Uma década de Diretrizes Curriculares Nacionais para a Graduação em Enfermagem:
avanços e desafios
INTRODUÇÃO
Falar de Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem
(DCN/ENF) requer, necessariamente, falar de mudanças paradigmáticas no contexto
acadêmico, que visem à formação de profissionais competentes, críticos e
comprometidos com a saúde da população; implica em discutir o processo de
formação, em suas múltiplas determinações e apreendê-lo na historicidade da
educação em enfermagem no país(1).
Buscando identificar essas mudanças, o estudo tem como objeto as DCN/ENF após
uma década da sua aprovação. A análise dos dez anos dessas Diretrizes se torna
de real significação para a enfermagem, não só pelo sentido coletivo nela
implicado, mas, também, pela sua ressonância num momento singular para o nosso
país, em que a expansão de cursos de enfermagem vem se dando de forma
desordenada e com pouca aderência às demandas regionais de saúde e educação.
Frente a essas considerações, foram levantados os questionamentos: Qual a
realidade das escolas/cursos de graduação em enfermagem após dez anos da
aprovação das DCN/ENF? As escolas/cursos estão se mobilizando para a
implementação das mudanças na Educação em Enfermagem? Quais os avanços
conquistados e os desafios encontrados no processo de formação das enfermeiras,
após a aprovação/publicação das DCN/ENF?
Na busca de respostas a esses questionamentos, o presente estudo teve como
objetivo analisar os avanços e desafios de uma década das DCN/ENF.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo documental, que possibilita ampliar o entendimento dos
avanços e desafios de uma década das DCN/ENF, cuja compreensão necessitou de
contextualização histórica e sociocultural. O uso de documentos em pesquisa
permite acrescentar a dimensão do tempo à compreensão do social, além de
favorecer a observação do processo de análise da evolução de indivíduos,
grupos, conceitos, conhecimentos, comportamentos, mentalidades e práticas(2).
Os documentos analisados foram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(3) e a Resolução CNE/CES nº 03/2001(4). Foi analisada, também, a produção
intelectual brasileira, sobre a temática, na década 2001 a 2011. Essa produção
foi buscada em periódicos científicos da área, através da Biblioteca Virtual em
Saúde (BVS), Base de Dados da Enfermagem (BDENF), Base de Dados Scientific
Eletronic Library Online (SCIELO) e da Literatura Latino-Americana em Ciência e
Saúde (LILACS). A coleta de dados foi realizada no período de 2 a 15 de Julho
de 2012, utilizando-se os unitermos "diretrizes curriculares enfermagem" e
"educação em enfermagem". Como critérios de inclusão, determinou-se:
publicações realizadas no período de 2001 a 2011 e que apresentassem texto
completo. Foram encontrados inicialmente 119 artigos de onde foram excluídos 24
por não apresentarem texto completo. Em seguida, as publicações foram
confrontadas e encontradas 33 repetidas nos três bancos de dados, restando,
então, 62 artigos. Vale destacar que, desse total, 51,6% (33) foram publicados
na Revista Brasileira de Enfermagem.
Esses documentos foram analisados, buscando-se aspectos relevantes que aparecem
e reaparecem em contextos variados, direcionando a codificação da unidade de
análise, que reflete os propósitos da pesquisa.
O estudo ancorou-se no referencial metodológico da dialética, que proporcionou
a abordagem da realidade estudada, reconhecendo-a e relacionando-a com o
processo histórico, no seu peculiar dinamismo, provisoriedade e transformação.
O método dialético é considerado como uma estratégia de apreensão e compreensão
de uma dada realidade social, com suas contradições e desdobramentos(5). Nesse
entendimento, as DCN/ENF foram analisadas na sua dinamicidade e contradições,
bem como na totalidade de sua inserção nas políticas públicas de educação.
