Dor crônica associada à AIDS: perspectiva de enfermeiros e médicos
INTRODUÇÃO
Em todos os níveis de atenção em que são acolhidos pacientes com
imunodeficiência adquirida (HIV), os profissionais de saúde e a comunidade
científica têm sido desafiados para o adequado manejo dos sintomas persistentes
relatados pelos portadores da doença, principalmente os hospitalizados.
A dor é um desses sintomas, sendo o seu surgimento associado às alterações do
sistema imunitário do indivíduo afetado pelo HIV, às infecções e às
malignidades; sendo considerada, portanto, uma das sequelas mais comuns geradas
da imunossupressão(1). O predomínio desta dor varia dependendo do estágio da
doença, dos cuidados e da metodologia de tratamento. Naqueles com a doença
instalada (AIDS), os princípios de determinação e de tratamento da dor não são
diferentes daqueles em pacientes com câncer, havendo aumento da dor conforme a
doença progride(1).
Isto tem levado a uma dificuldade de controle dessa dor, geralmente atribuída
aos complexos regimes antirretrovirais, aos riscos mais elevados de efeitos
colaterais, às taxas mais altas de comorbidades psiquiátricas e ao abuso de
substâncias por parte dos portadores da doença(2).
Apesar dos avanços nas diversas áreas de conhecimento relacionadas à dor
(epidemiologia, fisiopatologia e terapêuticas), os resultados dos tratamentos
ainda são insatisfatórios. Nos casos de dor crônica associada à AIDS, o
problema é mais agravante, pois há grande interação negativa de drogas
utilizadas para analgesia e os medicamentos antirretrovirais, dificultando o
tratamento dos sintomas álgicos nessa clientela; há maior incidência de efeitos
colaterais de medicações; há maior subtratamento de dor na AIDS do que no
câncer: 85% e 49%, respectivamente; e há pior escala de bem-estar emocional em
relação a qualquer doença crônica, independente do estágio da doença, exceto a
depressão primária(3).
Por conseguinte, a dor crônica acarreta inúmeros prejuízos humanos,
ocupacionais e laborais aos portadores da AIDS, fazendo com que busquem auxílio
nas unidades de referência, principalmente se a dor está associada a grande
sofrimento, tortura e incapacidade(4).
Este estudo objetivou identificar as características e o manejo da dor crônica
associada à AIDS na perspectiva de enfermeiros e médicos. Por tratar-se de
temática pouco abordada na literatura e no cotidiano da assistência dos
diferentes serviços que atendem às pessoas com HIV/AIDS, o estudo permite
identificação, avaliação e tratamento das queixas dolorosas dos pacientes
hospitalizados e elaboração de políticas públicas que desenvolvam a gerência do
cuidado à dor.
METODOLOGIA
Trata-se de pesquisa qualitativa realizada em instituição de nível terciário
considerada referência no tratamento de doenças infecciosas no Ceará,
atendendo, atualmente, cerca de 70% dos casos de HIV/AIDS do estado. Sua
estrutura física compreende 118 leitos de unidades de internação, uma unidade
de Terapia Intensiva com sete leitos, um Hospital Dia com sete leitos e um
Serviço Ambulatorial Especializado para portadores do HIV/AIDS, com 748
profissionais da equipe multidisciplinar em atendimento diário, incluindo:
médicos infectologistas, ginecologistas, dermatologistas, enfermeiros,
assistentes sociais, psicólogos, dentistas, auxiliares / técnicos de enfermagem
e atendente dental.
Participaram da pesquisa 20 profissionais de saúde, incluindo oito médicos e 12
enfermeiros, no mês de junho de 2010. Elegeram-se médicos e enfermeiros como
aqueles diretamente responsáveis pelo gerenciamento do cuidado: os primeiros
por estabelecerem a terapêutica a ser instituída e responsabilizar-se,
eticamente, pelo tratamento do paciente; e os enfermeiros, por serem
profissionais implicados no cuidado ao paciente nas 24 horas, sem interrupção,
assistindo-o em suas necessidades biopsicossociais, intervindo e viabilizando,
sempre que necessário, a realização de exames e procedimentos com vistas à
recuperação do paciente.
Para a inserção dos sujeitos no estudo, considerou-se o tempo de atuação no
hospital de, pelo menos, um ano; pois se acredita que este período permite aos
médicos e enfermeiros desenvolverem maior proximidade com os clientes
soropositivos ao HIV devido ao maior quantitativo desta clientela. Por sua vez,
o quantitativo de participantes foi limitado pela saturação teórica dos dados.
