Integralidade do cuidado na testagem anti-HIV: o olhar das mulheres
INTRODUÇÃO
Os testes rápidos anti-HIV são testes de execução rápida para detecção de
anticorpos anti-HIV que fornecem o resultado em até 30 minutos(1). Embora
possam ser utilizados com objetivo de diagnóstico em situações especiais(2),
vêm sendo utilizados em maternidades como testes de triagem, possibilitando a
implementação rápida de medidas que impeçam a transmissão do vírus da mãe para
o(a) filho(a), mesmo durante o trabalho de parto. Esse exame representa
importante recurso disponível para essa finalidade, já que existem indicadores
da sua alta confiabilidade. Alguns autores(3) encontraram para o teste
sensibilidade de 100%, especificidade de 98%, valor preditivo positivo de 75% e
valor preditivo negativo de 100%. Outro estudo(4) encontrou sensibilidade de
100%, especificidade de 99,5%, valor preditivo positivo de 87,5% e valor
preditivo negativo de 100%.
Visando à prevenção da transmissão vertical do HIV, foi criado em 2002, por
meio da Portaria nº 2104/GM de 2002, o Projeto Nascer, que deveria ser
implantado em todas as maternidades do país. Através dele, ficou estabelecido
que o teste rápido anti-HIV deveria ser oferecido a todas as mulheres
internadas em trabalho de parto que não tivesse realizado testagem para HIV
durante o pré-natal(1).
O Ministério da Saúde reconhece que o trabalho de parto não é o momento ideal
para a realização do teste anti-HIV. Entretanto, considera que, com a
disponibilidade do exame e do tratamento quimioprofilático para a mãe e recém-
nascido(a), pode-se reduzir significativamente a chance de infecção da criança.
Portanto, negar à mulher e filho(a) essa oportunidade seria muito mais danoso à
vida de ambos(1).
Como exame de triagem, o teste rápido necessita ser confirmado posteriormente e
deve ser feito com aconselhamento pré e pós-teste, possibilitando, em caso de
positividade, instituir, ainda durante o trabalho de parto, a quimioprofilaxia
da mãe e do bebê com a zidovudina (AZT)(1).
Na perspectiva da integralidade do cuidado, para prestar um atendimento que
atenda às necessidades das mulheres, é preciso estar disponível para a escuta,
o diálogo e a compreensão do contexto social e emocional em que cada uma está
inserida. Isso será fator determinante na construção de mecanismos que
fortaleçam a mulher para lidar com a experiência da positividade para o HIV.
Porém, observações empíricas mostram que, na prática, as ações profissionais
têm sido dirigidas fundamentalmente ao cumprimento dos protocolos que
determinam a realização do teste rápido a todas as parturientes que não
apresentem sorologia prévia para o HIV. Em muitos casos, a mulher sequer é
consultada sobre seu desejo de realizar o teste, ou até o faz sem ser
comunicada, pois o sangue para o teste rápido é colhido junto com outros exames
de rotina. Ocorre também, em caso de negatividade do exame, que a mulher não é
informada sobre seu resultado, prevalecendo a tranquilidade da equipe em saber
que estará assistindo uma mulher com sorologia negativa.
Considerando que o cuidado a mulheres com teste rápido positivo para HIV deve
se concretizar a partir de necessidades que emergem ao tomar conhecimento do
resultado, valorizando-se a multiplicidade de sentimentos presentes e a
labilidade emocional que acompanha o processo de enfrentamento do problema, foi
realizada uma investigação científica com o objetivo de analisar o cuidado
profissional a mulheres com teste rápido positivo para HIV a partir do olhar de
mulheres que tomaram conhecimento da positividade durante o trabalho de parto
ou puerpério.
METODOLOGIA
Caracterização do estudo e enfoque teórico
O estudo é do tipo exploratório com abordagem qualitativa, sendo utilizado como
referencial teórico a integralidade do cuidado. O cuidado na perspectiva da
integralidade busca o atendimento ampliado das necessidades de saúde dos
sujeitos da atenção, no sentido de superar o modelo hegemônico, centrado nas
queixas e nos aspectos biológicos do processo saúde-doença(5).
