Sobrecarga de trabalho da Enfermagem e incidentes e eventos adversos em
pacientes internados em UTI
INTRODUÇÃO
Um dos maiores desafios na gestão em saúde é a análise dos indicadores de
qualidade e o impacto potencial na segurança do paciente. A segurança do
paciente tem por objetivo a redução do risco de danos desnecessários
relacionados aos cuidados de saúde para um mínimo aceitável, de acordo com
conhecimento atual, dos recursos disponíveis e no contexto em que os cuidados
foram prestados(1). As falhas na segurança do paciente causam também sofrimento
humano e aumento de custos(2). Dentre os diversos fatores que podem influenciar
na segurança de pacientes internados, destacam-se os incidentes e eventos
adversos (EA)(3). Incidentes de segurança do paciente, conforme classificação
da Organização Mundial de Saúde, são eventos ou circunstâncias que poderiam
resultar, ou resultam em complicações desnecessárias ao paciente decorrentes do
cuidado à saúde(1). Entende-se por "desnecessária" neste contexto, os erros,
transgressões e atos deliberadamente perigosos que ocorrem em cuidados de
saúde. Os incidentes surgem quer de atos intencionais ou não intencionais. Os
erros são geralmente não intencionais, enquanto que as transgressões são
usualmente intencionais. Um incidente pode ser classificado em incidente sem
danos ou com danos. Este último é também chamado de evento adverso (EA). Dano
implica em prejuízo na estrutura ou nas funções do corpo e/ou qualquer efeito
deletério daí resultante, incluindo lesão, doença, sofrimento, incapacidade ou
morte, e pode ser físico, social ou psicológico. Os eventos adversos e
incidentes são relevantes indicadores de qualidade, fornecendo informações
imprescindíveis para o planejamento de um sistema de saúde mais seguro(4).
Embora os EAs possam acontecer em qualquer setor da assistência à saúde,
pacientes em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) são particularmente
vulneráveis a essas complicações, quer seja pela necessidade de decisões de
alto risco, muitas vezes de forma urgente, a utilização de arsenal
medicamentoso mais complexo, um número elevado de procedimento diagnósticos,
pelo alto número de intervenções realizadas, em função da gravidade e
labilidade dos pacientes internados nesse local(5). Apesar dessa
vulnerabilidade, são poucas publicações relacionadas à segurança de pacientes
submetidos a cuidados intensivos.
A frequência de eventos adversos (EA) em pacientes hospitalizados varia
amplamente, de 10 a 60%(6-7), enquanto que os incidentes sem lesão podem chegar
a impressionantes 60% das internações. Em uma UTI, aproximadamente 20% dos
pacientes podem sofrer um EA e, destes cerca de 40-45% podem ser considerados
evitáveis(5,8) Interessante notar que, em quase metade dos episódios relatados,
as complicações são consideradas preveníveis ou evitáveis(1). Estudos norte-
americanos mostram que os EAs evitáveis contribuíram para a morte de 44.000 a
98.000 pessoas/ano(9). Além disso, os EAs afetam as taxas de sobrevida dos
pacientes significativamente e independentemente(10).
Na análise de segurança dos pacientes em cuidados intensivos, destaca-se a
questão da detecção de incidentes sem lesão (I), uma vez que estes podem ser
seguidos de eventos adversos e comprometer a segurança dos pacientes. A
identificação de padrões recorrentes e de fatores que possam contribuir para os
incidentes sem lesão pode ser considerada um pré-requisito para a elaboração de
estratégias preventivas efetivas nesse quesito. Pesquisas sobre incidentes sem
lesão sem segurança do paciente são escassas(11).