Na coleta de dados, utilizou-se um roteiro de entrevista semiestruturada
constando de duas partes: dados de identificação (categoria profissional;
idade; sexo; vínculo empregatício; unidade em que trabalha; tempo de formado;
tempo de serviço na instituição); dados sobre a dor do paciente com HIV/AIDS:
experiência em atender portadores da doença com queixas de dor; principais
queixas de dor na clientela de AIDS; fatores associados ao aparecimento de dor
nos pacientes; existência de protocolos formais ou informais na instituição
para avaliação da dor; método de manejo da dor crônica associada à AIDS na
instituição; ações de cuidado que executa ao paciente com AIDS no cotidiano
consideradas específicas para o tratamento da dor; e dificuldades e facilidades
para o atendimento da dor crônica em pacientes de AIDS.
Para análise dos resultados, empregou-se a técnica de análise de conteúdo
temática de Bardin(5), definindo-se, como unidade de registro (UR), a frase e,
como unidade de contexto, o parágrafo. Para garantir o anonimato dos
participantes, médicos foram codificados com a letra 'M' e enfermeiros com a
letra 'E', seguida de numeral arábico conforme a ordem em que foram
entrevistados.
Ressalta-se que, no decorrer da pesquisa, foram respeitadas as diretrizes para
a realização de pesquisas envolvendo seres humanos contidas na Resolução nº 466
do Conselho Nacional de Saúde. Inclui-se a aprovação pelo Comitê de Ética da
instituição na qual o estudo foi desenvolvido (Parecer nº063/2009), bem como a
obtenção, anteriormente ao início da entrevista, do consentimento livre e
esclarecido dos sujeitos participantes.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O estudo contou com a participação de profissionais, predominantemente, do sexo
feminino, enfermeiras, concursadas da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará
(SESA/CE), com faixa etária média de 44 (±16) anos. A maioria desempenhava
assistência ao paciente nas unidades de internação do hospital, com tempo de
formação profissional superior a 21 anos e tempo médio de serviço na
instituição de dez anos, dados que retratam um perfil de profissionais
experientes na área de atuação.
Por meio dos dados obtidos da fundamentação teórica, deu-se a interpretação e
propostas aos objetivos do estudo, sendo apreendidas 51 unidades de registro
(UR) nos discursos dos 20 profissionais entrevistados. Estas foram distribuídas
em três categorias e oito subcategorias conforme se apresenta, a seguir, na
Tabela_1.
Tabela 1 Distribuição das categorias temáticas, subcategorias e respectivas
frequências sobre o manejo da dor crônica associada à AIDS por enfermeiros e
médicos. Fortaleza-CE, junho de 2010. N=51.
Categorias
(codificaçãof (%) Subcategorias (codificação) f (%)
1. Caracterização da dor 1.1. Sintoma persistente e incapacitante (CDSPI) 6
(11,8)
(CD) 13 1.2. Dependência química (CDDQ) 4
(25,5) (7,8)
1.3. Difícil controle (CDDC) 3
(5,9)
2. Avaliação clínica da 2.1. Investigação dos fatores associados (ACDIFA) 4
dor 7 (7,8)
(ACD) (13,7) 2.2. Avaliação comportamental/ credibilidade ao relato verbal 3
(ACDACCRV) (5,9)
3. Cuidado clínico da dor 3.1. Tratamento farmacológico (CCDTF) 18
(35,3)
(CCD) 31 3.2. Atendimento interdisciplinar (CCDAI) 8
(60,8) (15,7)
3.3. Suporte psicossocial (CCDSP) 5
(9,8)
A. Caracterização da dor
Esta categoria abrange 13 unidades de registro (UR) em três subcategorias, nas
quais são descritas características específicas do quadro doloroso crônico
associado à AIDS.
Sintoma persistente e incapacitante
Os discursos, a seguir, expõem a percepção dos profissionais sobre a dor
crônica no paciente com AIDS, de caráter persistente e incapacitante:
...muitas vezes eles continuam com sintomas! (E4)
Às vezes, são pacientes muito debilitados, acamados... (M3)
Geralmente todos referem dor! A maioria são dores generalizadas...