A integralidade remete à qualificação do cuidado, ou seja, como atributo
necessário para lhe conferir excelência, no sentido de representar a
perspectiva que melhor possibilita aproximar as práticas profissionais das
soluções que as pessoas esperam encontrar para seus problemas de saúde. O
cuidado também pode ser utilizado como categoria analítica para se avaliar o
modo como são organizadas as ações de saúde(6). Da mesma maneira, a
integralidade pode ser utilizada para a avaliação dos serviços e sistemas de
saúde(7).
No âmbito da saúde da mulher, a integralidade é considerada(8) como:
A concretização de práticas de atenção que garantam o acesso das
mulheres a ações resolutivas, construídas segundo as especificidades
do ciclo vital feminino e do contexto em que as necessidades são
geradas. Nesse sentido, o cuidado deve ser permeado pelo acolhimento
e escuta sensível de suas demandas, valorizando-se a influência das
relações de gênero, raça/cor, classe e geração no processo de saúde e
de adoecimento das mulheres.
Assim, a integralidade, no âmbito da saúde da mulher, diz respeito à
necessidade de considerá-la não apenas como objeto das práticas de saúde, mas
como mulher e sujeito que apresenta demandas específicas e diversificadas que
necessitam ser atendidas da forma mais ampla possível.
O Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), criado em 1984 como
resposta a reivindicações do movimento feminista, é apontado por diversos
autores(9-10) como o primeiro programa público a mencionar a questão da
integralidade. No entanto, muitas foram as dificuldades para implementação do
PAISM. Dentre elas, a forma de organização dos serviços de saúde, a dificuldade
de concretização dos princípios do SUS e o despreparo do(a)s profissionais para
atender à mulher na perspectiva da integralidade(11).
A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, de 2004, amplia a
perspectiva do PAISM, mantendo em seus fundamentos a defesa da reorientação das
práticas profissionais no sentido da atenção integral. Para isso, contempla
grupos específicos de mulheres invisibilizadas até então pelas políticas
oficiais de saúde, como: negras, lésbicas, indígenas, trabalhadoras rurais,
mulheres em situações de prisão, adolescentes, além de destaque para saúde
mental, violência doméstica e sexual, doenças crônico-degenerativas e câncer
ginecológico, climatério e menopausa, DST e HIV/AIDS(11).
Essa política considera a integralidade como um dos princípios norteadores e
inclui questões relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos, melhoria da
atenção obstétrica, do planejamento reprodutivo, atenção ao abortamento
inseguro e combate à violência doméstica e sexual. Ao contemplar a saúde como
direito de cidadania, abre espaço para práticas mais justas e democráticas para
as mulheres.
No que diz respeito à AIDS, uma doença sem cura e que envolve muitos estigmas e
preconceitos, para que o cuidado seja orientado pela integralidade, é
necessário desenvolver ações que contemplem, além da dimensão biológica, as
dimensões social, psicológica, cultural e sexual, na tentativa de atender de
maneira eficaz às necessidades das mulheres portadoras ou expostas ao HIV/AIDS,
que são complexas. Torna-se, assim, necessária a interação de diferentes
saberes profissionais, bem como a articulação entre os vários níveis de
assistência, na tentativa de se promover uma atenção eficaz e integral. Todo o
cuidado a ser oferecido às mulheres deve ser norteado pelo diálogo e escuta
ativa de necessidades com valorização de singularidades. No que se refere à
parturiente, diante da necessidade da realização do teste rápido, é preciso uma
atitude ética e de respeito que leve em consideração as dificuldades das
mulheres em se relacionar com a possibilidade de uma doença temida por toda a
sociedade.
Trajetória metodológica
Constituíram sujeitos do estudo mulheres que haviam realizado teste rápido para
HIV durante o trabalho de parto e obtiveram resultado positivo. Foram
identificadas no Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA), serviço de
referência estadual em prevenção para HIV e outras IST, para onde as puérperas
são encaminhadas, preferencialmente, após a alta da maternidade, para a
conclusão do diagnóstico.
