O (não)dito da AIDS no cotidiano de transição da infância para a adolescência
INTRODUÇÃO
Com o investimento crescente para dar conta do agente etiológico da Síndrome da
Imunodeficiência Adquirida (AIDS), na busca da garantia da sobrevivência, um
grupo de crianças com AIDS por transmissão vertical não morreu. Venceu a etapa
da infância, adentrando em uma nova fase do desenvolvimento humano. Esse grupo
é conhecido como a primeira geração que nasceu infectada pelo Vírus da
Imunodeficiência Humana (HIV) e está adolescendo(1-5).
Observa-se que o foco da atenção está direcionado mais à clínica do adoecimento
do que, propriamente, à criança doente em transição para a adolescência, em sua
dimensão existencial. As produções disponíveis sobre a população de
adolescentes tratam mais sobre a prevenção da infecção do que propriamente do
cotidiano dos que foram infectados(6).
As vivências do adolescente que tem AIDS mostram que ele transita por essa fase
do desenvolvimento com características comuns aos adolescentes que não têm a
infecção. Relaciona-se com familiares e amigos e mantém atividades do dia a dia
e lazer. Em que as transformações físicas e psicossociais somam-se às
necessidades específicas da condição sorológica, como a descoberta do
diagnóstico, às repercussões da doença no seu dia a dia devido ao cotidiano
terapêutico e às situações de preconceito e discriminação(7). Cuidar de si é
algo que ele tem de fazer e precisa querer fazer(8).
A problemática delineada trata da AIDS no interior da família, cuja convivência
social é mediada pelo silêncio e o segredo, na ótica dos profissionais de saúde
e familiares(9-13). Assim, tem-se a necessidade de investigar, com as crianças
infectadas pelo HIV por transmissão vertical em transição da infância para a
adolescência, o seu cotidiano no cuidado de si, com o objetivo de compreender o
(não)dito da AIDS no cotidiano do ser-adolescendo.
A dimensão existencial do cuidado de si de crianças em transição do
desenvolvimento humano da infância para a adolescência permanece um desafio
para os profissionais de saúde em geral, e de enfermagem em particular, por
constituir um novo grupo no contexto social brasileiro. Esse novo grupo
apresenta uma demanda de necessidade especial de saúde das crianças que têm
AIDS, qual seja: a dependência da tecnologia medicamentosa. Portanto, são
inseridas no grupo de crianças com necessidades especiais de saúde (CRIANES),
as quais requerem: uso contínuo de medicamentos para sobreviver; serviços de
suporte emocional/comportamental, elevada frequência na unidade de saúde;
acompanhamento por vários profissionais de saúde, de diferentes especialidades;
expertise no cuidado profissional e familial; e educação em saúde contínua(3).
Essas necessidades especiais de saúde determinam desafios do cuidar diante da
demanda de atenção especializada a outras referentes à sua fase de crescimento
e desenvolvimento. Justifica-se o presente estudo pela necessidade de ampliar a
literatura disponível, cujo foco centra-se mais nas dimensões clínico-
epidemiológicas e socioantropológicas da problemática do HIV/AIDS na infância e
na adolescência(14-16).
MÉTODO
Investigação de natureza qualitativa, com abordagem fenomenológica e
referencial teórico-metodológico de Martin Heidegger(17-18). Teve como sujeitos
de pesquisa 11 meninos(as) infectados(as) por transmissão vertical do HIV. Os
critérios de inclusão foram: faixa etária de 12-14 anos; conhecer o seu
diagnóstico, não estarem institucionalizados. Dos 11 sujeitos, dois eram órfãos
maternos, um era órfão paterno e três eram órfãos paternos e maternos, sendo
cuidados por membros da família consanguínea de primeiro grau. Os outros cinco
estavam sob os cuidados de ambos os pais. O número de sujeitos não foi
determinado previamente, visto que a etapa de campo mostrou o quantitativo de
entrevistas necessárias para responder ao objetivo da pesquisa(19).
O cenário da pesquisa contemplou três hospitais universitários (HU), que são
referência para atendimento de crianças e de adolescentes que têm HIV/AIDS, no
Rio de Janeiro. A etapa de campo foi desenvolvida de fevereiro a setembro de
2007, após aprovação e autorização dos Comitês de Ética em Pesquisa(Protocolos
EEAN/UFRJ 096/06; IPPMG/UFRJ 09/07; HUGG/UNIRIO 36/07). Os familiares assinaram
o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e os 11 meninos(as) assinaram o
Termo de Assentimento.