(E9)
...tem uns que não querem mais fazer fisioterapia, porque sentem dor
até ao manuseio... (E11)
Os aspectos encontrados nas falas dos entrevistados da subcategoria 1.1
convergem com as evidências científicas(6)de que, embora presente em todos os
estágios da doença, a dor no paciente com AIDS está associada à severidade e à
gravidade da doença, o que inclui incapacidade para realizar atividades diárias
e depressão em alguns casos. Além disso, a cronicidade da dor é fortemente
associada à doença psiquiátrica e uso de drogas endovenosas.
Nos casos em que se identificam os prejuízos gerados pela dor ao paciente, é
importante que os profissionais da equipe interdisciplinar estejam atentos à
abordagem individualizada, levando em consideração aspectos implicados no
seguimento adequado do tratamento, como capacidade funcional, nível de
orientação e capacidade de comunicação.
Além disso, a dor crônica, nesses pacientes, requer manejo diferente daquele da
dor aguda, pois, além de persistente, afeta humor, status funcional,
relacionamentos e qualidade de vida. Assim, deve-se reestruturar o modelo de
gerenciamento do cuidado ao paciente hospitalizado, aprimorar os recursos
organizacionais, materiais e humanos atuantes, capacitando-os para a avaliação
da dor como rotina e para a cultura de análises e registros acurados desse
sintoma, para que terapêuticas sejam melhor implementadas e garantam satisfação
analgésica ao paciente(7).
Dependência Química
Encontraram-se quatro UR em que os profissionais ressaltaram a dependência
química e do analgésico como intrinsecamente relacionada aos pacientes com AIDS
em vigência de dor crônica. Tal afirmativa é exemplificada nas falas a seguir:
...nos usuários de drogas, é difícil a gente desmamar do respirador,
tirar a sedação e tirar a analgesia, porque ele tem uma dependência!
(E5)
...tem alguns que ficam viciados, que não querem o analgésico
prescrito se necessário, aí ele (o analgésico) fica de horário! (E9)
Muitos médicos ainda relutam em prescrever morfina ou outros opióides
acreditando que os pacientes ficam viciados, conforme se verifica no discurso:
Eu pouco uso Dolantina, porque tem uma dependência muito grande do
paciente! (M5)
Na subcategoria 1.2, abordou-se a dependência química como um dos aspectos
relacionados ao subtratamento da dor em pacientes com AIDS. Este subtratamento
envolve conhecimento e atitudes dos profissionais que manejam esta dor e
características específicas dos pacientes que a apresentam.
Em amostra representativa de pessoas portadoras do HIV, comprovou-se que
pacientes com história de uso de drogas relatam mais dor e estão mais
susceptíveis ao uso indiscriminado de analgésicos bem como à necessidade de
prescrição, quando internados, de analgésicos mais potentes para o alívio da
dor. Além disso, usuários de drogas permanecem com altos níveis de dor mesmo
fazendo uso de doses elevadas de opióides, caracterizando um quadro de
ineficácia analgésica, quando comparados aos não usuários de drogas, que
respondem mais adequadamente ao efeito dos opióides(8).
No entanto, negando estes medicamentos aos pacientes, considerados analgésicos
potentes, os médicos podem ser responsáveis por um sofrimento desnecessário. Se
os opióides forem administrados corretamente por profissionais de saúde
capacitados, não existe o problema do vício. Para tanto, faz-se necessário que
tais medicamentos estejam amplamente acessíveis aos pacientes com dores muito
fortes e constantes e que os profissionais sejam habilitados para saber como e
quando usá-los(7).
Cabe salientar que o fato do tratamento medicamentoso ser um aspecto importante
no cuidado a esses pacientes, por trazer o conforto imediato no âmbito
fisiológico, não se deve deixar de visualizar as questões subjetivas que
envolvem a experiência dolorosa.
Difícil controle
Esta subcategoria abrange três UR sobre características apresentadas pelos
pacientes que tornam difícil a abordagem e o manejo dos sintomas por eles
apresentados.
Algumas vezes você tem paciente com dores de difícil controle.
(Nesses casos), você tem mais dificuldades em função da própria
resposta do paciente, da necessidade de medicações mais potentes né?
