Declarações de óbitos de mulheres em idade fértil: busca por óbitos maternos
INTRODUÇÃO
Todos os dias, aproximadamente 1500 mulheres morrem, no mundo todo, por
complicações relacionadas ao ciclo gravídico-puerperal; mais de 99% destas
mortes ocorrem nos países em desenvolvimento(1). A mortalidade materna é
utilizada como parâmetro para avaliar a qualidade dos serviços de saúde
oferecidos à população. Desta forma, quanto menor a razão de mortalidade
materna de uma região ou país, melhor a qualidade da atenção à saúde(2).
Para a notificação internacional de óbitos de mulheres no ciclo grávido-
puerperal padronizou-se a utilização da razão de mortalidade materna. A
Declaração de Óbito, instrumento utilizado na obtenção de dados sobre mortes
maternas, é o documento oficial que atesta a morte de uma pessoa, cumpre as
exigências legais de registro dos óbitos e é fonte de dados para estatísticas
sanitárias. É especialmente importante no que se refere à vigilância
epidemiológica da morte materna, servindo como ponto de partida para as
investigações(3).
Desde 1995, o Ministério da Saúde incluiu na Declaração de Óbito dois campos
referentes a óbitos de mulheres em idade fértil. O campo de número 43 diz
respeito à investigação da ocorrência do óbito durante a gravidez, parto ou
aborto e o campo de número 44 refere-se à morte ocorrida durante o puerpério.
Estes dois campos se destinam a qualificar as condições e causas que provocaram
a morte.
O preenchimento da Declaração de Óbito de mulheres em idade fértil também deve
conter informações detalhadas sobre a causa básica da morte com o propósito de
possibilitar a identificação das causas diretas ou indiretas de mortes
maternas. Desta forma, favorece-se a obtenção de dados confiáveis e comparáveis
sobre a morte(4).
Apesar de todas as tentativas para melhorar a qualidade das estatísticas
oficiais de mortes maternas, ainda existem problemas no que se refere à
Declaração de Óbito. Um deles é a subnotificação das mortes, que pode estar
relacionada à incorreções técnicas no preenchimento das Declarações de Óbito(5)
e configura-se em um dos pontos críticos para a identificação de óbitos
maternos, pois compromete a qualidade da informação e o conhecimento dos
determinantes das mortes.
Para as causas maternas a subnotificação é elevada, mesmo que haja indícios de
que o óbito esteja relacionado ao ciclo grávido-puerperal. Na maioria dos
casos, não se menciona, na Declaração de Óbito, que se tratava de uma gestante
ou puérpera(4).
Desta forma, propusemos este estudo, que teve como cenário o Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo, e cujo objetivo é investigar, em Declarações de Óbito de mulheres de 10
a 49 anos, o preenchimento dos campos que permitem a identificação de óbitos
maternos e classificar os óbitos quanto à sua natureza.
A definição de morte materna utilizada foi a da Classificação Internacional de
Doenças - 10ª Revisão, que considera morte materna a morte de uma mulher
durante a gestação ou até 42 dias após o término da gestação, independente da
duração ou da localização da gravidez, devida a qualquer causa relacionada com
ou agravada pela gravidez ou por medidas em relação a ela, porém não devida a
causas acidentais ou incidentais(6).
Quanto à natureza do óbito, consideramos como morte materna declarada quando as
informações registradas na Declaração de Óbito permitiram classificar o óbito
como materno. Isto significa que constava na Declaração de Óbito uma causa
específica do capítulo XV ' Gravidez, parto e puerpério, da Classificação
Internacional de Doenças - 10a revisão, ou havia menção ao estado gravídico-
puerperal, independente de ter os campos correspondentes aos óbitos de mulheres
preenchidos(5).
Consideramos morte não materna quando as informações registradas nos campos 43
e 44 da Declaração de Óbito indicavam negativa para o óbito ocorrido no ciclo
gravídico-puerperal e na causa da morte não constava uma causa materna(6).
