Caracterização do atendimento de uma unidade de hemoterapia
INTRODUÇÃO
A hemoterapia é uma importante área de estudos, uma vez que compreende o uso de
um grande número de recursos materiais e humanos. Visa à produção de serviços,
produtos e o atendimento de clientes (usuários, associados, contribuintes e
consumidores). É composta pelo setor público (hemocentros, núcleos e unidades)
e privado (serviços de hemoterapia e bancos de sangue)(1).
Como um serviço da saúde, deve buscar a qualidade pela identificação de falhas
nas rotinas e procedimentos e a condução de melhoria dos processos e
resultados. Necessita estabelecer, como meta, a conformidade com as exigências
dos órgãos reguladores e a satisfação dos clientes atendidos. Em serviços de
hemoterapia, compete à Vigilância Sanitária a avaliação dos serviços prestados
(2).
Desde 1980, com a criação do Programa Nacional de Sangue e Hemoderivados - PRO-
SANGUE, muitos avanços têm sido alcançados na hemoterapia no Brasil(3). Ainda
assim, é constante nos meios de comunicação a divulgação da falta de sangue
para transfusões, o que torna esse um dos problemas atualmente destacados
dentre as múltiplas necessidades da saúde pública(4). Existe a necessidade do
aumento no número de doadores para que os estoques e as demandas de sangue para
transfusões sejam atendidos(5).
Entretanto, para que o número de doações de sangue seja expressivo, é
necessário que se estabeleça, entre instituições, profissionais, doadores e
métodos utilizados, uma relação de confiança e segurança na perícia e na
intenção dos profissionais(1).
A hemoterapia é um dos diversos segmentos da saúde onde os profissionais de
enfermagem exercem sua prática. Nesse contexto, o enfermeiro desempenha um
importante papel, seja no atendimento a doadores e/ou a receptores, na busca
constante em disponibilizar serviços e produtos de qualidade, na produção de
hemocomponentes, no atendimento assistencial e no desenvolvimento do ensino e
da pesquisa no setor(6).
A Resolução nº 306/2006, do Conselho Federal de Enfermagem, determina, em seu
artigo 1º, como competências e atribuições do enfermeiro em Hemoterapia, entre
outras, que ele possa assistir de maneira integral os doadores, receptores e
suas famílias, promovendo ações preventivas, educativas e curativas entre
receptores, familiares e doadores; triagem clínica para avaliação de doadores e
receptores; além das ações relacionadas à supervisão e controle da equipe de
enfermagem(7).
Para o alcance dessas metas, é imprescindível que enfermeiro de Hemoterapia
busque o desenvolvimento de ações que possam promover a qualidade e garantir a
produção dos serviços realizados e prestados. Nesse sentido, dentre as várias
atividades propostas é sua função reconhecer a população de doadores onde
desenvolve suas atividades, os principais motivos de recusa para que possa
assegurar maior confiabilidade ao sangue coletado, verificar a produção de
hemocomponentes a partir das doações realizadas; conscientizar a população de
doadores quanto à importância de realizar o cadastro de possíveis doadores de
medula óssea; entre outras(1,8). Por se tratar de um trabalho árduo e extenso,
e no intuito de que seja efetivamente realizado, o enfermeiro de hemoterapia
precisa reconhecer as características do local onde está inserido, para que
possa identificar e equacionar os problemas existentes e traçar metas de
trabalho.
Assim, o objetivo do presente estudo é descrever as características de
atendimento de uma Unidade de Hemoterapia do interior do estado de São Paulo no
ano de 2009.
MATERIAL E MÉTODOS
Trata-se de estudo descritivo exploratório, aprovado pelo Comitê de Ética em
Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
- USP, sob parecer 1146/2010.
Os dados foram coletados junto ao Banco de Dados (Sistema de Banco de Sangue -
SBS) de uma Unidade de Hemoterapia localizada no interior do estado de São
Paulo. Segundo dados da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados - SEADE,
em 2009, a população estimada na cidade era de 56.271 habitantes, sendo 34.867
com faixa etária entre 20 e 64 anos de idade(9).
A Unidade de Hemoterapia desse estudo faz parte do complexo de agências,
unidades e núcleos transfusionais que compreendem um Hemocentro Regional e está
localizada dentro da única instituição de nível hospitalar terciário da cidade
onde se localiza. Caracteriza-se por realizar atividades de atendimento a
doadores, atendimento das necessidades transfusionais da unidade terciária
dentro da qual está localizada e de uma unidade hospitalar de pequeno porte
localizada numa cidade vizinha. Conta com uma equipe multidisciplinar composta
por um médico, um enfermeiro, duas biomédicas e dois agentes de captação de
doadores. Ao enfermeiro competem as atividades de pré-triagem, triagem clínica
e coleta de sangue.