(M5) ...como a gente pega paciente já em estágio avançado da doença,
muitas vezes é difícil o controle desse sintoma (dor)...(E8)
Os discursos evidenciaram que, apesar do número crescente de pacientes com AIDS
e sintomas de dor crônica, o sub-reconhecimento e o subtratamento desta
permanecem um desafio, configurando-se num problema significante que contribui
a morbidade psicológica e funcional dos portadores, principalmente daqueles
socioeconomicamente desfavorecidos, com HIV e altas taxas de uso prévio ou
concomitante de drogas ilícitas(10).
Tal achado pode ser justificado pelo fato da entrada do sujeito soropositivo ao
HIV no cenário de cuidado ter ocorrido, muitas das vezes, sem a devida
preparação e capacitação do profissional, especialmente na década de 80 e
início de 90. Em particular, tem sido divulgado que o profissional de
enfermagem deparou-se com a inserção do paciente soropositivo ao HIV em sua
prática profissional sem que conhecesse e compreendesse suas peculiaridades, o
que se coloca como primordial para a efetivação do cuidado singular(11). Desse
modo, sem conhecer as especificidades da doença, do vírus e do próprio
paciente, o profissional de enfermagem (da mesma forma que outras categorias
profissionais) o recebe imerso em representações.
Ressalta-se que cabe aos gestores incrementar políticas públicas direcionadas
para o atendimento à dor nos diversos cenários da saúde. Nesse pensamento,
podem ser elaboradas estratégias para minimizar os problemas advindos do
sistema, em geral, despreparado para esse tipo de atendimento, tanto no tocante
à estrutura quanto à melhor qualificação dos recursos humanos.
B. Avaliação Clínica da Dor
Esta categoria abrande sete UR sobre a forma como os profissionais relataram
avaliar a dor na prática clínica.
Investigação dos fatores associados
Nos discursos apresentados, observam-se aspectos relevantes para a
caracterização da dor em pacientes com AIDS, relacionados a seu aparecimento e
severidade.
...você procura ver a dor dentro do contexto da clínica que o
paciente apresenta, não vê como sintoma isolado né? (M5)
A gente tem que investigar se tá relacionado à terapia
antirretroviral ... (M6)
...nos pacientes que apresentam dor, esta geralmente está associada a
uma patologia/infecção oportunista...(M5)
Verifica-se que os profissionais demonstraram conhecimento e percepção
aproximados ao que se considera pertinente à adequada avaliação da dor na AIDS.
Sabe-se que a experiência dolorosa é evento amplo, não se resumindo apenas à
intensidade; as características da dor devem ser, portanto, avaliadas quanto ao
início, local, irradiação, periodicidade, tipo de dor, duração e fatores
desencadeantes(12).
Ademais, chama-se a atenção para a inexistência de pesquisas que abordem a
ocorrência e os fatores de risco relacionados à dor em indivíduos infectados
pelo HIV. Dessa forma, sugeriu-se que médicos e enfermeiros precisam avaliar os
pacientes quanto à ocorrência concomitante de outros sintomas associados à dor,
possibilitando estabelecer um plano terapêutico apropriado(13).
Avaliação comportamental/credibilidade ao relato verbal
Três UR destacaram a necessidade de avaliação comportamental do paciente para o
manejo clínico da dor. O discurso a seguir é um exemplo desse achado:
Você observa a dor pela expressão facial... (E3)
O relato da experiência dolorosa pelo doente aos profissionais da saúde também
é fundamental para a compreensão do quadro álgico, implementação de medidas
analgésicas e avaliação da eficácia terapêutica. Sobre este aspecto, observa-se
a preocupação da enfermeira:
Sempre que eles falam que tem dor, você tem que acreditar e levar em
consideração o que ele tá sentindo! (E3)
O processo de cuidar deve envolver interações subjetivas entre profissional e
usuário. Nesse contexto, considera-se que a enfermeira (E3), em seu relato,
conseguiu demonstrar sensibilidade ao relatar uma perspectiva de interação
enfermeiro-paciente para além do biológico. Este componente da avaliação
comportamental da dor é bastante discutido em diversos estudos, como já
destacaram alguns autores sobre a importância de observar reações fisiológicas
e comportamentais da dor (expressão facial, inquietação, ansiedade,
irritabilidade, entre outros)(14).
Reforçando a necessidade de dar credibilidade ao relato verbal, destaca-se a
importância da equipe de enfermagem estar atenta às queixas do paciente, pois a
dor corporal é o que o paciente afirma estar sentindo, sendo o seu relato a
mais acurada e real evidência de dor e descrição de sua intensidade. Desse
modo, é clara a necessidade de avaliar a dor levando em consideração o relato
do doente como parte essencial do cuidado(15).
