Prevalência de transtornos mentais comuns em trabalhadores de enfermagem em um
hospital da Bahia
INTRODUÇÃO
Diversos estudos foram realizados nas últimas décadas relacionando as condições
de trabalho e as suas implicações para a saúde dos trabalhadores de enfermagem
(1-5). De maneira geral, os estudos revelam a importância que a saúde do
trabalhador tem frente à produção do cuidado em saúde.
O estudo do processo saúde/enfermidade do trabalhador deve levar em conta três
condicionantes básicos deste processo; as condições gerais de vida, as
condições de trabalho e o processo de trabalho propriamente dito. As condições
de trabalho referem-se a questões mais facilmente perceptíveis e quantificáveis
do processo como: a jornada de trabalho (número de horas trabalhadas,
obrigatoriedade de cumprir horas extras); o tipo de contrato de trabalho
(carteira assinada, prestação de serviços); a forma de pagamento (por mês,
semana, dia, tarefa); o valor da remuneração; o horário de trabalho (diurno,
noturno, por turnos); as condições do ambiente de trabalho, dentre outras(6).
O desgaste físico, emocional e mental gerado pelo trabalho podem produzir
apatia, desânimo, hipersensibilidade emotiva, raiva, irritabilidade e
ansiedade; provocam ainda despersonalização e inércia, acarretando queda na
produtividade, no desempenho e na satisfação do trabalhador(7).
Estes são alguns dentre muitos fatores que colaboram para o surgimento de
problemas relacionados à saúde mental, com destaque para os transtornos mentais
comuns (TMC), expressão criada por Goldberg e Huxley(8) para designar sintomas
tais como insônia, ansiedade, depressão, irritabilidade, dificuldade de
concentração, esquecimento, fadiga e queixas somáticas que, embora demonstrem
ruptura do funcionamento normal do indivíduo, não configuram categoria
nosológica da 10ª Classificação Internacional de Doenças (CID-10), ou dos
Manuais de Diagnóstico e Estatística (DSM) da Associação Psiquiátrica
Americana, mas se caracterizam como um importante problema de saúde pública(9).
No Brasil, pesquisadores têm evidenciado, em estudos epidemiológicos realizados
com trabalhadores da área da saúde, uma associação entre a ocorrência de
transtornos mentais comuns e o trabalho exercido por esses profissionais de
saúde(1-4). Pesquisas também foram realizadas associando elevada prevalência de
transtornos mentais comuns com alta demanda e o baixo controle no trabalho(3,5-
6,10).
As demandas são pressões psicológicas a que os trabalhadores são submetidos no
trabalho e que podem se originar da quantidade de trabalho a executar por
unidade de tempo e/ou do descompasso entre as capacidades do trabalhador e o
trabalho a executar. Quanto ao controle, trata-se da autonomia ou possibilidade
que ele tem de governar o seu trabalho, a partir de suas habilidades ou
conhecimentos(11).
Karasek(11) desenvolveu um modelo de análise do trabalho conhecido como
demanda-controle, representado por uma figura quadrangular, onde cada quadrante
representa associações entre níveis de demanda e graus de controle. Assim,
considera duas dimensões que podem favorecer o desgaste no trabalho (job
strain): as demandas psicológicas caracterizadas pelo ritmo e intensidade no
trabalho; e o controle, que é a habilidade e a autonomia referida pelo
trabalhador sobre o trabalho executado. Assim, atividades que requerem alta
demanda psicológica e sobre as quais o trabalhador tem baixo controle favorecem
o desgaste psicológico e adoecimento físico.
Ao demarcar a importância que o ambiente hospitalar tem sobre a saúde dos
trabalhadores de enfermagem objetivou-se, neste trabalho, descrever a
prevalência de "suspeitos" de transtornos mentais comuns (TMC) em trabalhadores
de enfermagem em um hospital geral, no estado da Bahia.
MÉTODO
Trata-se de um estudo de corte transversal, populacional, exploratório, cujos
dados foram coletados no período de agosto a novembro de 2010, entre os
trabalhadores de enfermagem que atuam no hospital geral público na cidade de
Feira de Santana-BA. A instituição possui 296 leitos, sendo referência no
atendimento de alta complexidade para 126 municípios, que corresponde a uma
população adstrita de aproximadamente 4 milhões de habitantes.