Para a realização do estudo, foram coletados dados referentes ao período de
janeiro a dezembro de 2009, quanto à caracterização das doações realizadas na
unidade, índice de fracionamento (bolsas duplas e triplas), número de coletas
enviadas ao Registro Nacional de Doadores de Medula Óssea (REDOME), principais
causas de recusa na triagem clínica, tempo de permanência do doador na unidade,
índice de satisfação do cliente/doador com a unidade, número de tipagens
sanguíneas, pesquisa de anticorpos irregulares e provas de compatibilidade. Os
dados foram compilados mensalmente, transportados para o programa Excel,
analisados e apresentados na forma de relatório discursivo.
RESULTADOS
Dentre os 2.873 candidatos a doação no ano de 2009, o total de rejeições na
triagem clínica foi de 80 (2,7%), sendo a maior média de rejeição a registrada
no mês de junho 16 (8,9%) e a menor em dezembro (nenhuma rejeição encontrada
neste mês). Os motivos que levaram à rejeição na triagem clínica foram o
intervalo entre doações em 44 (55,0%) candidatos e relacionamento sexual de
risco em 36 (45,0%) candidatos.
Conforme a SEADE no ano estudado, a unidade realizou 2777 coletas, o que
representa cerca de 4,9% de doação/habitante/cidade (9). Destas, 1775 (64,0%)
foram realizadas por doadores de repetição (indivíduo que doa sangue pelo menos
uma vez a cada 13 meses), 584 (21,0%) por doadores esporádicos (indivíduos que
doam sangue eventualmente com intervalo maior que 13 meses) e 418 (15,0%) por
novos doadores (indivíduo que doa sangue pela primeira vez num serviço de
hemoterapia). A distribuição mensal do número de doadores de repetição, novos e
esporádicos está representada no Gráfico_1.
![](/img/revistas/reben/v64n6/a14gra01.jpg)
O mês em que ocorreu o maior número de coletas foi março 319 (11,5%), e o menor
número de coletas foi registrado em junho 178 (6,4%). Do total de bolsas
coletadas no ano de 2009, 1.505 (54,2%) eram bolsas duplas (concentrado de
hemácias e plasma) e 1.272 (45,8%) bolsas triplas (concentrado de hemácias,
plasma e plaquetas).
A maior média registrada em doações de repetição é observada nos meses de junho
125 (70,2%), e a menor no mês de março 184 (57,6%), conforme demonstra o
Gráfico_1. Dentre os novos doadores da Unidade, a maior média registrada
ocorreu em março 64 (20,0%), e a menor em dezembro 23 (11,6%) e de doadores
esporádicos a maior média registrada foi em janeiro 68 (25,8%) e a menor em
agosto 35 (14,7%).
Em 2009 foram registradas 34 reações adversas à doação de sangue, o que
representa uma média mensal em torno de 1,20% das doações. A maior incidência
registrada de reações adversas foi em janeiro com 7 (2,7%) e a menor em junho
(nenhuma reação adversa foi registrada nesse mês). Dentre essas, 30 (88,2%)
foram caracterizadas como reações leves, 3 (8,8%) como moderadas e 1 (3%) como
grave. O doador que apresentou a reação grave foi atendido na própria unidade.
Durante o período do estudo foram dispensadas pela unidade 940 bolsas de
hemocomponentes. Destas, 913 (97,1%) foram destinadas à unidade de atendimento
terciário onde a unidade se localiza, sendo 781 concentrados de hemácias e 132
plasmas frescos congelados, 286 (31,4%) foram destinadas a unidade de clínica
médica e 295 (32,3%) a unidade de terapia intensiva. As outras 27 bolsas (22
concentrados de hemácias e 5 plasmas frescos congelados) foram encaminhadas
para a unidade situada na cidade vizinha.
Foram atendidos pela unidade 387 clientes/receptores o que corresponde a 387
tipagens sanguíneas e pesquisa de anticorpos irregulares (PAI) e, realizadas
878 provas de compatibilidade sanguínea, das quais 803 bolsas foram
transfundidas. As unidades hospitalares onde as transfusões foram realizadas
estão identificadas no Gráfico_2.
[/img/revistas/reben/v64n6/a14gra02.jpg]
A média de tempo de permanência do doador na unidade foi de 52 minutos e 27
segundos, sendo o maior tempo de permanência registrado no mês de janeiro (01:
20 h) e o menor em abril (00:34 h).
A avaliação da satisfação dos clientes/doadores é realizada no serviço através
de um questionário com perguntas estruturadas, entregues aleatoriamente, a
cerca de 25% dos doadores atendidos. Dos 694 doadores que responderam o
instrumento, todos (100%) indicaram satisfação com a unidade.