Esta pesquisa não representa qualquer tipo de risco à saúde ou à integridade
físico-moral dos sujeitos, nem, tampouco, implica em qualquer forma de
intervenção direta sobre os mesmos. Está estruturada, inicialmente, através de
um breve relato do processo de construção das DCN/ENF, como forma de visualizar
o seu caráter coletivo de concepção, seguido da explicitação dos elementos que
fundamentam essas diretrizes e do resultado de um levantamento da produção
intelectual de enfermeiras(os) durante uma década das DCN/ENF. Finalmente, são
apresentadas as considerações inconclusas e transitórias sobre os 10 anos das
DCN/ENF, seus avanços e desafios.
A CONSTRUÇÃO DAS DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS DO CURSO DE GRADUAÇÃO EM
ENFERMAGEM: SEU CARÁTER COLETIVO
A década de 90, no Brasil, caracterizou-se pela mudança do modelo econômico,
com o acirramento da política neoliberal e a universalização da exclusão social
resultantes da primazia do econômico em detrimento do social, com implicações
no setor da educação e da saúde.
É nesse contexto que se dá a aprovação da Lei n.º 9.394/96, conhecida como a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em dezembro de 1996(3).
Essa Lei abriu espaços para a flexibilização dos currículos de graduação e para
a superação do modelo de "currículo mínimo" e da "grade curricular"; trouxe
novas responsabilidades para as Instituições de Ensino Superior (IES),
assegurando autonomia didático-científica, bem como para criar cursos, fixar os
currículos dos seus cursos e programas, além de adotar as Diretrizes
Curriculares que melhor atendessem ao perfil epidemiológico e social da
comunidade.
A partir da aprovação da LDB, a Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn)
desencadeou encontros e seminários para discutir e estabelecer as diretrizes
gerais para a educação em enfermagem, articulando os diversos níveis de
formação. Nesse sentido, em 1998 foi realizado o 3º Seminário Nacional de
Diretrizes para a Educação em Enfermagem (SENADEn), que teve como principal
finalidade discutir o processo ensino-aprendizagem da Enfermagem, em seus
diferentes níveis, à luz da LDB, tendo como perspectiva a formulação de
propostas de diretrizes curriculares para a formação dos profissionais de
enfermagem(6). O documento síntese do 3º Senaden resgatou o Parecer nº 314/94-
CFE e a Portaria nº 1721/94-MEC, em fase de implantação, e serviu de subsídio
para a elaboração das Diretrizes Curriculares.
Vale destacar, também, a mobilização das(os) enfermeiras(os) durante o 51º
Congresso Brasileiro de Enfermagem e 10º Congresso Pan-americano de Enfermería,
realizados, simultaneamente, em outubro de 1999, na cidade de Florianópolis-SC.
Nessa oportunidade, foi elaborada a "Carta de Florianópolis"(7) com uma
proposta para as Diretrizes Curriculares, que emergiu das discussões da
categoria.
Em continuidade às discussões, em abril de 2000, realizou-se, em Fortaleza-CE,
o 4º SENADEn, com o tema central "Enfermagem: tendências e perspectivas
político-pedagógicas", cujas recomendações finais foram agregadas às propostas
encaminhadas à Comissão de Especialistas de Ensino de Enfermagem (CEEEnf).
Em agosto de 2001, concretizou-se o Parecer 1133 do CNE/CES(8) que reforçou a
necessidade de articulação entre Educação e Saúde, objetivando a formação geral
e específica dos egressos/profissionais, com ênfase na promoção, prevenção,
recuperação e reabilitação da saúde. Esse Parecer apresenta a concepção de
saúde, os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) e o objeto e
objetivo das Diretrizes Curriculares dos Cursos de Graduação na área.
A CEEEnf, designada pela Portaria SESu/MEC 1518 de 14/6/2000, assumiu, em
parceria com a ABEn, um trabalho coletivo com profissionais da área, para a
construção da proposta das DCN/ENF. Essa proposta foi enviada ao Conselho
Nacional de Educação, através do Ofício Nº 11876 MEC/SESu/DEPES de 17 de
outubro de 2000 e aprovada por esse Conselho em 7 de novembro de 2001, através
da Resolução CNE/CES Nº 3 de 7/11/2001(4).
