Corpos estranhos, mas não esquecidos: representações de mulheres e homens sobre
seus corpos feridos
INTRODUÇÃO
Na atualidade o corpo se apresenta como o símbolo através do qual as pessoas
são avaliadas quanto à qualidade de sua presença e mediante o qual ostenta a
imagem que pretende dar aos outros, o corpo é hoje um motivo de apresentação de
si (1), por isso se busca apresentar o corpo na sua melhor forma possível.
Assim como ocorre com pessoas que buscam modificar o corpo com cirurgias
plásticas, as pessoas cronicamente feridas buscam eliminar suas lesões enquanto
marcas negativas do corpo, sinais de classificação inferiorizadora de si.
A perspectiva de uma vida nova é apreendida nas narrativas das pessoas feridas,
que almejam um novo corpo, um corpo cicatrizado, um corpo aceitável, um corpo
apresentável para avaliação social, normativa e classificatória, que confere ao
corpo íntegro um status mais elevado que ao corpo ferido, ou modificado pela
enfermidade.
Na dinâmica das relações sociais o corpo enfermo mostra-se hierarquicamente
inferiorizado, o que o coloca em termos de menor capital simbólico,
desqualificado para as trocas entre grupos que não seja de seus iguais. O corpo
ferido é então levado a transitar em espaços pré-destinados, comportar-se com
discrição, esconder-se, guardar-se da vida publica sob o risco de ser rechaçado
(2).
Perder a integridade da pele implica em ingressar numa experiência cujos
aspectos culturais, sociais, históricos e afetivos envolvem a construção de
novas imagens sobre o corpo e sobre si mesmo que divergem daquelas anteriores
ao surgimento da ferida.
Viver implica em relacionar-se com seu corpo e colocá-lo em interação continua
com outros corpos, nesse sentido a pessoa ferida experimenta mudanças não
somente físicas, mas também psicológicas, com repercussões importantes no
âmbito das relações interpessoais, sociais e afetivas(2). Tais mudanças
estimulam a elaboração de novas representações do corpo ferido e, a partir de
sua experiência social, seja entre as outras pessoas enfermas com as quais
partilhará historias nas salas de espera para tratamento, com os profissionais
do cuidado, seja com seus parceiros, amigos e familiares, a pessoa ferida
constrói um conjunto de idéias sobre seu corpo que fundamenta o modo como se
comportará frente a si mesmo e aos demais.
Face ao padecimento, as pessoas constroem uma rede de significados, um saber,
um conjunto de praticas constituído a partir de seus grupos de socialização e
de sua interação com os sistemas médicos que acessam. As representações
consistem numa serie de significados que servem para que os indivíduos dêem
sentido aos mal-estares que sofrem, permite entender e classificar as situações
em que se apresentam e a organizar ações e praticas; não somente inclui a
experiência individual, mas o contexto concreto em que se situam os indivíduos
e grupos refere-se a uma forma de conhecimento socialmente elaborado(3).
A ferida é uma marca de identificação com um grupo, mas, ao contrario da
tatuagem, da escarificação voluntária ou do piercing, consiste numa marca
identificatória não reivindicada, a qual se pretende esconder, eliminar, e
esquecer(4). O corpo ferido crônico faz com que seu dono perca o controle sobre
si mesmo, torna-se o corpo algo que não se pode manipular conforme sua vontade
o corpo mostra-se então insuficiente para representar a sua identidade pessoal
(2).
A ferida, como outras enfermidades, ocorre no corpo das pessoas, mas não se
encerra em fatos biológicos; envolve aspectos históricos, culturais e
psicossociais e afetivos. Sendo assim, as representações do corpo ferido são
construídas com base na experiência social.
Estudos sobre representações possibilitam conhecer os estereotipos, opiniões,
crenças, valores e normas que costuman orientar positiva ou negativamente as
atitudes das pessoas face aos outros e a si mesmas, nesse sentido este estudo
objetivou apreender e analisar as representações sobre o corpo ferido,
elaboradas por pessoas que vivem com ferida crônica.
