Ciência, Saúde Coletiva e Enfermagem: destacando as categorias gênero e geração
na episteme da práxis
As categorias e leis são graus de desenvolvimento
do conhecimento e da prática sociais,
conclusões tiradas da história do desenvolvimento
da ciência e da atividade prática.
Familiarizar os homens com as categorias e as leis
da dialética, fazê-los assimilar sua essência,
nada mais é do que os iniciar na cultura humana
e alargar seus horizontes(1).
INTRODUÇÃO
A Teoria de Intervenção Práxica da Enfermagem em Saúde Coletiva - Tipesc(2) -
foi concebida para possibilitar operar transformações ou superar contradições
presentes na prática assistencial de saúde e Enfermagem. Como uma teoria
inscrita no marco do materialismo histórico e dialético, a práxis - movimento
da teoria orientando uma prática que ao se transformar interroga a prática e
propõe uma nova teoria - adquire estatuto central para o desenvolvimento quer
da teoria, quer da prática em Enfermagem em Saúde Coletiva. No dizer de Vazquez
(3), "a relação entre a teoria e a práxis é para Marx teórica e prática:
prática na medida em que a teoria, como guia da ação, molda a atividade do
homem, particularmente a atividade revolucionária; teórica, na medida em que
essa relação é consciente." Ademais, continua Vazquez(3)
Marx já concebe a práxis como uma atividade humana real, efetiva e
transformadora que, em sua forma radical, é justamente a revolução.
Vê essa práxis em indissolúvel relação com a teoria, esta entendida
como uma filosofia ou expressão teórica de uma necessidade radical do
que como conhecimento de uma realidade, e vê também o papel da força
social que com sua consciência e sua ação estabelece a unidade entre
a teoria e a práxis(3).
A Saúde Coletiva, por sua vez, também é um campo de teorias e práticas que, em
oposição à Saúde Pública, busca na realidade objetiva os meios e os
instrumentos de intervenção nos perfis epidemiológicos da população de um dado
território, entendendo sua constituição por meio de totalidades que se
interpenetram: as dimensões estrutural, particular e singular.
Como uma dada maneira de realizar práticas em saúde, embasada por certa
ciência, a Saúde Coletiva distingue-se de outras concepções de saúde-doença
basicamente pela visão de mundo que porta. Por visão de mundo entende-se "o
conjunto de princípios, pontos de vista e convicções que determinam a atitude
do ser humano em relação à realidade e a si próprio, a orientação da atividade
de cada pessoa concreta, grupo social, classe ou sociedade em geral"(4). A
tarefa explicativa do mundo, ou seja, a própria elaboração da visão de mundo é
tarefa da filosofia que, não sendo atemporal, apreende em pensamentos sua
época. Isto significa dizer que o processo de produção do conhecimento também é
determinado pela forma como os seres humanos organizam-se em sociedade(5).
A Tipesc, comprometida com a visão de mundo materialista histórica e dialética,
é constituída pelos pilares de sustentação teórico-filosófica historicidade e
dinamicidade dos processos de desenvolvimento da realidade objetiva. Tanto na
perspectiva epistemológica quanto na metodológica, essas categorias são
fundamentais para operar o conhecimento e a transformação da realidade. Desde
sua proposição, a Tipesc chamava a atenção para as categorias conceituais e as
dimensionais. Do ponto de vista de método, as categorias explicativas
(interpretativas), alinhadas mais proximamente ao fenômeno considerado, fazem a
ponte entre o geral e o particular.
É na dimensão particular que se verificam as totalidades-parte das grandes
categorias que se relacionam de forma contraditória e polarizada na vida
cotidiana. É na dimensão particular que se verificam as contradições entre
diferentes classes e suas formas de vida e trabalho, que usualmente é
empobrecido na captação ao encerrar as formas de produção e reprodução social
das classes com atributos interessantes, mas insuficientes para a qualificação
dos elementos de classe, tais como renda, escolaridade, acessibilidade, entre
outros.
Falar de categorias sociológicas na ótica da Tipesc é falar da dimensão
particular dos fenômenos a serem iluminados nos processos de intervenção.
Diferentemente da análise sociológica, a Tipesc é uma teoria que visa organizar
os modos de intervenção para superação das questões de saúde-doença
prioritariamente, a categoria sociológica não é genericamente exposta tal qual
um estudo de populações, chegando mais perto do objeto de estudo ou do fenômeno
considerado. Portanto, é preciso falar do fenômeno para dizer da importância de
conhecer as categorias sociológicas.
O objetivo deste ensaio é mostrar a relevância das categorias gênero e geração
para a explicação e a construção do projeto de intervenção que permita
enfretamento competente da Enfermagem em Saúde Coletiva.
MÉTODO
Adotou-se o método dialético de exposição no qual as contradições são expostas
para projetar os caminhos de superação. A hermenêutica-crítica dos intertextos
será realizada a partir de duas leis secundárias da dialética: essência e
fenômeno e realidade e possibilidade. As categorias gênero e geração serão
revisitadas a partir desta perspectiva dialética, interpretativa da realidade
objetiva e que tem o poder de ser interventiva da realidade que se quer
modificar. Entende-se que
a essência se define como um conjunto das ligações e dos aspectos
internos [o fundamento da coisa, as ligações e os aspectos
necessários não fundamentais, não principais] e o fenômeno como a
manifestação exterior, o aspecto exterior, cambiante do objeto e que
exprime sua essência, é um conjunto dos aspectos exteriores, das
propriedades e é uma forma de manifestação da essência. Compreender
os fenômenos na sua aparência e articulá-los à essência, ou a gênese,
ou a conexão fundante abre o caminho da superação(1).
Possibilidade e realidade, na concepção da dialética materialista,
opõem-se, tendo por ideia que "a realidade é o que existe realmente e
a possibilidade é o que pode produzir-se quando as condições são
propícias". [...] A possibilidade tem [...] uma existência real, mas
somente como propriedade, capacidade da matéria de transformar-se em
condições correspondentes, de uma coisa ou de um estado qualitativo
em um outro. [...] A possibilidade realizando-se, transforma-se em
realidade, e é por isso que podemos definir a realidade como uma
possibilidade já realizada e a possibilidade como realidade
potencial"(1).
Conhecer as possibilidades de uma dada realidade é assinalar seu potencial de
transformação. Portanto, ambas as leis secundárias podem servir para o
planejamento da intervenção na realidade objetiva, em suas dimensões
estrutural, particular e singular.
A CATEGORIA GÊNERO
Grande legado do feminismo da segunda metade do século 20, a categoria gênero
foi proposta para elucidar as relações sociais estabelecidas entre os sexos,
com a finalidade de romper com a dualidade até então prevalente nas concepções
essencialistas sobre homens e mulheres, até então naturalizadas, com franca
prevalência do poder deles sobre elas. Das Ciências Sociais, migrou para outros
campos do saber, entre eles, o da Saúde e da Enfermagem. De lá para cá, a
produção dos estudos de gênero ampliou-se, porém persistem equívocos teórico-
metodológicos a serem superados.
No embate entre as diferentes visões de mundo que coexistem, advindas das
correntes de pensamento da modernidade e da pós-modernidade,
as filosofias ditas pós-modernas, nas suas versões mais extremadas,
têm postulado várias "mortes", dentre elas: a "morte do homem", no
sentido de desconstruir as noções essencialistas da natureza humana,
propondo, ao invés, que o "homem" não é um ser transcendental e sim
um artefato social, histórico e linguístico (estando nisso implícita
a desconstrução da razão como algo fora da história); a "morte da
história", desconstruindo, assim, a noção de que a História tenha
qualquer ordem ou lógica intrínseca: trata-se apenas de uma
"metanarrativa" construída pelo homem para definir e justificar seu
lugar no tempo; e a "morte da metafísica", com o intuito de
desconstruir o "real" como algo externo ou independente do sujeito do
conhecimento: assim como "homem", também o "real" é socialmente e
historicamente construído(6).
