O clássico e o emergente: desafios da produção, da divulgação e da utilização
do conhecimento da Enfermagem
EXPLICAÇÕES PRELIMINARES SOBRE AS APROXIMAÇÕES AO TEMA
Este texto reúne conteúdos oriundos da experiência de alguns anos dedicados ao
trabalho de ensinar-cuidar-pesquisar na enfermagem, tríade evocada pela ilustre
professora Vilma de Carvalho, Professora Emérita da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, em artigo de sua autoria no qual afirma que "o quanto mais e melhor
aprende-se a cuidar é cuidando (...). Como professora, só entendo o processo de
ensinar no plano pedagógico do engajamento com as situações da prática
assistencial"(1). Dissertando sobre a Enfermagem e seu projeto pedagógico-
epistemológico, prossegue em defesa de que "os problemas mais condizentes com
as pesquisas na enfermagem são os mesmos que interferem na esfera do cuidado
aos clientes", enfatizando que "tais problemas precisam ultrapassar os
interesses individuais dos pesquisadores, para compreender o mundo real das
pessoas e de suas famílias"(1).
Estes trechos servem-nos de inspiração e alinham-se sobremaneira ao temário
sobre o qual nos deteremos a tratar, uma vez que a finalidade que guiou a
construção deste texto é a de refletir acerca da produção de conhecimento sobre
o cuidado às pessoas e sua saúde, a divulgação e utilização desta produção,
tendo em vista que esta tríade só faz sentido se for a favor da prática e da
formação da enfermeira. Neste intento, pesquisar para melhor compreender "o
mundo real das pessoas e de suas famílias"(1) com o objetivo de cuidar já é, em
si, um grande desafio.
As palavras-chaves dos trechos destacados agrupam-se em dois conjuntos, a
saber, a) Enfermagem, prática, ensinar-cuidando; e b) problemas de pesquisa,
cuidar-cuidado, mundo real das pessoas. Vamos nos deter nelas para dialogar
sobre o clássico e o emergente na ciência, e o que estes paradigmas nos trazem
como grade de leitura para elucidar as muitas questões que envolvem a produção,
a difusão e aplicação do conhecimento sobre o cuidado, objeto de conhecimento e
prática da enfermagem.
A produção deste texto também está situada no lugar que ora ocupo no plano do
ensino-pesquisa e formação de enfermeiras: que é o da Enfermagem e seus
fundamentos. Portanto, as pesquisas que desenvolvo no âmbito do grupo de
pesquisa que lidero tratam, substancialmente, do estudo do cuidado e de uma
clínica que comporta tanto a dimensão material, objetivada em técnicas
procedimentais, quanto a singeleza expressiva do cuidado que dá o tom das
muitas maneiras/estilos de cuidar de enfermeiras, que transcendem os protocolos
de ações pré-concebidas, mas se faz/se (re)construindo nas representações e no
cotidiano de práticas de saúde.
Os desafios, que estão aqui priorizados neste texto tiveram a vista de um
ponto: o da Enfermagem na sua dimensão ciência e arte de cuidar de pessoas.
O QUE, POR QUE, PARA QUE, PARA QUEM PRODUZIR E COMO PESQUISAR?
Desafios situados no objeto e na finalidade do conhecimento
Em grande parte, os desafios que se colocam no campo da ciência, e da pesquisa
em Enfermagem, foco do momento, se situam nas questões que envolvem os modelos
de abordagem do objeto, a justificativa e a finalidade da investigação, as
aplicações do conhecimento que se produziu. No esforço tentativo de respondê-
las, há que se pensar que a pesquisa em Enfermagem, situada na
contemporaneidade, nos conduz a refletir sobre sua trajetória neste campo, no
curso dos acontecimentos que a conduziu ao lugar que ora ocupa no
desenvolvimento da ciência, seu status no campo científico, como a enfermagem
está se organizando na produção científica, o que está sendo feito com os
produtos de suas pesquisas, os resultados de suas aplicações, que impactos
sociais está causando, enfim, nos remete a refletir sobre os muitos desafios
enfrentados ao longo destes 150 anos, desde a fundação da enfermagem moderna,
por Florence Nigthingale.