METODOLOGIA
O presente estudo é parte de uma investigação voltada para exploração de
aspectos sobre o corpo e sexualidade de mulheres e homens que vivem com
feridas, que teve como eixo central a discussão sobre a experiência da
sexualidade após o surgimento da ferida. As representações sobre o corpo
ferido, foco deste estudo, é um recorte dessa investigação, no qual se valoriza
as narrativas dos participantes.
Desenvolveu-se um estudo qualitativo, descritivo e exploratório. Os
participantes foram eleitos a partir dos seguintes critérios de inclusão: ser
adulto entre dezoito e cinquenta e nove anos de idade, apresentar ferida
crônica em membros inferiores (úlceras de perna de origem venosa, arterial,
mista, traumática ou de origem desconhecida) por um período superior a trinta
dias, pertencer às camadas populares, usuárias(os) do Sistema Único de Saúde
(SUS), frequentar o ambulatório, estar em condições de responder as questões da
entrevista e concordar em participar do estudo.
Os dados foram obtidos de entrevistas em profundidade, durante as quais os
participantes foram estimulados a responder a seguinte questão: "Fale sobre seu
corpo e sua vida ao conviver com essa ferida". Em seguida os depoimentos foram
gravados e transcritos integralmente entre outubro de 2008 a agosto de 2009 e,
posteriormente, tratados a partir da análise de conteúdo temática e de
enunciação(5-6).
Respeitando os princípios éticos, o projeto no qual se insere este estudo foi
previamente aprovado pelo Comitê de Ética da Escola de Enfermagem da UFBA, sob
o Protocolo CEPEE.EUFBA Nº45/2008, em 29 de outubro de 2008. Os participantes,
ao serem convidados, foram esclarecidos quanto aos objetivos e riscos, tendo
seus depoimentos colhidos mediante aceite e assinatura do termo de
consentimento livre e esclarecido. Participaram dezoito adultos feridos
crônicos em tratamento de úlceras vasculares matriculados no serviço
ambulatorial especializado de um grande hospital publico de Salvador-Bahia, e
para preservação do anonimato suas falas foram codificadas no texto por uma
numeração (ex. E1).
Pretende-se com este estudo apresentar subsídios para futuras abordagens com as
pessoas feridas cronicas, a partir da rede de significados que os mesmos
atribuem ao próprio corpo.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A análise permitiu apreender como as pessoas que vivem com úlceras crônicas em
membros inferiores representam seus corpos feridos bem como evidenciar as
alterações na apresentação desse corpo nas relações sociais. Sempre retratado
negativamente, o corpo ferido aparece como expressão de dor, sofrimento, um
corpo desfigurado e rechaçado. Um corpo indesejável ou escondido. Um corpo
estranho, mas nunca esquecido, ao contrário sempre presente, vigiado e
sujeitado a práticas de recuperação de um corpo desejável e legítimo. Tais
aspectos emergiram dos depoimentos através das categorias discutidas a seguir.
A. Corpo estranho, que promove sofrimento
Viver com um corpo ferido provoca sentimentos de medo, tristeza e desânimo,
além de emoções ainda mais complexas como angustia, depressão e a vontade de
morrer. Em condições extremas a maioria dos depoentes expressa que em algum
momento de suas vidas pensou em por um fim em si mesmo para acabar com o
sofrimento que as feridas lhes provocavam.
Isso me tira a capacidade de viver, sabe! Tem dias que eu já
pensei... (hoje em dia que eu já não penso) em... Entre o desespero
todo eu não penso em me matar, mas eu já desejei muito de tirar minha
vida, assim, pronto! Porque tem hora que eu olho pra mim eu vejo uma
mulher com 32 anos que não vive, eu vegeto! (E9, mulher)
A experiência da dor física obriga a pessoa a concentrar todas as suas atenções
ao corpo e a identificar-se com ele, ainda que a reação mais imediata seja a de
abandonar o corpo para não mais sofrer(7).
