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BrBRCVHe0034-71672014000200181

BrBRCVHe0034-71672014000200181

variedadeBr
Country of publicationBR
colégioLife Sciences
Great areaHealth Sciences
ISSN0034-7167
ano2014
Issue0002
Article number00181

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A família na Unidade de Pediatria: convivendo com normas e rotinas hospitalares INTRODUÇÃO A inserção da família no ambiente hospitalar, considerando-se seus direitos e deveres, tem demandado novas formas de organização na dinâmica do cuidado de enfermagem. No caso da internação pediátrica, para se prestar um cuidado integral à criança, torna-se imprescindível voltar a atenção para as necessidades da família, desenvolvendo, assim, uma proposta de cuidado centrado na díade criança-família(1).

Frente à necessidade de hospitalização, o familiar cuidador pode apresentar sensação de incapacidade, dependência, insegurança e descontrole devido à condição da criança. À medida que precisa se adequar às normas e rotinas impostas pela instituição hospitalar(2), tende a negar-se, podendo ter sua condição de sujeito e autonomia afetadas.

Estudo acerca das relações estabelecidas pelas enfermeiras com a família durante a hospitalização infantil evidenciou que essas profissionais não contemplam suas necessidades, pois são objetivas, sucintas, formais e unilaterais. As relações estabelecidas pelas enfermeiras com a família não contemplam as necessidades da família de solidariedade, aproximação, empatia, estabelecimento de vínculos, responsabilizações e acolhimento que contribuiriam para que essa se sinta segura e fortalecida diante do processo de hospitalização de sua criança. Verificou-se que o processo de trabalho é realizado com predominância do foco nos interesses da Enfermagem. Percebe-se que a equipe delega cuidados à família sem priorizar sua coparticipação, nem negociar as ações de cuidado à criança a serem realizadas(1).

A experiência da internação no hospital, em razão das características e rotinas, muitas vezes rígidas e inflexíveis, pode gerar, no familiar cuidador, desconforto, impessoalidade, dependência da tecnologia, isolamento social, falta de privacidade, rompendo bruscamente com seu modo de viver, que inclui suas relações e seus papéis, comprometendo sua capacidade de escolher, decidir, opinar e expressar-se(3).

Ao entrar para o mundo do hospital, as famílias passam a ser governadas por normas e rotinas impostas pelos profissionais como uma forma de organizar o processo de trabalho e harmonizar as funções dos diversos setores que coabitam no hospital. Evidencia-se que essas se apresentam como mecanismos de poder disciplinar, com vistas a padronizar a atuação da família no hospital. A disciplina produziria a modelagem e controle dos corpos, ferramenta que norteia todo o processo de construção do poder e normatização das condutas(4).

Na visão foucaultiana, , em qualquer sociedade, diversas situações em que o corpo se apresenta preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações(5). Micro poderes perpassam todo o corpo social, acarretando transformações e modificações nas condutas dos indivíduos.

O corpo social, ao longo dos séculos, se consolidou como fabricado, influenciado por uma coação calculada, esquadrinhado em cada função corpórea, com fins de automatização, incorporando nos corpos características de docilidade. Assim, é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado, aperfeiçoado, adestrado, sendo utilizado como uma poderosa ferramenta de controle(5).

A disciplina dos familiares cuidadores da criança, no hospital, obtida por meio do cumprimento das normas e rotinas impostas, não visaria o aumento de suas habilidades, nem aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que os torna obedientes e úteis, facilitando o trabalho da equipe de saúde. As normas e rotinas seriam, portanto, métodos que permitiriam o controle minucioso dos familiares, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade. Nesse sentido, a imposição das mesmas pode gerar conflitos, comprometendo o cuidado à criança hospitalizada, tornando o familiar cuidador da criança fragilizado(2).

A negociação do cuidado à criança entre o familiar cuidador e a equipe de enfermagem não tem sido uma tarefa fácil. Frente às normas e rotinas, o familiar pode sentir sua vida invadida pela imposição dos deveres institucionais diversos a suas crenças, valores e hábitos de vida e seu contexto social/familiar. No hospital espaços definidos, vinculados às regras, normas e regulamentos que direcionam o trabalho da equipe. As regras formais existentes e instituídas devem ser respeitadas, mas deveriam ser reconstruídas a partir da realidade de cada família, como forma de contemplar suas individualidades. No entanto, nem sempre a flexibilização dessas normas e rotinas, ocorrendo impasses normativos.