As Declarações de Óbito que não permitiram a identificação do óbito materno ou
não materno foram consideradas mortes inconclusivas(6). Essas Declarações de
Óbito não apresentaram os campos 43 e 44 preenchidos e as causas de óbito não
estavam associadas ao estado gravídico-puerperal.
As mortes presumíveis são caracterizadas por situações em que a causa terminal
está atestada, mas não consta na Declaração de Óbito a relação com o estado
gravídico-puerperal, não sendo possível identificar o óbito materno(6).
MATERIAL E MÉTODO
Conduzimos uma pesquisa documental, a partir de prontuários hospitalares de
mulheres em idade fértil - de 10 a 49 anos, que foram a óbito no Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto ' Universidade de São Paulo
no período de janeiro de 2007 a abril de 2009.
Solicitamos ao Serviço de Arquivo Médico da instituição o registro de todas as
mulheres com idade entre 10 e 49 anos que foram a óbito, no período do estudo,
para obtenção dos prontuários hospitalares, nos quais constavam as Declarações
de Óbito, objeto desta investigação.
Para a coleta de dados elaboramos um instrumento fundamentado em revisão
bibliográfica e no modelo de Declaração de Óbito vigente(6).
Realizamos um estudo piloto, utilizando quinze Declarações de Óbito, a fim de
verificar a aplicabilidade do instrumento. Após o piloto, foram realizadas duas
reformulações chegando ao instrumento final. Este instrumento nos permitiu
obter informações sobre as variáveis sociodemográficas e as variáveis
relacionadas ao óbito.
Identificamos, nas Declarações de Óbito, (I) mortes maternas declaradas, (II)
mortes não maternas, (III) mortes inconclusivas e (IV) mortes maternas
presumíveis. As mortes inconclusivas foram analisadas quanto às causas de
óbito. As Declarações de Óbito que apresentavam causas de morte que poderiam
ocultar o estado gravídico-puerperal da mulher falecida enquadraram-se nas
mortes maternas presumíveis(4). Da mesma forma, classificamos como mortes
inconclusivas, as Declarações de Óbito que traziam os campos 43 e 44
assinalados como "sim" -indicando o estado gravídico-puerperal da mulher, mas
sem uma causa materna correspondente ao capítulo XV da CID-10(7), nos campos de
causa básica do óbito.
Os dados foram compilados em uma planilha eletrônica utilizando-se o software
MS Excel. Para análise das causas básicas de morte utilizamos a lista de
categorias de três caracteres da 10ª Revisão da Classificação de Doenças e
Problemas Relacionados à Saúde CID ' 10.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo, sob o Protocolo nº 11152/2008. Por se tratar de uma pesquisa de revisão
de prontuários dispensou-se o uso do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido.
RESULTADOS
Foram analisadas 301 Declarações de Óbito de mulheres que morreram no Hospital
das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo no período do estudo. No ano de 2007 foram 131 Declarações de Óbito, em
2008 foram 132 e 38 Declarações de Óbito referentes aos quatro primeiros meses
de 2009.
Das 301 Declarações de Óbito analisadas, 180 (60%) estavam com os campos 43 e
44 preenchidos e 121 (40%) estavam com os campos 43 e 44 em branco e/ou
ignorados. O preenchimento entre os campos variou, haja vista que encontramos
mais Declarações de Óbito com o campo 43 preenchido em relação ao campo 44.
Considerando os campos 43, 44 e a causa da morte, foi possível identificar
óbitos maternos declarados, óbitos não maternos, inconclusivos e presumíveis
(Figura1).