A formulação das DCN/ENF resultou de uma construção coletiva que envolveu
debates nacionais de diferentes segmentos da área da saúde e da educação, tais
como: a CEEEnf da Secretaria de Educação do Ensino Superior do Ministério da
Educação, IES, ABEn, Rede Unida, Movimento Estudantil e a categoria de
enfermeiras(os) reunida em eventos científicos da área.
As DCN/ENF tiveram, pois, sua materialidade concretizada a partir de propostas
que emergiram da mobilização das(os) enfermeiras(os), através da sua associação
de classe, de entidades educacionais e de setores da sociedade civil
interessados em defender as mudanças da formação na área da saúde.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os resultados apresentam os elementos que fundamentam as DCN/ENF através da
análise do seu conteúdo, bem como a realidade das escolas/cursos na mobilização
para implantação dessas diretrizes, além da produção intelectual das(os)
enfermeiras(os) sobre a temática durante a década de 2001 a 2011, com seus
avanços e desafios.
DCN/ENF: elementos que as fundamentam
As DCN/ENF se constituem num instrumento norteador do processo de construção de
Projetos Pedagógicos, trazendo como parâmetros: eixo orientador dos conteúdos
mínimos para a formação do profissional; flexibilidade na organização do curso;
princípio da formação integral; adoção de metodologias ativas; incorporação de
atividades complementares; princípio da interdisciplinaridade; predominância da
formação sobre a informação; articulação entre teoria e prática;
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão(4).
O perfil profissional, delineado no Art. 3º das DCN/ENF, está voltado para a
formação generalista, humanista, crítica e reflexiva; para o exercício de
enfermagem, com base no rigor científico e intelectual e pautado em princípios
éticos; para conhecer e intervir sobre os problemas/situações de saúde-doença
mais prevalentes no perfil epidemiológico nacional, com ênfase na sua região de
atuação para atuar, com senso de responsabilidade social e compromisso com a
cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano(4).
As competências e habilidades gerais, explicitadas no Art 4º, apontam para a
promoção de conhecimentos requeridos para a atenção à saúde, no âmbito
individual e coletivo, com terminalidade e resolutividade em todos os níveis de
complexidade; a tomada de decisões para avaliar, sistematizar e decidir
condutas adequadas baseadas em evidências científicas; a comunicação
propiciadora da interatividade com pacientes, grupos e comunidades; a liderança
no trabalho em equipe multiprofissional, pautada no compromisso,
responsabilidade e empatia; a administração e gerenciamento da força de
trabalho, bem como dos recursos físicos, materiais e de informação; a educação
permanente favorecendo o aprender continuamente(4).
As 33 competências e habilidades específicas estão pautadas nas concepções do
aluno como sujeito de seu processo de formação, articulação entre teoria e
prática, diversificação dos campos de aprendizagem, metodologias ativas,
articulação da pesquisa com o ensino e a extensão, flexibilidade curricular,
interdisciplinaridade, incorporação de atividades complementares e avaliação da
aprendizagem(4).
As competências gerais e específicas são alcançadas através das metodologias
ativas tendo a(o) aluna(o) como sujeito de sua aprendizagem, capaz de "aprender
a aprender", e o professor como facilitador dessa aprendizagem(4).
Os Conteúdos Essenciais,explicitados no Art.6º, estão indicados através de
eixos temáticos que devem contemplar as: Ciências Biológicas e da Saúde,
Ciências Humanas e Sociais e Ciências da Enfermagem, onde se incluem
Fundamentos de Enfermagem, Assistência de Enfermagem, Administração de
Enfermagem e Ensino de Enfermagem(4).
O Art.7º indica a obrigatoriedade do Estágio Curricular Supervisionado não só
na rede hospitalar e ambulatorial, mas, também, na rede básica de serviços de
saúde e comunidades, nos dois últimos semestres do curso, assumindo o caráter
de atividade terminal, síntese da formação, além de buscar a integração teoria-
prática, atribuindo à última o caráter de terminalidade e validação do processo
formativo(4).