A contribuição do feminismo pós-moderno para a construção do conhecimento pode
ser constatada na seguinte citação:
A perspectiva de gênero tem possibilitado a construção de uma
epistemologia crítica feminista - um discurso feminista sobre a
ciência e uma teoria crítica do conhecimento - que, se por um lado
fundamenta as bases de um saber feminista, por outro, vem abrindo
espaço para questionamentos e reavaliações até mesmo dos próprios
fundamentos desse saber. De fato, nos últimos anos, sacudidos por
ventos pós-modernos, os debates feministas vêm-se deslocando do plano
teórico-metodológico para questões de ordem epistemológica, com
desdobramentos contraditórios que, necessariamente, implicam o
repensar do projeto feminista enquanto produção de conhecimentos e
para além. Mais precisamente, ao mesmo tempo que se avança no sentido
da crítica feminista à ciência e à tecnologia e, assim, fundamentam-
se as bases para a construção de uma ciência feminista, coloca-se
hoje em jogo a autoridade epistêmica do sujeito do feminismo mas, não
mais apenas em termos dos fundamentos da Ciência Moderna. Agora, tal
questionamento se formula também no próprio interior do pensamento
feminista, o que, sem dúvida, traz implicações tanto científico-
acadêmicas quanto políticas(7).
Historicamente, a construção do pensamento feminista em torno da categoria
gênero utilizou abordagens ancoradas em, principalmente, três posições
teóricas: a primeira, baseada na Teoria do Patriarcado, adotando noções fixas
de feminilidade e masculinidade; a segunda, de orientação marxista, propondo
uma abordagem histórica tentando encontrar uma explicação material para o
gênero uma solução baseada nos sistemas duais, compostos pelos domínios do
patriarcado e do capitalismo, e a terceira, mais recente, dividida entre o pós-
estruturalismo francês e as teorias anglo-americanas das relações de objeto,
inspirando-se nas várias escolas da psicanálise para explicar a produção e a
reprodução da identidade de gênero dos sujeitos sociais. Opondo-se aos sistemas
binários, propõe-se a historicizar e desconstruir os termos da diferenciação
sexual, tentando encontrar meios de submeter as categorias à crítica,
entendendo que desconstruir significa criticar analisando, em cada contexto
específico, a maneira como opera qualquer oposição binária, revertendo e
deslocando sua construção hierárquica em lugar de aceitá-la como óbvia ou como
parte da natureza das coisas.
Assim, a história do pensamento feminista é uma "história da recusa da
construção hierárquica da relação entre homem e mulher nos seus contextos
específicos e uma tentativa de reverter e deslocar seus funcionamentos"(8).
Ainda, no que tange à construção do conhecimento,
o encontro entre o feminismo e as filosofias pós-modernas tem
propiciado o forjar de uma crítica feminista sobre a ciência que a
fere no seu cerne, sobretudo ao revelar as categorias de gênero
implícitas na construção das noções de sujeito, racionalidade,
objetividade e de outros semelhantes "princípios" e estratégias
epistemológicas associados ao pensamento iluminista. Podemos dizer
que, de um modo geral, a crítica feminista historiciza a ciência,
voltando-se para a análise de como as categorias de gênero tem
historicamente influenciado os conceitos de conhecimento, sujeito
cognoscente, justificativas e práticas de investigação ditas
científicas. [...] essa crítica vem revelando que o androcentrismo
tem ido muito além da mera exclusão das mulheres do mundo da ciência,
tendo um papel determinante não só na construção da cultura da
ciência, mas também no próprio conteúdo dos conhecimentos produzidos
[...]. Mas, a crítica epistemológica feminista não pode restringir-se
apenas a ser "crítica". Deve indagar e visualizar como seria uma
outra ciência (...). Melhor dizendo, uma epistemologia feminista deve
constituir-se, necessariamente, através de um processo de mão dupla,
ou seja, de um processo tanto de desconstrução como de construção
[...] Cabe-lhe, pois, propor princípios, conceitos e práticas que
possam superar as limitações de outras estratégias epistemológicas,
no sentido de atender aos interesses sociais, políticos e cognitivos
das mulheres e de outros grupos historicamente subordinados(9).
Dentre as definições de gênero que subjazem à abordagem pós-estruturalista, a
que melhor reflete estas rupturas foi proposta pela feminista americana Joan
Scott, nos anos de 1980, e implica dois níveis: gênero como elemento
constitutivo das relações sociais, baseado nas diferenças perceptíveis entre os
dois sexos, e gênero como forma básica de representar relações de poder em que
as representações dominantes são apresentadas como naturais e inquestionáveis.
Trata-se de um primeiro modo de dar significado às relações de poder(8).
A primeira parte do conceito desdobra-se em quatro elementos, facilmente
identificáveis no social: os símbolos culturalmente disponíveis; os conceitos
normativos expressos nas doutrinas religiosas, educativas, científicas,
políticas e/ou jurídicas; a organização social e as suas instituições; a
construção das identidades subjetivas(8).
Isto significa dizer que, qualquer que seja o fenômeno analisado, ele subjaz a
uma dada construção simbólica social e historicamente construída, um dado
conjunto de normas e conceitos normativos expressos nas mais diferentes áreas
da reprodução da consciência social, uma dada ou variadas formas de organização
social e das instituições que lhe correspondem, como família, escola, entre
outras, e as várias possibilidades de construção das identidades dos sujeitos e
de suas subjetividades1.
Com relação à segunda parte da definição, o conceito pode ser decodificado a
partir da noção de poder de Foucault: "a multiplicidade de correlações de
forças imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de uma organização"
(11). Nessa definição estão as ideias de multiplicidade, imanência, exercício e
constituição de um dado domínio que desconstroem a concepção de poder uno,
centralizado, coerente, externo e repressor frequentemente associado às classes
dominantes e ao homem, nas análises feministas. As ideias expressas, na
verdade, promovem uma inversão nesse poder, apontando o poder hegemônico como
"efeito do confronto contínuo e permanente de poderes inerentes às relações
sociais mais diversas (econômicas, sexuais, científicas, políticas, étnicas...)
que se processam entre todos os indivíduos e/ou grupos nos diferentes contextos
históricos, culturais e sociais"(12).
Na definição de Scott, a leitura e a compreensão desse poder a partir de
Foucault remete à compreensão em relação à construção dos sujeitos, saberes e
regimes de verdade, trazendo como fundamental a diferença entre relações de
poder, relações de dominação e inevitabilidade das resistências. O poder seria
a capacidade de agir sobre a ação do outro, reconhecido como sujeito da ação,
enquanto a dominação é caracterizada como conjunto de relações de poder fixas,
assimétricas, em que a possibilidade de resistências (enquanto estratégia
concreta da reação) deixa de existir. O mais importante disso tudo é que o
sujeito, ao surgir como agente social, dependente de várias posições de
sujeito, resultado de múltiplas determinações, contraditórias e conflitivas,
presentes na mesma subjetividade, passa a conter a possibilidade de
transformação possível. Essa transformação surge no espaço da multiplicidade
tensa, conflitiva e dinâmica da subjetividade e não supõe necessariamente
ruptura, mas introduz e valoriza o movimento, a fluidez e as pequenas mudanças
nas ações cotidianas(12).
Como primeiro modo de dar significado às relações de poder, significa dizer que
é
primeiro porque a relação hierarquizada com base na diferença sexual
antecede e atravessa todas as relações sociais; primeiro porque a
diferença sexual estabelece limites e indica possibilidades desde o
nascimento (hoje até mesmo antes do nascimento); primeiro porque é
bem provável que em algumas sociedades reconheçamo-nos antes como
meninas e meninos do que como brancas(os) ou negras(os), de elite ou
de classe trabalhadora. Certo, porém é que todas essas e outras
categorias sociais estão imbricadas na construção de nossas
subjetividades"(12).
Vários estudos propõem que, ao invés da primazia do gênero, proceda-se à
alquimização de categorias sociais, articulando-o com outras categorias e
aumentando assim sua potência para examinar os fenômenos, conforme comentaremos
mais adiante.
Ao assumir gênero como uma construção sociológica, política e cultural,
significa que o sexo não deve ser visto como uma variável demográfica,
biológica ou natural, mas que deve integrar toda uma carga cultural e
ideológica. Levando em conta a acepção de Simone de Beauvoir, "Ninguém nasce
mulher, mas se faz mulher", admite-se a necessidade de referências concretas
sobre as identidades masculina e a feminina. Além disso, deve ser levada em
conta a impossibilidade de compreensão do que é específico da identidade
feminina, da posição da mulher na sociedade, da valorização ou desvalorização
de seu trabalho, das divisões sexuais do trabalho/poder/exercício do erótico
sem a compreensão do específico da identidade masculina e do que há de comum ao
humano, já que o homem e a mulher são construções de gênero no humano(13).