Antigamente eu pensava besteira sabia? Pensava... Pensava mesmo em me
suicidar, passou por minha cabeça. Meu irmão mora embaixo e eu moro
em cima com minha mãe e lá tem uma janela quantas vezes eu olhei por
cima da janela pra mergulhar embaixo... Pensava em sair subir numa
passarela daquela e me jogar embaixo é horrível! (E7, homem)
Nessas pessoas o sofrimento parece ser intensificado pela solidão, alteração da
auto-imagem e, sobretudo pelas rupturas das relações afetivas, a fragilização
dos vínculos familiares, amorosos, de amizade e camaradagem são sucedidas por
sentimentos de perda do sentido da vida, falta de perspectivas para o futuro,
perda da esperança. As alterações do corpo ferido como ardência, secreção,
câimbra e dor constante conduzem a limitações de mobilidade implicando em
anulação de atividades de lazer e sociabilidade, perda de emprego, diminuição
ou impedimento para realizar tarefas domesticas ou cuidar dos próprios filhos,
o que os fazem perceberem-se como inválidos e discriminados.
A experiência pratica do corpo se dá ao aplicar ao próprio corpo os esquemas
derivados da assimilação das estruturas sociais e que se vê continuamente
reforçada por reações, engendradas de acordo com os mesmos esquemas que o
próprio corpo suscita nos demais, sendo um dos princípios da construção de cada
agente de uma relação duradoura com seu próprio corpo(8). Essa forma de manter
o corpo, de apresentá-lo aos demais explica que há uma distancia entre o corpo
real e o corpo legítimo. As probabilidades de sentirem-se incômodos em seus
próprios corpos,podem manifestar-se como mal estar, timidez ou vergonha e são
mais intensamente sentidas na medida em que se faz maior a distancia entre o
corpo socialmente exigido e a relação pratica com o corpo que impõe o olhar e
as reações dos demais(8).
B. O corpo constantemente vigiado
Os participantes deste estudo acreditam que seu corpo está constantemente
vigiado levando-os a estado de alerta, e sentimentos de inadequação. A pessoa
ferida acredita que todos olham para ela, que a avaliam, a mensura, que os
demais conhecem o seu segredo, e que pode lhe colocar em risco revelando-o ao
publico. As supostas impressões são sempre de caráter negativo. Alimentam a
idéia de que as pessoas que lhe olham, o avaliam como sujos, que seus odores
são perceptíveis, que são negligentes consigo mesmos por isso estão doentes,
que sua enfermidade é contagiosa, sendo a pessoa um portador de risco a ser
evitado.
Assim... Olham... Eu acho assim que a primeira preconceituosa sou eu
mesmo por que eu acho que já coloquei isso na mente assim: Ah se a
pessoa ver minha perna vai ficar com nojo, vai ficar pensando que é
uma doença contagiosa ai eu fico com isso na cabeça ai eu fico com
vergonha mesmo de mostrar, eu ando de calça sempre, e assim nos
relacionamentos eu escondo.(E7, mulher)
A vergonha sentida pelo ato de expor a ferida seja durante os curativos ou
acidentalmente ingressa no mesmo sistema de controle a que estão sujeitas as
práticas corporais consideradas privativas e impróprias durante o convívio
social como defecar, urinar, desnudar-se(9). Tal controle é assimilado num
sistema de vigília permanente, e aquilo que é prescrito do exterior através de
olhares de desaprovação ou repulsa se incorpora através da linguagem e passa a
ser adotado pela pessoa provocando sentimentos negativos como a auto-desprezo e
vergonha, o primeiro implica na desvalorização e a segunda pressupõe um
controle interno, no qual a pessoas julgam a si próprio(10).
A enfermidade provoca uma tomada de consciência sobre a existência de um corpo,
que enquanto se está saudável mostra-se como imperceptível. Na medida em que
algo incomoda, fere, dói, altera, modifica o corpo ele passa a ser percebido,
sentido tornando-se foco de preocupações da pessoa que passa a almejar o
regresso à integridade do corpo. E de corpo silencioso e imperceptível a
experiência encarnada do corpo ferido passa a ser a de um corpo hiper vigiado e
estigmatizado(2).