O Parágrafo 2º, do artigo 7º traz, também, a necessidade da efetiva
participação de enfermeiras(os) na programação e no processo de supervisão da
(o) aluna(o) nos serviços de saúde onde se desenvolve o estágio(4).
Quanto ao aproveitamento das Atividades Complementares, o Art. 8º explicita que
deve estar contemplado no Projeto Pedagógico, devendo-se criar mecanismos de
aproveitamento de conhecimentos adquiridos pela(o) aluna(o) através de estudos
e práticas independentes, presenciais e/ou a distância(4).
Quanto à organização dos cursos, as DCN/ENF apontam para a necessidade de
definição de estratégias que articulem o saber (os conteúdos), o saber fazer
(atitudes/habilidades) e o saber conviver (competências). Esses parâmetros, por
sua vez, oferecem os elementos para as bases filosóficas, conceituais e
metodológicas que irão definir um perfil acadêmico e profissional com
competências, habilidades e conteúdos, dentro de perspectivas e abordagens
contemporâneas de formação, pertinentes e compatíveis com referencias nacionais
e internacionais, capazes de atuar com qualidade, eficiência e resolutividade,
no SUS(6).
As Diretrizes Curriculares tratam também do processo de avaliação do aluno
esclarecendo que as avaliações "deverão basear-se nas competências, habilidades
e conteúdos curriculares"(4).
Dez anos após a aprovação das DCN/ENF: a produção intelectual
Na década estudada, o período em que mais se publicou sobre a temática das DCN/
ENF foi de 2003 a 2004, sendo que, nos três últimos anos, da década, essa
produção vem decrescendo.
A análise da produção indicou que as escolas/cursos, durante a década estudada,
se mobilizaram para a implantação das mudanças no processo de formação das(os)
enfermeiras(os); os PPC sofreram mudanças pontuais relacionadas à LDB e DCN/
ENF. As principais temáticas abordadas estiveram voltadas para: a construção e
implementação de Projetos Pedagógicos de Curso (PPC) inovadores, adoção de
metodologias ativas, implementação de currículos integrados, desenvolvimento de
ações de integração teoria/prática, implementação de estágio curricular
supervisionado, de atividades interdisciplinares e de integração ensino/
serviço, evidenciando como as DCN/ENF se expressam nos PPC(1,6,9-22).
Essas temáticas registraram avanços na busca de um processo formativo mais
aderente às necessidades de saúde da população, voltado para uma lógica
interdisciplinar; para a adoção de metodologias ativas, tendo o aluno como
sujeito do seu processo formativo; para a reorganização dos componentes
curriculares; para o fortalecimento da articulação teoria/prática; para a
indissociabilidade pesquisa/ensino/extensão; para a diversificação dos cenários
de aprendizagem numa contínua aproximação do mundo do ensino com o mundo do
trabalho; flexibilidade curricular com a adoção de medidas que contraponham a
rigidez dos pré-requisitos e dos conteúdos obrigatórios; avaliação formativa
voltada para as competências, traduzida no desempenho de habilidades, deixando
de ser pontual, punitiva e discriminatória, para transformar-se num instrumento
de acompanhamento de todo o processo ensino-aprendizagem; terminalidade do
curso garantindo a formação generalista, instrumentalizando o profissional a
atuar em variados contextos, opondo-se à especialização precoce e evitando
visões parciais da realidade.
A produção bibliográfica estudada registrou, destarte, avanços, como a
incorporação de conceitos provenientes da pedagogia crítica, dentre eles, a
autonomia, a problematização da realidade, e a necessidade de formar
profissionais aptos a aprender a aprender e comprometidos com o enfrentamento
dos problemas de saúde da nossa sociedade.