Por último, o gênero deve ser tomado como realização cultural por meio de
ideologias2 que tomam formas específicas em cada momento histórico. Tais formas
estão associadas a apropriações político-econômicas do cultural que se dão como
totalidades, em lugares e períodos determinados. Este enfoque rompe com a visão
de que as discriminações contra as mulheres são produzidas pela perversidade
natural dos homens, recolocando-as em um sistema de relações que se "perpetua
porque serve a interesses, ainda que não tenham sido diretamente engendrados
para este fim"(15).
Em suma, pode-se dizer que gênero pressupõe a compreensão das relações que se
estabelecem entre os sexos na sociedade, diferenciando o sexo biológico do sexo
social. Enquanto o primeiro refere-se às diferenças anátomo-fisiológicas,
portanto, biológicas, existentes entre os homens e as mulheres, o segundo diz
respeito à expressão que essas diferenças assumem nas distintas sociedades, no
transcorrer da história. No entanto, se cairmos da armadilha de polarizar o
biológico e o social, podemos enveredar por caminhos que dificultam a
compreensão dos processos sociais.
A partir da leitura e reflexão sobre vários textos que procedem à conceituação
do termo gênero, Romeu Gomes ressalta os seguintes aspectos que qualificam tal
discussão:
1. Gênero refere-se a atributos culturais associados a cada um dos
sexos, contrastando-se com a dimensão anatomofisiológica dos seres
humanos. Feminino e masculino assumiriam feições de acordo com as
múltiplas culturas, sendo entendidos como construções culturais e não
com base a um ativismo biológico. Assim, a qualidade de ser homem e
ser mulher, só ocorre em termos da cultura produzida/reproduzida/
modelada em dada sociedade;
2. Os modelos de Gênero se constroem em uma perspectiva relacional,
significando que o que é visto culturalmente como masculino só faz
sentido a partir do feminino e vice-versa. Essa simbolização das
relações entre os Gêneros atravessa vários pares relacionais como
homem-homem, mulher-mulher e homem-mulher, expressando padrões de
masculinidade e feminilidade a serem seguidos. As identidades de
homem e mulher se afirmam na medida em que ocorrem aproximações e
afastamentos em relação ao padrão que concentra maior poder na
cultura.
3. No âmbito das relações de Gênero, podem ocorrer negociações ou
flexibilizações acerca das características dos modelos masculinos e
femininos. Seja no nível do indivíduo, seja na esfera da sociedade, a
cristalização das características tidas como exclusivas de um Gênero
pode tanto levar a uma não-legitimação da identidade de Gênero como
suscitar transgressões de um Gênero em busca de outro;
4. Gênero como categoria analítica possibilita refletir, de forma
conjunta, sobre a diferença e a igualdade não só entre homens e
mulheres, mas entre homens e entre mulheres;
5. Gênero, classe social e raça/etnia [e também geração] exercem
papel estruturante na reprodução e produção da identidade social e
subjetiva, das relações e das instituições sociais. Esses eixos
estruturantes, ainda que possam ser focalizados em separado para fins
analíticos em estudos e pesquisas, podem ser vistos de forma global,
pois a produção e a reprodução dos sujeitos se ancoram em sua
articulação(16).
Neste último ponto, há que se considerar que a interpretação dos fenômenos
sociais à luz do marxismo clássico recorre à estratificação por classes sociais
para determinar a posição dos indivíduos na sociedade, especialmente nas
sociedades de classe. No entanto, a corrente materialista dialética do
feminismo contemporâneo, ao transformar esse campo de saber, pressupõe a
ampliação dessa visão, reconhecendo outros atributos que igualmente podem
propiciar a compreensão dos sujeitos ou grupos sociais, dentre os quais o
gênero. Tais atributos, muitas vezes relativos às especificidades da própria
biologia, expressam condições de desigualdade no espaço social e, assim, também
determinam a identidade e o lugar de cada sujeito na sociedade. Além desses, há
ainda outros recortes analíticos importantes tais como raça/etnia e geração,
dos quais se pode lançar mão para compreender os fenômenos sociais e, dentre
eles, o próprio processo saúde-doença.
No entanto, todos esses atributos, por mais importantes que sejam, não devem
ser tomados isoladamente. Ao contrário, devem ser visualizados em conjunto,
pois é em sua conjunção que reside a capacidade explicativa por excelência das
condições de vida e saúde da coletividade.
As categorias raça, gênero e geração têm em comum serem atributos
naturais com significados políticos, culturais e econômicos,
organizados por hierarquias, privilégios e desigualdades, amparados
por símbolos particulares e naturalizados [...] A combinação de
categorias é de fácil comprovação, já o seu produto leva a outros
resultados e o seu conhecimento exige saber que se inicia por ruptura
com os esquemas duais(17).
Assim, a determinação dos fenômenos sociais subjaz à articulação entre
diferentes categorias sociais, com a predominância ora de uma, ora de outra, de
acordo com a subjetividade social construída.
A alquimia das categorias sociais está presente na construção de
subjetividades que somente para fins analíticos, seriam referidas
como específicas, ou seja, segundo a classe, gênero, geração ou
etnicidade. Contudo, se se trata de uma ação coletiva, no plano da
subjetividade3 coletiva são elaboradas seleções quanto a referências
(17).
Em tal raciocínio ancora-se a expressão alquimia das relações sociais (raça,
gênero e geração).
Esta alquimia não ocorreria em um vácuo, resultando em um tipo de
perfil próprio. Seus significados e re-elaborações, por sujeitos
políticos numa trajetória de se assumirem como tal, são pautados por
práticas sociais e projetos específicos. Tal alquimia é levada a
extremos em uma sociedade de classe, que ideologicamente a
reinterpreta para difusão de responsabilidades. Não só se naturalizam
questões de gênero, raça e geração, como estas são filtradas por
questões de classe, diluindo-se identidades e, portanto, percepções e
ações críticas a suas lógicas. Dilui-se também a propriedade
compreensiva dos quadros conceituais próprios a cada sistema de
relações(18).
Assim,
o reconhecimento da articulação de diversas categorias (classe,
etnia, gênero, geração, orientação sexual, religião) nos conduz
também a perceber e a conceitualizar de outro modo as relações de
poder. Assim, as análises que apontam para a mulher dominada versus o
homem dominante parecem sofrer, agora, de uma grande simplificação.
Para sermos capazes de incorporar as complexas articulações que
constituem os sujeitos [...] precisamos pensar o poder também como
uma rede complexa [...] Precisamos pensá-lo muito mais como uma ação
que é exercida constantemente entre os sujeitos e que supõe,
intrinsecamente, formas de resistência e contestação, do que como
algo que é possuído apenas por um polo e que está ausente no outro
(19).
É nesse quadro conceitual que a Saúde Coletiva e a Enfermagem vão se basear
para compreender sua prática social e os fenômenos sociais que cercam a
vivência das mulheres e das crianças que se articulam com o seu processo saúde-
doença.
A CATEGORIA GERAÇÃO: ENFATIZANDO A INFÂNCIA COMO CATEGORIA GERACIONAL
A categoria social classe já se encontra consagrada em estudos na perspectiva
histórica e dialética. Impulsionado pelo feminismo, gênero, como se viu, vem se
constituindo vigorosamente a partir da segunda metade do século passado,
principalmente nas Ciências Sociais. Já a infância como categoria geracional é
de uso relativamente recente. Um dos que iniciou esta discussão foi Jens
Qvortrup, sociólogo(20-21).
Antes de abordá-la é preciso que se clareie a categoria geração. De acordo com
Feixa e Leccardi(22), o conceito de geração passou por diferentes
interpretações desde Comte (concepção mecânica e exteriorizada do tempo),
Dilthey (recusa radical da visão matemática e quantitativa do tempo de Comte
pela abordagem histórico-romântica), Manheim (inflexão na história sociológica
do conceito) e Abrams (ampliou o conceito de Manheim, relacionando a noção
histórico-social de geração com a identidade), para destacar os mais
importantes.