Os profissionais também ressaltaram a inexistência de protocolos que
permitissem o manejo adequado da dor na instituição. Apesar disso, cabe
ressaltar que são inúmeros os instrumentos uni e multidimensionais específicos
para avaliação da dor disponíveis na prática, tais como a escala visual
analógica, a escala verbal numérica e o questionário McGill, que poderiam ser
implementados na instituição, facilitando o manejo desse sintoma.
C. Cuidado Clínico da Dor
Esta categoria reúne a maioria (60,8%) das UR encontradas nas falas dos
profissionais, que identificam como eles manejam o paciente com AIDS em
situação de dor.
Tratamento farmacológico
A maioria das unidades de registro da categoria 3 (18 UR) foram aglutinadas
nesta subcategoria, demonstrando a ênfase dada à terapia farmacológica no
tratamento do paciente com AIDS na instituição, o que se pode constatar na
análise dos discursos a seguir:
Em termos de intervenção, só a analgesia medicamentosa a gente tem
acesso na prescrição! (E5)
...basicamente, o que a gente tem feito é analgésico! O analgésico de
uso agudo né? (M4)
...ele (o paciente) é atendido com medicamento analgésico, pra
dormir, pra ele relaxar... (E10)
...quando esse paciente não tem uma causa estabelecida bem óbvia pro
quadro de dor, normalmente esse manejo tem sido realizado só com
medicação analgésica e raramente
se lança mão de outra forma de analgesia, como fisioterapia... (M7)
Conforme se verifica nos discursos, os medicamentos permanecem fortes aliados
no tratamento da dor e, especificamente no cuidado aos portadores da AIDS, os
profissionais entrevistados demonstraram privilegiar a analgesia em detrimento
de diversos tratamentos alternativos que poderiam influenciar no alívio da dor
e do desconforto.
Por sua vez, são inúmeros os estudos que valorizam os princípios básicos do
tratamento farmacológico da dor em pacientes com AIDS, fazendo com que os
profissionais priorizem essa abordagem na prescrição do cuidado. Os princípios
desse tratamento envolvem cuidadosa titulação de opióides e adjuvantes
analgésicos, além da administração programada (de horário) combinada com doses
se necessário(1,3). Por tais razões, o tratamento da dor na AIDS é baseado na
pirâmide analgésica para o tratamento da dor no câncer(1,3,16).
Atendimento Interdisciplinar
Gerenciar o cuidado envolve atitudes interdisciplinares dos profissionais, bem
como a preocupação destes com a qualidade do serviço que estão prestando, com a
satisfação do usuário e com as estratégias implementadas para fornecer o
cuidado. Sobre esse aspecto, encontraram-se oito UR em que os profissionais
enfatizaram a participação de outros membros da equipe de saúde no manejo da
dor, conforme evidenciado na fala a seguir:
...a presença de uma equipe que trabalhe em conjunto pra tentar
resolver esse problema, fisioterapia, psicologia, terapia
ocupacional, a gente tem aqui! (M1)
O manejo da dor crônica, aqui no hospital, é feito através do esquema
de medicação específica pra dor mais o apoio do psicólogo e com a
intervenção da família...(E10)
O programa de atendimento domiciliar também tem merecido destaque no
atendimento interdisciplinar ao portador da AIDS:
...o programa de atendimento domiciliar exerce um papel fundamental
no tratamento desse paciente! (E1)
Os discursos demonstraram a importância da equipe interdisciplinar no cuidado
ao paciente. Tanto no serviço hospitalar como no extra-hospitalar, o corpo
clínico para atender os casos de dor deve ser composto por anestesista,
neurologista, fisiatra, médico acupunturista, fisioterapeuta, psicólogo e
enfermeiro. Estes são os profissionais da área da saúde mais requisitados no
cotidiano do serviço de dor crônica(17).
Na mesma subcategoria, o depoimento de uma enfermeira (E10) esclareceu como é
realizado o manejo da dor na instituição, ressaltando a participação da
psicologia e da família.