Alguns estudos(23), no entanto, já problematizam as DCN/ENF, suscitando
inúmeras correlações com dificuldades, necessidades, possibilidades e
impossibilidades que envolvem a complexidade do processo de formação de
enfermeiras(os).
A formação por competências, legalmente sustentada pela LDB e oficialmente
incentivada pelas DCN/ENF, tem suscitado críticas na sua compreensão,
particularmente no que se refere à sua concepção tecnicista, assim como na sua
subjetividade favorecendo múltiplas interpretações e criando dificuldades na
sua implementação, além de minimizar o trabalho coletivo e favorecer o processo
de individualização da sociedade e sua aproximação epistemológica com as
perspectivas neoliberais. A formação por competência transfere para o indivíduo
a responsabilidade pelo seu sucesso e pelo seu fracasso(23).
Outro aspecto problematizado é o da interdisciplinaridade. Mesmo reconhecendo-
se a importância da formação interdisciplinar, a interdisciplinaridade tem sido
questionada pela forma como se deposita nela a solução para muitos dos males
que acometem o ensino, particularmente quando se trata de justificar mudanças
curriculares(23). Considera-se que, mesmo que se possa imaginar um saber que
não seja organizado pelas disciplinas, certamente haverá um saber dividido em
algum eixo, elemento ou categoria; considera-se, ainda, a existência de um
equívoco conceitual em torno da interdisciplinaridade.
Alguns estudos(13,24-27) vêm levantando dificuldades na implementação das DCN/
ENF, destacando-se as contradições entre a formação teórico-prática e a práxis
profissional, entendendo-se que as estratégias pedagógicas necessitam ser mais
bem exploradas pelo corpo docente dos cursos. Esses estudos, além da
explicitação das dificuldades, trazem também as possibilidades de
enfrentamentos e superação dessas dificuldades.
Outros estudos(10,13,24) estão direcionados para a questão da terminalidade da
formação através do Estágio Curricular Supervisionado, nos dois últimos
semestres do curso, subseqüentes à teoria, frente à insuficiente integração
academia-serviço intra e extra-muros, além de evidenciar uma dissociação entre
teoria e prática, onde primeiro o aluno é informado, em sala de aula, de todos
os conceitos teóricos acerca do tema e posteriormente é levado à pratica para
aplicação desses conceitos.
Outros(1,9,28) expõem sua opinião favorável ao modo como foram construídas as
DCN/ENF, destacando o contexto político em que devem ser interpretadas e que se
supõe que serão implementadas; fornecem elementos para a reflexão acerca da
formação em Enfermagem, considerando a necessidade da elaboração de PPC,
tomando como referência alguns fatores constituintes do fazer pedagógico,
oportunizando a reflexão crítica sobre a relação teórico-prática e os papéis
dos sujeitos envolvidos no processo ensino-aprendizagem.
Na avaliação feita acerca da aderência dos cursos de graduação de enfermagem às
DCN/ENF, há registro de fortalezas e fraquezas dos cursos nas três dimensões
dos relatórios de avaliação, e da necessidade das escolas/cursos buscarem
melhor vinculação entre a adoção das bases epistemológicas presentes nas DCN/
ENF e as propostas nos PPC/ENF(18).
Dez anos após a aprovação das DCN/ENF: desafios, lutas e avanços
A busca da implementação de uma mudança para adequar a formação da(o)
enfermeira(o) à diversidade e complexidade do mundo contemporâneo implica no
enfrentamento a desafios, assim como nas lutas e conquistas da categoria de
enfermagem.