A família frente à internação hospitalar da criança vivencia a hegemonia institucional que se diferencia da sua experiência subjetiva. Passa a se deparar com o prescrito e o normatizado, dificilmente flexível, mesmo em meio à complexidade dos fatos. A imposição das normas no contexto hospitalar revela relações às vezes de submissão(6).

Para Foucault, no entanto, o poder deve ser exercido, existindo apenas na forma de ação(7). Por isso, mesmo que esteja presente nas relações pessoais, não deve ser compreendido como um fenômeno de dominação de um ser sobre o(s) outro(s) (7). Nessa perspectiva, as normas e rotinas hospitalares não podem ser formas de dominação ou submissão da família frente à equipe ou instituição hospitalar.

As relações de poder devem ser analisadas como circulantes, que se estabelecem em cadeia. Tais relações nunca estão localizadas aqui ou ali, nunca estão nas mãos de alguns, nunca são apropriadas como uma riqueza ou um bem. Elas funcionam e se exercem em rede(7).

Assim, o respeito à autonomia das famílias deve ser exercido pela equipe de saúde. Conquista-se autonomia, como forma de poder, através da libertação ocorrida por meio do exercício individual de práticas de liberdade. A família ao ser estimulada pode adquirir uma libertação socialmente possível. Entende-se que toda prática de liberdade ou autonomia pode ser vista nas relações de poder (8).

As normas e rotinas elaboradas com o intuito de organizar o processo de trabalho da equipe não podem ser fontes de sofrimento, de sujeição e desestrutura familiar, mas de qualificação do cuidado(9-10). Por isso, necessitam ser elaboradas, levando-se em conta, além de disciplinar a participação da família no setor, também suas necessidades individuais como forma de humanizar a assistência.

Nesse sentido, a questão que norteou este estudo foi: como o familiar cuidador da criança no hospital vem convivendo com as normas e rotinas? Objetivou-se, pois, conhecer, na visão foucaultiana, como o familiar cuidador da criança convive com as normas e rotinas no hospital.

METODOLOGIA Trata-se de um estudo descritivo com abordagem qualitativa, orientado pelo método da Teoria Fundamentada nos Dados(11). Neste método, a coleta e a análise de dados constituem-se num processo sistemático, no qual os dados são analisados comparativamente. Buscou-se descrever o fenômeno investigado, possibilitando conhecer os problemas vivenciados procurando conhecer e descrever as experiências vividas, comportamentos, emoções e sentimentos dos participantes(11).

Foi realizada na Unidade de Pediatria de um Hospital Universitário do sul do Brasil, no segundo semestre de 2011. Esta unidade tem como campo de atuação o ensino, a pesquisa, a extensão e a assistência à saúde. Foram participantes do estudo 18 familiares cuidadores de crianças internadas no setor, no período de coleta de dados; 15 familiares foram distribuídos em três grupos amostrais e três na validação dos dados. Como critério de inclusão, utilizou-se ser cuidador significativo da criança e prestar-lhe cuidados diretos no hospital durante a realização da coleta dos dados.

Os dados foram coletados por meio da entrevista em profundidade única com cada participante, gravada e a seguir transcrita. Foram questionados acerca de suas vivências frente às normas e rotinas no hospital. Essas foram agendadas previamente com cada familiar, realizadas na sala de prescrição da Unidade de Pediatria, gravadas e transcritas para análise.

Após cada entrevista procedeu-se à codificação aberta dos dados, em que as falas foram minuciosamente detalhadas, através do exame do conteúdo, linha por linha, após a digitação das gravações feitas com os sujeitos do estudo, de forma a elaborar os códigos (unidades de análise). Esses foram agrupados por similaridades e diferenças e designados em subcategorias e categorias(11).

Após, foi realizada a Codificação axial na qual as categorias foram relacionadas entre si. Na Codificação seletiva, as categorias foram relacionadas envolvendo causa, fenômeno, contexto, condições intervenientes, estratégias de ação/interação e consequências, construindo o modelo paradigmático(11).