A pesquisa do cuidado de enfermagem
A palavra ciência vem do latim e significa conhecimento, mas, apesar deste ser
tomado como sinônimo de ciência, nem todo conhecimento é ciência. O
conhecimento científico é um entre outros possíveis(2).
Ciência se define por um sistema de aquisição de conhecimento, sistemático e
metódico, corpo de conhecimentos organizados, fruto da aplicação de método
científico - através da pesquisa. Pesquisa científica é, portanto, um processo
sistemático de construção do conhecimento, cuja finalidade é: gerar novos
conhecimentos, reafirmar ou refutar os já existentes. A opção por aludir à
reconstrução do conhecimento e não a sua construção é em defesa de que se
parte, sempre, de algo que já se sabe sobre o objeto investigado(2).
(Re)construir conhecimento é, portanto, pesquisar e elaborar algo em torno de
um objeto/fenômeno de modo que se tenha outras visões sobre "o mesmo" e se
abram outros e mais canais de exploração, e se apontem outros e mais caminhos a
seguir na trajetória desta (re)construção.
A pesquisa é, por conseguinte, parte importante deste processo sistemático que
se traduz no método científico, o qual define o conjunto de regras básicas que
serão aplicadas na condução da (re)construção do conhecimento. Ora, se ciência
se faz com teoria e método, não há possibilidade de fazê-la sem articulá-los.
Este diálogo será sempre necessário.
Neste intento, a Enfermagem vem investindo na descoberta da essência dos
fenômenos de seu interesse, transpassando as aparências para entender seu
objeto e suas práticas. Tem nos metaparadigmas um caminho para o delineamento
de um conhecimento específico que assegure à Enfermagem seu lugar no campo da
ciência: A natureza da Enfermagem (a ciência e a arte da disciplina); a Pessoa
(indivíduo, família, comunidade, humanidade); a Sociedade e o Meio Ambiente (os
arredores imediatos, a comunidade ou o universo); a Saúde (estado de bem estar
decidido entre a enfermeira e o usuário)(3-4).
Produzir conhecimento na Enfermagem requer esforço de articulação e diálogo
entre os metaparadigmas que nos dão identidade e os paradigmas da ciência que
coexistem na contemporaneidade. O clássico e o emergente que, em separado ou em
comunhão, permitem dar as explicações necessárias à ultrapassagem da aparência
dos fenômenos.
O clássico conduz a produção de conhecimento sobre o objeto com foco nas
características objetivas observáveis, e o emergente o faz objetivando e
valorizando as subjetividades, pelo processo da observação e da conversação.
Ambos os modelos são aplicáveis e necessários no fazer científico da sociedade
contemporânea, para atender às múltiplas faces de problemas que se colocam,
advindos do mundo real das pessoas, mormente no campo da saúde e da enfermagem.
Se tomarmos o conhecimento como resultante de uma dialética entre o sujeito
epistêmico e o fenômeno sob estudo, veremos que os modelos de abordagem não se
opõem, mas se complementam, debate este já posto no campo das metodologias(5).
O desafio, portanto, é estreitar o diálogo entre os paradigmas, estabelecer a
dialogicidade necessária ao bem comum de ambas, fazer os caminhos se cruzarem.
Quem faz os caminhos são as pessoas, pois trilhas são traçadas pelas pegadas e
ações do ser humano quando se sabe aonde se quer chegar. Se na esfera da
prática da enfermagem o ponto de chegada é o bem-estar humano, pensemos nos
elementos centrais que o sustentam, nas melhores trilhas e abordagens para nele
chegar.
O clássico na ciência contribuiu para definir os limites das disciplinas, mas
tais "limites do conhecimento disciplinar se fazem sentir especialmente quando
os problemas a resolver envolvem objetos complexos", tais como a saúde e o
cuidado, "e quando a redução da complexidade impede o desvelamento e a solução
do problema"(6).
O cuidado é um fazer humano (em ato) e um sentir humano (sentir-se cuidado).