O enfrentamento aos desafios encontrados na implementação das DCN/ENF versaram,
fundamentalmente, em: sair do pólo de ensino centrado no professor, para o pólo
da aprendizagem centrada no aluno como sujeito do seu processo de formação;
enfatizar a predominância da formação sobre a informação; sair da fragmentação
do modelo disciplinar para a construção de um modelo integrado, onde o eixo da
formação passa a ser a prática/trabalho/cuidado; sair da teoria antecedendo a
prática para a articulação teoria/prática; romper com as barreiras
institucionais que favorecem a rigidez curricular; permitir a construção de
modelos pedagógicos criativos e inovadores que busquem um processo formativo
que expresse compromissos éticos e políticos com o exercício da cidadania e com
qualidade de vida da população; romper com o modelo de ensino voltado apenas
para a absorção de conhecimento, para um modelo voltado para o aprender a
pensar, saber comunicar-se e pesquisar, ter raciocínio lógico, fazer sínteses e
elaborações teóricas; sair do pólo da rigidez dos pré-requisitos e conteúdos
obrigatórios para o pólo do incremento da flexibilidade curricular; romper com
rigidez curricular que dificulta a incorporação de atividades complementares
para a criação de mecanismos de aproveitamento de conhecimentos, adquiridos
pelo estudante, através de estudos e práticas independentes; sair do pólo da
avaliação somativa para o pólo do processo formativo, deixando de ser pontual,
punitiva e discriminatória para ser uma avaliação que respeite a
individualidade do aluno; romper com a dicotomia ensino/pesquisa/extensão
aprofundando a articulação da pesquisa com o ensino e a extensão, desenvolvendo
a habilidade de produzir conhecimento próprio e inovador mediante a inserção em
realidades concretas, ou seja, formação centrada na práxis.
Essas ações de enfrentamento aos desafios encontraram apoio nas lutas travadas
pela ABEn, tais como estímulo, retomada e fortalecimento dos Fóruns Estaduais
de Escolas/Cursos de Enfermagem, promovendo a socialização das experiências e
levantando subsídios para uma política de formação do enfermeiro, integrada à
realidade epidemiológica e profissional e à integralidade das ações do cuidar.
Destaca-se, também, na década estudada, o papel a ABEn na construção de um
movimento em defesa da qualidade da formação dos profissionais da Enfermagem,
com elaboração de uma agenda propositiva, aprovada em agosto de 2010, durante o
12º SENADEn, onde se ressalta a necessidade de: "reivindicar ao Ministério da
Educação agilidade na alteração do Decreto nº 5.773 de 2006, para que os
pedidos de criação de Cursos de Graduação em Enfermagem sejam encaminhados para
apreciação do Conselho Nacional de Saúde", a exemplo do que já ocorre com os
cursos de Medicina, Odontologia e Psicologia. Nesse direcionamento, o Conselho
Nacional de Saúde já acatou a inclusão no Decreto 5.773 da Enfermagem e a
Secretaria de Regulação e Supervisão aponta para uma substituição do curso de
Psicologia pela Enfermagem, no Decreto 5.773. A Comissão Intersetorial de
Recursos Humanos (CIRH) já se manifestou a favor da inclusão dos 14 cursos da
área da saúde no Decreto 5.773, de forma gradativa, começando pela Enfermagem.
Outra conquista da categoria liderada pela ABEn, foi a aprovação da Resolução
CNE/CES nº. 04, de 6 de Abril de 2009 que dispõe sobre Carga Horária Mínima e
procedimentos relativos à integralização na modalidade presencial: curso de
graduação em enfermagem com a carga horária mínima de 4000 horas e
integralização em 5 (cinco) anos e 10 (dez) semestres letivos.
CONSIDERAÇÕES INCONCLUSAS E TRANSITÓRIAS SOBRE OS 10 ANOS DAS DCN/ENF
Muitos têm sido os avanços no fortalecimento da mudança na área da educação em
enfermagem, tendo como referência as DCN/ENF como eixos estruturantes do
processo de formação profissional.