C. O corpo rejeitado
A rejeição está ancorada em reações de repulsa, nojo e afastamento expressados
por pessoas com as quais tiveram contato, o que motiva recusa aos novos
relacionamentos para evitar a repetição de ações discriminatórias causadoras de
constrangimento. As atitudes de repulsa criam expectativas negativas sobre os
encontros, nesse sentido outros tipos de interesses passam despercebidos já que
a representação da repulsa justifica e dá um sentido para a pessoa ferida.
Certa vez, um homem que trabalhava lá perto, ele me olhava, queria
namorar comigo, pedia informações à vizinha sobre meu
comportamento... e dizia pra minha irmã "estou interessado em sua
irmã, mas ela só me olha com cara de zangada"... ele queria me
namorar, mas eu pensava que ele tava me criticando por causa desse
problema (a úlcera). (E2, mulher)
A presença da ferida também foi representada como disparador de conflitos e
separação entre os casais, mesmo que esta decorra de problemas pré-existentes e
alheios à ferida os depoentes tendem a acreditar que esta é a motivação maior
para a ruptura da relação.
Eu me achava não normal como tantas outras garotas de minha idade, eu
sou nova, né? Ai eu acho assim... Se ele descobrir que eu tenho esse
ferimento ele vai me largar, não vai querer ficar comigo... (E7,
mulher)
Porque o problema da pessoa com uma ferida no corpo, o pessoal
sabendo se separa mais das pessoas. A pessoa fica... Sente nojo da
pessoa por que a pessoa tem uma ferida. Até a família mesmo da gente
negocio de irmão e irmã fica diferente com a gente. (E3, homem)
As mulheres alegam perda ou fragilidade dos vínculos com seus parceiros, e
redução nas atividades da vida social. Contudo, as mulheres investem no
fortalecimento dos vínculos com os filhos e outros familiares, enquanto os
homens destacam as limitações sobre sua mobilidade nos espaços públicos donde
era possível construir parcerias tanto de camaradagem com outros homens como
múltiplas parcerias sexuais com as mulheres. Sendo a esfera publica central na
construção das relações entre os homens seu isolamento é referido como uma
espécie de confinamento no espaço doméstico.
Por eu ter meu problema eu fico meio isolado, entendeu? Pra ficar...
Poucas pessoas vão lá... Alguns amigos vai lá ai a pessoa chega em
sua casa vê que você tem esse problema (à ferida) fica lhe olhando de
cima à baixo ai a pessoa fica meia constrangida ai eu evito ta de
conversa lá, entendeu? Como eu tenho meu problema eu fico mais em
casa... (E7, homem)
A minha vida é assim em casa eu não saio pra lugar nenhum (E8, homem)
D. O corpo prisioneiro
O afastamento das atividades laborais ou recreativas se torna cada vez mais
intenso, a natureza repulsiva da ferida, suas secreções, odores e a dor que
advém da mobilização, as recomendações de repouso tornam-se impeditivos para
uma vida social fora de casa, conduzindo-os a maior permanecia dentro do espaço
doméstico, além do medo da exposição ao julgamento alheio, e a rejeição do
público. Os participantes, em especial os homens, antes habituados a um
constante transito em espaços públicos, e um menor interesse no espaço privado
de suas vidas experimentam sentimentos de frustração ao se verem com freqüência
em suas casas, espaço entendido como exclusivo das mulheres(11).
Quando eu não tinha ferida, eu ia muito na casa de meus amigos
passear fazer visita e tudo mais, mas agora com a ferida eu estou
preso justamente parece que eu estou num cárcere privado, sem poder
sair pra lugar nenhum [...] (E8, homem).
Esse problema do pé me deixa totalmente retido dentro de casa mesmo
na casa de parentes, de uma pessoa assim, realmente eu não vou, como
muitas vezes já teve aniversário de meu irmão e formatura de minha
sobrinha [...] eu sou uma pessoa que tem esse problema, que tem que
ficar confinado em casa... (E7, homem).