Para produção dos dados empíricos foi utilizada a entrevista fenomenológica
(19). Essa modalidade de acesso aos participantes possibilita um movimento de
compreensão do vivido do ser humano, tal como se apresenta na sua vivência
cotidiana. Como modo de acesso ao ser, a entrevista é desenvolvida como um
encontro, singularmente estabelecido entre o sujeito pesquisador e cada
participante pesquisado. O encontro aconteceu após a consulta de acompanhamento
permanente de saúde, em uma sala do ambulatório hospitalar, o que garantiu
privacidade aos depoentes, conforme previamente acordado com a equipe de cada
HU. A entrevista foi mediada pela empatia e intersubjetividade, valendo-se da
redução de pressupostos. Exigiu do pesquisador um posicionamento de
descentramento de si, para se direcionar intencionalmente à compreensão dos
adolescentes.
Durante o encontro, o pesquisador precisou: estar atento aos modos de se
mostrar do participante entrevistado; captar o dito e o não dito; observar as
outras formas de discurso: o silenciado, os gestos, as reticências e as pausas;
e respeitar o espaço e tempo do outro. Essa posição de abertura do pesquisador
ao outro possibilitou aprimorar progressivamente a condução da entrevista. A
entrevista se iniciou pela questão orientadora: Conte-me como está sendo virar
adolescente. A questão "Como é o seu dia a dia tendo essa doença?" foi aplicada
somente quando o depoente falava da sua condição sorológica. Utilizou-se a
palavra "doença", pois a AIDS foi mencionada dessa forma nas entrevistas, sendo
referenciada, mas não nominada. No decorrer da entrevista a pesquisadora
formulou questões empáticas, a fim de evitar induzir respostas, mas destacando
questões expressas pelos adolescentes que precisavam ser aprofundadas para
melhor compreensão dos possíveis significados apontados. Para encerrar a
entrevista, era desenvolvido um feedback, perguntando se o adolescente gostaria
de acrescentar algo e agradecendo sua disposição para esse encontro.
Os depoimentos foram gravados mediante consentimento e a transcrição das
entrevistas se deu conforme a fala original, na qual a pesquisadora apontou os
silêncios e as expressões corporais observadas durante o encontro. As
entrevistas foram codificadas com a letra C de "criança", seguidas dos números
de 1 a 11.
A partir da leitura e escuta atentiva dos depoimentos, foram desenvolvidos os
dois momentos metódicos: a compreensão vaga e mediana (dimensão ôntica) e a
compreensão interpretativa (dimensão ontológica)(17).
A compreensão vaga e mediana consiste em captar os significados como modos de
ser. Primeiramente, foram explicitados os fatos (dimensão ôntica) que se
mostraram, diretamente e na maioria das vezes, no cotidiano do ser-adolescendo.
Foi desenvolvida a busca das estruturas essenciais (significantes), por meio do
exercício de distinção entre o que se manifestou como ocasional/acidental e
como essencial (significados que apontam para como o fenômeno é). As estruturas
essenciais constituíram as Unidades de Significação (US), a partir das quais se
desenvolveu o discurso fenomenológico do seguinte modo: descrevendo os
significados de estar adolescendo com AIDS e demonstrando a compreensão do ser-
adolescendo com AIDS acerca de seu cotidiano.
A compreensão interpretativa teve as USs como fio condutor da hermenêutica. Os
significados desvelaram alguns sentidos presentes no cotidiano de estar
adolescendo e ter AIDS, os quais foram interpretados segundo o referencial
teórico de Heidegger(17). Assim, foram desveladas facetas do fenômeno (dimensão
ontológica) ' que não se mostram diretamente, nem em sua totalidade ', as quais
indicaram possibilidades de cuidado de si e de assistência em saúde.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Ao dar voz, na entrevista fenomenológica, ao ser em transição da infância para
a adolescência, inicialmente ele se apresenta como alguém que sabe que tem a
doença da mãe, que é ruim ter familiares doentes ou que já morreram. A vida se
inicia marcada pela herança da AIDS, pelas perdas e pela orfandade.