As doze mulheres concordaram em participar da pesquisa e assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido, elaborado segundo a Resolução nº 196/96 do
Conselho Nacional de Saúde(12), que trata de pesquisas envolvendo seres
humanos. O projeto de pesquisa foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa
segundo o Parecer CEP/MCO/UFBA nº. 97/2006.
Os dados foram coletados no período de julho a setembro de 2006. O material
empírico foi produzido por meio da técnica de entrevista semiestruturada. Foi
escolhido o puerpério como período para entrevista por considerarmos que no
período de internação, as mulheres ainda estão vivendo o impacto do resultado
positivo e fragilizadas emocionalmente, contra indicando a realização das
entrevistas. Passado algum tempo do período do parto, apresentam melhores
condições de avaliar a qualidade do cuidado que lhes foi prestado.
As mulheres foram entrevistadas em período anterior ao da conclusão do
diagnóstico, antes do aconselhamento pré-teste inicial. Esse critério foi
adotado tendo em vista que, até concluírem todo o fluxograma estabelecido para
o diagnóstico definitivo, as usuárias passam por diversas etapas de
aconselhamento individual pré e pós-teste, além de um aconselhamento coletivo.
Isso faz com que, ao final desse processo, obtenham maior esclarecimento em
relação ao HIV/AIDS. Como o cuidado investigado referia-se àquele que foi
prestado na maternidade, ao entrevistarmos mulheres que tiveram seguimento
posterior, suas respostas poderiam não retratar exatamente o cuidado que
receberam na maternidade.
As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra, com exceção de duas que
não autorizaram o uso do gravador, sendo as respostas registradas manualmente.
As entrevistas foram realizadas em consultório, garantindo-se privacidade e
sendo utilizados nomes fictícios escolhidos pelas próprias participantes para a
sua identificação na pesquisa.
O material empírico foi analisado pela técnica da análise de discurso. O
discurso(13) se constitui numa posição social cujas construções ideológicas são
materializadas na linguagem, sendo revelada pela análise a visão de mundo dos
sujeitos enunciadores. Para operacionalização dessa técnica, foram seguidas as
etapas propostas pelo autor: leitura de todo o texto para localizar os
elementos concretos e abstratos que conduzem a um mesmo plano de significados;
agrupamento dos temas parciais de acordo com os elementos significativos que se
somam ou se confirmam formando subcategorias empíricas; formulação de
categorias empíricas centrais. Uma delas é apresentada e analisada neste artigo
em articulação com a literatura pertinente.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Modelo técnico de atenção como eixo do cuidado a mulheres com teste rápido
positivo para HIV
A ausência de integralidade no cuidado a mulheres com teste rápido positivo
para HIV constituiu o tema de maior abstração extraído do material empírico
relativo à pesquisa em foco. No entanto, ao perguntarmos sobre como se sentiram
cuidadas pelos(as) profissionais da maternidade, as mulheres apresentaram
respostas objetivas que denotam aparente satisfação com os cuidados que
receberam:
Me trataram bem, deram o xarope, leite, tudo na hora certa (Cláudia).
Não me senti só. Os medicamentos na hora certa, se eu sentisse alguma
dor chamava... (Belinha).
Nos depoimentos, as mulheres expressam satisfação com a presença física
constante dos(as) profissionais ou com os cuidados relacionados ao cumprimento
de rotinas e procedimentos técnicos pré-estabelecidos. O cuidado para elas está
relacionado às experiências do parto e da maternidade, havendo a sobreposição
dessas com relação ao risco de uma possível infecção pelo HIV.
Na perspectiva da integralidade, o cuidado não deve se resumir à dimensão
técnica, mas envolve também dedicação e compromisso de um ser para com o outro,
no sentido de potencializar subjetividades. Desse modo, "estar presente requer
a condição de estar por inteiro no processo. Estar por inteiro implica mais do
que estar fisicamente presente. Implica estar com o outro"(14). Assim, torna-se
necessária a ausculta das necessidades de cada usuário(a), valorizando sua
singularidade.