Esses avanços se constituem em fruto da mudança paradigmática na
contemporaneidade, envolvendo o reconhecimento da multidimensionalidade da
prática profissional (técnica/científica, ética, social, política) como forma
de superar o pensar simplificado e fragmentado da realidade; a adoção da ótica
pluralista das concepções de ensino, integrando a diversidade dos campos do
conhecimento e uma visão global da realidade; estímulo à indissociabilidade
entre as bases biológicas e sociais da atenção à saúde/enfermagem; fomento à
articulação da pesquisa com o ensino e a extensão contemplando a integração
teoria e prática; fomento à produção do conhecimento próprio e inovador,
voltado para uma assistência de qualidade; diversificação de cenários de
práticas de saúde/enfermagem; adoção de metodologias ativas de ensino-
aprendizagem, tendo o aluno como sujeito do seu processo de formação; adoção da
flexibilidade curricular evitando a rigidez dos pré-requisitos e dos conteúdos
obrigatórios.
Registra-se, portanto, que houve mudanças no processo de formação a partir da
incorporação, pelas IES, dos elementos fundantes das DCN/ENF, em sintonia com
as novas políticas de educação e saúde, não como mudanças radicais ou
impositivas, mas como transformações construídas coletivamente e com resultados
concretos.
Ao lado desses avanços ficou o reconhecimento de que às DCN/ENF não deve ser
atribuído o poder de, por si só, viabilizar as condições e os processos
necessários à materialidade da mudança no processo de formação. Apesar da sua
relevância no trabalho educativo e no direcionamento de esforços coletivos, não
houve registro de que as DCN/ENF, isoladamente, possam concretizar as condições
para a qualidade da formação. Esta não pode responder apenas às dimensões do
aprender a aprender, do aprender a fazer, do aprender a ser e do aprender a
conviver, pois está atrelada ao papel social e político do trabalho em saúde/
enfermagem e inserida nas políticas públicas de educação e saúde.
Ficou evidenciado, também, que o texto das DCN/ENF, em alguns pontos, traz
aspectos subjetivos, favorecendo múltiplas interpretações e reforçando uma
adesão a conceitos e concepções equivocadas sem um adequado aprofundamento.
As constatações aqui apresentadas permitiram reconhecer o dinamismo e a
provisoriedade das DCN/ENF em sua totalidade e desdobramentos. Permitiram,
também, o reconhecimento da superação da visão reducionista que supõe que a
formação de um profissional resulta apenas de um processo de aquisições
cognitivas e comprovação de habilidades de discernimento intelectual. Essa
superação leva ao alcance da visão contemporânea que considera a formação
profissional como resultante de um processo que envolve as políticas de ensino,
políticas do exercício profissional e as do trabalho em saúde/enfermagem e que
considera a formação profissional construída em novas bases, com
características criativas e inovadoras, sintonizados com uma nova visão de
mundo.
Essas constatações requerem, destarte, a promoção da interface entre saúde,
educação e trabalho, sob a orientação estrutural do SUS, da ética e da
cidadania, não se limitando a questões técnicas, de conteúdos de ensino,
procedimentos didáticos e técnicas pedagógicas, mas pautando-se,
fundamentalmente, na adoção de um referencial teórico-pedagógico que sustente
uma aprendizagem significativa, transformadora e adequada às demandas sociais e
profissionais que se apresentam na contemporaneidade.
Finalmente, reconhecendo a importância e complexidade do processo de formação,
torna-se de fundamental importância a continuidade de estudos para o
aprofundamento das imprecisões teóricas inquietantes, assim como para a
superação das dificuldades em transpor as concepções propostas nas DCN/ENF para
os cenários do processo de formação como uma estratégia de apreensão e
compreensão da prática social empírica de uma dada realidade social, com suas
contradições e desdobramentos. Estudos, enfim, que possam clarear os
pressupostos teóricos, filosóficos e metodológicos que direcionam a construção
do PPC voltado para o SUS, a Ética, a Cidadania, a Epidemiologia e o Processo
Saúde/Doença/Cuidado.
O presente estudo não se completa por si só. Ele faz parte de um processo maior
que perpassa o processo de trabalho em saúde/enfermagem. A análise de uma
década das DCN/ENF é muito mais do que conseguimos apresentar, necessitando de
mais estudos em busca do fortalecimento da qualidade do processo de formação da
(o) enfermeira(o) em nosso país.