Na análise dos fatores relacionados aos EA em pacientes em UTI, destaca-se o
papel da Enfermagem, uma vez que este é o local em que há maior demanda para as
atividades dos enfermeiros e há exigência de ações rápidas e de observação
continuada por parte desses profissionais(4). As condições de trabalho do
pessoal de enfermagem, caracterizadas, por vezes, pela sobrecarga de trabalho e
pela jornada em regime de plantões são fatores de risco para a segurança do
paciente(12). Carayon & Gurses(13) já referiam, em 2005, que a inadequação
do quadro de enfermagem é fator que compromete a qualidade do cuidado de
pacientes em cuidados intensivos. Weissman et al.(14) inclusive observaram que
um aumento de 0,1% na razão paciente/enfermeiro levou a um aumento de 28,0% na
taxa de eventos adversos nas instituições pesquisadas. Esses autores também
demonstraram que a carga de trabalho é um fator de risco para a segurança dos
pacientes em UTI.
Embora a carga de trabalho da Enfermagem tenha sido evidenciada como fator de
risco para a segurança do paciente, em especial naqueles em UTI, a grande
maioria dos estudos realizados é do tipo retrospectivo e, por isso, compromete
a detecção e o registro de EAs, limitando consideravelmente a reprodutibilidade
das conclusões observadas. Assim, a presente pesquisa foi desenvolvida com o
objetivo de estudar, prospectivamente, a influência da carga de trabalho da
Enfermagem no risco de incidentes sem lesão e de eventos adversos relacionados
à competência de enfermagem em pacientes internados em unidades de terapia
intensiva.
METODOLOGIA
Trata-se de estudo observacional, prospectivo, tipo coorte, qualitativo,
descritivo realizado em dois hospitais universitários de alta complexidade, o
Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (HC-FMUSP) que conta com 910 leitos e o Hospital
Universitário da Universidade de São Paulo (HU) que tem 258 leitos, localizados
no município de São Paulo. O projeto de pesquisa foi submetido à análise dos
Comitês de Ética em Pesquisa das instituições participantes onde obteve
aprovação (Cappesq 0279/07).
Os cenários foram Unidades de Terapia Intensiva dos hospitais participantes,
sendo 27 leitos do HC-FMUSP e 20 leitos do HU. As UTIs participantes do HC-
FMUSP apresentam alta demanda pelo fato deste hospital ser referência para
outros hospitais de alta complexidade na sua área de abrangência. A UTI do HU
atende a pacientes clínico-cirúrgicos.
Foram incluídos neste estudo todos os pacientes com idade superior a 15 anos
internados nos serviços descritos acima, no período de maio a agosto de 2009.
Os pacientes foram acompanhados até sua saída dos serviços incluídos no estudo
(alta ou óbito).
Os EAs e incidentes sem lesão que tiveram seu início antes da admissão dos
pacientes nos serviços estudados não foram incluídos.
Os dados foram produzidos por meio de preenchimento de formulários específicos
para o registro de possíveis EAs/I a partir da leitura e análise diárias dos
prontuários, bem como aqueles notificados espontaneamente à equipe de pesquisa.
As visitas diárias nas respectivas UTIs com a equipe multiprofissional foram
acompanhadas por observador deste estudo. Os EAs e incidentes foram também
identificados por minuciosa revisão dos prontuários médicos dos pacientes
incluídos. Neste processo, revisores previamente treinados, analisaram
detalhadamente todas as partes que compõem o prontuário, incluindo evoluções e
prescrições médicas; solicitações e relatórios de interconsultas; evoluções,
prescrições, anotações e controles de enfermagem. Uma busca minuciosa por
problemas relacionados à coleta e encaminhamento de exames foi realizada nos
laboratórios das instituições envolvidas.
Os incidentes sem lesão e os EAs foram classificados conforme a sua natureza:
se falhas administrativas, médicas, de enfermagem, cirúrgicas, relacionadas a
medicamentos e à infeção hospitalar(1). Neste estudo nos restringimos a
apresentação dos dados referentes à competência de enfermagem. Os pesquisadores
responsáveis categorizaram as observações encontradas em EA/I relacionados à
competência de enfermagem, de acordo com o relatório técnico da Organização
Mundial da Saúde publicado em 2011, conforme o tipo(1).