Os autores(22) ainda referem que a Espanha foi o país que mais contribuiu para
adensar a noção de geração, como os estudos de Ortega e Gasset, de 1928, que
foram seguidos e aprofundados por discípulos como Aranguren.
Desde meados dos anos 1960, a teoria das gerações foi posta de lado
no pensamento sociológico por ser considerada conservadora e
antiquada, sendo substituída pelas teorias neomarxistas que
consideraram os jovens como uma 'nova classe' [...] No entanto, desde
1985, o conceito de gerações tem sido 'redescoberto' pelas novas
gerações de pesquisadores espanhóis, que o estão retomando para reler
e repensar as concepções clássicas a partir de Aranguren até Ortega y
Gasset(22).
Concluem Feixa e Leccardi que hoje, no século 21, existe uma geração global e
constelações geracionais cruzadas, como
1. a geração migratória (marcada pelos processos de migração
transnacional); 2. a geração aprendiz (marcada pelo trabalho
precário); e 3. a geração colcha de retalhos (marcada por processos
de hibridização cultural). Nestas três áreas (demográfica, econômica
e cultural), a geração mais jovem (ou qualquer de suas frações) atua
como um barômetro das novas tendências(22).
Do nosso ponto de vista, Qvotrup(20-21), ao descrever a infância como categoria
geracional, não só realiza um movimento dialético escrutinando essa categoria
sociológica específica, como aporta fundamentos para reconceptualizações das
diferentes categorias geracionais, como adulto e idoso. Portanto, mesmo falando
da especificidade da infância, entendemos que a noção de categoria foi
revisitada e que traz à tona importantes polaridades que a noção espanhola não
dá imediata possibilidade.
A categoria geração é
aquela que define o lugar ocupado pela infância na sociedade,
portanto, o elemento que fundamenta o campo da sociologia da
infância. Dessa forma, admite as outras categorias clássicas de
análise no campo das Ciências Sociais (classe social, gênero, etnia)
como categorias complementares à geração(23).
As principais ideias sobre o novo paradigma dos estudos sociais na infância
encontram-se nas "Nove teses sobre a infância como fenômeno social", publicado
por Qvortup em 1993(21). Partiu da constatação do "fato, muitas vezes
negligenciado, de que as crianças são indiscutivelmente parte da sociedade e do
mundo e é possível e necessário conectar a infância às forças estruturais
maiores, mesmo nas análises sobre economia global"(23).
Todos os eventos da sociedade têm impacto sobre as crianças que dela fazem
parte, por isso elas terão reivindicações a serem consideradas, partícipes que
são da sociedade. Mas parece, ao menos nas sociedades ocidentais, que as
políticas públicas, de desenvolvimento e economia não consideram a perspectiva
de seu impacto sobre as crianças. Ao contrário, sua exclusão do mundo adulto
era constante entre pesquisadores. Para compreender estas e outras questões,
mais que o conceito de criança, postula-se o conceito de infância. Nascimento
(23) afirma que não é suficiente analisar a infância como questão interna da
família, nem a analisar a partir de parâmetros tradicionais e de
estratificação: ficam faltando as questões das relações entre gerações.
Para compreender a categoria geracional, é preciso entender o significado das
Nove Teses(21), tal como interpretadas por Nascimento(23).
Tese 1: a infância é uma forma particular e distinta em qualquer
estrutura social de sociedade
Esta tese postula que a infância constitui uma forma estrutural
particular, que não é definida pelas características individuais da
criança, nem por sua idade - mesmo que a idade possa aparecer como
uma referência descritiva, por razões práticas. Como forma
estrutural, é conceitualmente comparável com o conceito de classe, no
sentido da definição das características pelas quais os membros, por
assim dizer, da infância estão organizados e pela posição da infância
assinalada por outros grupos sociais, mais dominantes. Pessoalmente,
poderia, como exemplo, mencionar duas características definidoras da
infância na sociedade moderna como extremamente importantes:
primeiramente uma, relacionada à prática, principalmente à
escolarização das crianças ou, em termos mais gerais, à
institucionalização das crianças; o que pode significar uma situação
de confinamento até o final da infância, que coincidiria, então, com
o final da escolarização compulsória. Em segundo lugar, em termos
legais, o lugar da criança como menor - um lugar que é dado pelo
grupo dominante correspondente, os adultos. Em nenhum desses casos
nós precisamos ter idades fixadas em termos biológicos, mas
definições determinadas socialmente. Isso ainda deixa muito a
desejar, e, mesmo que variados fatores possam ser propostos, o ponto
crucial é, a meu ver, olhar para o que são características comuns
para as crianças e, então, evitar confundir suas condições de vida
com as características de vida de seus pais, por exemplo. [...] O uso
de características abstratas, como as que foram mencionadas aqui,
tem, por exemplo, a vantagem de proporcionar o acompanhamento do
desenvolvimento histórico da infância, verificando o lugar em que as
crianças têm sido colocadas e podem ser localizadas na arquitetura
social pelos adultos. Também proporciona a comparação de crianças de
diferentes sociedades e culturas. E, finalmente, torna possível, em
princípio, comparar crianças com outros grupos na sociedade(23).
Tese 2: A infância não é uma fase de transição, mas uma categoria
social permanente do ponto de vista sociológico
Subjacente a esta tese, enquanto distinção entre transição e
permanência, está um diálogo, mas não um argumento contrário à
descrição psicológica e à socialização, que postulam que a criança se
desenvolve por meio de certo número de fases, até que atinja a
maturidade. Esta ideia é obviamente correta, num certo sentido, mas
não contribui para o entendimento sociológico da infância. Do meu
ponto de vista, a infância persiste: ela continua a existir - como
uma classe social, por exemplo - como forma estrutural,
independentemente de quantas crianças entram e quantas saem dela.
Como característica da infância, a única questão importante é como
ela se modifica, quantitativa e qualitativamente. Essas modificações
não podem ser explicadas em termos de disposições individuais - mesmo
que também o possam ser -, mas devem, primeiramente, ser explicadas
por mudanças no número de parâmetros sociais. Por essa razão, a meu
ver, a concepção de socialização, no sentido de desenvolvimento, é
pouco fecunda no argumento sociológico, a menos que pensada meta-
teoricamente, isto é, a partir da questão: como são as expressões da
educação e da socialização dos adultos nas atitudes da sociedade
adulta, e qual sua influência e seu poder em relação à infância?(23)
Tese 3: A ideia de criança em si mesmo é problemática, enquanto a
infância é uma categoria histórica e intercultural
Esta tese é uma especificação do que já foi parcialmente dito, mas é
importante o suficiente para ser sublinhada, visto que a ideia de
criança tem dominado a pesquisa sobre as crianças até hoje. Essa
abordagem tem sido frequentemente criticada, porque advoga que a
criança é supra-histórica e, portanto, um indivíduo a-histórico;
porque distancia nossa atenção da ação construtiva das crianças em
seus próprios direitos; porque nos impede de tratar a infância em sua
variabilidade histórica; e, finalmente, porque separa a criança da
sociedade na qual ela vive. Isso quer dizer, então, que não há
somente uma concepção de infância, mas muitas, construídas ao longo
do tempo, e, novamente - como um metanível -, são exatamente as
mudanças de concepção que são objeto de interesse sociológico, porque
presumivelmente refletem mudanças de atitude em relação às crianças.
Agora, ao invés de sugerir que as crianças são especiais, que talvez
mesmo ontologicamente tenham tipos diferentes e sejam expostas a
tratamento diferenciado, eu proponho minha quarta tese, que é:(23).