Portanto, para investigá-lo, não basta acessar as realidades externas, é
preciso compreendê-lo, investigar os múltiplos sentidos que a ele se atribui,
na diversidade social das famílias, dos grupos, das culturas, das sociedades:
no mundo real das pessoas. Gerar conhecimento prudente para uma vida decente,
como defende Santos(7).
Retomar este debate entre os paradigmas é oportuno para mostrar a estreita
relação entre teoria, método e técnicas. O método integra-se à teoria e dá
razão às técnicas, apontando suas possibilidades e limites na abordagem do
objeto(6).
Abordar a saúde das pessoas em vista de seu bem-estar requer aplicação de
referenciais que se amparem em um paradigma de cuidado, pois este clama pela
sua promoção. O paradigma da doença, sustentando pelo modelo biomédico e
explicado pelo paradigma clássico da ciência, clama pela restauração,
recuperação, reabilitação da ordem orgânica-funcional do corpo, sendo demasiado
estreito para se trabalhar com a proposta de estilo de vida e sociedades
saudáveis.
Pensar no cuidado e no quanto este importa para o bem-estar e dignidade humana
requer o entendimento de que este não é sempre à priori, mas sob demanda e,
para isso, há que se colocar o outro no centro do processo e trabalhar com o
que dele emana: falar-lhe e ouvi-lo. A tríade ensinar-cuidar-pesquisar exige
abordagem sutil - planejada, sistematizada - mas em muitas das vezes não
estruturada, pois os caminhos da investigação do humano se constroem no fazer
do encontro - em muitos dos casos, de modo artesanal. As subjetividades
implicadas neste processo de construção são materiais objetivos que se
apresentam como uma rica matéria viva nos atos de pesquisar e de cuidar, de
pesquisar-cuidando, de cuidar-pesquisando que somente são capturadas quando os
humanos estão em interação. Disto se depreende que o dado não esteja lá, mas
pode vir a ser e estar, na dependência do encontro entre sujeito epistêmico e
fenômeno/sujeito estudado.
O cuidado, tomado como objeto de conhecimento e prática da enfermagem, se
configura como atos/operações que se realizam no campo de ação da disciplina
pelas enfermeiras, com fins terapêuticos, de promoção/manutenção da ordem
orgânica funcional do corpo, do ambiente, do conforto e bem-estar. Mas no campo
da interação entre humanos (encontro da enfermeira com o usuário), os atos não
são em si cuidado, mas podem estar em potência, vir-a-ser na dependência do
sentir de quem o recebe/dele participa. No ato do encontro, o cuidado ganha uma
conotação que se reveste de uma noção mais aproximada da noção de "atitude"
(conduta), envolve afeição(8). Ora é objetivo, ora é subjetivo e esta dança de
nuances se faz no ato vivo de cuidar e requer múltiplas abordagens e múltiplos
métodos, não havendo condições de possibilidades de identidade única a um ou
outro paradigma. Neste entendimento, o cuidado se faz e se (re)constrói no seu
próprio processo, sendo co-emergente às relações que se estabelecem entre os
sujeitos no ato(9).
Esta instabilidade que a noção de estado dá ao cuidado, no ato vivo do
encontro, e esta (in)certeza de que ele esteja em ato, só pode ser abordada na
emergência de sua via-de-se-fazer, mais aproximado dos fundamentos de um modelo
de ciência novo, emergente (quântico).
O clássico se aplica, na caracterização do que se faz objetivamente no campo do
cuidado, no estabelecimento de relações entre as causas, as intervenções e seus
efeitos observáveis; e o emergente se aplica, no empenho de trazer à tona
resultados traduzidos em respostas humanas às ações, em efeitos de sentidos e
explicações que só o ser humano consegue (re)produzir. O clássico e o
emergente, em ação e em diálogo, se interconectam em favor do cuidado e do bem-
estar humano.
Este é um desafio na produção e na (re)construção do conhecimento da enfermagem
porque o campo da saúde ainda vive o dilema dos paradigmas que o sustentam(10).