O ser-adolescendo herdou o vírus da mãe e do pai. Adquiriu durante a gravidez,
parto ou amamentação, e acredita que sua mãe recusou-se a fazer o exame de
seguimento, aceitar o diagnóstico ou seguir o tratamento; ou o tratamento não
foi eficiente para evitar a transmissão vertical. Desse modo, o ser-adolescendo
tem consciência da gênese da doença em sua vida a partir dos pais.
Eu peguei essa doença da minha mãe. Eu tenho mais dois irmãos, só que
eles não pegaram [...] quando ela tava grávida de mim, não queria
fazer [o exame], porque já tinha feito e dado negativo [...] quando
ela fez [o exame], ela não quis aceitar [o resultado positivo]
[silêncio] não se conformou com isso [...] Ela pegou do meu pai [...]
aí eu nasci [...] (C2)
O ser-adolescendo acreditava que seu problema era no coração ou que precisa
tomar vitaminas. Mas, situações no dia a dia que o faziam pensar e comparar '
como o fato de ir sempre ao médico ', como sendo uma particularidade sua, pois
isso não acontecia com seus colegas.
Não sabia quando era pequena [...] mas eu pensava: meus colegas não
vão para o médico, só eu! O que é que eu tenho? [silêncio] (C2)
Antes eu achava que tomava vitaminas [...] (C4)
Antes eu achava que era só problema de coração[...] (C6)
O seu existir é marcado também pelas circunstâncias ao relembrar como soube da
sua doença. Desde o momento da revelação se estabeleceu um acordo de silêncio,
pois lhe disseram que não poderia contar para ninguém por causa do preconceito.
O sentimento foi de tristeza e vergonha.
Seu diagnóstico é conhecido por poucos. Apenas algumas pessoas de sua família,
do hospital e, em algumas situações, o diretor da escola ou o professor(a). A
família diz que não deve contar para ninguém, e ele não conta, selando com a
família um acordo de silêncio sobre a condição.
A minha família fala para mim não falar nada para ninguém, só quando
eu tiver casada já, na hora do sexo [...] (C2)
Ela falou para eu não contar para ninguém, só para gente particular
no hospital [...] (C4)
Minha vó conversou com a diretora, então ela sabe por que eu tenho
que vir no hospital [...] (C5)
Eu não conto para ninguém. [silêncio] Meus amigos não sabem, e nem na
escola. Pra que contar? Não gosto, não preciso ficar falando [...]
(C10)
Às vezes, ele compartilha sua situação com alguém especial. Acha que, se contar
para alguém, as pessoas não vão querer chegar perto dele. Foi alertado sobre o
preconceito e passou a vivenciá-lo. Mas, acredita que, somente ao olhá-lo, as
pessoas não percebem que ele tem essa doença.
[...] ninguém [da família] nunca me rejeitou, nunca falou que eu sou
diferente porque tenho isso [...] se ninguém me rejeita, por que eu
vou ficar me rejeitando à toa? [...] eu tinha vergonha que tinha HIV,
eu me achava diferente das outras pessoas [...] teve um tempo que eu
conheci uma garota, ela é muito especial para mim, eu cheguei para
ela e falei o que eu tinha e pensei que ela ia virar a cara para mim,
e isso não aconteceu [...] ninguém fala que eu tenho isso, na rua
quem olha não sabe [...] (C3)
Esse quadro existencial, por sua vez, cria nesse ser-adolescendo uma identidade
existencial muito singular daqueles que foram infectados por transmissão
vertical. Nessa identidade existencial, o ser-adolescendo significa o seu Eu,
compreendendo-se como alguém que vive um cotidiano, tendo um vírus dentro do
seu corpo e uma vida normal. Compreende que o emagrecimento e a dor física dos
familiares doentes justifica o uso contínuo do remédio, ao mesmo tempo em que
gera, para si, tristeza e choro.
É que ela [a mãe] tá doente [silêncio], tem dores, precisa tomar
remédios, vir ao hospital. [silêncio, e sem levantar os olhos diz:] É
ruim ter minha mãe doente [...] (C1)
Quando eu vejo minha irmã ruim, me dá uma dor [...] vontade de
chorar, e eu não podia, então eu me faço de durona [...] [silêncio]
(C3)
Se o pai ou a mãe já morreu, isso aconteceu logo depois de seu nascimento ou
quando ainda era criança. O ser-adolescendo vive num mundo inventado para
ocultar o vírus.