Teses 4: Infância é uma parte integrante da sociedade e de sua
divisão de trabalho
Esta tese, novamente, contradiz o conhecimento psicológico sobre as
crianças, que se fixa sobre como elas crescem e como serão finalmente
incluídas na sociedade. Penso que se possa discutir, de modo
convincente, que crianças são participantes ativas na sociedade não
somente porque realmente influenciam e são influenciadas por pais,
professores e por qualquer pessoa com quem estabeleçam contato, mas
também por duas outras razões: primeiro, porque elas ocupam espaço na
divisão de trabalho, principalmente em termos de trabalho escolar, o
qual não pode ser separado do trabalho na sociedade em geral; na
realidade, essas atividades são totalmente convergentes no mercado de
trabalho. Em segundo lugar, porque a presença da infância influencia
fortemente os planos e os projetos não só dos pais, mas também do
mundo social e econômico. A infância interage, então,
estruturalmente, com os outros setores da sociedade. Isso pode ser
demonstrado de diferentes maneiras, mas talvez seja mais claramente
visto no balanço da mudança demográfica: mesmo que a razão de
dependência não tenha mudado radicalmente em si mesma, a constância
relativa é ilusória, visto que há uma dramática diferença, quando o
numerador da fração é composto por uma larga porção de crianças e uma
pequena porção de idosos, como no começo do século; ou vice-versa,
como está se tornando agora. Se for plausível propor que as crianças
façam parte da regra da divisão social do trabalho, é também possível
sugerir que certos interesses estejam conectados a essa regra e que
as crianças, baseadas em seu consumo, reivindiquem recursos sociais,
além daqueles que são autorizadas a receber como membros de uma
família particular. É também uma questão moral, se se pode defender
que o direito à provisão é bastante variável, a depender do
background familiar. Nas sociedades orientadas para o consumo, isso é
contraditório, e pode somente acontecer porque crianças (a) são
consideradas fora das sociedades utilitárias como não consumidoras e
(b) são consideradas como propriedade dos pais e, portanto,
dependentes do consumo destes(23).
Tese 5: As crianças são co-construtoras da infância e da sociedade
[...] há uma concepção amplamente divulgada, tanto na ciência quanto
entre os adultos, que afirma que as crianças são inúteis e meras
receptoras. Já apontei como construtivas as atividades escolares das
crianças, mas elas não são as únicas, e penso que a tese pode ser
generalizada para sugerir que, todas as vezes que as crianças
interagem e se comunicam com a natureza, com a sociedade e com outras
pessoas, tanto adultos quanto pares, elas estão contribuindo para a
formação quer da infância quer da sociedade. Isso é tão simples e
evidente que não acredito que alguém possa discordar. No entanto, a
partir das metáforas que usamos sobre as crianças ou a partir das
regras de não participação que nós costumeiramente endossamos - ou
acreditamos endossar -, não parece errado propor que as crianças são
percebidas e vêm a perceber-se como "máquinas triviais", [...]
Crianças não são, porém, máquinas triviais - como nenhum sistema
orgânico ou psíquico pode ser - [...] as crianças são criadoras,
inventivas, porque se envolvem em ações propositivas. Não acredito
que essa afirmação seja difícil de substanciar; o problema talvez
seja seu conhecimento para e pela sociedade, porque a tese das
crianças como participantes na construção do mundo é radical o
suficiente para tornar-se uma ameaça à ordem social, a qual talvez
deva esforçar-se para tratar as crianças como máquinas triviais, a
despeito da falsidade desse conceito(23).
Tese 6: A infância é, em princípio, exposta (econômica e
institucionalmente) às mesmas forças que os adultos, embora de modo
particular
[...] parece ser essencial para um ponto de vista sociológico, porque
nos informa sobre a sociedade como um terreno comum para todos os
grupos etários e coloca-se contra a ideia de que as crianças vivem em
um mundo especial, ideia baseada nas supostas, e talvez realmente
diferentes, disposições das crianças em relação aos adultos. A
questão, entretanto, não é indicar que crianças não possam
interpretar o mundo diferentemente, mas sugerir que ninguém,
inclusive as crianças, pode evitar a influência de eventos mais
amplos, que ocorrem além do microcosmo próximo. Como, por exemplo, as
forças econômicas, os eventos ligados ao meio ambiente, o
planejamento físico, as decisões políticas, etc. Dificilmente poder-
se-ia pensar em qualquer questão, em áreas dessa ordem, que não
causasse impacto na vida das crianças(23).
[...] a infância é influenciada de um modo particular pelas forças
sociais, é que, frequentemente, as crianças são atingidas por elas
indiretamente ou de forma mediada, o que torna mais difícil a
constatação dessa influência; e, com muita frequência, a legislação é
elaborada sem levar as crianças em consideração, embora haja poucas
dúvidas de que os eventos sociais causem efeitos constantes. As
crianças, no entanto, não são consideradas - e, na melhor das
hipóteses, famílias com crianças o são(23).
[...] desemprego é uma questão dada pela legislação atual que só
atinge os adultos. Em país algum há estatísticas públicas com o
número de crianças atingidas pelos efeitos do desemprego. Felizmente,
as consequências psicológicas para as crianças têm sido estudadas,
embora seja possível - como exemplos de nosso projeto têm mostrado -
produzir estatísticas correntes sobre "crianças com pais
desempregados", assim como fazer os políticos lembrarem-se das
implicações para as crianças também. Em termos mais gerais, a
retração e a expansão do mercado de trabalho têm também um tremendo
impacto sobre a vida das crianças. Creio que a maioria de nós
concordará em compreender como positiva a progressão em direção ao
pleno emprego de homens e mulheres. No entanto, essa progressão tem
contribuído para o crescimento da institucionalização das crianças.
Se isso é bom ou ruim para elas, esta é uma questão em aberto, mas
ninguém pode negar que a vida das crianças mudou [...](23).
Tese 7: A dependência convencionada das crianças tem consequências
para sua visibilidade em descrições históricas e sociais, assim como
para sua autorização às provisões de bem-estar
Procuramos - em vão - em estatísticas comuns, nas informações
governamentais, em documentos de pesquisa, etc. por algum material
que trouxesse as crianças como unidade de observação ou que fizesse
esforço para analisar a infância do ponto de vista das crianças.
[...] surgiram questões interessantes sobre as razões que
determinavam essa situação. Duas respostas principais foram obtidas:
uma, sob o título de "capitalização da infância", sugeria que o
Estado demandava somente dados que eram absolutamente necessários
para seu planejamento e esforços de elaboração de políticas. Uma
outra, que não contradizia a primeira, via a invisibilidade como uma
consequência das definições arraigadas das crianças como imaturas,
não adultas ainda, que, de qual- quer modo, têm que confiar nos pais.
Então, aparentemente, parece não existir necessidade de contar as
crianças por elas mesmas. Vários exemplos colhidos durante nosso
projeto provam que essa explicação está errada. Nós obtivemos
importantes insights novos quando focalizamos diretamente as
crianças. Por exemplo, a insistência em utilizar a família como
unidade de observação quando buscamos saber sobre condições materiais
impede-nos de perceber a situação agregada das crianças, comparada
com outros grupos na sociedade. Desse modo, o peso preponderante
atribuído ao status das crianças como dependentes contradiz qualquer
ideia de "melhor interesse da criança". Na verdade, poder-se-ia
discutir que essa ideia em si mesma tornou-se a vítima dos interesses
estruturais da sociedade industrial(23).