O homem desde a infância foi socializado para viver fora da casa, a casa não é
espaço para permanência e sim de passagem, sua permanência se dá no trabalho e
nas ruas, na casa se encontra o mundo doméstico algo ao qual não foi habituado
a se interessar, o espaço da casa é onde se toma consciência do corpo, onde se
organiza a vida íntima, onde o corpo se expõe, ademais dentro de casa existem
somente as crianças e mulheres personagens com os quais não está acostumado a
dialogar, nesse sentido mesmo cercado de sua família se sente solitário e
preso. Ao serem remetidos ao espaço privado, o do feminino, experimentam
sentimentos de perda, vergonha e culpa(11).
E. Corpo vulnerável à violência
A ferida provoca alterações sobre a dinâmica familiar requerendo uma
reorganização de papeis uma vez que a demandará a incorporação de uma rotina em
torno do cuidado dispensado à essa pessoa. Nesse sentido o ambiente e as
pessoas se adaptarão aos poucos para garantir o curativo diário, ou semanal
dependendo da terapia elegida, ou do deslocamento desta pessoa e sua família ao
serviço de saúde em busca de atendimento.
Essa adaptação pode ser estressante e agudizar conflitos pré-existentes. A
existência da ferida crônica exigirá a dispensação de recursos que antes eram
destinados à manutenção da família e que passam a ser desviados para oferecer
cuidado ao seu membro enfermo, em outras circunstancias um enfermo que antes
não mantinha vínculo harmônico com seus familiares pode requerer ajuda de
outros que terão que assumir papel de seu cuidador, essas situações pode
suscitar frustrações, manifestações de ira e violência e complicar relações que
antes já não eram boas. E a ferida pode ser utilizada como instrumento de
agressão psicológica do enfermo, os participantes ilustram:
Eu morava com meu pai e minha irmã e... Ele brigava muito, quando a
gente brigava ele ficava falando "sua perna podre!" falava coisas
horríveis pra mim e com isso eu fui botando na cabeça (chorando...)
que eu era uma pessoa anormal (chora) tinha momentos que eu queria
até morrer, até pra não passar por isso. (chora). (E7, mulher)
Eu fico muito em casa e minha mãe se aborrece comigo. Sei lá! Se
aborrece, quando tá nervosa diz que eu sou aleijado, que eu sou, eu
sou... fraco das pernas, porque que eu não já partir desse mundo pra
outro, é horrível (chora) é triste porque realmente as pessoas estão
neste mundo e passam por alguma coisa eu acho que ninguém quer sofrer
algo assim alguma pessoa que tenha qualquer problema sente... A minha
família própria mesmo diz, você morreu! Você tá com essa perna! (E7,
homem)
As pessoas com as quais nos relacionamos emite juízos de valor a cerca do que
somos, como nos comportamos e sobre nossa aparência física, influenciando o
modo como nos comportamos. O impacto do julgamento que os outros fazem sobre
nós, as imagens positivas ou negativas que estes compartilham conosco são tão
impactantes quanto maior o vinculo afetivo pré-estabelecido com estas pessoas.
Satisfazer as necessidades afetivas, oferecer apoio psicológico, compreensão e
segurança figuram como funções da família que, supostamente, aceita a pessoa em
sua integridade, e na qual a pessoa se sente aceita. Desse modo o impacto é
causado por contrariar as expectativas de ver cumpridas tais funções e por
alimentar uma imagem depreciativa que julgamos que as pessoas que mais gostamos
deveriam anular ou desconsiderar.
F. Corpo que exige cuidado especial
Novas práticas de cuidado são incorporadas ao cotidiano da pessoa ferida. Para
higienizar-se, vestir-se, olhar-se no espelho requer uma intima relação com seu
próprio corpo, um momento de conciliação ou estranhamento. Limitações são
percebidas no momento do banho, momento em que adaptações ao espaço físico, a
acomodação do corpo e a auto-prestação de cuidados se tornam freqüentes
acompanhado de aprendizado sobre o corpo. Os participantes relatam que
enfrentam dificuldade para cuidar-se e novas medidas são aprendidas com outros
usuários dos ambulatórios ou com as enfermeiras.