Na maior parte dos casos, a mulher recebe o resultado do exame em momento de
fragilidade emocional, em que está sozinha frente às demandas do trabalho de
parto e puerpério, fragilidade potencializada pelas demandas que se somam por
ocasião da notícia de positividade para o HIV e pela impossibilidade de
compartilhar isso com alguém da sua confiança.
Me botaram numa sala sozinha, lá no canto mesmo da, da... da sala, aí
eu tava muito sozinha. Elas não deixavam as pessoas ir conversar
comigo... as outras pacientes. É... teve uma menina mesmo que foi
conversar comigo, aí eu expliquei pra ela do meu resultado, ela
nem... continuou conversando comigo. Aí ela pegou me chamou pra ir no
quarto dela ver o filho dela. Aí a enfermeira: Epa, epa, você tá
fazendo o que aí? Todo mundo pro seu quarto! Todo mundo pro seu
quarto! Assim mesmo. Aí eu peguei e saí do quarto já sabendo porque
ela tava falando. Aí eu peguei e saí. Eu ficava muito sozinha
(Michele).
O discurso de Michele evidencia que ainda permanece uma visão preconceituosa da
doença, inclusive entre os(as) profissionais, levando ao isolamento físico da
mulher, à privação do contato com outras pessoas e à conseqüente solidão, o que
intensifica o seu sofrimento. Isso revela a representação do(a) portador(a) do
HIV como pessoa contaminante e da doença como contagiosa por qualquer contato,
utilizando-se de tal representação para justificar a exclusão do convívio
social, o que ocorre não somente dentro da maternidade. Além de explicitarem
preconceito mantendo a mulher isolada do contato com as demais, os(as)
profissionais permitem a incorporação desses significados por parte de outras
mulheres porque reproduzem o poder e a voz institucionais, facilmente
internalizados como verdade.
Por ser uma doença de transmissão sexual, a AIDS é utilizada para identificar
populações transgressoras ou viciosas, o que levou à criação no imaginário
social de falsas idéias relacionadas à doença, ao que se pode chamar de
metáforas(15). Ainda que se saiba, por exemplo, que a AIDS não é uma doença
contagiosa, as pessoas portadoras do vírus são consideradas sujas, poluídas e
seu corpo é visto como algo repulsivo. Ainda para essa autora: "as doenças
infecciosas associadas à culpa sexual sempre dão origem ao medo do contágio
fácil e a fantasias absurdas sobre a transmissão por meios não venéreos em
lugares públicos"(15).
Frente à mulher com resultado positivo para HIV, contraditoriamente, apesar do
conhecimento científico do qual dispõem, alguns profissionais reproduzem os
estigmas criados em relação à doença, levando à culpabilização das pessoas,
como aconteceu com Josefa:
Depois que a moça veio e colheu ela foi buscar o resultado, a mesma
que me atendeu. Ela perguntou: - Você não tem nada pra me dizer não?
Eu disse: - Não, se eu não sabia de nada... Eu disse: - Não. Ela
disse: - Tem certeza? Eu disse: - Tenho. Ela falou assim: - Seu teste
deu positivo. Aí ela disse: - Você não tem nada mesmo pra me dizer?
Eu disse: - Não. Se eu não sabia o que era que ela tava me
perguntando... Aí ela falou: - Seu teste deu positivo. Eu disse: - Tá
bom. Não posso fazer nada (Josefa).
Esse discurso revela o despreparo profissional para comunicar à mulher o
resultado do teste rápido. A profissional parte do princípio de que a mulher já
era soropositiva antes do parto, de que já conhecia a sua condição sorológica e
de que não queria admitir isso. Ocorre, então, uma transferência de
responsabilidade, como se coubesse à mulher comunicar um diagnóstico que ela
provavelmente não conhecia. Essa postura constrange a mulher e não considera o
seu direito a um adequado aconselhamento pós-teste. Para alguns autores(16), a
ideia de responsabilidade, em termos gerais, envolve primordialmente a noção de
'dever' ou 'obrigação' de indivíduos/instituições prestarem contas a instâncias
de regulação - concretas ou simbólicas - por determinadas ações. Assim, os(as)
profissionais de saúde, frequentemente, se sentem no direito de regular a vida
das pessoas de quem cuidam, assumindo atitudes normativas e paternalistas.