Incidentes sem lesão (I): falhas no seguimento da prescrição de enfermagem,
falhas no seguimento da prescrição médica não medicamentosa pela equipe de
enfermagem, falhas na administração de medicamentos, problemas da Enfermagem a
manipulação de sondas e cateteres, problemas no encaminhamento de exames,
falhas no registro de enfermagem, problemas na administração de dietas enterais
e exames não realizados.
Eventos Adversos (EAs): relacionados a medicamentos, dermatites, assaduras,
úlceras por pressão, falhas no diagnóstico e tratamento médicos, flebites,
problemas de contenção de pacientes.
Também foram registradas as informações relacionadas aos diagnósticos de
admissão nas UTIs; comorbidades por meio da escala de Charlson(15); tempo de
permanência nos serviços; gravidade clínica à admissão nas UTIs por APACHEII e
SAPII(16) e a condição de saída das UTIs e do Hospital.
A carga de trabalho de enfermagem foi mensurada pelo índice Nursing Activities
Score (NAS). Esse instrumento foi desenvolvido por Miranda et al. (2003)(17) e
traduzido e validado por Queijo e Padilha(18); consiste de 23 itens
relacionados às intervenções médicas e de enfermagem a que o paciente foi
submetido na UTI. O cálculo do escore total do NAS resulta do somatório dos
itens pontuados que expressa em porcentagem o tempo gasto pela equipe de
enfermagem na assistência ao doente em UTI. Um formulário NAS foi preenchido
por cada profissional de enfermagem diretamente envolvido no cuidado de cada
paciente no final de cada turno de trabalho. O NAS diário foi determinado para
cada paciente durante o período de acompanhamento com o intuito de estimar o
NAS médio para cada paciente no período. Considerando que, na UTI, dois leitos,
no mínimo, foram atribuídos para cada profissional de enfermagem, foi
considerado que um NAS ≥ 51% era indicativo de uma sobrecarga de trabalho
durante o período de estudo(19).
As informações coletadas foram transferidas para uma base de dados específica
por dupla digitação. As variáveis contínuas foram analisadas pelos testes
estatísticos descritivos (média, desvio padrão, mediana, valor máximo e valor
mínimo e suas médias). As variáveis categóricas foram apresentadas com
frequências absolutas e relativas. Foram analisadas as correlações entre EAs/
incidentes sem lesão e tempo de permanência, carga de trabalho de enfermagem e
índices de gravidade dos pacientes pelo teste de Spearman. Os fatores que
mostraram resultados estatisticamente significativos na análise univariada
foram selecionados para análise multivariada. Modelos de regressão logística
foram aplicados, estimando-se "odds ratios" e respectivos intervalos de
confiança. Os programas estatísticos utilizados foram STATA versão 10.0 (Stata
Corp, College Station TX) e SPSS (Statistical Package for the Social Sciences),
versão 19.0. Foram considerados resultados significantes quando p<0,05.
RESULTADOS
Um total de 399 admissões referentes a 380 pacientes foram estudadas, sendo que
79 pacientes (20,8% dos pacientes) evoluíram para óbito durante a internação
nas UTIs pesquisadas. As admissões realizadas no HC-FMUSP apresentaram maior
complexidade e foram mais prolongadas, justificada pelo maior número de casos
complexos internados nesse hospital quando comparadas com aquelas feitas no HU
(Tabela_1).