A partir da análise de 180 Declarações de Óbito com os campos 43 e 44
preenchidos, identificamos que 176 (58,5%) óbitos ocorreram fora do ciclo
gravídico'puerperal, configurando os óbitos não maternos. As quatro declarações
restantes, foram classificadas como mortes maternas declaradas. Após análise de
121 Declarações de Óbito com incompletitudes, duas foram identificadas, pela
causa básica, como mortes maternas. Estas compuseram, com os quatro óbitos
declarados, o grupo de seis (2%) mortes maternas referentes ao período
estudado.
As 119 (39,5%) restantes foram classificadas como mortes inconclusivas e após
análise das causas de morte, pudemos identificar que 13 (4,3%) Declarações de
Óbito informavam causas que, de acordo com o Ministério da Saúde(4), poderiam
ocultar o estado gestacional, sendo classificadas como mortes maternas
presumíveis.
Dentre os 176 (58,5%) óbitos ocorridos fora do ciclo gravídico-puerperal, um
óbito ocorreu no período de 43 dias a 1 ano após o parto de acordo com o
preenchimento do campo 44, tendo como causa de morte pneumonia (J18.9 ' CID-
10).
A partir da análise das causas de morte das Declarações de Óbito classificadas
como inconclusivas e de acordo com as diretrizes do Ministério da Saúde,
identificamos as causas dos 13 (4,3%) óbitos maternos presumíveis, a saber:
pneumonia (3 casos), hipertensão intracraniana (3 casos), choque séptico (2
casos), septicemia (1 caso), broncopneumonia (1 caso), epilepsia (1 caso),
tromboembolismo pulmonar (1 caso) e acidente vascular cerebral (1 caso).
Para a análise das causas dos seis (2%) óbitos maternos foi utilizada a lista
de categorias de três caracteres da 10a Revisão da Classificação de Doenças e
Problemas Relacionados à Saúde CID 10. Todas as causas maternas declaradas são
obstétricas diretas, indicando quatro mortes ocorridas por problemas relativos
ao parto, uma por complicações na gestação e uma por complicações puerperais.
DISCUSSÃO
Apesar do aumento da atenção da Organização Mundial da Saúde, Ministério da
Saúde, Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde sobre a mortalidade materna
nas últimas décadas, a avaliação da redução deste indicador não é simples de
ser feita. A mensuração da mortalidade materna é complexa devido à
subnotificação dos óbitos e à imprecisão dos registros vitais(8). A redução da
mortalidade materna depende do efetivo monitoramento dos casos, fato que nem
sempre é possível devido à subinformação, que impede o reconhecimento do óbito
como materno(9). Faz-se necessário, portanto, investigar todos os óbitos de
mulheres em idade fértil, utilizando mais de uma fonte de informação.
O presente estudo analisou uma das fontes utilizadas na investigação de mortes
maternas, a Declaração de Óbito. A qualidade e a confiabilidade das Declarações
de Óbito, especialmente das causas relacionadas à gravidez, parto e pós-parto é
questionada(10) e estudos apontam fragilidades no preenchimento(5). Um estudo
em 15 municípios brasileiros identificou subregistro de 8,7% e subinformação de
130%(11), obtendo-se um fator de ajuste da razão da mortalidade materna de 2,3.
Outro estudo, sobre o preenchimento dos campos 43 e 44 da Declaração de Óbito,
apontou informação ignorada superior a 87% para estas variáveis(12). Pesquisa
realizada para identificar o preenchimento dos campos 43 e 44, constatou que
quase 90% das Declarações de Óbito estavam com o campo 43 preenchido como
ignorado e mais de 90%(13). No entanto, o Ministério da Saúde declara que o
Brasil, de uma maneira geral, conta com uma cobertura adequada do Sistema de
Informações sobre Mortalidade e que a subenumeração de óbitos não exceda a 20%
(14).
Outro aspecto que merece discussão é que o item da Declaração de Óbito
referente ao intervalo de tempo entre o parto e a morte, geralmente não é
preenchido, apesar de haver normas e espaços na Declaração de Óbito tais
informações(15). Como consequência, os técnicos da vigilância epidemiológica
não podem classificar os óbitos adequadamente, pois casos declarados como
mortes maternas se confundem com aqueles ocorridos após um ano do parto(16).