DISCUSSÃO
O número de doações de sangue em um país deve representar de 3 a 5 % da sua
população para atender sua demanda transfusional(10). No serviço estudado,
evidencia-se que a oferta de doadores atende sua demanda transfusional e o
torna autossuficiente. Estes dados divergem da média nacional, segundo os dados
do Minstério da Saúde, onde em 2006, houve 3.065.352 doações realizadas, o que
corresponde a 1,77% da população(11).
Caracteriza-se como doador de sangue ou componentes o indivíduo com idade
mínima de 18 anos completos, e máxima de 65 anos 11 meses e 29 dias; com peso
acima de 50 Kg e que tenha boa saúde(12).
O tipo de doação e o tipo de doador de sangue são classificados segundo os
critérios adotados pelo Ministério da Saúde do Brasil e Sociedade Brasileira de
Hematologia e Hemoterapia. Denomina-se doação espontânea, aquela realizada sem
qualquer forma de benefício para o doador e que compreenda a doação de uma
unidade de sangue ou de um de seus componentes; doação de reposição é a
realizada através de recrutamento do doador com a finalidade de repor uma
unidade de sangue ou de um dos componentes utilizados por um determinado
paciente; doação autóloga é a doação de sangue ou de um de seus componentes
para uso do próprio doador; doação específica, a doação de uma unidade de
sangue ou de um de seus componentes de um doador específico para um receptor
específico e doação por aférese, onde se é possível retirar apenas uma das
células do sangue total(11,12).
Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e a Organização Mundial de
Saúde (OMS) dentre as metas preconizadas pelo Ministério da Saúde existe a
necessidade do aumento do número de doadores espontâneos no Brasil, uma vez que
no país predomina a prática da doação de reposição. As doações de reposição, ou
com qualquer tipo de interesse ou troca, diminuem a qualidade do sangue
captado. As doações espontâneas e de repetição são mais seguras e recomenda-se
que sejam realizadas por cerca de 60% dos doadores, demonstrando que no serviço
analisado há uma maior confiabilidade do sangue coletado. Tal dado torna-se
relevante uma vez que o emprego de hemoderivados não está isento de riscos.
Estima-se que nos Estados Unidos da América (EUA) sejam realizadas cerca de 22
milhões de transfusões sangüíneas por ano, com uma taxa de complicações
clínicas de grau variável que chega a 20%, o que leva a implicações
administrativas, logísticas e econômicas às quais o enfermeiro deve estar
atento. No entanto, a hemoterapia, no Brasil e no mundo de uma forma geral tem
se caracterizado pelo desenvolvimento e adoção de novas tecnologias com o
objetivo de minimizar os riscos transfusionais, especialmente quanto à
disseminação de agentes infectocontagiosos(13-15).
Para a obtenção de segurança dos produtos sanguíneos utilizados, devem-se
seguir rígidos parâmetros de qualidade, que envolvem um conjunto de medidas
quantitativas e qualitativas, que minimizam riscos e permitem a formação de
estoques de hemocomponentes capazes de atender à demanda transfusional(16).
No Brasil, a Portaria nº 1.376/93, reforçada pela Resolução nº 343 MS/2001,
determina que os Serviços de Hemoterapia realizem testes de triagem sorológica
para sífilis, doença de Chagas, hepatite B e C, Aids, HTLV e malária. Quanto
aos receptores de sangue, é necessário realizar testes imunohematológicos: ABO/
Rh, pesquisa de anticorpos irregulares (PAI) e testes de compatibilidade(17).
Todavia, embora haja o conhecimento do perfil clínico, epidemiológico e
sorológico dos doadores de sangue, não se realiza o mesmo com os receptores de
sangue, e em especial com aqueles que necessitam de sangue esporadicamente.
Estudo pioneiro no país realizou uma avaliação do perfil sorológico pré
transfusional de receptores de sangue envolvendo três grupos de receptores (sem
passado transfusional, politransfundidos e eventuais) e os resultados revelaram
que 37 (43,6%) foram reagentes aos mesmos testes de triagem sorológica
utilizados para doadores(18). Além dessas considerações, dentre as diversas
atividades a serem desenvolvidas, avaliadas e atendidas pelos enfermeiros que
atuam em hemoterapia, estão as reações adversas que podem ocorrer em gravidade
variável durante ou ao final do procedimento de coleta de sangue(19).