Tabela 1 Distribuição das características tempo de internação e condições
clínicas de entrada, condições de saída, gravidade do paciente de acordo com o
hospital estudado, São Paulo-SP, 2009
Variável HC-FMUSP HU n = p
n = 202 197
Tempo de Internação UTI (dias) 10,47 ± 7,10 ± 0,01
0,77 0,65
Média ± EP (MIN-MAX) (1,0- (1,0-
70,0) 49,0)
Tempo de Internação no hospital (dias) 19,78 ± 13,62 ± <0,01
1,20 1,01
Média ± EP (MIN-MAX) (1,0- (1,0-
84,0) 95,0)
Gravidade à Admissão APACHE (pontos) 16,04 ± 11,68 ± <0,01
0,50 0,54
Média + EP (MIN-MAX) (0 - (0 -
48,0) 40,0)
NAS (%) 69,55 ± 61,97 ± <0,01
1,40 2,25
Média + EP (MIN-MAX) (19,55 - (9,88 -
145,56) 114,4)
155 154
Condição de saída das UTIs (número pacientes; %) Alta / (79,5%) (83,25%)
Óbito / 40 / 31
(20,5%) (16,75%)
**
146 139
Condição de saída do Hospital (número pacientes; %) Alta:(74,9%): (75,14%):
Óbito 49 46
(25,1%) (24,86%)
* **
n: número de admissões; erro padrão;
MIN: valor mínimo apresentado;
MAX: valor máximo apresentado
*: resultados se referem a 195 pacientes
**: resultados se referem a 185 pacientes
A carga de trabalho da Enfermagem mensurada pelo NAS foi maior no HC-FMUSP
(69,55 ± 1,40) quando comparado ao HU (61,97 ± 2,25). Tendo em vista que cada
profissional de enfermagem assistiu a, no mínimo dois pacientes, constata-se a
existência de sobrecarga da equipe de enfermagem, uma vez que os índices NAS
observados nos dois hospitais estudados superam em muito o valor acima do qual
é considerado sobrecarga de trabalho (NAS≥51%).
Um total de 15.054 EAs e incidentes sem lesão foram detectados no período
estudado, afetando 394 das 399 (98,75%) das internações analisadas. Os
incidentes sem lesão (12.737, 84,6%) acometeram 391 admissões e os EAs (2.317,
15,4%) atingiram 296 admissões. Desse modo, 74,2% das admissões sofreram ao
menos um EA durante a permanência nas UTIs avaliadas. Ao compararmos o grupo de
admissões que sofreu pelo menos um EA com aquele que não sofreu EAs, observamos
que, no primeiro grupo, a gravidade clínica na admissão à UTI (ApacheII) foi
maior (15,03 ± 0,44 nas internações com EAs e 10,59±0,68 nas sem EAs, p<0,001),
as admissões foram mais prolongadas (11,08 dias ± 0,63 nas internações com EAs
e 2,19 dias ± 0,18 nas sem EAs, p<0,001). Destaca-se a média da carga de
trabalho da equipe de enfermagem que foi mais elevada nos pacientes com EAs,
NAS (%) 66,2 ± 1,05 que naqueles sem EA, 60,25 ± 1,85, (p=0,02). A análise
bivariada mostrou uma forte e significativa correlação do número de EAs com o
tempo de internação nas UTIs (0,800; p<0,0001). A gravidade clínica (pontuação
Apache II) na admissão à UTI (0,35; p<0,0001), a carga de trabalho da
Enfermagem (NAS), 0,191 e p<0,0001 e o peso da comorbidades (pontuação escala
de Charlson), 0,128 e p<0,0001 apresentaram uma correlação significativa, com a
ocorrência de EAs.
Os incidentes sem lesão relacionados à competência da enfermagem, foco deste
estudo, totalizaram 10.115, ou seja 79,4% do total de incidentes sem lesão. As
falhas no seguimento da prescrição da Enfermagem (5.610, 55,46%) foram os
incidentes mais frequentemente observados neste estudo (Tabela_2). Os eventos
adversos associados à atuação da Enfermagem, também objetivo deste estudo,
corresponderam a 622 (26,80%) são apresentados na Tabela_3. O tipo de EA
relacionado à esfera da Enfermagem mais comumente detectado neste estudo foram
as dermatites, assaduras e úlceras de pressão, que são complicações passíveis
de prevenção pelos cuidados adequados de enfermagem.