A população do estudo foi constituída por todos os enfermeiros, técnicos e
auxiliares de enfermagem atuantes nos diversos setores do hospital e que
concordaram em participar da pesquisa. Os critérios de inclusão adotados para a
participação na pesquisa foram: que os sujeitos fossem trabalhadores da equipe
de enfermagem (enfermeiros, técnicos e auxiliares); que estivessem
desenvolvendo atividades assistenciais; e que aceitassem participar do estudo
após a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE). Foram excluídos do estudo, os trabalhadores que, no momento da coleta,
estavam afastados do trabalho por doença, licença gestação, férias etc.; que
não estivessem atuando em atividades assistenciais; e que não aceitassem
participar do estudo após a leitura do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE).
Na coleta de dados foi utilizado um questionário padronizado com seis blocos de
questões. O primeiro bloco abordou características sociodemográficas; o segundo
bloco, questões relacionadas às condições de trabalho; o terceiro bloco,
características do ambiente de trabalho e os aspectos psicossociais do
trabalho, adotando-se o Job Content Questionnaire (JCQ); o quarto bloco, as
queixas de saúde e doença; o quinto bloco avaliou a saúde mental por meio da
aplicação do Self-Report Questionnaire (SRQ-20) e um instrumento de detecção de
bebedor-problema, o Teste CAGE; finalmente, o sexto bloco abordou questões
sobre doenças e acidentes de trabalho, problemas de saúde recentes e hábitos de
vida.
Foram construídos dois bancos de dados no EpiData 3.1 para confrontar as
informações e identificar possíveis erros de digitação. Utilizou-se para a
análise dos dados o programa Statistical Package for the Social Science (SPSS®)
version 9.0 for Windows.
Foi realizada a descrição das variáveis estudadas: sociodemográficas, condições
de trabalho, hábitos de vida, aspectos psicossociais do trabalho, queixas de
saúde e doença, e o SRQ-20. Foi realizada análise de associação entre as
questões relacionadas à demanda e o controle do JCQ e o resultado do SRQ-20,
utilizando-se a razão de prevalência (RP) como medida de associação. Como o
estudo foi populacional não foi necessária a utilização de medidas de
significância estatística(12).
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual
de Feira de Santana (UEFS) sob o Protocolo nº 14/2010, CAAE 0016.0.059.000-10.
RESULTADOS
Estudou-se 309 profissionais de enfermagem, correspondendo a 79,6% da população
de 388 indivíduos inicialmente elegíveis. Os 79 (20,4%) sujeitos que não
participaram da pesquisa foram considerados como recusas, pois, embora
contatados pelo pesquisador, não devolveram os questionários nem o TCLE
assinado.
A população de trabalhadores apresentou média de idade de 36,8 anos (± 9,9
anos), sexo feminino 90,9% (281), casadas(os) ou com companheiros(as) 50,3%
(148), com filhos 58,1% (175), escolaridade até o ensino médio 64,0% (194) e
renda de até três salários mínimos 60,4% (168) (Tabela_1).
Tabela 1 - Características sociodemográficas dos trabalhadores de enfermagem de
um hospital geral na Bahia, Feira de Santana-BA, 2010
Características sociodemográficas N* %
Sexo 309
Feminino 281 90,9
Masculino 28 9,1
Faixa etária 308
20-39 anos 182 59,1
40-59 anos 96 31,2
>60 anos 30 9,7
Situação conjugal 294
Casado/a 120 40,8
União livre 28 9,5
Solteiro/a 112 38,1
Viúvo(a)/ divorciado(a) 34 11,6
Tem filhos 300
Sim 175 58,3
Não 125 41,7
Escolaridade 303
Até ensino médio 130 42,9
Superior incompleto 64 21,1
Superior completo 27 8,9
Especialização, mestrado ou doutorad 82 27,0
*respostas válidas, excluídas as respostas ignoradas.
No tocante às variáveis relacionadas ao trabalho, identificou-se que a maior
parte dos trabalhadores é composta por técnicos de enfermagem 46,4% (143); por
trabalhadores com vínculo temporário, ou seja, com contrato de trabalho
temporário baseado na Consolidação das Leis do Trabalho/CLT 64,2% (178) e,
destes, 88,5% (161) estavam contratados pelo Regime Especial de Direito
Administrativo (REDA); com menos de 11 anos de trabalho na área de enfermagem
58,6% (181). Entre os profissionais estudados, 53,7% (165) apresentavam mais de
uma inserção de trabalho; 43,6% (134) trabalhavam em outra instituição e 8,6%
(26) dos profissionais atuavam em mais de duas instituições, além do hospital
estudado. Entre os enfermeiros, 77,4% (65) apresentavam mais de um vínculo de
trabalho e, entre os auxiliares e técnicos de enfermagem, essa frequência foi
de 35,4% (28) e 49,6% (71) respectivamente. A carga horária semanal de trabalho
mais frequente foi mais de 40 horas semanais, 59,9% (181) (Tabela_2).