Corroborando o depoimento, quando se trata das práticas de cuidado em relação à
dor, sabe-se que, nas situações de dor e sofrimento, além do cuidado de tratá-
la com medicamentos, fica explícita a necessidade da presença e carinho da
família ou de pessoa significativa para o paciente, que se encontra em situação
de fragilidade. Assim, o cuidado exige o compartilhamento de fatores e
compromissos representados pela medicação, pelo chá, pelos procedimentos como o
uso de massagens, calor e frio associadas à presença, ao carinho e ao afeto
(18).
Pautado na estratégia de tratamento de doenças agudas no domicílio, o programa
de atendimento domiciliar foi citado por um enfermeiro (E1). Este se constitui
como internação domiciliar não somente com caráter complementar à assistência
hospitalar, mas também como alternativa a esta, com a desvantagem de não ter
uma estrutura tão ágil para o atendimento, e com a vantagem de tratar sujeitos
concretos, com nome e endereço. Acrescenta-se que estas iniciativas de atenção
domiciliar vinculadas a hospitais quase sempre se orientam para a
desospitalização, diminuição de custo, prevenção de riscos e humanização da
assistência(9).
A análise de sete experiências de cuidado domiciliar, em cinco municípios
brasileiros, permitiu concluir que as equipes de terapia domiciliar para
pacientes com AIDS dedicam-se intensamente ao trabalho, promovendo o resgate
das pessoas, de suas relações com a vida, a aceitação da doença, a compreensão
das perspectivas futuras e a autonomia no cuidado da própria saúde(19).
Suporte psicossocial
Nesta subcategoria, cinco UR descreveram um cuidado baseado no apoio
psicossocial e na educação em saúde, buscando esclarecer as dúvidas do paciente
e deixá-lo informado sobre a real situação do seu quadro clínico, como se pode
verificar nos discursos:
Outras ações é conscientizar o paciente né? Conversar, orientar o
lado que ele deve dormir pra passar a dor, um exercício né?.... (E10)
...a gente conversa com o paciente, tenta amenizar alguma coisa, mas
não é nada formal, ou protocolado, é uma coisa informal! (E12)
O discurso que se segue possibilita identificar a comunicação terapêutica
estabelecida pelo profissional com o usuário, relatada por uma enfermeira:
...muitas vezes, só em você chegar, conversar, ele vai relaxando...
Muitas vezes é carência! (E9)
Os relatos dos profissionais destacam o suporte psicossocial ao paciente com
HIV/AIDS, evidenciando uma assistência baseada nos princípios da integralidade
e da clínica ampliada. Nesta última, a terapêutica é importante e não se
restringe somente a fármacos e à cirurgia. Há mais recursos terapêuticos do que
esses, como valorizar o poder terapêutico da escuta e da palavra, o poder da
educação em saúde e do apoio psicossocial(19).
Propõe-se, dessa forma, a transformação da atenção tomando como centro as
necessidades de saúde para a construção de linhas de cuidado que atravessem
todos os níveis de atenção (básica, especializada, hospitalar e de urgência) e
assegurem o acesso e a continuidade do cuidado(19).
Em se tratando da associação entre AIDS e dor, acrescenta-se que, uma vez
diagnosticada a doença, uma das primeiras providências consiste na avaliação
psicológica do paciente, que deverá continuar sob a assistência psicossocial
dentro da equipe interdisciplinar que o assiste(17).
Ressalta-se que a dor, seja aguda ou crônica, acarreta inúmeros prejuízos à
saúde pública, incluindo danos humanos, ocupacionais e laborais. Os prejuízos
humanos envolvem desequilíbrios psíquicos e mentais apresentados pelos doentes,
entre os quais se destacam a depressão, a ansiedade, as alterações do sono, a
irritabilidade e a raiva; os prejuízos funcionais ocorrem tanto no social,
quanto no lazer, no trabalho e na produtividade; já os prejuízos ocupacionais e
laborais dizem respeito ao fato da dor ser um dos principais motivos de
afastamento do trabalho, de absenteísmo, licenças, pecúlios, litígios e baixa
produtividade(4).
Corroborando o depoimento da entrevistada E9, divulga-se que os membros da
equipe de enfermagem reconhecem a importância do diálogo com os pacientes
hospitalizados a fim de encorajá-los na luta e continuidade do tratamento
visando à melhora de sua qualidade de vida e à consequente alta hospitalar(11).
Acrescenta-se que os enfermeiros podem lançar mão de técnicas de relaxamento e
distração proporcionando ao paciente uma maior sensação de controle da dor.