Os princípios éticos da pesquisa envolvendo seres humanos, conforme a Resolução 196/96, foram seguidos(12). O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Rio Grande/FURG, sob o número 133/2011. Todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em duas vias, ficando uma cópia com cada participante. Foram identificados pela letra F seguida do número da entrevista, como forma de garantir seu anonimato.

RESULTADOS A análise dos dados gerou três categorias: A adesão a normas e rotinas como expressão da normalização dos sujeitos, O discurso como espaço para a resistência e A transgressão como espaço de resistência.

A adesão a normas e rotinas como expressão da normalização dos sujeitos As normas e rotinas são instrumentos administrativos utilizados pelos profissionais da equipe de enfermagem para organizar o processo de trabalho e disciplinar o comportamento dos familiares cuidadores no setor. Fazem parte da cultura hospitalar e visam a estabelecer horários, dietas, visitas, cuidados.

Mas, algumas famílias parecem reconhecer e aceitar, sem manifestar resistências, a existência de normas e rotinas para o funcionamento do setor.

Olha passei por outras normas até mais rígidas, no Hospital U, onde eu nem poderia estar sentada na cama da criança como estou agora. Por isso, acho aqui bem tranquilo, pois fui informada de tudo o que pode e o que não pode, dos horários a serem cumpridos. Nós acabamos cumprindo e obedecendo porque as entendemos como necessárias. (F1) Acho importante, quando nos disseram que não poderia trazer comida; não trazer a mamadeira, devido à higienização em um local infectado como o hospital. Não queremos prejudicar a saúde de nossos filhos.

(F7) Algumas famílias expressam aceitação e adaptação às normas e rotinas, aparentemente reconhecendo-as como importantes, evitando manifestar resistências, numa aparente normalização de seus corpos a uma sociedade normatizada.

Como é um hospital tem que ter normas. A gente não pode chegar fazendo o que quer. Tem que ter hora para tudo: horário da alimentação, de desligar a televisão. Nós estamos aqui é pela doença e não é para o meu bem estar. (F3) Acho importante porque tudo que é livre demais não certo, vira baderna. Para manter a unidade em ordem, com tantas pessoas convivendo junto se não houver disciplina haverão conflitos desnecessários.(F6) O discurso como espaço para a resistência Algumas famílias, no entanto, reconhecem encontrar-se em situação de vulnerabilidade devido à doença da criança, requerendo compreensão e apoio, o que justificaria seus movimentos de resistência a normas instituídas, mobilizando-se para sua modificação, seja através de argumentação, diálogo ou negociação: Após sete dias dormindo na cadeira eu não aguentava mais. Me doía tudo. O guri doente e eu muito nervosa. Resolvi me deitar no berço com o meu filho. Elas me veem aqui dormindo no cantinho com meu filho e não falam nada. Eu durmo, mas deixo ele na beira do berçinho de grades, facilitando com que a enfermeira coloque o termômetro e consiga atender ele. É preciso compreensão com as nossas necessidades. (F4) Algumas famílias não têm como se adequar a estes horários. Acho que é preciso que se permita o pai poder vir no horário da visita, entrar em outro horário. Ele trabalha, cuida dos outros filhos em casa e não é fácil. Assim, ele consegue vir à noite e nem é todos os dias. Eu preciso que deixem ele entrar. Me sinto muito sozinha e abandonada.

(F5) É necessário avaliar cada caso e facilitar a vida das pessoas. Eu sei que se fizer o que cada um quer pode virar bagunça, mas tem que avaliar cada caso e facilitar a vida da gente. Apoiar a gente. (F7) Assim, referiram como importante a flexibilização das normas e rotinas, de modo a que as necessidades especiais de cada família e criança pudessem ser atendidas, favorecendo sua adaptação no hospital: São elaboradas para atender a necessidade delas (equipe). Elas não comem nos horários que a gente tem que comer aqui. Temos que receber visitas naquele horário. Acredito que a gente tinha que ser ouvida. Tinham que se colocar no nosso lugar. (F10) A gente está num ambiente estranho. Tem que comer cedo, dormir cedo. Levantar cedo. À noite não se dorme nunca. Os horários são muito rígidos. Fica muito difícil se adaptar aqui. (F4) Reconhecem, ainda, que a adaptação de normas e rotinas, para atender suas necessidades específicas, não comprometem a organização e a normalidade no setor, pois decorrem de um processo de negociação com os profissionais da equipe, preservando os espaços de liberdade tanto das famílias como dos profissionais.