Tabelas 2 Incidentes sem lesão relacionados à esfera da Enfermagem nas
admissões nas UTIs estudadas, São Paulo-SP, 2009
Tipos de incidentes sem lesão n % de
incidentes
Falhas no seguimento da prescrição de enfermagem 5610 55,46
Falhas no preparo e administração de medicações 1563 15,45
Problemas da Enfermagem a manipulação de sondas e cateteres 892 8,81
Problemas na coleta e no encaminhamento de exames 744 7,35
Falhas no registro de dados nos prontuários pela Enfermagem 577 5,70
Problemas na administração de dietas enterais 507 5,01
Falhas no seguimento da prescrição médica não medicamentosa pela 222 2,19
Enfermagem
TOTAL 10.115 100
Tabela 3 Eventos adversos relacionados à esfera da Enfermagem nas admissões nas
UTIs estudadas, São Paulo-SP, 2009
Tipos de eventos adversos n % de incidentes
Dermatites, assaduras, úlceras por pressão 376 60,45
Problemas na contenção física de pacientes 113 18,17
Flebite 72 11,58
Falhas da enfermagem na manipulação de cateteres e sonda57 9,16
Quedas de pacientes 4 0,64
TOTAL 622 100
A análise bivariada mostra uma forte correlação entre tempo de internação
(0,825; p<0,0001) e sobrecarga de trabalho de enfermagem (0,331; p<0,0001) e os
incidentes sem lesão e EAs relacionados à enfermagem. Correlações
significativas, embora menos intensas, também foram encontradas quanto ao
número de incidentes sem lesão e EAs de enfermagem e a gravidade clínica à
admissão, (0,220; p=0,002), Tabela_4.
Tabela 4 Correlação bivariada de ocorrências de Incidentes sem lesão e eventos
adversos e tempo de internação nas UTIs, APACHE, e NAS
Variável (Spearman) Dias de internação emNAS (%) APACHE II
UTI (pontos)
Incidentes sem lesão + Eventos 0,825 0,331 0,220
Adversos
p<0,0001 p<0,0001 p<0,002
A regressão logística univariada para a ocorrência de pelo menos um EA
relacionado à enfermagem mostrou que o tempo de internação superior a 3 dias
foi o fator de risco isolado mais importante (OR simples=11,44; IC 95%= 6,81-
19,22; p<0,001). As variáveis sinalizadoras de gravidade também se associaram
de forma isolada à ocorrência de ao menos um EA de enfermagem (OR simples=2,46;
IC 95%= 1,63 – 3,74; p<0,001). Outro fator de risco isolado significativo foi a
sobrecarga de trabalho de enfermagem (OR simples=2,81; IC 95%=1,67-4,72;
p<0,001).
Na análise multivariada para identificar os fatores de risco para a ocorrência
de ao menos um EA relacionado à enfermagem permaneceu no modelo final o tempo
de internação maior do que 3 dias (OR simples=11,44; OR ajustado= 10,63; IC
95%= 6,17-18,31; p<0,001) e a sobrecarga de trabalho de enfermagem (OR
simples=2,74; OR ajustado= 3,21; IC 95%= 1,78 – 5,79; p<0,001). A análise da
proporção de pacientes que sofreram eventos adversos influiu negativamente
quanto à perspectiva de sobrevida desses indivíduos, Chi2=10,49, p=0,001.
Finalmente, a análise univariada para o desfecho óbito nas UTIs incluiu como
variáveis independentes: Apache; NAS, idade, tempo de internação nas UTIs,
comorbidades e as diferentes categorias de EA. Um modelo foi construído para
cada categoria de EA, a saber: geral (qualquer natureza de EA); EA médico, EA
relacionado à enfermagem; EA cirúrgico; infecção hospitalar e EA relacionado a
medicamentos. A sobrecarga de trabalho de enfermagem (NAS>51%) apresentou
associação com óbito dos pacientes nas UTIs pesquisadas com OR=11,25 (IC
95%=2,70-47,00, p=0,001).