Tem seis anos que minha mãe faleceu de HIV [...] ela pegou do meu
pai, que também faleceu [...] meus colegas me perguntavam: "Ela
morreu de quê?". Aí eu invento [...] às vezes eu não gosto nem de
lembrar [...] [silêncio, olha para baixo e chora] (C2)
Na minha família ninguém mais tem, só eu e minha mãe [...] ela morreu
oito meses depois que eu nasci. Eu não penso muito nisso [...]
[silêncio] (C8)
Por tudo isso, o ser-adolescendo sente-se desamparado pela ausência da mãe e/ou
do pai no seu cotidiano.
[...] é muito difícil [silêncio e volta a olhar para mim chorando]
[...] minha mãe não tá aqui comigo [silêncio] nem meu pai [...] tu
quer ter uma mãe por perto [silêncio] pra te amparar [...] fiquei
revoltada, com depressão[...] eu tenho a minha tia, mas eu sou muito
sozinha [...] às vezes é difícil encarar isso tudo, essa doença [...]
(C2)
A situação existencial marcada pelo movimento da infância para a adolescência
desperta sua curiosidade sobre seu problema de saúde. O ser-adolescendo
relembra que a descoberta da doença aconteceu quando alguém da família contou,
por vezes, com a ajuda de um profissional. Foi explicado que, desde o
nascimento, possuía o mesmo vírus da sua mãe; daí a necessidade de ir ao
hospital e tomar remédios.
Teve uma época que eu queria saber mais sobre isso, aí eu fui
perguntar à minha mãe o que eu tinha, e ela começou a chorar e me
explicou: "Não foi culpa minha, eu não queria que você tivesse esse
vírus.". [...] aquilo me bateu. (C3)
Eu soube esse ano aqui no hospital, com a psicóloga [silêncio] é que
a minha mãe não conseguia me dizer, aí acho que ela ajudou [...]
(C11)
Antes da revelação, ainda criança, desconfiava de algo, pois já ouvira sobre a
doença, na escola, na televisão, nas consultas ou tinha lido nos papéis do
hospital. Cercado pelo não-dizer da doença, o ser-adolescendo percebeu algo
diferente dentro de si.
Quando soube, eu fiquei muito triste, porque é chato ter essa doença
[...] [silêncio] (C4)
Minha vó que me contou, eu já sabia que ela ia falar [...] (C5)
Eu já sabia, porque eu prestava atenção nos papéis, ficava prestando
atenção nas consultas, nas informações, eu ouvia coisas na televisão,
na escola. [silêncio] Ela [a mãe] nunca falou sobre isso, mas eu
sabia [...] (C11)
O ser-adolescendo compreende que o vírus é parte do seu existir 'normal', não é
considerado uma fatalidade. O remédio pode revelar a doença, que é segredo em
seu existir, que está guardada no silêncio da família e dos profissionais de
saúde.
[...] é normal [pausa na fala] porque, assim, o professor falou
comigo, que também tem outros lá na escola que têm problema, que a
mãe passou para o filho [...] (C2)
[ter HIV] [...] não é assim uma fatalidade [silêncio] porque, se
fosse, eu já estaria em cima da cama chorando que nem uma margarida
[...] (C3)
É ruim ter esse vírus, não é uma pessoa normal [...] eu me sinto
normal, o que não é normal é ter que ficar tomando esses remédios
[...] (C10)
DISCUSSÃO
O movimento existencial do ser-adolescendo se mostra nos modos-de-ser no
cotidiano: da inautenticidade para a autenticidade. A inautenticidade foi
evidenciada no modo da angústia imprópria e da ambiguidade. A autenticidade foi
evidenciada no modo da angústia própria do ser-de-possibilidades.
A angústia imprópria se revela pelo medo do ser-adolescendo diante do
enfrentamento daherança da AIDS, marcada pelas perdas e pela orfandade. O
fenômeno do temor pode ser considerado segundo três perspectivas: o que se
teme, o que temer e pelo que se teme. O que se teme, o "temível", é sempre um
ente que vem ao encontro dentro do mundoe que está simplesmente dado(17). Para
o ser-adolescendo, o temível é a própria AIDS.