Queriam que eu descesse para comer. Mas meu filho não pode ir junto.

Vou deixar ele sozinho? Conversei com a enfermeira e expliquei que estava dois dias sem comer e que não tinha como cumprir esta regra.

Ela falou com a moça que serve a comida e ela me trouxe no quarto. Eu acho que vão trazer o almoço, também. Acho que não prejudicou em nada o trabalho delas. Fiquei assim bem discreta. A gente conversou, combinou e funcionou assim. Me senti respeitada! (F9) No dia da cirurgia dele, na sala de cirurgia, eu fui, ali, e pedi para a chefe de enfermagem para outra pessoa ficar junto comigo.

Expliquei que eu estava com muito medo. Mesmo não sendo a norma ela deixou. A minha mãe ficou junto comigo. A gente ficou bem quietinhas para não chamar a atenção. Foi tão bom. Eu não me senti tão sozinha.

A minha mãe, ali comigo. Foi tão importante isso. Eu me senti [chora] mais humana. Eu estava com tanto medo, tanto medo. Então, tem a norma, mas tem também a nossa necessidade e a sensibilidade. (F12) A transgressão como espaço de resistência Algumas famílias, frente à imposição de normas e rotinas, cuja justificativa de sua necessidade e importância não se mostra suficientemente clara, parecendo situar-se apenas na busca da sua obediência e submissão, mostram-se resistentes, optando por transgredi-las. Reconhecem que algumas normas e rotinas instituídas tornam as relações entre a equipe de saúde e as famílias impessoais e burocratizadas, interferindo na autonomia da família como cuidadora de seu filho.

Não cumpro, tudo que não pode que eu preciso, eu trago escondido: a alimentação, a visita. É escondida. Nos sentimos sozinhas o dia inteiro no hospital. Precisamos conversar um pouco e desabafar os problemas que a criança está passando. (F6) São inflexíveis, pois se nos veem com alimentação não deixam entrar no hospital, inclusive, barram e tiram a sacola. O horário de visita é a mesma dificuldade tendo que descer um para subir o outro e, ainda, uma visita rápida para não ser retirado do quarto. Acho que é muita burocracia, pois a gente está aqui para cuidar o filho doente.

Fazem isso para manter a gente na linha e garantir a ordem, mas é muita bobagem. Tem coisa que podia ser diferente. (F9) Referiram sentir-se negligenciadas, pois as normas e rotinas não parecem contemplar suas necessidades. Assim, podem recusar-se a cumpri-las, seja burlando-as, transgredindo o instituído, seja obedecendo ao que lhes é exigido, porém com manifestações de protesto por ter que fazê-lo.

Não cumpro. Hoje veio uma vizinha minha e me trouxe alimentos escondidos. Escondi no armário para conseguir me alimentar melhor.

Não gosto de fazer isso, mas não tem a possibilidade de ficarmos somente com a comida do hospital. Eu amamento. Eu preciso estar me alimentando. Eu me escondo para comer. Me sinto negligenciada no momento em que mais preciso de ajuda. (F10) Eu cumpro, mas protesto. Reclamo muito porque quem sabe do que eu preciso sou eu e não pode isso, não pode aquilo. É muito difícil se adequar. Come-se às cinco da tarde e depois se vai comer de novo ás oito da manhã. Á noite inteira acordadatemos fome. (F6) DISCUSSÃO No hospital, as famílias passam a conviver com as normas e rotinas necessitando adaptar-se(13). O ambiente hospitalar possui normas e regras específicas às quais as famílias são submetidas. Precisam adaptar-se aos horários das refeições; ao uso de um banheiro comunitário e à falta de privacidade, a conviver com a realização de procedimentos invasivos e dolorosos em seus filhos. Tais situações aumentam sua vulnerabilidade, podendo contribuir para sua despersonalização no setor, dificultando seu enfrentamento da situação vivida(14).

Apesar de reconhecidas como necessárias, com vistas à organização do processo de trabalho, as normas e rotinas, muitas vezes, têm sido utilizadas como um instrumento de poder dos profissionais sobre as famílias. Na sociedade contemporânea, estamos submetidos a um tipo de poder disciplinar capaz de gerir todo um grupo social, com interesses que vão moldar e normalizar condutas. O poder que visa disciplinar os corpos os investe e os produz conforme uma ordem moral, social, política, produtiva e normativa(15).