Se por um lado apregoa-se a promoção da saúde e do cuidado (de si e dos
outros), por outro ainda é forte a linha de adoção de estratégias de ação que
se amparam na prevenção de doenças e no modelo biomédico de abordagem do corpo
e de suas reações.
Os elementos que conformam tais paradigmas circulam nas conversações através de
todos os tipos de mídia, dos discursos profissionais, nas relações sociais.
Apesar de haver esta circulação de saberes, no campo da saúde pública ainda há
hegemonia do paradigma biomédico, centrado nos diagnósticos e nas medidas
curativas. A despeito disso, apesar de o modelo preventivo e o de promoção da
saúde enfatizarem o cuidado, há que se considerar que o paradigma que tem
grande potencial para conduzir o sujeito ao cuidado de si e as sociedades em
modos de ser saudáveis é o da promoção da saúde.
A promoção da saúde pode ser identificada como um conjunto de estratégias "que
envolve um campo de conhecimentos e práticas transversais a todas as ações e
níveis de atenção em saúde"(11). Não seria, portanto, um nível de atenção e nem
estaria situada em fase anterior ao da prevenção, mas umbilicalmente aproximada
da qualidade de vida e não do controle de enfermidades(11).
Disto decorre que, à luz deste paradigma, as pessoas precisam estar presentes
no processo de cuidado, participativas, criando e recriando modos de pensar e
agir em prol de sua saúde. Este modelo de abordagem exige participação social,
consciência cidadã, reflexão e ação. E é neste ínterim que a pesquisa do
cuidado se faz, ou deve se fazer: no ato de se estar cuidando-ensinando-
pesquisando. O emergente assim toma vulto de modo a se fazer fluir o
conhecimento a partir do "mundo real das pessoas e das famílias"(1), exigindo
uma filosofia e uma epistemologia que lhe seja apropriada.
Daí se deriva um desafio, que é o de se ter e sustentar uma identidade própria
nos modos de se fazer ciência, (re)criar métodos de pesquisa alinhados ao novo
paradigma, nos impondo no campo científico. As expressões-chave são: fazer com,
pesquisar com, ensinar com, cuidar com, pois se de acordo com o que estamos
aqui defendendo, o cuidado é sempre uma construção coletiva, a produção de
conhecimento sobre este objeto também o deve ser.
A Ciência da Enfermagem, em seu processo de construção, vem se deparando com
inúmeros desafios que se impõem ao conhecimento científico: assentar-se em
bases filosóficas claras e sólidas que fundamentem o conhecimento da área, para
dar sustentação às suas afirmações, deter-se no objeto de sua ciência, ter
claro o campo da disciplina e ver como este se relaciona com as ciências afins,
ou seja, estabelecer o diálogo interdisciplinar.
A descrição do saber da Enfermagem pautada na captação da natureza específica
do seu objeto e de sua finalidade contribui para delimitar seu campo
específico, estabelecendo as fronteiras de sua disciplina, colocando-a em
condições de debate frente às outras ciências. Marcar suas diferenças
distinguindo-a de outros campos do saber, na (re)construção de um conhecimento
específico que abarque a natureza dos fenômenos da enfermagem tem sido o
movimento intelectual da área e o grande desafio da enfermagem na
contemporaneidade. Que se soma ao trabalho de, a partir daí, estabelecer o
diálogo interdisciplinar. Isto reforça a defesa de que a pesquisa, na
contemporaneidade, possui papel político e estratégico na geração de
conhecimentos que afirmem a ciência, na sustentação do campo da enfermagem.
A geração de conhecimento científico, mormente no campo da saúde e da
Enfermagem, exige que se aplique a inteligência em prol do bem comum, que se
tenha formação acadêmica adequada em que a pesquisa emerja como estratégia e
procedimento de aprendizagem - princípio educativo (articulado ao ensino e a
extensão); exige que se ampliem os movimentos de qualificação acadêmica - pós-
graduação stricto-sensu - âmbito na qual se lança olhar crítico sobre a
enfermagem (ciência e arte - prática), para que se problematizem "o mundo real
das pessoas e de suas famílias"(1), se revisem, questionem, critiquem, se
discutam os saberes e os fazeres da saúde.
