sofrer, se tivesse, o cara ruim numa novela,
aí ele ia sofrer pra dedéu.[Risos]. (Cm9)
Na perspectiva da humanização não existe profissional bom ou ruim, e sim aquele
que exerce sua atividade em saúde com compromisso e responsabilidade segundo o
desenvolvimento e conscientização destas premissas(2). Deste modo, este
depoimento reflete a divergência entre a representação dos sujeitos e o
preconizado pela PNH.
O pensamento veiculado no depoimento de Cm9 mostra os estereótipos sociais tão
bem retratados na mídia e servem para explicar a benevolência no trato com os
clientes no cuidado. O sujeito se ancora nos personagens de novela e passa a
idéia de que as pessoas são bem tratadas, inclusive as más, porque os
profissionais bons agem com bondade para com qualquer cliente, sem qualquer
tipo de distinção ou discriminação.
Avançando nesta questão, observa-se que o aspecto de comportamento moral também
incide sobre o cuidado em saúde que deve ser prestado.
O que eu penso, nem todo mundo precisa ser mal tratado, a não ser que
cometa um delito muito grave, aí ele tem que ir a juízo, não é isso?
Depende de lá de dentro ele cumprir, mas não ser mal tratado, cumprir
o que é sentença dele.(Cm4)
Tem uns que são fora da lei[Risos]. (Cm7)
O aspecto moral determina o merecimento do trato, pois quando o cliente viola a
lei do Estado torna-se menos merecedor de cuidados. Deste modo, a conduta moral
dos indivíduos deve nortear a ação dos profissionais de saúde segundo estes
sujeitos.
Entretanto, não cabe ao profissional de saúde julgar os clientes que cuidam,
mas assisti-los de maneira adequada, utilizando das premissas de integralidade,
universalidade e equidade na atenção à saúde, conforme orienta o SUS(2).
Na representação dos sujeitos, o indivíduo que apresenta desvio de conduta
moral é objetivado como 'fora da lei', portanto, não faz jus a ela não devendo
ser tratado segundo as premissas da constituição federal, das leis de saúde e
das políticas públicas em saúde.
Na linha do gradiente do merecimento de melhor trato, há pessoas, consideradas
superiores às outras que, por isso, são mais bem tratadas.
Não, todo mundo é igual. E eu fico às vezes até meio aborrecido de
saber disso, porque nenhum político..., não vou nem falar de
esportista nem de artista porque o cara já é fora da média, por isso
que ele ganha bem, mas principalmente os de casos de políticos que
quando tem um problema de saúde não recorre ao atendimento do SUS
entendeu? Provando que há desnivelamento entre as pessoas(Cm5)
Como verificado, há pessoas consideradas supercidadãos, pois estão em um grau
acima do resto da população, como objetivado na expressão 'fora da média'. Em
conseqüência, são mais bem remuneradas e podem pagar por serviços de melhor
qualidade. No entanto, os políticos, que fazem as leis, não foram enquadrados
nos cidadãos fora da média, mas também não se encaminham ao hospital da rede
pública, o que prova que há estratificação na cidadania e na oferta dos
serviços à população. Analisando o contexto do depoimento apreende-se que os
sujeitos entendem que os hospitais da rede pública assistem aqueles que não
podem pagar por serviços de melhor qualidade, pois nem quem deveria zelar por
esta oferta, usufrui dela.
É como eu te falei, se você não tiver um poder você é jogada como
lixo. Todo mundo merece um tratamento bom ... Então, são uns que, se
não tiver um poder aquisitivo melhor você fica na porta do hospital.
Eu vi uma reportagem, coitada, uma senhora, ela estava jogada na
porta do hospital esfaqueada e todo mundo passava na frente dela e
nem olhava.(Cf14)
A relação condição sócio-econômica e grau de merecimento no cuidado é
estabelecida nas representações dos sujeitos, e reforçada pelas muitas imagens
e opiniões veiculadas pela mídia, amparando a representação que pauta-se nas
comunicações cotidianas e nas experiências compartilhadas em seu grupo social.
