Ressignificação da vida do cuidador do paciente idoso com câncer
INTRODUÇÃO
A elevada incidência de doenças crônico-degenerativas na população de idosos é
característica da transição epidemiológica mundial desde o último século(1).
Dentre as de maior prevalência entre os idosos, destaca-se o câncer. Atualmente
esta população tem sido alvo de preocupação dos governos que, por meio de
políticas de saúde específicas, consideram o processo da senescência e a
senilidade gerador muitas vezes de condições de extrema fragilidade, requerendo
tratamentos e internações freqüentes, de altos custos e ainda, mobilizando
grande número de pessoas da família, do convívio social, além dos próprios
serviços e profissionais de saúde(2).
Considerando a porcentagem de pacientes diagnosticados tardiamente e a
disponibilidade de tratamentos para casos avançados, observa-se que grande
parte desses idosos é submetida à terapêutica quimioterápica, como uma das
modalidades de terapia. A quimioterapia utiliza medicamentos que trazem ao
paciente uma série de alterações físicas, efeitos colaterais e reações adversas
de difícil controle e manejo, principalmente nos dias subseqüentes à infusão
das drogas. São efeitos indesejáveis, temidos pelos pacientes, que demandam uma
série de cuidados domiciliares, visto que o tratamento geralmente é realizado
no ambiente ambulatorial, devendo o paciente retornar ao domicílio após cada
aplicação.
Em geral, os cuidados ao paciente em quimioterapia são executados por
familiares ou pessoas próximas, no próprio ambiente domiciliar. O domicílio e a
família são considerados como local e sistema ideais, respectivamente, para que
experiências sejam bem sucedidas, dados os próprios valores culturais neles
presentes(3). Observa-se que a Política de Atenção ao Idoso tem incentivado
esta prática, por considerar o lar e a proximidade da família como melhor
opção, garantindo a autonomia, preservando a dignidade e a integridade do
indivíduo adoecido(4). Ressalva deve ser feita quanto a este apontamento, uma
vez que nem todo domicílio e/ou família possui estas características.
Contudo, a família nem sempre tem a capacidade de organizar-se para o cuidado
do idoso e, por isso, a pessoa mais próxima, ou que tenha maior
disponibilidade, assume o cuidado integralmente, sem estar suficientemente
capacitado, o que pode repercutir em consequências desfavoráveis à vida do
cuidador(1,5-6). Atualmente, as mudanças estruturais familiares têm mostrado
escassez de pessoas para assumir o papel de cuidador, o que resulta em
sobrecarga de um membro. Esta nova conformação familiar pode ainda ser geradora
de dificuldades financeiras, pois, pelo número reduzido de pessoas, passa a ser
necessário contratar alguém para exercer o papel de cuidador e a família passa
a despender de recursos financeiros para cuidar de seu idoso adoecido(3).
Conhecer o contexto domiciliar de cuidadores de pacientes com câncer,
submetidos à quimioterapia, e especificamente de pacientes idosos, nos
inquietou durante muito tempo pois, convivemos com este grupo apenas no serviço
de saúde. As particularidades do contexto onde pacientes convivem com sua
família, a relação com a comunidade e as influências da cultura, nos diferentes
modos de agir, eram aspectos desconhecidos das pesquisadoras. Perguntas
surgiam, principalmente sobre como enfrentavam os problemas decorrentes do
tratamento, quando estavam em seus lares, sem a assistência e amparo da equipe
de saúde.
Pouco se tem encontrado na produção científica brasileira sobre o cuidador do
idoso com câncer e, especificamente aquele submetido à quimioterapia, nada foi
observado. Em recente publicação, onde foi realizada uma revisão integrativa
abordando os estudos nacionais relacionados aos cuidadores de idosos, nenhum
estudo foi incluído que abordasse o cuidado do idoso com câncer(2).
Vislumbramos o cuidado de pessoas idosas no domicílio como desafio real do
presente século para as equipes de saúde e mais especificamente para a
Enfermagem(1), que deve desenvolver habilidades e competências para articular
as diferenças e igualdades culturais, transcendendo assim os aspectos puramente
biológicos do cuidado ao adoecido pelo câncer, destacando a importância do
cuidador familiar e as influências da atividade de cuidador sobre sua própria
vida(1,4).