No âmbito da pós-graduação stricto-sensu espera-se que se produzam e se
(re)construam os saberes necessários à geração de teorias, métodos, tecnologias
e inovações. Donde se deriva o entendimento de que os espaços de formação/
qualificação (graduação e pós-graduação) são o celeiro da formação de
pesquisadores e o lócus de sustentação da ciência, mas os espaços da prática
são a razão de ser da disciplina. A prática é o lócus de sua aplicação e
experimentação, onde será efetivamente materializado o conhecimento, no
interior das práticas cotidianas do trabalho de enfermagem(12).
Neste ínterim, vislumbra-se uma questão emergente: o movimento de incremento
dos mestrados profissionais vem a ocupar lugar importante neste processo, uma
vez que sua finalidade é estreitar os laços entre a academia e a prática
rompendo com a dicotomia clássica do pensar e do fazer, herança da cisão
cartesiana amparada no penso, logo existo. Incrementar os mestrados
profissionais é um desafio que se impõe à área, na medida em que esta formação
exige uma releitura da formação stricto-sensu, no sentido de que esta se volte
para a pragmática dos serviços na busca de soluções para as problemáticas do
cotidiano da assistência e do gerenciamento do cuidado, fazendo da concretude
dos espaços de cuidar campos de pesquisa e de geração de conhecimento.
Assentar a produção em objetos próprios à enfermagem, buscar métodos
apropriados para abordá-los sem que se desprezem os "saberes de experiências
feitos"(13) das enfermeiras, sem que se neutralize a ação do sujeito sobre o
objeto, mas o reconheça e o considere na medida exata e necessária a produção
científica, no estabelecimento da aliança entre o que se faz, como se faz, o
que se pensa sobre o que se faz e o que pode ser feito para se ter um resultado
diferente. Mais uma vez parafraseia-se Santos, ao defendermos que devemos nos
colocar contra o desperdício da experiência(14). Usar o conhecimento que se
produz nos Programas de Pós-Graduação, mudar a realidade com os resultados de
nossas produções: eis o desafio.
Este debate aponta que a concretude das práticas viabiliza o trabalho coletivo,
entendendo-se este coletivo não como reunião de indivíduos, mas num plano
ético-político de construção de redes, pautadas num projeto dialógico(9).
Um seminário promovido pelo Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), realizado em
1997, tratou dos Desafios em Ciência e Tecnologia no Brasil e, à luz destes, a
recomendação foi a de que os projetos de pesquisa deveriam atender aos
requisitos da interdisciplinaridade, ser abrangentes, e terem equipes
trabalhando em cooperação científica promovendo o intercâmbio de tecnologias,
privilegiando as redes nacionais e internacionais(15). E lá se vão 16 anos...
Portanto, no fazer da ciência na contemporaneidade a formação de rede é uma
emergência e um desafio, tanto nas práticas de saúde quanto na pesquisa. Nesta
última, a rede de investigadores é um dispositivo, tanto político quanto
estratégico a ser usado pela área, mas sua viabilidade se assenta na
consolidação de grupos e linhas de pesquisa que invistam na geração de saber em
torno de projetos integrados que permitam a interação e diálogo com outros
pesquisadores, pois o processo de (re)construção do conhecimento não é linear,
mas espiral, sistêmico em que cada elemento do sistema sustenta o outro e,
assim, a rede se organiza, cresce e se multiplica. A estratégia da rede permite
a aplicação comum de modelos, métodos e a comparação de resultados em multi
campos, abrangendo uma diversidade de situações que favorecem a solidez dos
resultados, dando mais segurança às afirmações.
O dispositivo das redes tem potencial para ajudar na replicação de pesquisas e
testagem de modelos, que são carências que precisam ser superadas, aliada ao
fato de viabilizar que se trabalhe na enfermagem com projetos mais arrojados em
termos de metodologias amparadas em sólido referencial teórico(16) que permitam
ampliar o debate na área e a intersubjetividade tão necessária nos processos de
fazer ciência.