DISCUSSÃO
A partir da publicação do relatório "To Err is Human", em 2000, que descreveu
que aproximadamente 10% das internações hospitalares eram complicadas por
eventos adversos com consequências para os pacientes e para o sistema de saúde,
tornou-se evidente a relevância do tema segurança do paciente, tanto é que a
Organização Mundial de Saúde, desde 2004, tem desenvolvido um programa com o
propósito de melhorar a segurança do paciente e, por conseguinte reduzir a taxa
de EAs(1,9). No documento publicado pela WHO, enfatiza-se que os EAs devem ser
pesquisados, desde os fatores que contribuem para sua ocorrência, as
características dos pacientes, o tipo de incidente observado, os mecanismos de
detecção, os fatores que podem mitigar os EAs, a evolução dos pacientes, o
acompanhamento organizacional e as ações de melhoria a ser implementadas e os
resultados dessas ações.
No Brasil, o Ministério da Saúde instituiu, em maio de 2013 o Programa Nacional
de Segurança do Paciente (PNSP) com o objetivo de implementar medidas
assistenciais, educativas e programáticas e de iniciativas voltadas à segurança
do paciente em diferentes áreas da atenção, organização e gestão de serviços de
saúde, por meio da implantação da gestão de risco e de Núcleos de Segurança do
Paciente nos estabelecimentos de saúde(20).
Até o momento, mesmo com esses esforços nacionais e internacionais, a grande
maioria das pesquisas corresponde a estudos retrospectivos, baseados em
revisões de prontuários ou partir de recuperação de dados a partir de registros
eletrônicos, e os resultados encontrados subestimam a real ocorrência de EAs e
de incidentes sem lesão, pois nem todas as complicações sofridas pelos
pacientes são registradas nos prontuários. Seguramente as taxas reais de
ocorrência de incidentes e EAs são ainda mais alarmantes. Rutberg et al., em
2014, demonstraram que apenas 6,3% dos EAs foram registrados em prontuários
espontaneamente, concluindo que estratégias especiais devem ser aplicadas para
resultados efetivos(21).
Há que se considerar que alguns EAs são inevitáveis, como a reação alérgica a
um antibiótico; mas, entre 37-54% dos EAs reportados na literatura em pesquisas
do tipo retrospectivo são potencialmente evitáveis(2,5,8).
As unidades de terapia intensiva são reconhecidas como setores muito
suscetíveis à ocorrência de incidentes e EAs. Alguns aspectos são fundamentais
para facilitar a ocorrência de erros nesses locais, como a complexidade dos
casos, a necessidade de decisões de alto risco de forma urgente, a falta de
informações prévias sobre a saúde dos pacientes, a variabilidade de capacitação
dos profissionais médicos e de enfermagem que atuam nesta área, a realização de
procedimentos diagnósticos e terapêuticos em frequência muito maior quando
comparada a outros setores hospitalares e a utilização de um arsenal
medicamentoso muito mais complexo em função da maior gravidade do quadro
clínico inicial. Apesar desta vulnerabilidade, poucas são as publicações
relacionadas à segurança de pacientes submetidos a cuidados intensivos.
Na pesquisa aqui apresentada, resultado de um trabalho prospectivo conduzido em
duas UTIs de hospitais brasileiros, foram analisados os incidentes sem lesão e
os EAs relativos às competências da Enfermagem, o tipo de ocorrência, a
evolução dos pacientes, permitindo a identificação e elaboração de ações de
melhoria para mitigar essas ocorrências.
Constatamos, inicialmente, a elevada taxa de incidentes sem lesão (84,6%)
durante o período estudado e, que 74,2% das admissões sofreram ao menos um EA
durante a permanência nas UTIs avaliadas. Resultados esses superiores ao
descrito pela literatura, mas que podem ser, em parte explicados pelo fato de
ser um estudo prospectivo, em que instrumentos foram especialmente
desenvolvidos para esta finalidade, foi feita busca ativa, observação em
visitas médicas e da equipe multiprofissional e checagem de exames de imagem e
de laboratório postergados e cancelados.