O que se teme possui um caráter de ameaça, portanto, trata-se de determinar
fenomenalmente o que é temível?(17). Sobre a AIDS, o ser-adolescendo tem
consciência da gênese dessa doença em sua vida a partir dos pais, uma doença
até então sem cura, que, em alguns casos, determinou a morte do pai e/ou mãe.
Percebe-se na ameaça da AIDS o modo conjuntural de dano, que sempre se mostra
dentro de um contexto em que o ser-adolescendo reconhece seu cotidiano tendo um
vírus. A doença traz em si a determinação da região dada e do estranho que dela
provêm, ambos conhecidos(17). A região dada é o que já se sabe da AIDS, pelo
que o ser-adolescendo já ouviu falar na escola, na mídia, no serviço de saúde.
O estranho são as experiências da AIDS na família. Mesmo conhecendo as
repercussões clínicas e sociais na vida de seus pais, o ser-adolescendo ainda
não vivenciou tais repercussões, apesar de saber o que pode vir a acontecer em
sua vida. A exemplo do preconceito, da relação sexual, da gestação, inclusive
da morte.
O danoso ameaça, pois pode acontecer ou não. Diante disso, o ser-adolescendo
vive num mundo inventado para ocultar o vírus e onde se sente desamparado pela
ausência da mãe e/ou do pai no seu cotidiano. A AIDS se irradia nas relações do
ser-adolescendo consigo e com-os-outros, e seus raios apresentam caráter de
ameaça que pode concretizar-se naquilo que anuncia-se como dano, ou pode nunca
acontecer. Mesmo na possibilidade do dano ausentar-se da vivência do ser-
adolescendo, isso não diminui nem resolve o temor, ao contrário, o constitui
(17).
Estar em perigo é a ameaça do ser e estar junto ao que é temível,em que a AIDS
pode concretizar o dano estando mais do que no sangue, por isso o vírus não é
considerado uma fatalidade, mas o remédio pode revelar a doença. Portanto, o
remédio o torna diferente, e não o vírus.
Além do temer-algo, Heidegger compreende que há o temor-por, quando o temor
estende-se a outros ' no caso, membros da família do ser-adolescendo ' que
demonstram medo-em-lugar-do-outro, sem lhe retirar o temor. A família tem medo
do preconceito, por isso assume o não dito de ter AIDS e recomenda o acordo de
silêncio.
A família também tem medo das consequências da AIDS na saúde do ser-adolescendo
se ele não tomar os remédios como deve. Então, assume um cuidado como
solicitude substitutiva-dominadora, que, ao estar-junto, toma o lugar do outro
num movimento de saltar sobre ele, colocando-se na posição de cuidar(17). A
família assume o encargo que é do outro: o cuidar de si. Como ser-criança
estava dominado, tornando-se dependente dos cuidados familiares.
Os momentos constitutivos de todo fenômeno de temor podem variar. Nessas
variações, surgem diferentes possibilidades do temer: o pavor, o horror e o
terror(17).
Na medida em que uma ameaça que ainda não se tornou concreta, mas que a
qualquer momento pode acontecer, subitamente se abate sobre o ser-no-mundo da
ocupação, o temor se transforma em pavor(17). Portanto, o pavor manifesta-se
quando a ameaça conhecida e familiar se abate sobre o ser de modo súbito. O
ser-adolescendo já sabia da AIDS, no entanto, quando a família lhe revela o
diagnóstico, sente-se surpreso e apavorado.
Se, ao contrário, o que ameaça possuir o caráter de algo totalmente não
familiar, o temor transforma-se em horror(17). Sobre a AIDS, eles sabem que a
transmissão do vírus acontece por relação sexual ou uso de drogas; no entanto,
consigo (ser-adolescendo), sua infecção foi por transmissão vertical do HIV.
Então, aquilo que lhe vem ao encontro não é conhecido e ele sente-se
horrorizado.