Tabela 2 - Características profissionais dos trabalhadores de enfermagem em um
hospital geral na Bahia, Feira de Santana-BA, 2010
Características profissionais N* %
Tipo de vínculo 277
CLT 17 6,1
REDA 161 58,1
Estatutário 95 34,3
Outros 4 1,4
N° de vínculos empregatícios 307
Um 142 46,3
Dois 134 43,6
Três ou + 31 10,1
Carga Horária Semanal 302
<40 horas 121 40,1
>40 horas 181 59,9
Renda média/mês 268
Até 3 SM** 168 60,4
De 4 a 7 SM 85 30,6
≥ 8 SM 25 9,0
Acidente de Trabalho 307
Sim 85 27,7
Não 222 72,3
Ocupação 308
Aux.Enfermagem 80 26,0
Tec.Enfermagem 143 46,4
Enfermeira (o) 85 27,6
*respostas válidas, excluídas as respostas ignoradas;
**Salário mínimo de R$ 510,00.
Entre as queixas de saúde destacaram-se como as mais frequentes: dor nas pernas
66,4% (192), dor nas costas 61,8% (178), cansaço mental 47,0% (131), sonolência
36,6 % (101) e formigamento nas pernas 35,6% (100). Dentre os diagnósticos
referidos desde que começaram a atuar como trabalhadores de enfermagem no
hospital (Tabela_3), se destacaram: lombalgia 52,8% (163), varizes em membros
inferiores 46,3% (143), infecção urinária 37,5 % (116) e hipertensão arterial
19,7% (61). Com exceção do cansaço mental, auxiliares e técnicos apresentaram
frequências mais elevadas, tanto das queixas de saúde como dos diagnósticos
referidos. A prevalência de transtorno mental comum (TMC) foi de 35,0% (99).
Entre as (os) enfermeiras (os), a prevalência foi de 38,1% (32) e entre os
técnicos de enfermagem 35,3% (47) e auxiliares de enfermagem 30,8% (20). O
teste Cage triou 1,7% (05)de indivíduos como bebedores-problema. Entretanto, ao
analisarmos a prevalência entre aqueles que informaram o uso de bebida
alcoólica, observamos que 27,7% destes foram considerados bebedores-problema.
Tabela 3 - Características da situação de saúde dos trabalhadores de enfermagem
de um hospital geral público da Bahia, Feira de Santana-BA, 2010
Características da situação de sa??N* n %
Queixas de Saúde
Alergias 276 98 35,5
Nervosismo 276 93 33,7
Dor nas costas 288 178 61,8
Formigamento nas pernas 281 100 35,6
Rinite 285 94 33,0
Insônia 280 61 21,8
Sonolência 276 101 36,6
Dor nas pernas 289 192 66,4
Dor nos braços 289 111 38,4
Cansaço mental 279 131 47,0
Morbidade referida
Hipertensão 309 61 19,7
Infecção urinária 309 116 37,5
Lesão por esforços repetitivos 309 49 15,9
Varizes dos membros inferiores 309 143 46,3
Lombalgia 309 163 52,8
SRQ-20 283
Positivo 80 28,3
Negativo 203 71,7
Cage 293
Positivo 5 1,7
Negativo 288 98,3
*respostas válidas, excluídas as respostas ignoradas.
DISCUSSÃO
Os resultados apontaram que 59,7% (165) dos trabalhadores de enfermagem
estudados, apresentavam mais de uma inserção de trabalho, o que pode acarretar
sobrecarga de trabalho entre esses indivíduos. Esses resultados são maiores que
os obtidos em outros estudos(1-4,6). Múltipla inserção acarreta prejuízos à
atividade de enfermagem, haja vista a necessidade de tempo para interação entre
profissional e paciente, acompanhamento e avaliação cotidiana dos mesmos, bem
como para integração à instituição hospitalar e para atualização profissional
(aquisição de conhecimentos, habilidades e atitudes).
Os trabalhadores de enfermagem do hospital estudado apresentaram uma
remuneração obtida com o trabalho que pode ser considerada baixa. Esse fato,
frente às especificidades do trabalho realizado pela categoria, pode estar
relacionado com outras atividades, com dupla inserção, que pode indicar uma
busca por ampliação da renda mensal, gerando uma sobrecarga de trabalho. Esses
resultados assemelham-se aos de outros estudos(2-3,6,10).
Os resultados revelaram elevada carga horária de trabalho, baixa remuneração,
mais de uma inserção de trabalho e vínculo de trabalho estabelecido por
contrato temporário/precário. Esses resultados foram semelhantes aos obtidos em
outros estudos com trabalhadores de enfermagem(2,5-6,10) e as condições de
trabalho reveladas nesse estudo podem ser consideradas impróprias.