Tais técnicas são úteis quando se deseja executar um procedimento doloroso ou
durante o período em que se espera pelo efeito analgésico de medicamentos
administrados. O profissional pode, também, transmitir ao paciente que está
ciente de sua dor e que deseja efetuar mudanças na assistência para minimizá-
la.
Além disso, um plano de cuidados baseado na Sistematização da Assistência de
Enfermagem pode ser elaborado e implementado com sucesso. Para tal, alguns
autores refletem sobre a necessidade dos enfermeiros trabalharem no sentido de
desenvolver estratégias capazes de mobilizar os portadores do HIV/ AIDS para a
adoção e manutenção de comportamento saudável e engajamento para o autocuidado
(20). Nos casos de dor, devem ser explorados aspectos como: intensidade,
frequência, situações a interferir no aparecimento ou elevação de sua
intensidade.
No que diz respeito aos prejuízos psíquicos, profissionais da área de cuidados
paliativos buscam um projeto de reestruturação do atual manejo da dor, o que
pode fortalecer as diversas redes de atenção e promover mudanças importantes
para a qualidade de vida dessas pessoas. Portanto, os danos citados devem ser
elucidados pelos profissionais responsáveis pelo cuidado direto ao paciente
para que a assistência se torne mais individualizada e o alívio da dor um dos
seus objetivos.
Faz-se necessário, para tanto, privilegiar a participação do usuário, da
família e da comunidade no tratamento e conhecer as redes sociais de apoio do
paciente para atuar junto com o profissional de saúde. Assim, espera-se que os
profissionais empreguem esta filosofia de trabalho em suas atividades
assistenciais, pois se percebe que os pacientes bem orientados e que têm um
suporte familiar/social conseguem melhor compreender a doença, aderir e
responder, efetivamente, ao tratamento e às estratégias implementadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo permitiu identificar as características e o manejo da dor crônica
associada à AIDS na perspectiva de enfermeiros e médicos. Inicialmente, foi
possível evidenciar as principais características da dor crônica associada à
AIDS, incluindo seu caráter persistente e incapacitante, pois alguns pacientes
tornam-se extremamente debilitados e dependentes do ponto de vista da
capacidade funcional, acarretando em difícil controle por parte dos
profissionais.
Quanto à avaliação do paciente, considerou-se a credibilidade ao relato verbal
um achado importante que favorece a eficácia da terapêutica analgésica, pois o
medicamento pode ser mais adequado à intensidade da dor relatada. No entanto,
apesar dos inúmeros instrumentos de avaliação da dor validados e divulgados na
prática clínica, estes não foram reconhecidos nem utilizados pelos
profissionais de saúde na instituição em estudo. Percebeu-se, portanto, que o
fato de não utilizarem tais instrumentos demonstra resultado preocupante que
merece atenção dos profissionais inseridos no contexto da assistência ao HIV/
AIDS.
Outro aspecto que chamou a atenção no manejo da dor relatado foi a ênfase dada
à terapia farmacológica, conforme prescrita pelo médico. Esta reflete uma
assistência à dor dos portadores do HIV/AIDS, que segue, predominantemente, o
modelo biomédico de cuidado. Tal fato pode explicar a lacuna de conhecimento e
a falta de experiência de alguns profissionais para executar um cuidado mais
específico e individualizado nessas situações.
Por outro lado, no que diz respeito a diferentes formas de intervenção à dor,
os profissionais enfatizaram a participação de outros membros da equipe de
saúde, como fisioterapeutas e psicólogos. Além disso, diversos recursos
terapêuticos emergiram nos discursos, como valorizar o poder terapêutico da
escuta, da palavra, da educação em saúde e do apoio psicossocial.
Assim sendo, o cuidado à dor implementado pelos profissionais de saúde, no
serviço de referência ao atendimento do paciente com AIDS do estado do Ceará,
precisa se adaptar às mais recentes orientações científicas para esse cuidado.
Isso inclui o uso de escalas unidimensionais e multidimensionais para a
avaliação da dor, na busca de se conhecer os indicadores fisiológicos,
comportamentais, contextuais e, também, os auto-registros e os protocolos para
orientar o cuidado, gerando documentos para avaliação mais específica dos
casos. Dessa forma, a dor nos pacientes com AIDS deve ser diagnosticada
precocemente, visando ao alívio do quadro agudo e das repercussões desta para a
vida afetiva, social e emocional dos portadores.