Através do uso de normas e rotinas, obtém-se o controle dos corpos, realiza-se a sujeição das forças e se impõe uma relação de docilidade-utilidade. O poder disciplinar, na visão foucaultiana, visa à formação de uma relação que torna o corpo humano tanto obediente quanto útil, constituindo uma política de coerções, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos(16).

Usam-se, assim, normas e rotinas no hospital, para que os familiares cuidadores comportem-se como se quer. O uso do poder disciplinar tem por alvo atuar sobre os indivíduos em sua singularidade. É o poder de individualização que tem como instrumento a vigilância permanente, classificatória, permitindo distribuir os indivíduos, julgá-los, medi-los, localizá-los e, por conseguinte, utilizá-los ao máximo.

Nesse contexto, evidenciou-se que a família reconhece a necessidade de normas e rotinas no hospital, passando a conviver com elas em prol da criançapodendo submeter-se sem questionamentos e estranhamentos, numa expressão de uma dócil normalização anterior de submissão a normas e ordens. A organização do processo de trabalho supõe a existência de normas e rotinas que possibilitem a convivência pacífica de diferentes pacientes, familiares e profissionais neste contexto, objetivando o cuidado da criança com qualidade e harmonia, preferentemente sem resistências e conflitos .

A hospitalização da criança torna o familiar cuidador vulnerável emocionalmente, submetendo-o a mudanças em suas rotinas, gerando angústias e sofrimento(17). Tendo em vista sua vulnerabilidade emocional, apresenta-se como facilmente domesticável. Evidencia-se que o poder não existe, o que existe são as relações de poder que se estabelecem na sociedade, aqui objetivadas pelas normas e rotinas impostas.

Os regimes de poder se efetivam também no hospital por meio de mecanismos de vigilância e controle. A descrição de tais mecanismos tem como referência um domínio institucional no qual o poder disciplinar é exercido por meio da norma produzida(8). A punição e a vigilância são mecanismos de poder utilizados para docilizar e adestrar as pessoas para que essas se submetam às normas estabelecidas nas instituições. A vigilância é uma tecnologia de poder que incide sobre os corpos dos indivíduos, controlando seus gestos, suas atividades, sua aprendizagem, sua vida cotidiana(8).

Na concepção foucaultiana, os dispositivos do poder disciplinar, no caso as normas e rotinas institucionalizadas no hospital, caracterizam-se pela minúcia e pelo detalhe. Nesse sentido, o corpo será submetido a uma forma de poder que irá desarticulá-lo e corrigi-lo através de uma nova mecânica do poder. A disciplina irá determinar as distribuições do indivíduo no espaço e seu comportamento. Tais técnicas são aplicadas em hospitais, permitindo observar e vigiar o indivíduo no espaço. Dessa forma, o uso de normas e rotinas facilita o sistema de vigilância e controle dos indivíduos. O espaço é organizado de forma que priorize e privilegie os interesses da equipe de saúde(8).

Em estudo acerca do conflito no exercício gerencial do enfermeiro no âmbito hospitalar verificou a necessidade de construírem-se novas formas de gerenciar em enfermagem, desenvolvendo-se práticas mais interativas e dialógicas, nas quais os conflitos não podem ser negados, mas trabalhados e minimizados(8).

Diante da discordância de normas e rotinas, podem ocorrer resistências na luta contra as diversas formas de subjetividade e submissão. As lutas de resistência são lutas que ocorrem pela busca da autonomia e liberdade.

Percebeu-se que as transgressões às normas impostas parecem ser realizadas com o objetivo de aproximar a rotina hospitalar da domiciliar, tornando o período de internação menos desconfortável tanto para a criança quanto para sua família. Verificou-se que as famílias esperam que, durante a hospitalização do seu filho, os profissionais se solidarizem com elas, flexibilizando as normas e rotinas adaptando-as a suas necessidades(6), possibilitando-lhes trazer do ambiente externo ao hospital alimentos para sua subsistência, dormir em instalações adequadas, usufruir de horários flexíveis para a visita, tornando a hospitalização menos traumática.