Eu tenho realmente que botar um banquinho no box do banheiro de vez
em quando usar um saco, de um lado e do outro secar e botar uma
camisa ou uma toalha e ir tomando banho normal, ai todo água que
escorrer fica na camisa não deixa molhar a bota pra não dar odor,
porque quando molha dá odor, e é nessa hora que eu mais sinto que eu
estou com um problema. (E7, homem)
Durante o banho há preocupação em prevenir a umidade do curativo. Para tanto,
as pessoas usam um banquinho para apoiar os pés, ou sentam em uma cadeira e
apóiam seus pés no vaso sanitário, outros envolvem o membro ferido em um saco
plástico e /ou evitam o uso do chuveiro, tomando banho com auxilio de
utensílios domésticos tais como baldes, canecos, panelas e bacias.
Para suplantar o odor das feridas banham-se momentos antes dos encontros, sendo
comum a troca de curativos antes do recomendado ao perceberem exalar odores.
Alguns fazem, eles mesmos, as trocas em suas casas, já que o serviço adota a
pratica de trocar a terapia compressiva apenas uma vez por semana, motivando
insatisfação nos usuários.
Atender as demandas sociais do corpo exige das pessoas feridas a adoção de uma
nova apresentação de si, ingressando em todo um ritual de cuidados para tornar
seus corpos "aceitáveis", para tanto utilizam do artifício da roupa longa e
escura para esconder a ferida; elaboram estórias contam que sofreram acidentes
ou que portam aparelho de gesso para justificar as bandagens observadas em suas
pernas e, desistem de participar de situações festivas, lazer e trabalho
evitando o contato social sob a justificativa de que incomodarão aos demais
presentes(12).
G. O corpo em luto
Com base nas vivencias referidas pode-se inferir que os sentimentos apontados
pelas/os participantes deste estudo se aproximam de uma experiência de luto do
próprio corpo. As pessoas experimentam a morte de uma identidade na medida em
que são convocadas a assumir uma "identidade deteriorada"(13) e são convocadas
a aprender a conviver com um novo corpo, um corpo rejeitado publicamente, e
também auto rejeitado.
Aspectos encontrados nas narrativas e comportamentos das pessoas feridas
crônicas, como a negação, ira, barganha, desesperança/depressão e aceitação
apresenta similaridade com as etapas de luto de pessoas em processos de
finitude(14-15). O comportamento de negação experimentado, principalmente no
momento em que são admitidos no serviço especializado, se manifesta em
consequência ao forte impacto que as pessoas sofrem ao conhecer o ambulatório e
se deparar com inúmeras pessoas em sofrimento que convivem com as feridas há
muitos anos. Nesse momento, a pessoa tem oportunidade de conhecer outros homens
e mulheres de várias idades, muitas delas com lesões que iniciaram na
juventude, com causas semelhantes à sua.
As/os participantes interagem com outras pessoas cronicamente feridas, que
contam suas histórias, seu dilemas, suas dificuldades, suas dores, as
rejeições, as discriminações sofridas, os internamentos; mais que isso, dentro
da sala de cuidados presenciam a troca de curativos de outras pessoas;
visualizam suas feridas, cada uma de aspecto distinto da outra; veem feridas
que são maiores e mais velhas que a sua; olham as pessoas e as imaginam anos e
anos naquele lugar, com aquele problema, submetendo-se ao tratamento
infinitamente.
Todo mundo já viu a ferida de todo mundo... entendeu? por que aqui
nessa sala é um ou outro, mas na outra sala que é onde coloca a bota
, ficam quatro, entendeu? Então, a gente vê, cada um dá pra ver a
ferida de todo mundo ... e é cada uma assim que eu falo Meu Deus do
céu o que é isso!!! É muita ferida. (Glória, 34 anos, ferida há 3
anos)
Toda essa imersão apavora o recém-chegado ao serviço, e a pessoa se nega a
colocar-se naquele lugar, o seu novo lugar, o lugar do enfermo crônico que deve
assimilar um papel dentro daquele espaço. A pessoa se questiona, como pode
alguém chegar a ficar assim por tanto tempo, repete para si mesma: "eu não vou
ficar assim, eu não quero ser assim!" Muitos se escondem de outras pessoas,
temem ser identificados dentro da unidade, temem que lhe perguntem que motivos
o levaram ali, desviam-se de contatos com profissionais que residem no mesmo
bairro para evitar que sua imagem seja assimilada como de usuário da unidade e
que tal fato seja divulgado entre seus conhecidos.