Tese 8: Não os pais, mas a ideologia da família constitui uma
barreira contra os interesses e o bem-estar das crianças
A despeito da carência de informação, conseguimos coletar evidências
suficientes para substanciar a suspeita de que as crianças, como
grupo, mais frequentemente que outros grupos, pertencem aos mais
baixos escalões em termos de renda per capita disponível. Somente os
mais idosos, em alguns países, são capazes de competir com esse
record, embora a última década tenha demonstrado uma relativa
deterioração das condições das crianças em comparação com as
condições dos mais idosos. De fato, há várias razões para a relativa
desvantagem de algumas crianças em particular, mas, se pensarmos em
termos da posição das crianças em geral, qual é a razão? De modo
geral, posso sugerir que a culpa não é dos pais. Eles estão realmente
fazendo muitas coisas e são, na maioria dos casos, forçados a
experienciar a mesma privação que suas crianças. [...] herdamos uma
ideologia da família que pode ser considerada um anacronismo. O
principal problema que constitui nossa ideologia da família - e que
vários membros do grupo do projeto referiram como "familialização" -
é que as crianças expressis verbis são mais ou menos propriedades de
seus pais; ou, em termos menos dramáticos, são, ao menos,
responsabilidade parental e, em princípio, exclusivamente
responsabilidade de seus pais. Desde que a sociedade só se interessa
em interferir em casos excepcionais, quando as crianças estão em
situação perigosa, segue-se que não é aceito nem cogitado aceitar a
responsabilidade geral pela infância. Isso não necessariamente
significa que a sociedade não se ocupe das crianças, mas significa
que ela não é constitucionalmente obrigada a intervir, mesmo em casos
em que as crianças estejam próximas da pobreza de maneira recorrente,
para mencionar um exemplo. Por que a sociedade deveria assumir
qualquer responsabilidade sobre as crianças? Penso que existem pelo
menos três argumentos. Primeiramente, um argumento moral: para
garantir que crianças sejam providas de acordo com um padrão básico
ou com um padrão para famílias com crianças que, em princípio,
estejam em igualdade de condições com outros casais sem crianças. Em
segundo lugar, um argumento de direito, que deveria admitir que, se
as crianças estão contribuindo, elas também podem reivindicar
recursos para distribuição; e pode-se adicionar que deveria haver
garantias para compensar os pais de suas contribuições. Terceiro, um
argumento que diz respeito ao "interesse" nas crianças, com
responsabilidade sobre elas, e não é difícil demonstrar que a
sociedade também tem significativo interesse nas crianças, se não
como crianças, mas como membros do que é ilusoriamente denominado
próxima geração(23).
Tese 9: A infância é uma categoria minoritária clássica, objeto de
tendências tanto marginalizadoras quanto paternalizadoras
[...] concordo com a abordagem que categoriza a criança como grupo
minoritário, definido em relação ao grupo dominante, que possui
status social mais alto e maiores privilégios, isto é, nesse caso, os
adultos; e, indo além, como um grupo que, por suas características
físicas ou culturais, é singularizado à parte da sociedade, com um
tratamento diferencial e desigual. [...] Penso que essa definição (de
minoria) pode ser seguramente aplicada à infância, mas é necessário
algum detalhamento para distinguir a infância de outras minorias. Na
verdade, creio que se justifica sugerir que a infância seja mesmo o
protótipo de uma categoria minoritária, pois as metáforas "criança"
ou "infantil" são frequentemente utilizadas para caracterizar vários
outros grupos minoritários. Quando é esse o caso, trata-se, quase
sempre, de um sinal de atitude paternalista, e, exatamente, o
paternalismo é uma atitude característica, no sentido de uma estranha
combinação de amor, sentimentalismo, senso de superioridade em
relação à compreensão equivocada das capacidades infantis e à
marginalização(23).
Ao concluir as Nove Teses, o Qvurtrop advoga que é preciso incluir a infância
analiticamente na sociedade por meio de uma abordagem interdisciplinar.
Complementa referindo que, enquanto as crianças estão aguardando a cidadania
real, que tenham ao menos um tipo de cidadania científica. Ou, como refere
Sarmento,
a sociologia da infância propõe-se a constituir a infância como
objecto sociológico, resgatando-a das perspectivas biologistas, que a
reduzem a um estado intermédio de maturação e desenvolvimento humano,
e psicologizantes, que tendem a interpretar as crianças como
indivíduos que se desenvolvem independentemente da construção social
de suas condições de existência e das representações e imagens
historicamente construídas sobre e para eles. [...] a sociologia da
infância propõe-se a interrogar a sociedade a partir de um ponto de
vista que toma as crianças como objecto de investigação sociológica
por direito próprio, fazendo acrescer o conhecimento, não apenas
sobre infância, mas sobre o conjunto da sociedade globalmente
considerada. A infância é concebida como uma categoria social do tipo
geracional por meio da qual se revelam as possibilidades e os
constrangimentos da estrutura social(24).
O estatuto social da infância é construído historicamente em cada sociedade,
com base em ideologias, normas e referências sobre o lugar social que deve
ocupar. Eivado de contradições, esse processo de construção não está
finalizado, pois é constantemente atualizado nas relações intergeracionais, nas
práticas sociais, nos dispositivos culturais e nas políticas públicas.
Em suma, o conceito de geração não só nos permite distinguir o que
separa e o que une, nos planos estrutural e simbólico, as crianças e
os adultos, como as variações dinâmicas que nas relações entre
crianças e entre crianças e adultos, e vai sendo historicamente
produzido e elaborado. Por outras palavras, a "geração" é um
constructo sociológico que procura dar conta das interacções
dinâmicas entre, no plano sincrónico, a geração-grupo de idade, isto
é, as relações estruturais e simbólicas dos actores sociais de uma
classe etária definida e, no plano diacrónico, a geração-grupo de um
tempo histórico definido, isto é o modo como são continuamente
reinvestida de estatutos e papeis sociais e desenvolvem práticas
sociais diferenciadas os actores de uma determinada classe etária, em
cada período histórico concreto. São as mútuas implicações da
infância como grupo de idade nas sucessivas infâncias historicamente
datadas e suas relações com os adultos (eles próprios definíveis pelo
estatuto histórico contemporâneo e pelas formas históricas de adultez
que se foram fazendo, refazendo e consolidando) o que, em síntese se
inscreve no projecto científico da sociologia da infância(24).
O processo de construção da infância e sua separação e distinção do mundo
adulto é consentâneo da criação das creches e da escola pública, que foram "as
primeiras instituições modernas orientadas para um grupo geracional". A escola
difundiu-se e disseminou-se e nela a infância institucionalizou-se.
A separação das crianças relativamente às outras gerações não
ocorreu, porém, apenas nem primordialmente por meio da criação de
instituições para as crianças. A par disso, com fortes vinculações
nesse processo de institucionalização, desenvolveu-se um trabalho de
construção simbólica da infância, também ele enraizado em condições
históricas complexas (Becchi & Julia, 1998), que promoveu,
progressivamente, um conjunto de exclusões das crianças do espaço-
tempo da vida em sociedade(24).
Em que pese a universalização dos direitos das crianças, a infância carrega em
si uma negatividade, decorrente de sua distinção e separação do mundo social
dos adultos. Criança é a pessoa em processo de criação, ainda não finalizada, é
o aluno (o que ainda não tem luz), alguém que é juridicamente incompetente e
inimputável; considerada dependente, sofre interdições sociais: não pode
trabalhar, dirigir, constituir família, votar ou ser votada.
[...] o efeito simbólico de conceptualização e representação sócio-
jurídica da infância pela determinação dos factores de exclusão e
não, prioritariamente, pelas características distintivas ou por
efectivos direitos participativos: em última análise, a negatividade
constitutiva da infância exprime-se na ideia da menoridade[grifo
nosso]: criança é o que não pode nem sabe defender-se, o que não
pensa adequadamente (e, por isso, necessita de encontrar quem o
submeta a processos de instrução), o que não tem valores morais (e,
por isso, carece de ser disciplinado e conduzido moralmente)(24).
Se, por um lado, os diretos e as formas de proteção à infância expandiram-se,
por outro, "memorização" das crianças as expôs a um paternalismo que reforçou a
"assimetria de poderes nas relações intergeracionais e constituem fortes
constrangimentos de exercício de uma vida social plena pelas crianças"(24).
[...] medidas de protecção não apenas não foram capazes de se
declararem perfeitas, universais e competentes na efectiva
salvaguarda dos direitos das crianças, como a relação de dependência
tem gerado situações abusivas que reforçam a vulnerabilidade
estrutural das crianças [...]"(24).
Por essas razões, Sarmento considera que
A sociologia da infância tem vindo a assinalar a presença destas
variações intrageracionais e recusa uma concepção uniformizadora da
infância. Não obstante, considera, para além das diferenças e
desigualdades sociais que atravessam a infância, que esta deve ser
considerada, no plano analítico, também nos factores de
homogeneidade, como uma categoria social do tipo geracional própria.
Isso significa que se considera a infância nos factores sociais à
posição de classe, ao género, à etnia, à raça, ao espaço geográfico
de residência. [...] uma distinção semântica e conceptual entre
infância, para significar a categoria social do tipo geracional, e
criança, referente ao sujeito concreto que integra essa categoria
geracional e que, na sua existência, para além da pertença a um grupo
etário próprio, é sempre um actor social que pertence a uma classe
social, a um género etc(24).