Entre os problemas de saúde, destacaram-se as queixas e diagnósticos de
problemas mentais e posturais, que podem estar associados às características do
trabalho de enfermagem: atender a pacientes, enfrentar a dor, o sofrimento a
morte, excesso de trabalho, elevada responsabilidade, atividades de plantão e
baixa remuneração(1-4,13-14).
A prevalência de "suspeitos" de TMC de 35,0%, aponta para uma situação de saúde
mental preocupante na população estudada. A prevalência encontrada foi maior
que a observada em outros estudos com trabalhadores de enfermagem(2-3,5)
todavia prevalências superiores estão descritas na literatura(13). Estudo que
analisou as novas relações de trabalho e as suas repercussões no desgaste
físico e mental dos trabalhadores de saúde(15) afirma que a precarização das
condições de trabalho tem repercussões na saúde mental, que é indissociável da
saúde como um todo.
Verificou-se com relação ao sexo dos participantes, que houve uma predominância
de trabalhadores do sexo feminino (90,9%), coincidindo com o perfil da
profissão de enfermagem, onde há um predomínio de profissionais deste sexo,
dados ratificados por estudos realizados tanto no Brasil como em outros países
(16-17).
No presente estudo identificamos que as situações de alta demanda psicológica
no trabalho apresentaram-se associadas a uma maior prevalência de "suspeitos"
de TMC. Outros estudos também encontraram uma maior associação entre alta
demanda psicológica e TMC(10,18-19). Segundo o modelo demanda-controle de
Karasek(11), o trabalho realizado em condições de baixo controle e alta demanda
(alta exigência) apresenta-se prejudicial à saúde dos trabalhadores.
Ressalta-se o grande número de profissionais em situação temporária de emprego,
devendo-se chamar a atenção para o fato de a Constituição Federal de 1988
determinar que a investidura em cargo ou emprego público se dê por concurso
público. Constituem-se exceção a esta regra os cargos em comissão, nomeados
pelas autoridades competentes e os casos de contratação temporária para
atenderem a necessidade de excepcional interesse público(20).
Faz-se necessário tecer algumas considerações metodológicas. Inicialmente
devem-se apontar os limites dos estudos de corte transversal. O estudo de corte
transversal examina a relação exposição-doença em uma dada população ou
amostra, em um momento particular, fornecendo um retrato de como as variáveis
estão relacionadas naquele momento. Por isso, esse tipo de estudo não
estabelece nexo causal e apenas aponta a associação entre as variáveis
estudadas. Além disso, esse estudo teve cunho exploratório, realizando apenas
análises bivariadas(12). Outra limitação desse tipo de estudo é selecionar
apenas os sobreviventes ao efeito estudado (viés de prevalência) o que é
particularmente relevante em estudos ocupacionais, em decorrêcia do chamado
efeito trabalhador sadio(10). Do ponto de vista do desenho, pode-se afirmar que
o rigor metodológico do estudo buscou minimizar problemas inerentes ao seu
desenho, ou seja, ao viés de seleção e aferição.
Em estudos que utilizam questionários autoaplicáveis, apresenta-se, como
limitação, a opção do entrevistado de não responder a todas as questões
colocadas, dificultando o controle das perdas de informação(12). Entretanto, a
coerência e a consistência dos achados, apontam para condições laborais
inadequadas dos trabalhadores de enfermagem no hospital estudado, bem como para
uma alta prevalência de queixas de problemas mentais e posturais e de
"suspeitos" de TMC.
O percentual de recusas ocorridas neste estudo foi considerado aceitável haja
vista que estudos semelhantes com profissionais de saúde, a frequência de
perdas ou recusas variou de 3,9% a 20,8%(3,5,10).
CONCLUSÃO
A existência no trabalho de enfermagem de condições desencadeadoras de
sofrimento, estresse e ansiedade, é uma realidade não mais contestada. No
entanto, as repercussões sobre a saúde desses trabalhadores, reconhecidamente
expostos a fatores estressantes e ansiogênicos, ainda são pouco conhecidas. Os
resultados desse estudo corroboram os de outros estudos com a mesma categoria
de trabalhadores e com outras categorias de trabalhadores de saúde, bem como de
outras profissões.
Espera-se que este trabalho possa fomentar novas investigações sobre as
características e os riscos à saúde dos trabalhadores de enfermagem que exercem
suas atividades laborais em hospitais gerais; e que estimule a implantação de
um serviço de saúde do trabalhador no hospital estudado. Ressalta-se, por fim,
que as condições de trabalho e saúde observadas apontam para a necessidade de
mudanças na organização do trabalho de enfermagem.