Ao tempo em que consideram que as pessoas, pelo fato de sê-la, merecem ser bem
atendidas, não refutam a idéia de que a condição sócio-econômica lhe dá
melhores condições de exercício de cidadania. Estabelecem forte vínculo entre o
quanto maior for o poder sócio-econômico das pessoas, melhor tratamento de
saúde ela terá, já que poderá pagar por boas clínicas, bons profissionais e
boas instituições. E assim vão formando suas representações sobre a humanização
no cuidado, atravessada por questões éticas que tem a ver com as suas vivências
no cotidiano do cuidado hospitalar e com o que acumularam de experiências na
vida, pois o sujeito não é "uma tabula rasa que recebe passivamente o que o
mundo lhe oferece", mas é ativo no processo de construção do pensamento(10).
CONCLUSÃO
Os resultados desta investigação evidenciaram que existe um forte elo entre a
ética e a humanização no cuidado hospitalar, respondendo à questão de pesquisa.
Isto porque desvelou que a humanização, nas representações dos clientes
hospitalizados se objetiva no bom trato e que este tem a ver com a vertente
instrumental do cuidado, mas também com a expressiva, necessária ao
relacionamento profissional-cliente. Deste modo, as questões éticas permeiam o
saber dos clientes sobre a humanização do cuidado, não permanecendo à margem
acerca do conhecimento sobre seus direitos e deveres.
Dos direitos, fazem parte as informações sobre o seu estado de saúde e os
cuidados realizados, que ganham contornos no entendimento da respeitabilidade
do outro e possibilitam a construção da autonomia e protagonismo dos clientes,
sendo estes objetivos da PNH.
A falta de ética objetivou-se em exemplos de atendimentos considerados de baixa
qualidade e não resolutivos, e até na ausência de cuidados. Entretanto, os
clientes assumem uma postura submissa frente aos cuidados sem contorno ético,
geralmente por medo e por se sentirem em condição desigual frente aos
profissionais.
Levando-se em conta a humanização no cuidado, o bom trato se faz presente em
ações resolutivas, e quando os profissionais realizam avaliação clínica e
reconhecem o direito do cliente à informação sobre o seu cuidado. O contrário
disso é identificado como ser mal tratado, portanto, não humanizado.
Ao se considerar o cuidado e o bom trato, os clientes aludem aos dois sujeitos
da ação, os profissionais e os clientes. Nesta consideração, destacam que todos
merecem ser bem tratados, mas que este trato é recíproco, ou seja, vai do
profissional ao cliente, mas também deste para com o profissional. Isto leva ao
estabelecimento de gradientes de merecimento de cuidado, pois os que infringem
questões morais e éticas necessárias à relação interpessoal são menos
merecedores de cuidado. Disto deriva a maneira de cuidar dos profissionais
segundo os 'tipos de clientes'.
Além disso, as questões de cidadania vieram à tona ao se tratar das diferenças
de condições havidas entre os sujeitos, na sua maioria, determinadas pelos
aspectos sócio-econômicos que levam às desigualdades do usufruto do atendimento
de qualidade em saúde.
Deste modo, verifica-se que as representações sociais sobre a humanização no
cuidado ganham contornos da ética e da moral, no estabelecimento de gradientes
de merecimento do bom trato. Nos saberes sociais dos sujeitos desta pesquisa, o
direito ao bom trato não é igual para todos, o que indica possíveis
diferenciações nas RS destes sujeitos sobre a humanização na perspectiva da
ética e da moral, indicando novas possibilidades de pesquisa que avancem nas
questões éticas implicadas no cuidado e na prática da humanização, segundo as
políticas de saúde. Ainda mais, se ressalta a importância desta discussão para
a enfermagem, uma vez que o cuidado, seu objeto, resulta da prática de sua arte
e ciência, não podendo prescindir da ética.