Em tradução livre de Qvotrup, a infância é um conceito relacional e encontra-se
disposta dentro de uma ordem geracional. Uma objeção típica a essa noção é que
não se tem garantias de poder generalizar, tal como meramente uma infância.
Esta objeção é importante, pois certamente é verdadeiro que crianças e
infâncias (no plural) diferem de acordo com as circunstâncias específicas da
vida, que dependem do background de classes, etnias ou gênero. Mais ainda,
nenhuma infância é idêntica a outra. A objeção é portanto trivial. Mas, apesar
de todas as diferenças entre as crianças, todas elas tem algo em comum e é
precisamente esta trivialidade (algo que é comum a todas as crianças) é que as
separa dos adultos(21).
A infância é relacionada a outras categorias geracionais como a juventude, a
maioridade e a velhice. É sabido que a maioridade (adultice) é a mais
importante delas, dado que é sem dúvida a geração ou grupo etário dominante.
Situados nas extremidades desse continuum, crianças e velhos compartilhariam
interesses comuns?
Um economista norueguês disse que a dispendiosa escola norueguesa é
uma das razões para a crise do cuidado dos idosos. Se sua conclusão é
correta ou não, não importa neste momento. O que interessa é a
maneira como esse economista está argumentando. Ele está de fato
simulando que as provisões públicas para crianças e idosos devem ser
correlacionadas negativamente. Se as provisões para as crianças
aumentam, devem diminuir para os idosos - e vice-versa. Sendo assim,
somos obrigados a concluir que os dois grupos etários têm diferentes
interesses. Eles ou seus protagonistas devem lutar politicamente
contra o outro para obter maior parcela dos recursos disponíveis. Há
infelizmente alguma verdade nesta forma de apresentar o problema
[...] Politicamente, é uma conclusão trágica, entretanto, que dois
grupos fracos aparecem para ser jogados um contra o outro. [...] Mas
alguém pode perguntar quem tem interesse em jogar um contra o outro?
A resposta a esta questão pode ser - o interesse do adulto, a geração
trabalhadora, para retratar a velhice e a infância como passivos que
representam um dreno dos recursos públicos que finalmente são
coletados dos bolsos dos pagadores de impostos(21).
Qvortrup(20) considera que classes sociais e gênero têm permanência, assim como
as categorias geracionais. Acrescenta que a
principal particularidade a respeito das categorias estruturais, em
termos de gerações - se comparada àquelas em termos de classe e
gênero - é a relativamente rápida rotação de seus constituintes: no
que diz respeito à infância, podemos dizer que ela experiencia 100%
de mobilidade em direção à idade adulta - ou se preferir, uma
substituição total de geração [...] a cada 18 anos(20).
Qvotrup questiona se as crianças têm usufruído dos frutos da modernidade.
Entretanto, nós temos o direito de perguntar se os benefícios da modernidade
são mais incidentais do que previstos e sistemáticos. Os elementos principais
da modernidade - individualismo, racionalidade e progresso - necessitam ser
analisados tendo em vista a criança(21).
A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E GERAÇÃO COMO CONSTRUTOS SOCIAIS
Violentia, no latim, remete ao que é da dimensão do violento ou
bravio, força; que viola, que profana e trata com violência. Tais
termos devem ser referidos a vis, que implica analisar algo da ordem
da força, do vigor, da potência, da violência e do emprego de força
física, porém, também de quantidade ou caráter essencial de algo. O
prefixo vis pode ter o significado de força em ação enquanto um
recurso de um corpo para exercer sua força vital. No grego, o vis
mantém a perspectiva do latim, que pressupõe uma força que coage e
faz violência. Deste modo, este núcleo se torna central, a violência
como expressão de uma força que se torna problemática quando perturba
a ordem ou excede em medida(25).
Referem estes autores(25) que o limiar das classificações sobre a violência
encontra-se nas normas e nos valores de uma sociedade, em seu tempo histórico
(acréscimo nosso), e por isso existiriam tantas maneiras diferentes de
violência quanto sociedades distintas em termos de valores ou normas. Rocha,
Lemo e Lírio(25) afirmam que:
Arendt (2010) e Michaud (1989) concordam que a violência está
submetida à razão e ao cálculo e que seus praticantes a realizam em
uma gestão cínica do terror generalizado. Deste modo, discordam
daqueles que pensam a violência apenas no domínio da irracionalidade
e da natureza de uma força que irrompe simplesmente de modo
passional. Há uma produção anterior de párias por diferentes
mecanismos e a violência seria um instrumento, um meio para se
atingir determinada finalidade. Arendt critica o monopólio estatal da
violência, ressaltando que nenhuma forma de violência é legítima,
podendo até ser justificada, mas nunca exaltada e glorificada. Deste
modo, para Arendt (2010), o fracasso da política está na base da
violência, quando poder e autoridade perdem força, a violência se
instala. Ela diferencia poder de violência, pois, para ela, o poder é
instalado pela comunidade política que delega aos seus representantes
reconhecimento e autoridade e, quando estas lideranças se distanciam
de um diálogo contínuo com os grupos sociais e se burocratizam, a
impotência se instala, afirmando-se cada vez mais pela ameaça e pelo
uso da violência. Critica o uso do conceito de violência como
sinônimo do poder. A violência, para Arendt (2010), seria um sinal da
perda de poder. Violência e poder poderiam andar juntos, todavia,
seriam diferentes(25).
Para Vázquez,
[...] a violência se manifesta onde o natural ou o humano - como
matéria ou objeto de sua ação - resiste ao homem [...] Nesse sentido
a violência é exclusivamente do homem, na medida em que ele é o único
ser que para manter-se em sua legalidade propriamente humana
necessita violar ou violentar constantemente uma legalidade exterior
(a da natureza). Se o homem vivesse em plena harmonia com a natureza
ou passivamente sujeito a ela, não recorreria à violência, já que
está é, por princípio a expressão de um desajuste racial(3).
Vázquez ainda refere que
[...] em Marx a violência revolucionária aparece como uma necessidade
histórica que necessariamente desaparecerá, com o concurso dela
mesma, ao desaparecerem as condições histórico-sociais que a
engendram. Não tem um conteúdo único, universal e abstrato; é
violência e contra-violência; serve a uns e outros interesses; é
elemento de uma práxis e de uma antipraxis. Não é, por conseguinte,
pura positividade, nem mera negatividade. [...] Nas condições de uma
sociedade dividida em classes, é positiva na medida em que serve a
uma práxis social revolucionária. Mas num mundo verdadeiramente
humano, onde os homens se usam livre e consequentemente, a violência
tem que ser excluída. [...] a violência e a coação exterior darão
lugar a uma elevada consciência moral e social que tornarão
desnecessária a violência. [...] A práxis social não terá que
recorrer à violência. [...] ao deixar de ser violenta a práxis social
terá uma dimensão autenticamente humana"(3).
Trabalhar com as perspectivas de gênero e geração para explicar e compreender a
violência contra a mulher e a criança é trabalhar com o reconhecimento de que,
na hierarquia de poderes presente na sociedade, a mulher e a criança sempre
ocuparam posições sociais inferiores, sofrendo injustiça social, em virtude das
desigualdades construídas e naturalizadas historicamente.
A OMS define violência como
o uso da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si
próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade,
que resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão,
morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação"
(26).
A filósofa Marilena Chauí define violência como o resultado de uma relação de
desigualdade, justificada pela diferença, que permite a expressão da força de
dominação, opressão e exploração, assim como uma ação que reifica o ser humano,
uma vez que o impede de ser sujeito na relação com o mundo:
Entendemos por violência uma relação determinada das relações de
força tanto em termos de classes sociais quanto em termos
interpessoais. Em lugar de tomarmos a violência como violação e
transgressão de normas, regras e leis, preferimos considerá-la sob
dois outros ângulos. Em primeiro lugar, como conversão de uma
diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de
desigualdade com fins de dominação, de exploração e de opressão. Isto
é, a conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em
relação entre superior e inferior. Em segundo lugar, com a ação que
trata o ser humano não como sujeito, mas como uma coisa. Esta se
caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio, de modo
que quando a atividade e a fala de outrem são impedidas, há
violência"(27).