O Ministério da Saúde(17) recomenda que, para a mulher que desconhecia ser
portadora de HIV e teve seu diagnóstico realizado através de testagem rápida
durante o trabalho de parto, deve haver um aconselhamento pós-teste minucioso,
considerando-se a situação pouco favorável do oferecimento do teste durante o
trabalho de parto. Além disso, enfatiza a necessidade de se oferecer apoio
emocional, criar um ambiente favorável ao diálogo e garantir à mulher o tempo
necessário para a assimilação do diagnóstico. Porém, percebemos, através do
discurso acima, que essas medidas não fizeram parte da conduta profissional
adotada para comunicar o resultado do exame a essa mulher.
Estudo sobre os dilemas morais envolvidos na oferta do teste rápido a gestantes
em trabalho de parto verificou(18) que os(as) profissionais revelaram se sentir
despreparados(as) para comunicar um resultado positivo, pois o seu discurso não
convencia nem a eles(as) próprios(as). Os(as) profissionais vivenciam
sentimentos de tensão e ansiedade, pois não sabem exatamente como agir nesse
momento. A autora considera também a necessidade de capacitação e apoio
psicológico para os(as) profissionais(as), bem como a atenção
multiprofissional, na tentativa de facilitar a comunicação do diagnóstico, por
exemplo(18).
O despreparo profissional para lidar com o problema é também constatado a
seguir:
Os cuidados eles deram. Eu só não gostei de ter dado [o resultado]...
Quando eu tava na maternidade, tinha umas pessoas. A menina tava
deitada e a outra e a outra do lado e eu. Aí de repente, a moça
perguntou se eu sabia do resultado, que eu tava contaminada pelo HIV,
há quanto tempo. Aí eu fiquei assim, abalada, porque eu não sabia de
nada disso. Primeiro me falou isso na presença da menina que tava lá
e eu fiquei abalada... Porque se ela chegasse assim, pra mim, né? E
me explicasse o resultado na hora que eu perguntei do exame... Mas
não. Ela chegou assim, ali na sala mesmo e disse isso. Que eu tava
contaminada e se eu sabia há quanto tempo. Assim mesmo (Nega).
A dificuldade de abordar o problema e estabelecer uma relação de diálogo leva a
uma atitude antiética e preconceituosa por parte da profissional, tornando a
situação ainda mais delicada e de difícil enfrentamento pela mulher, o que se
acentua pela falta de aconselhamento anterior, uma vez que pode ser um
facilitador de manejo do problema. Esses discursos evidenciam também o
descumprimento do princípio da ética profissional.
Alguns autores destacam a dificuldade dos(as) profissionais de atuar nos
espaços de cuidado sob a ótica da integralidade, o que decorre do reducionismo
que operam sobre os sujeitos e da falta de interpretação de quais são suas
necessidades de saúde e de como apoiá-las(19), bem como da dificuldade de
mudança das posturas profissionais no sentido de traduzirem o conceito de
integralidade em novas práticas(20).
Uma das mulheres entrevistadas evidenciou em seu discurso que alguns
profissionais comunicam o resultado adotando critérios que atendem à ética do
cuidado, como se vê na seguinte fala:
Ela primeiro perguntou se eu tinha feito o pré-natal e se tinha feito
os exames. Eu falei que tinha dado todos negativos. Ela me perguntou
se eu tinha feito o de HIV, eu disse que tinha. Ela perguntou aonde,
eu falei. Aí ela pediu pra pegar o exame com minha mãe que tava em
casa. Aí ela viu e confirmou que tinha dado negativo. Aí ela falou do
resultado do HIV. Na hora eu fiquei parada, assim (Michele).
Essa profissional estabelece uma relação que valoriza não somente a
possibilidade da transmissão vertical, mas o impacto emocional que a notícia
pode trazer para a mulher e seus desdobramentos. Ao contrário das mulheres que
trazem o saber do senso comum, os(as) profissionais têm as informações técnicas
sobre a infecção, o que lhes dá responsabilidades frente às as repercussões que
esse agravo tem na vida das pessoas.