Embora tenhamos chegado ao número de seis óbitos maternos, em decorrência do
preenchimento correto dos campos 43, 44 e da causa básica da morte, gostaríamos
de enfatizar o que pesquisadores renomados já divulgaram sobre o preenchimento
destes campos(17). O preenchimento dos campos 43 e 44, sem que haja menção a
uma causa básica materna nas partes I e/ou II da Declaração de Óbito, não
significa óbito materno. O correto preenchimento é fundamental e apresenta
fortes indícios de morte materna(5).
Quanto aos óbitos declarados como maternos, estudo realizado no Nordeste do
país mostra que 50% das mortes maternas foram diretas. As principais causas
foram os transtornos hipertensivos, infecção puerperal e complicações
puerperais(18). No mundo todo, as principais causas de mortes maternas incluem
hemorragia, eclampsia, sepse, obstrução no trabalho de parto e complicações
secundárias a abortos. Estudo realizado em Mali mostra que as principais causas
de mortes maternas são as obstétricas diretas, como rotura uterina (25.7%),
hemorragia no pós-parto (21.0%) e infecção pós-parto (19.8%)(19).
Quanto à natureza dos demais óbitos, aqueles classificados como inconclusivos
foram analisados, sendo identifica-das treze mortes presumíveis. Entre as
causas, encontramos pneumonia, hipertensão intracraniana, choque séptico,
epilepsia, tromboembolismo pulmonar e acidente vascular cerebral. Estudo
realizado com dados do Sistema de Internação Hospitalar do SUS encontrou,
dentre as mortes maternas presumíveis de cinco estados do Brasil, um predomínio
de doenças cardiovasculares, seguida por complicação pulmonar, doenças
cerebrovasculares, hemorragia, edema pulmonar, septicemia e choque hipovolêmico
(20). Estudo desenvolvido no Paraná encontrou, entre as causas básicas dos
óbitos maternos não declarados, aquelas do grupo de doenças do aparelho
circulatório e do aparelho respiratório que no conjunto ocultavam 40% das
mortes maternas.
A Organização Mundial da Saúde declara que, no Brasil, há uma deficiência de
registro completo e adequado, mas com outros tipos de dados disponíveis, ou
seja, uma posição intermediária em termos de qualidade dos dados(12).
Especialistas mostram que medidas foram tomadas para que as Declarações de
Óbito sejam mais bem utilizadas. Como exemplo, há o estímulo e o aprimoramento
do preenchimento da Declaração de Óbito, com ênfase no preenchimento da
declaração da causa da morte, a gratuidade dos registros civis, a introdução de
mais uma via na Declaração de Óbito(17). Vários municípios tem conseguido
corrigir os dados de mortes maternas e divulgá-los por meio do Sistema de
Informação de Mortalidade(16).
CONCLUSÕES
Esta investigação nos mostrou que o preenchimento de Declarações de Óbito de
mulheres em idade fértil, na instituição do estudo, necessita de ajustes para
que um diagnóstico mais fidedigno da mortalidade materna seja estabelecido. O
subregistro limita o conhecimento da magnitude da ocorrência de mortes
maternas, comprometendo o desenvolvimento, implementação e avaliação de ações
para reduzir a ocorrência das mortes.
Não podemos nos furtar de reiterar a importância do médico neste cenário, uma
vez que é o responsável legal pelo preenchimento da Declaração de Óbito. Os
órgãos formadores e associações de classe podem contribuir na capacitação do
médico para o preenchimento adequado e completo da Declaração de Óbito. O
preenchimento dos campos 43 e 44 da Declaração de Óbito e a confirmação do
óbito como materno é de fundamental importância para as estatísticas vitais,
para os Sistemas de Informação em Saúde e no final desta cadeia de eventos,
para a comunidade.