Isto faz com que a construção da informação se torne mais densa e as
comunicações científicas sejam mais bem acreditadas junto aos editores,
ampliando as possibilidades de difusão e consumo do conhecimento produzido,
pois a difusão do conhecimento viabiliza sua aplicação, sendo ambas, fases que
integram o processo de pesquisar.
Recursos e estratégias políticas da área
Ressalta-se que não se faz produção e (re)construção de conhecimento sem
recursos humanos, pensados em uma política digna de contratação de pessoal para
o incremento à formação de qualidade. Investimentos necessários em
universidades comprometidas com o processo de formação atrelado à produção,
difusão, consumo e aplicação social do conhecimento. Recursos que se voltem
para a ampliação e consolidação de programas de pós-graduação stricto-sensu,
com excelência nacional e internacional, geograficamente distribuídos, para
fazer frente às exigências e aos desafios postos à área, bem como para a
ampliação do quanti-qualitativo de enfermeiras nas equipes de assistência, para
que o cuidado de enfermagem se faça enquanto tal. Recursos financeiros, os
quais exigem política propositiva das universidades e agências financiadoras
com editais temáticos da área da saúde, mas que atendam às demandas, realidades
e emergências da área de enfermagem, que viabilizem replicar estudos sobre o
objeto cuidado de enfermagem, a fim de consolidar seus resultados, testar e
aplicar teorias e modelos no amparo de explicações sobre os fenômenos e os
processos de cuidar.
Na atenção a estes desafios, a Enfermagem vem trabalhando na definição de um
projeto político-científico e prioridades para a área, em debates sobre uma
melhor organização e articulação política interna. Mas este também é um desafio
à produção, difusão e aplicação do conhecimento, pois exige estreitamento de
laços, encontros propositivos e diálogos entre as lideranças da área, mormente
entre as associações científicas, especialmente a Associação Brasileira de
Enfermagem (ABEn) e coordenações de área, especialmente a Coordenação de
Pessoal de Ensino Superior (Capes) e o CNPq. Se uma das estratégias é se
trabalhar/produzir em rede, a tessitura destes fios precisa ser feita nas
oportunidades dos encontros, em discussões viabilizadas nos espaços científicos
e políticos próprios da área: tanto no âmbito das universidades quanto no dos
encontros nacionais. Converge para a superação dos inúmeros desafios que se
impõem a área discutir com, para que se cresça junto, em respeito a um projeto
político-estratégico, tecido no plano coletivo, em contextos ampliados que
primam pela socialização do conhecimento e das regras do jogo político-
científico.
No âmbito dos eventos realizados por estas entidades, muito se tem debatido
sobre uma melhor inserção da enfermagem no campo das lutas políticas, com
indicação dos desafios a serem superados, que estão tanto no âmbito micro
quanto do macro poder. Deste rol, levantam-se questões sobre a necessidade de
se incrementar os debates e as críticas ao que a enfermagem tem produzido,
através das referências do que se tem publicado na área; a ampliação e
qualificação dos periódicos científicos para que se consiga alcançar a
internacionalização; a transferência do conhecimento, dando-lhe visibilidade e
mostrando seu impacto social; refletir sobre a contribuição que se tem dado à
construção de políticas públicas e consolidação do Sistema Único de Saúde
(SUS); e a ênfase ao compromisso ético e social, próprio da prática do
cientista.
Tais pontos elencados foram amplamente debatidos na Reunião da Área da
Enfermagem no IV Encontro Nacional de Pós-Graduação na Área de Ciências da
Saúde(17) e têm a ver com o para que pesquisar e produzir conhecimento, pois
este só faz sentido se a pesquisa cumprir seu papel social com aplicabilidade
do conhecimento científico. Especialmente na enfermagem, por ser uma disciplina
prática, cuja ciência aplica-se em favor do bem-estar comum: humano, ético e
solidário.