Nessas situações, percebe-se a presença de ações de resistência e busca por espaços de liberdade e participação. Porém, quando os espaços de diálogo e negociação em busca dessa flexibilização não são construídos, a família pode sentir-se vulnerável e desamparada, com dificuldades de adaptação e de aquisição de habilidades e competências para o cuidado à criança.

Assim, dados do estudo revelaram estratégias não dialógicas utilizadas pelos familiares cuidadores para resistir às imposições, transgredindo normas e rotinas que não atendiam suas necessidades. Na visão foucaultiana, as resistências ao exercício de poder também tomam parte e se apresentam no contexto social. O poder não se exerce senão sobre sujeitos livres e enquanto são livres têm diante de si um campo de possibilidades no qual muitas condutas, muitas reações e diversos modos de comportamento podem ter lugar(18).

Verifica-se, assim, que o poder funciona estabelecendo relações. Os efeitos de dominação exercidos pelo poder não devem ser atribuídos a uma apropriação, mas a táticas, a técnicas, a funcionamentos(8). Em outras palavras, o poder disciplinar expressa o conjunto das posições estratégicas utilizadas e que pode ser manifestado e às vezes até reconduzido pelos dominados. Se o poder apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos a nível do saber(19). Entende-se assim que as formas de resistência das famílias às normas e rotinas configuram-se como a busca por espaços de liberdade e autonomia.

Considera-se o contexto hospitalar como espaço tanto para práticas de liberdade como de resistência. Como um ponto de partida, acredita-se que o desenvolvimento dessas práticas possam colaborar com o sujeito numa possibilidade de recriação de si e de emergência de novas formas de subjetivação.

Nesse contexto, para que cumpram seu objetivo, normas e rotinas no hospital devem ser elaboradas, considerando as necessidades da criança e seus familiares cuidadores na unidade, qualificando seu cuidado, pois, assim, tornam-se instrumentos essenciais à humanização do cuidado. Na visão foucaultiana, à medida que o ser exerce poder, constrói também formas de saber que podem gerar efeitos sobre este poder, refletido na capacidade de aprender e adquirir habilidades. O poder, quando exercido, desenvolve saber e, ao mesmo tempo, o saber origina efeitos de poder(8).

Acreditam-se necessários novos estudos acerca do uso de instrumentos administrativos pelos profissionais da equipe de enfermagem como formas de disciplinar o processo de trabalho ao mesmo tempo garantindo a humanização da assistência prestada no setor ao se compartilhar o cuidado à criança com sua família.

CONCLUSÕES Procurou-se conhecer, a partir de uma visão foucaultiana, como o familiar cuidador da criança convive com as normas e rotinas no hospital. Verificou-se que algumas famílias tendem a se adaptar, pois entendem a necessidade de organização do trabalho da equipe. No entanto, outras reconhecem a importância da flexibilização das normas e rotinas, de forma que as mesmas atendam às necessidades especiais de cada família e criança, favorecendo sua adaptação no hospital.

A integração da família no processo de cuidado da criança na unidade de internação hospitalar é uma competência que requer ser desenvolvida pelos profissionais da equipe de enfermagem/ saúde, flexibilizando as normas e rotinas. Essa é uma estratégia que se apresenta como possibilidade para um cuidado mais efetivo, singular e prazeroso no qual tanto famílias como profissionais possam sentir-se valorizados, competentes e plenos.

Necessita-se instituir práticas cuidativas embasadas no diálogo, na negociação e na participação dos usuários junto aos trabalhadores. Os enfermeiros, ao elaborarem normas e rotinas, necessitam vislumbrar uma gestão participativa, que possibilite ao familiar cuidador da criança co-participação na tomada de decisões acerca do processo saúde e doença de seus filhos, vivenciando no hospital um ambiente de aprendizado e de cuidado, reconhecendo-se, também como sujeitos cuidados.

Assim, enfatiza-se a relevância do uso das normas e rotinas como instrumentos administrativos e forma de organização da unidade de pediatria, e não como instrumento de sujeição e de busca de obediência do familiar cuidador, numa expressão de poder disciplinar na visão foucaultiana. O processo de trabalho não pode ser organizado tendo como foco apenas os interesses dos profissionais da equipe de saúde/equipe de enfermagem, necessitando contemplar o atendimento das necessidades da criança e seu familiar cuidador, tornando-se importantes o uso de normas e rotinasque possibilitem à família práticas e espaços de liberdade, autonomia e resistência.


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