A negação "pode ser uma defesa temporária ou, em alguns, casos pode sustentar-
se até o fim"(16), ou seja, a pessoa ferida por exemplo, pode experimentar o
sentimento de negação por todo o tempo que permanecer ferida. A pessoa
desconfia da competência dos profissionais que a atende, e em geral "o
pensamento que traduz essa defesa é: 'não, eu não, não é verdade'".
Há um maior questionamento acerca das terapias, sua efetividade, as queixas
sobre o serviço podem surgir, a inquietação na espera pelo atendimento, a
necessidade de expressar-se verbalmente sobre seu sofrimento, ou simplesmente o
silencio durante todo o curativo. O comportamento pode apresentar-se mais
passivo ou mais agressivo, agitado. A pessoa pode desistir do tratamento ou
rejeitar cuidados nesta fase.
Eu tava com fé em Deus que em dezembro eu vou estar sem isso aqui,
mas do jeito que eu estou vendo aqui vou passar o ano de 2009 todo,
aí entra ano e sai ano, entendeu a mesma coisa e o tempo
passa...entendeu, e eu não vejo assim tanto progresso (Glória, 34
anos, ferida há 3 anos).
A raiva se manifesta com o surgimento de "sentimentos de ira, revolta, e
ressentimento"(16) nesta fase as pessoas costumam se questionar: "porquê eu?",
e a equipe de Enfermagem pode perceber maior dificuldade em lidar com as
pessoas que atravessam essa fase(16).
Ao perceber que sua ferida não cicatriza, que a cura custa a acontecer, que sua
situação se mantém inalterada, a pessoa ingressa em comportamentos de
barganha,busca outros serviços e profissionais, gasta suas economias em
atendimentos em serviços privados acreditando que podem acessar melhores
serviços, realizam promessas, fazem pactos com entidades divinas(14-16), Deus,
os Orixás, São Lázaro, e outros, realizam orações, muitos se convertem a
religiões que antes não professavam.
As pessoas buscam através da fé a cura de seu problema. Tendem a aceitar
qualquer indicação de tratamento, prometem mudar comportamentos considerados
pouco saudáveis, tendem a se culpabilizar por não haver se recuperado. Buscam
agradar os profissionais de saúde, oferecendo presentes, pedem para serem
internados, acreditando que a hospitalização poderá melhorar sua situação
mediante o uso de medidas agressivas como cirurgias, desbridamentos e
amputações.
Este invoca o nome de Deus mais frequentemente e repete isso reforçando em si
mesmo seu compromisso com as mudanças prometidas, como forma de reafirmar seu
contrato com a divindade que pensa o ajudará a sair daquele estado crônico e
sofrido.
Às vezes fico em casa pensando, falando com Deus que eu queria ser
bem pobrezinha, não ter nada, nada mesmo, mas ter minha saúde de
volta. Faria qualquer coisa pra eu ter minha saúde (diz isso
chorando).
A inobservância de melhora, o aprofundamento da úlcera, a piora da lesão
inicial ou o aparecimento de novas feridas conduz a pessoa a processos de
sofrimento psicoemocional sinalizados por atitudes de apatia, ou agressividade.
O discurso pode revelar a vontade de abandonar o tratamento, já que esta fase
esta marcada por uma acentuada perda da esperança, semelhante à fase de
depressão(12,14).