E somente quando o que ameaça vem ao encontro com caráter de horror, possuindo
ao mesmo tempo o caráter de pavor, o temor torna-se, então, terror(17). O
terror manifesta-se quando a ameaça tem caráter não familiar e súbito. Quando o
ser-adolescendo se vê diante da possibilidade de namorar e de ter que revelar
seu diagnóstico a outro adolescente, sente-se aterrorizado.
Neste cotidiano da AIDS na família e em si se estabelecem o dito e o não dito,
que apontam para duas condições existenciais características do humano:
autenticidade e inautenticidade.
O ser-adolescendo mostra-se na autenticidade quando: na infância começa a
refletir sobre a necessidade de manter um acompanhamento de saúde, diferente da
maioria das crianças; isso os leva, na adolescência, à curiosidade de saber
mais e a questionamentos que suscitam a revelação do diagnóstico, e os
diferentes sentimentos que emergem. A autenticidade se refere a ser fiel ao
próprio eu, ser sua própria pessoa, ser quem se é, agir por conta própria,
pensar por si mesmo(17).
No entanto, as circunstâncias do dia a dia assistencial, ao mesmo tempo em que
apresentam possibilidades, impõem restrições no que diz respeito à AIDS. Um dos
modos de reagir, como mostram os adolescentes, está em se manter no anonimato,
no silêncio de seu diagnóstico, determinado pelo que se toma por bom, e não o
determinado por seu próprio eu. Em que poucas pessoas sabem e não falam sobre
isso ' quando a família diz para não contar para ninguém devido ao preconceito,
o ser-adolescendo assim o faz. Portanto, a inautenticidade está em fazer aquilo
que os outros querem que seja feito, seguir a determinação dos outros(17),
transferindo sua decisão seja à família, aos profissionais da saúde, ou à
sociedade.
Quando o ser-adolescendo se compreende como normal apesar do vírus, contenta-se
com a repetição do que já foi dito, acreditando que as coisas são como são,
pois assim se fala delas, o que evidencia a falta de solidez de compreensão e
constitui o falatório(17). O falatório constitui o modo da compreensão
cotidiana em que o ser cai no palavreado e passa adiante a notícia, não com a
intenção de dizer coisas sobre o mundo, mas de romper o silêncio e manter a
comunicação(17).
Na convivência cotidiana, tanto o que é acessível a todo mundo quanto aquilo de
que todo mundo pode dizer qualquer coisa vêm igualmente ao encontro. Então, não
há como distinguir, na compreensão autêntica, o que se abre do que não se abre
(17). Assim, o ser-adolescendo mostra-se no modo-de-ser da ambiguidade, quando
diz que é adolescente como todos, mas que cada pessoa é diferente da outra; ou
que é normal ter o vírus, mas ter que tomar remédios não é normal. Então, tudo
parece ter sido compreendido, quando não o foi. Essa ambiguidade não se estende
apenas ao mundo, mas, também, à convivência como tal e até mesmo ao ser da
presença para consigo mesmo(17).
CONCLUSÕES
No cotidiano, o ser-adolescendo experiencia a AIDS na família e vivencia a AIDS
em si. Sendo assim, para que o cuidar em saúde seja integral e possa respeitar
as singularidades, é preciso que os profissionais de saúde que cuidam do ser-
adolescendo o compreendam em sua tríplice constituição existencial:
historicidade, temporalidade e espacialidade.
No intuito de conhecer essa tríplice constituição da existencialidade, a
Enfermagem precisa estar disposta e disponível a encontrar-se com o ser-
adolescendo. O encontro precisa ser mediado pela empatia e inter-subjetividade,
em que o profisional de enfermagem mostre-se comprometido em escutar, respeitar
e ajudar o ser-adolescendo. Essa ajuda vai além da atenção às suas necessidades
biológicas do adolescer e da fragilidade clínica da AIDS, mas busca contemplar
o modo como ele se sente, suas vivências, seus limites e possibilidades diante
daquilo que precisa e (não)quer.
O serviço de saúde pode ser um lugar privilegiado para a construção desse
vínculo interpessoal, de abertura, respeito e comprometimento, em que os seres
de cuidado, seja o profissional, o ser-adolescendo, seja o familiar, possam se
conhecer, compreender e cuidar-se. No entanto, o cenário institucional está
determinado por normas e rotinas prescritivas que atendem as demandas do
adoecimento, mas não do viver. Mas, o serviço de saúde é o lugar que o ser-
adolescendo frequenta periodicamente e a longo prazo; desde seu nascimento ou
infância e por tempo indeterminado, já que trata-se de uma doença até então sem
cura. Portanto, um espaço com potencial para o investimento da atenção à
dimensão existencial, articulada à biológico-clínica.