Em pesquisa conduzida em hospital de ensino terciário, avaliou-se a incidência
de eventos adversos e incidentes em pacientes de UTI(5). As taxas de eventos
adversos e incidentes sem lesão por 1000 pacientes-dia foram respectivamente
80,5 e 149,7. Dentre os eventos, 13% destes foram graves ou fatais. Do total de
pacientes, 20,2% sofreram ao menos um evento, uma taxa maior que a de estudos
não focados em terapia intensiva. Em outro estudo, observou-se uma incidência
maior de eventos adversos em terapia intensiva, que chegou a 39,2%(10).
Na pesquisa aqui apresentada encontramos um prolongamento no número de dias de
internação nos pacientes que desenvolveram EAs, quando comparados com aqueles
que não o apresentaram (p<0,001), corroborando o que já foi descrito na
literatura(3,5). Forster et al.(22) identificaram um aumento de 31 dias na
média do tempo de permanência de pacientes que sofreram um evento adverso
quando internados em terapia intensiva. No nosso estudo, inclusive, foi
demonstrado que há uma forte e significativa correlação do tempo e permanência
do paciente nas UTIs com o número de EAs de enfermagem.
Observamos que, dentre as ocorrências na competência de enfermagem,
predominaram fortemente os incidentes sem lesão (94,2%) sobre os EAs e que
esses últimos foram considerados evitáveis, ensejando medidas para a mitigação
dos mesmos. A identificação de incidentes sem lesão que culminam em evento
adverso ou que tem potencial para tal tem utilização prática pois podem
direcionar ações educativas, preventivas e corretivas contribuindo para a
melhoria da segurança do paciente(23).
No estudo aqui apresentado, utilizou-se um recurso (NAS) que tornou possível
demonstrar que, em ambos hospitais participantes, houve sobrecarga de trabalho
no período analisado (p<0,01) e que incidentes sem lesão e EAs estavam
associados à sobrecarga de trabalho do pessoal de enfermagem (p<0,0001). Na
nossa casuística, um enfermeiro cuidou de mais de 2 pacientes em cuidados
intensivos, enquanto que a Associação Britânica de Enfermeiros para cuidados
críticos recomenda uma proporção de um enfermeiro por paciente em UTI(24).
Cho et al.(25) conduziram um estudo em hospitais norte-americanos que envolveu
aproximadamente 10.000 enfermeiros e mais de 230.000 pacientes, tendo concluído
que alta proporção de pacientes cirúrgicos por enfermeiro, levou a um maior
risco de morte após 30 dias de internação e maior numero de morte por
complicações potencialmente evitáveis. Neste trabalho, pudemos demonstrar que a
ocorrência de eventos adversos relacionados à Enfermagem levou a um risco de
morte significativamente maior (Chi2=10,49 p:0,001).
Na nossa pesquisa, admissões que se prolongaram por quatro dias ou mais
apresentaram uma chance de desenvolver EAs relacionados à enfermagem de quase
11 vezes em relação às admissões mais curtas. Além deste aspecto, as admissões
assistidas por profissionais de enfermagem sobrecarregados tiveram mais do que
o dobro de chance de sofrerem ao menos um EA relacionado à enfermagem.
A sobrecarga de trabalho relacionada à desproporção entre o número de
profissionais de enfermagem e de pacientes é relatada como fator de risco
inclusive para o aumento da incidência de infecções hospitalares em pacientes
críticos. Stegenga et al.(26) relataram estudos onde a insuficiência de
profissionais de enfermagem foi um fator importante para a ocorrência de
infecções hospitalares em unidades de atendimento adulto, neonatal e pediatria.
Além de relacionar-se com má adesão às práticas de higiene e antissepsia das
mãos pelos profissionais de saúde, a sobrecarga de trabalho é um obstáculo às
ações de educação continuada para prevenção contra a infecção hospitalar, onde
a disponibilidade para a participação de treinamentos e a eficácia dos mesmos
fica prejudicada.