A pessoa pode identificar toda a sua trajetória dentro do serviço como algo sem
sentido já que não consegue obter a cura. Uma das depoentes afirma: "ao ver o
resultado os médicos me dizem seus exames estão todos normais". Então ela
reflete, "se está tudo normal por que não buscam uma solução? Estou cansada,
não adianta falar, conversar... O que eu quero é me ver livre desse problema".
Não faz sentido para ela frequentar assiduamente o ambulatório já que o
tratamento não resulta naquilo que ela esperava.
A aceitação caracteriza-se como uma fase em que a pessoa parece entrar em
conciliação com seu próprio corpo enfermo. A experiência do ambulatório com
demais pacientes pode ajudá-la a encontrar novas formas de cuidado e assimilar
um novo estilo de vida e superar dificuldades. Ao se deparar com outras pessoas
em situação semelhante, a pessoa pode encontrar motivos para valorizar outros
aspectos de sua vida evitando que a ferida continue figurando como centro de
suas preocupações. Neste espaço pode ainda encontrar pessoas que o ajudem a
construir novas relações, trocar experiências que o ajudarão a entrar em
equilíbrio com sua situação de enfermidade crônica.
Agora não, tempo passado, depois que eu vim fazer os tratamentos aqui
que eu estou aprendendo a conviver com ela (ferida) eu acho assim:
como eu vejo muita gente, não dizendo assim que eu me alegro com os
problemas dos outros, tá entendendo? Mas assim acordo assim pra vida
e fala assim: pô não é só eu que tenho isso, porque assim você parece
que vive outra vida ai agora é que eu estou aprendendo a conviver com
ela [...]. (Rosa, 30 anos, ferida há 15 anos).
Alguns aspectos identificados foram considerados essenciais para promover a
aceitação. Dentre eles destacamos a aprovação da aposentadoria por invalidez, a
permanência da família com manutenção dos vínculos conjugais, a melhora da
condição da dor e redução do tamanho da ferida após a adoção da terapia
compressiva, e o contato permanente com outras pessoas igualmente enfermas.
Destacamos que as fases apresentadas não são estanques, podendo haver
observação de comportamentos vinculados a mais de uma delas, ou ainda a pessoa
pode manter comportamentos característicos de apenas uma das fases descritas
por todo o período que perdurar a ferida, revelando que, para os participantes
deste estudo o corpo torna-se então sede de emoções negativas similares ao de
pessoas que experimentam processos de enfermidade que conduzem ao fim da vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O espaço público do cuidado tem se firmado como um lócus de anulação do corpo,
no qual a sua fragmentação se torna útil para invisibilizá-lo enquanto
totalidade, assim torna-se importante os estudos sobre o corpo nos contextos de
cuidado elucidando aspectos omitidos nas interações entre seres cuidados e
cuidadores por se encontrarem mediadas por dispositivos de controle expressados
em forma de tabus. A Enfermagem já possui vasto conhecimento anatômico e
fisiopatológico sobre o corpo ferido. Este estudo, no entanto, acrescenta
informações sobre o status relacional desse corpo enquanto sede de
subjetividades e, neste sentido, ao apreender os discursos explorados
identifica que o corpo da pessoa enferma é vivido com base numa trama de
significados representativos para ela.
As representações sobre o corpo ferido dos participantes deste estudo estão
ancoradas em imagens negativas e de sofrimento, revelando que o corpo ferido
mostra-se presente em seus desconfortos e sua condição crônica distancia cada
vez mais o corpo que se tem do corpo idealizado provocando sentimentos
contraditórios e autodepreciativos.
O corpo ferido crônico produz uma sensação de perda de controle sobre si mesmo,
torna-se o corpo algo que não se pode manipular conforme sua vontade,
mostrando-se então insuficiente para representar a sua identidade pessoal.
Evitando que sua imagem seja associada à imagem do grupo a pessoa poderá por um
tempo se negar a participar de grupos que o identifiquem por sua freqüência no
mesmo, assim poderá buscar mudar de serviço para evitar a associação de sua
imagem àquele grupo de pessoas feridas que freqüenta dado serviço, adotando um
comportamento nômade dentro dos serviços de saúde ou mesmo fora dele.