Neste sentido, violência significa:
1) Tudo o que age usando a força para ir contra a natureza de algum
ser (é desnaturar); 2) Todo ato de força contra a espontaneidade, a
vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar,
brutalizar); 3) Todo ato de violação da natureza de alguém ou de
alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar);
4) Todo ato de transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém
ou uma sociedade definem como justas e como um direito; 5)
Consequentemente, a violência é um ato de brutalidade, sevícia e
abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações
intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo
medo e pelo terror(27).
A violência constitui a forma perversa de uma relação de poder que, se
fundamentada no gênero e na geração, traduz-se numa relação de dominação em que
mulheres ou crianças são quase sempre desfavorecidas.
O poder não é algo que possa ser dividido entre aqueles que o detêm
exclusivamente e aqueles que não o possuem e lhe são submetidos. O
poder deve ser analisado como algo que circula, que funciona em
cadeia, que se exerce em rede. Os indivíduos nunca são alvo inerte ou
consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outras
palavras, o poder não se aplica aos indivíduos, e sim passa por eles,
sendo o indivíduo um dos primeiros efeitos do poder(28).
À GUISA DE SÍNTESE
Na presente reflexão teórica buscou-se explicar a importância das categorias
sociológicas gênero e geração que, a par de classes sociais e etnia, têm a
potência de elucidar os fenômenos da realidade objetiva, na dialética da
aparência e essência e da realidade e possibilidade, rumo à intervenção em
Enfermagem em Saúde Coletiva.
Seguindo os ditames da Tipesc, a compreensão mais acurada dessas categorias é
fundamental tanto para explicitar as contradições, auxiliando na busca de seus
polos, quanto no entendimento da gênese do fenômeno que, por conter traços da
qualidade anterior (lei da negação da negação: a realidade é nova, mas contém
as características essenciais da anterior que permaneceram na nova realidade)
coadjuva na elucidação da dinâmica das transformações, ao distinguir a
quantidade importante para o salto qualitativo.
Para prosseguir esta discussão com elementos mais próximos da prática sugere-se
a leitura de alguns estudos que, mesmo que não tão densamente apoiados nas
categorias gênero e geração tal como aqui descritas, mostram faces (aparência)
da realidade fenomênica apontando para as possibilidades interventivas. Um
primeiro que chama a atenção é o estudo "Compreendendo a violência doméstica a
partir das categorias gênero e geração"(29) no qual as autoras fazem uma
revisão de literatura, cujo objetivo foi o de "compreender como as categorias
gênero e geração influenciam na construção da violência doméstica contra a
mulher"(29), pesquisando um universo de 20 textos - artigos, livros,
dissertações e teses - no período entre 1996 e 2007. As bases de dados do
estudo foram Scielo, Lilacs e Banco de Teses da Capes. Esse estudo é relevante
pois tenta olhar a violência doméstica a partir das duas categorias-chave, para
além das classes sociais. Apesar disso há que sublinhar que é uma publicação de
mais de cinco anos e realizada em base de dados bastante restrita. As autoras
constataram que os estudos consideram que o
núcleo familiar configura-se como espaço de construção da violência
de gênero e intergeracional [...] a violência doméstica contra a
mulher constrói-se a partir das relações de desigualdade entre homens
e mulheres, sendo naturalizada no processo de socialização dos
sujeitos e reproduzida de geração em geração(29).
Atualizando estas afirmações e aprofundando o entendimento das categorias
gênero e geração para estudo dos fenômenos, existem diversos outros estudos.
Na perspectiva de gênero, o estudo Gender-based violence: conceptions of the
Family Professional Health Strategy's Teams(30) traz contribuições, tais como a
afirmação de que a co-existência de diferentes modos de entender mulheres e
homens é consequência das mudanças que estão ocorrendo nos relacionamentos,
baseados no aumento da participação das mulheres na esfera pública que as
habilitou para desenvolver a independência (das mulheres). Afirmam ainda que a
violência contra as mulheres, longe de ser um problema individual é um problema
social, originada na iniquidade das relações sociais(30). Na mesma linha seguem
os artigos: Práticas profissionais das equipes de saúde da família voltadas
para as mulheres em situação de violência sexual(31); Limites e possibilidades
avaliativas da Estratégia de Saúde da Família para a violência de gênero(32);
Autonomia como categoria estruturante para o enfrentamento da violência de
gênero(33); Domestic violence against women from the perspective of community
health agente(34); Violência contra a mulher e suas implicações na saúde
materno-infantil(35).
Quando se trata de conjugar gênero e geração, sob o prisma da episteme adotada
nesta reflexão, os estudos que iluminam aspectos importantes da dupla categoria
são, entre outros: La centralidade da família como un recurso en el cuidado
domiciliário: perspectiva de género y generación(36). Este estudo é
particularmente interessante pois aborda o fenômeno sob o paradigma crítico-
social pós-feminista, cuja base empírica foi o conjunto de cuidadores
domiciliares de Mallorca, Espanha. Destacam-se entre as considerações finais
que o discurso sobre as famílias (sob cuidados domiciliares) encontra-se
modulado pelas (categorias) gênero e geração, mas que [em nossa tradução livre]
os sistemas sócio-sanitários baseiam suas intervenções no apoio a família que
enfrenta a responsabilidade de cuidar de um de seus membros dependentes, sem
contemplar a questão de gênero ou de geração, implícita em um modelo
tradicional de família, silenciando e não permitindo que se revelem as
necessidades e demandas do grupo majoritário de cuidadores que são as mulheres
(36).
Da mesma forma, existem estudos brasileiros que buscam olhar atentivamente a
interface gênero e geração, no fenômeno da violência, dentre os quais
destacamos: Reincidência da violência contra crianças no município de Curitiba:
um olhar de gênero(37); Characteristic of violence against children in a
Brazilian Capital(38) e A possibilidade de enfrentamento da violência infantil
na consulta de enfermagem sistematizada(39).
Os estudos não se esgotam nos mencionados, ao contrário, como muito bem
apontado no artigo Teorias e políticas de gênero: fragmentos históricos e
desafios atuais(40), da autoria de Meyer e publicado na Revista Brasileira de
Enfermagem, em 2004, o conceito de gênero como ferramenta metodológica, se
aplicado numa revisão sistemática poderia contabilizar também e muito, na área
de saúde, a trajetória de reconhecimento, incorporação e legitimação da
categoria ao longo dos últimos anos. É provável que o mesmo não suceda com a
categoria geracional no recorte adotado aqui, demandando portanto estudo
ulteriores mais vigorosos. Esta lacuna foi muito bem apontada por Pretto e Lago
(41) no estudo Reflexões sobre a infância e gênero a partir de publicações em
revistas feministas brasileiras, publicado em 2013.
Por fim, é preciso dizer algo sobre a dialética da liberdade e da necessidade,
pois tanto a escolha dos caminhos para a superação, como os marcos teórico-
filosóficos que embasam a prática da Enfermagem em Saúde Coletiva, estão
ancorados numa dada ética que, por ser histórica e dialética, não surge de
pronto como regras perenes e dadas para as ações interventivas e
interpretativas. Nesse aspecto, concorda-se com Vázquez que "não se pode falar
da liberdade do homem abstrato, isto é fora da história e da sociedade"(42).
O homem real é um ser propriamente humano, teórico e prático,
objetivo e subjetivo; [...] um ser de práxis, ou seja, um ser
produtor, transformador, criador, [...] transforma a natureza e nela
se plasma, [...] um ser social, produz determinadas relações sociais,
sobre as quais se elevam as demais relações humanas, [...] a
superestrutura ideológica, no qual a moral faz parte"(42).
A práxis que se projeta nas intervenções conscientes sobre a realidade objetiva
(e suas contradições) é reflexiva, leva em conta os valores mais afeitos à
transformação das sociedades e dos fenômenos, tais como a violência de gênero e
geração, ressaltando ou revelando os valores que conduzem ao desenvolvimento da
consciência crítica, para compreender a inserção histórica em sociedades de
classes nos quais gênero e geração conformam categorias sociológicas que
possibilitam mostrar a realidade objetiva em sua essência e nas possibilidades
reais de ser uma nova realidade.