Após exposição do contexto em que se insere o estudo, traçamos como objetivo
apresentar, neste artigo, a ressignificação da vida do cuidador do idoso com
câncer submetido à quimioterapia, extraída de um estudo mais amplo, que teve a
finalidade de analisar os sentidos atribuídos à experiência de ser cuidador do
idoso com câncer na terapêutica.
PERCURSO METODOLÓGICO
Estudo exploratório, com orientação teórico-metodológica da antropologia
interpretativa e estratégia de estudo de caso etnográfico. A abordagem
metodológica interpretativa é justificada pelo nosso interesse em identificar e
analisar as subjetividades do processo em foco, de modo compreensivo e
contextualizado. A antropologia interpretativa forneceu-nos a base teórica para
interpretação dos dados, pelo foco na cultura como sistema simbólico, que é
empregada pelas pessoas para dar sentido à doença e ao cuidar(7).
Imbuídos da necessidade de compreensão do processo de tornar-se cuidador do
idoso com câncer submetido à quimioterapia, foi utilizada a etnografia como
método de investigação antropológica que é tradicionalmente eleita pela
antropologia(7-8).
Buscamos conhecer a complexidade do processo para obter múltiplas perspectivas,
por meio da estratégia do estudo de caso (EC) etnográfico instrumental, onde
foram examinados casos de familiares de pacientes idosos com câncer, submetidos
à quimioterapia. Na etnografia, o objetivo do EC é registrar o comportamento
humano em termos culturais, estudando o fenômeno em profundidade(9). Utilizamos
ainda o genograma e o ecomapa para cada uma das cuidadoras buscando melhor
compreensão do contexto familiar e suas relações com as redes de suporte social
formal e informal(10).
O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal
do Triângulo Mineiro (UFTM), e foi aprovado em 05/12/2008 sob protocolo n°1220.
Os critérios de inclusão estabelecidos para participação neste estudo foram:
cuidadores/familiares maiores de 18 anos, de idosos (paciente com idade
superior aos 60 anos) com qualquer tipo de câncer, em tratamento quimioterápico
ambulatorial; estar envolvido no cuidado direto e residindo no mesmo domicílio
que o idoso; que se dispusesse a participar do estudo, assinando previamente o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), para atuar como participante
da pesquisa.
A seleção das cuidadoras não obedeceu a nenhum critério de inclusão quanto ao
gênero e grau de parentesco; a seleção ocorreu mediante o contato inicial com
os pacientes idosos, que estavam em tratamento quimioterápico. Posteriormente
fizemos o contato com as cuidadoras para o convite à participação na pesquisa.
Utilizamos pseudônimos para nomear as cuidadoras e assim, garantir o anonimato;
a saber: Jô, Ana, Sara e Maria. As cuidadoras foram orientadas e esclarecidas
quanto aos objetivos da pesquisa, forma de participação e autonomia individual,
assim como em relação a privacidade e confidencialidade das informações, além
da finalidade científica.
Os dados foram coletados no período de janeiro a setembro de 2009, por meio de
entrevistas semiestruturadas, observação simples do contexto e consulta de
fontes documentais. Para o registro das impressões do pesquisador utilizamos o
diário de campo.
Na observação focalizamos aspectos relacionados aos idosos e seus familiares.
Nos domicílios, a observação comtemplava a estrutura física da residência, os
comportamentos das pessoas e as expressões das cuidadoras junto ao idoso; nos
setores de quimioterapia observamos estrutura física e funcionamento dos
setores de quimioterapia, hotelaria, materiais, composição e atuação da equipe
de enfermagem, bem como o binômio cuidador-paciente; após a observação as
impressões da pesquisadora foram registradas no diário de campo.
As entrevistas foram realizadas nos domicílios das cuidadoras e também no
serviço de saúde, sendo gravadas e transcritas integralmente. Ocorreram em
intervalos iguais ou menores que a periodicidade dos ciclos de quimioterapia
recebidos pelos idosos. Utilizamos como perguntas norteadoras as seguintes
questões: Porque você assumiu o cuidado do seu familiar? Que cuidados são
priorizados? Que tipo de informações/ orientações você recebeu sobre a
quimioterapia? Fale como é para você conviver com o seu familiar com câncer?