Em geral doadores voluntários de sangue não apresentam reações à sangria. Na
maioria das vezes, as reações adversas estão relacionadas a doadores ansiosos
ou excitados, e caracterizam-se por alteração no padrão respiratório e
hiperventilação, o que pode levar em alguns casos, a queda dos níveis de gás
carbônico, alcalose e tetania caracterizada por contraturas musculares
involuntárias e espasmos. Podem ocorrer, ainda, em caso de reações graves,
reações vaso-vagais, indicadas por palidez, sudorese, tremores, calafrios,
sensação de tontura, mal estar, náuseas, vômitos, cefaléia, escurecimento da
visão, perda de consciência, convulsões e perda do controle esfincteriano com
micção e defecação involuntárias(19).
A Unidade avaliada possui baixo índice de reações quando comparada a outros
serviços. Para garantir uma melhor eficácia e padronizar o atendimento aos
doadores que apresentam algum tipo de reação, o Hemocentro Regional ao qual
está vinculada, desenvolveu uma classificação das reações vaso-vagais.
Classifica como reação leve, aquela em que o doador apresenta palidez,
sudorese, tremores, calafrios, sensação de tontura, mal estar, náuseas,
vômitos, cefaléia, escurecimento sem perda de consciência ou com perda
revertida instantaneamente; como reações moderadas, aquelas em que o doador
apresenta perda da consciência, revertida rapidamente, após algum estímulo,
reação em que não ocorre perda da consciência, mas o doador demora a se
recuperar, reação com perda rápida da consciência, associada a uma ou duas
contraturas musculares, sem liberação de esfíncter; e como reações graves
aquelas em que ocorrem perda de consciência prolongada ou associada a
contrações, espasmos musculares, convulsões, angina, infarto ou reações que
possam ocasionar sequelas(19). Cabe ao enfermeiro de hemoterapia, o
envolvimento e o domínio desta padronização, uma vez que dentre as diversas
maneiras de qualificação do serviço, a padronização de rotinas resulta em
procedimentos e diferentes formas de conduta profissional que transcendem o
posicionamento individual das diferentes categorias profissionais, assegurando
um cuidado de enfermagem embasado e científico(20).
As semelhanças encontradas nas características das clínicas receptoras e dos
hemoderivados utilizados no serviço estudado com as de outros estudos,
demonstram que para planejar, gerenciar suas atividades e assegurar quantidade
e qualidade dos produros fornecidos, o enfermeiro de hemoterapia necessita
conhecer as características dos serviços clientes, como número de leitos das
mais diversas clínicas, características dos pacientes, índices que verifiquem
sua gravidade, entre outros, de modo que possa liderar a equipe e processos de
trabalho(14-15).
Além disso, cumpre destacar que a busca dos serviços pela qualidade prestada e
pela satisfação dos doadores de sangue, está positivamente relacionada à
intenção de retorno para uma futura doação e faz parte de um processo no avanço
do aperfeiçoamento da gestão(6), o que é imprescindível nos dias atuais.
Frequentemente os resultados mais utilizados para avaliação da qualidade dos
serviços, têm sido a satisfação do cliente, o que pelos dados encontrados,
confere ao serviço do estudo destaque nas suas atividades.
CONCLUSÃO
As Unidades de Hemoterapia são complexas prestadoras de serviços e, embora
estando ligadas a unidades centrais como os Hemocentros, devem gerir seu
atendimento com segurança, eficácia e qualidade nos serviços prestados.
A Unidade do estudo, embora esteja localizada numa cidade do interior do estado
de São Paulo, tem um alto índice de produção, dentro do preconizado pela OMS e
pode gerir seus recursos, atender de maneira autônoma sua demanda, além de
diferenciar-se na satisfação do cliente e na qualidade do sangue captado pela
quantidade de doadores de repetição que possui.
A análise dos dados da Unidade e dos clientes (doadores e receptores) oferece
ao enfermeiro da Unidade de Hemoterapia, importantes ferramentas
administrativas na gestão do seu trabalho e o seu posicionamento perante a
equipe, uma vez que vai do discurso ao julgamento dos fatos e, principalmente
possibilita de maneira didática e reflexiva o confronto com os dados literários
e recomendações de órgãos oficiais.
O presente estudo aponta para a necessidade de se explorar as dimensões dos
papéis profissionais, as possibilidades de captação de novos doadores, os
motivos que levam os pacientes a doação de sangue, características, perfil
epidemiológico e satisfação dos receptores. Enquanto profissional integrante da
equipe dessas unidades é papel do enfermeiro o conhecimento de suas atividades
e o estabelecimento de metas pessoais e profissionais no intuito de elevar o
crescimento pessoal, profissional e principalmente diferenciar o cuidado de
enfermagem prestado.
Compete ainda ao enfermeiro de hemoterapia, enquanto profissional da área da
saúde, educador e motivador de uma assistência diferenciada, a análise do
interesse e disseminação à população sobre as políticas públicas de incentivo a
doação de sangue nas suas unidades de trabalho.