Para isso, as consultas precisam atentar aos protocolos de atendimento e ao
ser-adolescendo que ali se encontra para ser cuidado. Esse ser tem o cotidiano
das necessidades especiais de saúde como parte da vivência do adolescer e do
adoecer, que não podem ser aferidas nos exames, nem tratadas com a tecnologia
medicamentosa.
A atenção a essas vivências demanda o investimento de um tempo que não é
cronológico, mas existencial. Ou seja, não pode ser controlado pelo relógio,
pela agenda de consultas ou pela rotina institucional, mas pelo encontro em que
ambos os seres do cuidado precisam estar dispostos-para compartilhar essa
relação, que ultrapassa o planejamento da assistência e é mediado pelo ser-com.
Sendo-com, o profissional de enfermagem pode buscar compreender a historicidade
do ser-adolescendo, marcada pela AIDS na família e em si, por vezes, por perdas
e orfandade. Durante a infância, a criança, que tem AIDS por transmissão
vertical não conhece exatamente a doença que possui, acredita que tem algum
outro problema de saúde e por isso precisa ir ao hospital e tomar remédios.
Esse conhecimento limitado de sua condição sorológica é mantido pela família,
que pactua com os profissionais esse silêncio, ambos considerando a imaturidade
cognitiva e emocional da criança.
Diante da transição para a adolescência, a família e os profissionais passam a
perceber a necessidade de revelar o diagnóstico, tanto pelo desabrochar da
sexualidade quanto pela adesão ao tratamento. Precisam falar abertamente com o
ser-adolescendo, sem silêncios ou segredos, para que ele possa comprometer-se
conscientemente com o seu cuidado, com os conhecimentos e ferramentas
necessários para proteger a sua saúde e a de outros.
O ser-adolescendo revela que, mesmo antes de lhe contarem que tem AIDS, ele já
sabia de diversas formas, mas manteve o silêncio pois ninguém falava disso.
Assim, o profissional de enfermagem deve ficar atento para os modos com que o
ser-adolescendo demonstra (não) saber de sua doença, pois pode construir um
canal para que ele rompa com o não dito, mostrando-se disposto a falar, mesmo
antes de sua família tomar a decisão da revelação do diagnóstico. Buscando
evitar que o ser-adolescendo seja silenciado quando evidenciar necessidade e
desejo de falar. Esse pacto de silêncio ou silenciamento acontece entre a
família, mas não deve acontecer no serviço de saúde. O espaço do serviço de
saúde deve ser constitutivo de diálogo, sempre que o ser-adolescendo demonstrar
disponibilidade-para falar sobre sua saúde/doença. Pela experiência que tem da
doença de seus pais, o ser-adolescendo teme adoecer e morrer. Esse medo
evidencia a necessidade do diálogo que possibilite vencer essa angústia
imprópria que o paraliza e se estabelece como limite aparentemente
intransponível, pois, se tem a mesma doença da mãe, e se ela morreu, isso
também lhe acontecerá.
No entanto, com ajuda de alguém que o encoraje a ir além desse temor e
possibilite um olhar às suas potencialidades, o ser-adolescendo pode
desenvolver um movimento de angústia própria. (Re)conhecendo-se como ser-de-
possibilidades, percebe que, apesar da facticidade da AIDS, tem um futuro que
não está determinado pelo vivido de seus pais, mas depende de diversas
questões, inclusive da decisão de assumir-se naquilo que quer, precisa e pode
fazer por si-mesmo.
Portanto, o profissional de enfermagem pode ajudá-lo no cuidar de si, como um
campo de possibilidades para além do vivido pelos familiares. O cuidar de si
também está interligado à temporalidade do ser-adolescendo, pois o momento de
transição para adolescência não é o tempo determinador dessa capacidade. Aquilo
que se constrói-junto e que proporciona conhecimento e instrumentos é que,
paulatinamente, possibilitará o desenvolvimento da autonomia nas atitudes e
comportamentos para assumir o cuidado de si.