A ocorrência de erros deve ser interpretada como falhas ou não-conformidades
decorrentes de colapsos dos complexos sistemas técnicos e organizacionais
relacionados à atenção em saúde e não como resultados isolados de ações
profissionais. São as vulnerabilidades presentes nos sistemas (fatores
latentes) que favorecem a prática de erros pelos indivíduos envolvidos com o
cuidado (fatores ativos)(27). Desenvolvem-se, para a sua ocorrência, processos
multicausais e de articulação complexa, e é como tais que foram aqui estudados.
Deve-se ressaltar que, frequentemente, o pessoal de enfermagem acumula mais de
um emprego, tem alta rotatividade face à baixa remuneração comumente aplicada
ou às condições de trabalho na instituição e elevado nível de estresse. Desse
modo, as organizações devem prover número adequado de profissionais, bem como
condições de trabalho e de remuneração adequados que permitam um menor risco de
dano aos pacientes(12). Além do mais, o enfermeiro não tem como função apenas a
assistência ao paciente, mas inclui o treinamento e capacitação de
profissionais de enfermagem, gerenciamento de insumos e materiais, articulação
com outros profissionais da saúde e da administração da organização, orientação
dos pacientes e familiares, promovendo, enfim, a gestão multiprofissional em
prol do paciente.
Este estudo demonstra o impacto da sobrecarga de trabalho de enfermagem,
aumentando os riscos de incidentes sem lesão, de eventos adversos em pacientes
em pacientes internados em UTIs em dois hospitais brasileiros, revelando a
necessidade de um dimensionamento adequado do quadro de pessoal desta categoria
profissional. Deve-se ressaltar que os eventos adversos também se apresentaram
com associação significativa para ocorrência de óbito neste estudo. A
sobrecarga de trabalho de profissionais de enfermagem deve ser entendida como
uma consequência de vários fatores e, para ser solucionada, e cabe ao gestor a
empreender estratégias em níveis diversos.
Apesar de sabermos que a gestão de pessoas em âmbito hospitalar é altamente
complexa, envolvendo aspectos sistêmicos e também intraorganizacionais, a
definição de metas, os recursos disponíveis, as modalidades de contratação de
pessoal e remuneração e o tipo de atendimento devem ser analisados de modo
global e integrados. Os gestores de recursos humanos devem estar em contato
continuado com os coordenadores de enfermagem, procurando obter as informações
para diagnosticar a sobrecarga de trabalho de profissionais, uma vez que os
coordenadores de enfermagem é que treinam e gerenciam a equipe de enfermagem
localmente e com essa interação, procurar desenvolver políticas, elaborar
estratégias e oferecer o suporte necessário para solucionar essa situação
quando detectada. Idealmente, inclusive, a sobrecarga de trabalho deveria ser
prevenida, fazendo uma análise detalhada e dinâmica das peculiaridades de cada
setor.
Espera-se por meio desse estudo contribuir para uma compreensão mais
aprofundada do problema da sobrecarga de trabalho dos profissionais de
enfermagem no âmbito da gestão de pessoas na área hospitalar, em especial em
unidades de terapia intensiva dos hospitais analisados, tendo por objetivo a
melhoria contínua dos serviços prestados em saúde e a redução de eventos
adversos relacionados à sobrecarga de trabalho.
CONCLUSÕES
Esse trabalho, realizado em duas unidades de terapia intensiva de hospitais
públicos brasileiros, detectou que aproximadamente 78% dos incidentes sem lesão
e de eventos adversos em pacientes foram relacionados à esfera da Enfermagem.
Essas complicações atribuídas à sobrecarga de trabalho de enfermagem aumentaram
o número de dias de internação dos pacientes estudados. Demonstrou-se que a
sobrecarga de trabalho de enfermagem esteve também associada a um aumento de
risco de mortalidade dos pacientes nas UTIs avaliadas. Os eventos adversos
relacionados à esfera de enfermagem detectados nesse estudo são passíveis de
prevenção pela assistência adequada de enfermagem. É fundamental que os
gerentes de enfermagem participem ativamente no processo de gestão de pessoas
evitando a sobrecarga de trabalho proporcionando, consequentemente, aumento da
segurança do paciente.