O trabalho de parto é visto tanto pelas mulheres quanto pelos profissionais
como um momento de dor e de fragilidade emocional, não sendo propício para se
abordar assuntos como vulnerabilidade ao HIV/AIDS, pois nem sempre a mulher
consegue absorver essas informações. Os obstáculos à abordagem profissional
sobre a positividade para HIV, no momento do trabalho de parto, ficam expressos
no depoimento:
Aí depois que eu tive nenê ele veio e disse que tinha feito um exame
lá e que tinha dado HIV, mas que não tinha certeza. Ele tirou o
sangue e não explicou, porque na hora eu fiquei muito fraca. Aí
depois é que me explicaram. Eu acho que eu não ia entender, porque eu
tava muito nervosa, tava com muita dor (Jucilene).
Vê-se nesse depoimento que o trabalho de parto pode criar dificuldades para se
estabelecer um diálogo ou para dar informações que possam ser compreendidas
pelas mulheres, tendo em vista a possibilidade de desencadear demandas de ordem
biológica e emocional. Além disso, a depender do período do trabalho de parto
em que a mulher chegue à maternidade, os(as) profissionais precisam definir
prioridades na atenção. Fica claro nos discursos dessas mulheres que a
experiência do trabalho de parto se sobrepõe a qualquer outro evento que cause
impacto sobre a sua saúde. Isso faz com que seja necessário, por parte dos
profissionais, permitir um espaço de tempo maior para processar a informação e
apreender o significado do exame, como recomendado pelo Ministério da Saúde
(17).
A evidente condição de vulnerabilidade das mulheres durante o trabalho de parto
reduz a possibilidade de exercerem sua autonomia, já que os(as) profissionais
utilizam como justificativa para o não aconselhamento a fragilidade emocional
das mulheres nesse momento(18).
Uma vez que têm necessidade de serem atendidas e por não terem a noção da saúde
como direito, as mulheres se submetem, sem questionamentos, a qualquer tipo de
assistência, inclusive a relações autoritárias(20). Esse tipo de relação gera
formas de violência moral ou psicológica, baseadas em mecanismos de dominação,
que reproduzem as diferenças de gênero e classe presentes em outras relações
sociais, o que deixa as mulheres ainda mais distantes de construir
empoderamento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O cuidado às mulheres com teste rápido positivo para o HIV vem se distanciando
da integralidade, sustentando-se em um modelo que fragmenta e coisifica pessoas
em circunstâncias de vida cujas possibilidades de enfrentamento pelos poderes
instituídos encontram-se comprometidas por questões de classe, de gênero e
pelas especificidades biopsicossociais do puerpério. O estudo mostra que um
teste rápido positivo para HIV tem repercussões profundas na vida das mulheres,
fragilizando-as e produzindo demandas específicas de atenção. No entanto, as
mulheres são negadas em sua singularidade e o cuidado se descaracteriza como
potencializador de subjetividades.
As relações de cuidado mantêm-se distantes e superficiais, sendo norteadas pelo
modelo biomédico, que é reducionista, tecnicista e fragmentário, e em que
predominam mecanismos de dominação estruturados pelo saber/poder científico. A
mecanização dos profissionais, acentuada pela incorporação crescente de
tecnologia e de rotinas institucionais rígidas dificulta a reflexão sobre suas
próprias práticas, na construção de um cuidado integral.
A incorporação da perspectiva da integralidade nas ações de saúde exige uma
reflexão que deve começar pelos próprios profissionais, que estão na ponta da
assistência, a fim de se promover uma apreensão ampliada das necessidades das
usuárias dos serviços, como cidadãs que têm direito a uma assistência digna e
eficaz.
Cabe também aos órgãos de gestão e coordenação das políticas públicas promover
a capacitação dos(as) profissionais para lidarem com a temática da sexualidade
e vulnerabilidade ao HIV/AIDS. Particularmente na enfermagem, em que o cuidado
se concretiza como objeto de trabalho, este deve ser ressiginificado de modo a
construir possibilidades de abordagem profissional que valorizem as mulheres na
sua multidimensionalidade.