REFLEXÕES FINAIS
A capacidade de atuar e de decidir das pessoas está intimamente ligada à
condição que ela tem de compreender as características relevantes do contexto
em que vive(18). Portanto, importa considerar que o mundo atual está marcado
pela era da ciência e da tecnologia e estes nos servem de parâmetros para que
compreendamos o contexto da saúde e do cuidado às pessoas - âmbito do qual se
dá a (re)construção do saber da enfermagem. A questão é: qual modelo de fazer
ciência, produzir tecnologia e aplicá-la melhor condiz com os pressupostos da
Enfermagem como ciência e arte?
Parafraseando Lewis Carroll, romancista e matemático britânico (1832-98), em
seu livro Alice no País das Maravilhas, perguntamos: o desafio está na escolha
dos caminhos ou em saber aonde se quer chegar? E agora Alice?
Retomando o início deste texto, a posição assumida é a de que os desafios a se
superar na produção, difusão e uso do conhecimento têm como foco aliar o
ensino, a pesquisa e o cuidado, chamado aqui de processo de ensinar-cuidar-
pesquisar, para que se possa compreender "o mundo real das pessoas e de suas
famílias"(1) através de caminhos (trilhas) traçados pelas pegadas e ações do
ser humano na promoção da saúde e do bem-estar humano através do cuidado. Neste
ínterim, se pactuamos que este seja o ponto de chegada da ciência e da arte da
enfermagem, que escolhamos os melhores caminhos para nele chegar.
Este texto foi produzido em defesa do diálogo, do compartilhamento, do fazer
coletivo, mas não se pretendeu firmar um discurso normativo e prescritivo de
superação dos desafios em uma única direção; ao invés, se trabalhar elementos
centrais que permeiam o processo complexo e multifacetado de fazer ciência,
como motivação para o debate da área.
Produzir conhecimento, difundi-lo e aplicá-lo são atos humanos, fazem parte de
um fazer humano, e como tal, há um princípio ético a ser considerado. Ética
esta que envolve não só os modos de se fazer ciência, seus modelos e técnicas,
mas também as relações, os acordos que se firmam entre os humanos para difundi-
la, aplicá-la e para manter os grupos no campo de lutas científicas e no
sistema. Nesta consideração, mais uma reflexão se impõe: a da reversão da
lógica da produção e da publicação em série, fatiada e fragmentada que se
alinha ao produtivismo que se instalou no campo acadêmico. Produzir, difundir,
publicar e aplicar é preciso. Mas em que bases? Onde vamos chegar seguindo por
este caminho?
A ética viabiliza o existir humano. Estejamos em um ou em outro paradigma
[clássico, emergente] ou em ambos, em articulação e diálogo, não se pode
prescindir da ética. Ética que nos faz ter respeito pela vida, numa relação
intencional de vínculo com as pessoas, com as coisas, com o trabalho, com o
mundo enfim. Ética que nos chama a ser solidários e que nos desperta a
responsabilidade social que nos pesa quando abraçamos a causa de cuidar, de
ensinar e de pesquisar, no desafio constante de buscar alternativas para
superar as muitas contradições que a era da ciência e da tecnologia nos impôs:
saltitar entre os sofisticados dispositivos tecnológicos que nos dão precisão
nos diagnósticos, tratam e reabilitam o corpo e a existência de problemas
primários de saúde que acometem grande parcela da população no mundo(19).
Esta situação nos faz pensar que "as preocupações éticas, a responsabilidade e
a liberdade tem lugar apenas enquanto alguém pode ver o outro, a si mesmo e as
consequências das ações de alguém nos outros, ou em si mesmo e age de acordo
com a decisão entre querer, ou não, essas consequências"(20). Neste
entendimento, nós também somos os outros.
Ensinar-cuidar-pesquisar, com foco nos problemas que interferem na esfera do
cuidado aos usuários, ultrapassando os interesses individuais, para compreender
o mundo real das pessoas e de suas famílias, suas necessidades e demandas, além
de enfrentar as lutas que se travam no campo hegemônico da saúde, da ciência e
da tecnologia, mantendo-se no sistema, sendo a enfermagem uma profissão ainda
jovem no campo da ciência: eis o desafio.