Como você se sente em cuidar de seu familiar?
Acompanhamos as cuidadoras durante o tratamento quimioterápico dos idosos, com
número de visitas domiciliares, entrevistas e consultas de enfermagem variadas.
Foram realizadas 16 entrevistas no total, com as cuidadoras, acompanhadas pelas
anotações no diário de campo.
A análise temática indutiva dos dados obtidos foi realizada em etapas
(familiarização com os dados, criação de códigos, busca por temas, revisão dos
temas, definição de temas e produção final da análise). As unidades de sentido
desenvolvidas foram: a opção de ser cuidadora, o cuidado necessário ao idoso, a
ressignificação da vida do cuidador. Como referido anteriormente, passaremos a
apresentar a última unidade como foco deste artigo.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Caracterização das cuidadoras
Quadro 1 Caracterização das cuidadoras segundo idade, escolaridade, estado
civil, religião, renda e parentesco com o idoso, Uberlândia, 2009
Cuidadora Idade Escolaridade Estado civil Religião Parentesco com Renda
idoso
Jô 75 Fundamental Casada evangélica esposa 1 salário
completo mínimo
Ana 73 Fundamental amasiada evangélica esposa 1 salário
incompleto mínimo
Maria 27 Superior Casada católica Filha Sem renda
completo
Sara 48 Ensino médio divorciada evangélica Filha 1 salário
completo mínimo
As participantes do estudo tinham como características: todas eram mulheres,
cuidadoras de idosos, sendo estes cadastrados para o tratamento quimioterápico
em modalidade ambulatorial, em instituições integrantes do Sistema Único de
Saúde (SUS). Duas eram casadas (Jô, esposa de Jacó e Maria, esposa de Juliano);
uma amasiada (Ana, amásia de Nenê) e outra divorciada (Sara, filha de Maria);
três possuíam filhos (Jô, Ana e Sara). A faixa etária variou de 27 a 75 anos,
sendo que duas já possuíam mais de 60 anos (Jô e Ana).
Em relação ao grau de parentesco, nossos resultados também corroboraram com a
literatura onde a prevalência é de esposas cuidadoras, seguidas das filhas.
Conforme exposto em estudo brasileiro(1,11), os cuidados prestados no domicílio
são realizados por cônjuges e filhas, o que remete às mulheres, o papel de
“grandes cuidadoras”, a quem foi atribuído esse papel cultural e social ao
cuidar dos filhos, marido e familiares. Na sociedade brasileira a esposa é, com
freqüência, a cuidadora primária de idosos, seguida de filhas(1,11).
Quanto à atividade profissional, as cuidadoras tiveram dificuldades em
conciliar o trabalho fora de casa com a atividade de cuidador domiciliar sendo
necessário, abandonar ou reduzir a jornada de trabalho(12). Neste estudo,
apenas uma das cuidadoras trabalhava fora de casa. Sobre a renda financeira
percebemos que as cuidadoras, assim como os idosos de quem cuidavam, tinham
baixa renda, em geral proveniente de aposentadoria ou do próprio trabalho, não
recebiam auxílio financeiro de parentes ou qualquer recurso da comunidade. As
condições socioeconômicas, as restrições de acesso a bens materiais e também a
serviços, e os bairros de periferia urbana em que residiam caracterizaram as
cuidadoras deste estudo como provenientes da classe popular.
Verificando a opção religiosa, três cuidadoras eram evangélicas (Jô, Ana e
Sara) e uma católica (Maria). Hoje há uma diversidade de religiões, seitas e
crenças, sendo difícil apresentarmos dados fiéis diante desta grande variedade
de opções; no Brasil a religião que prevalece é a católica(13). Observamos uma
diferença no perfil das participantes de nossa pesquisa em relação aos dados
apresentados por esta fonte, visto que três de nossas participantes eram
evangélicas e apenas uma católica.
No que se refere ao tempo em exerciam o papel de cuidadoras, três possuíam
entre 2-4 meses; apenas uma exercia esta atividade há mais de cinco anos (Jô).
A inserção da família no cuidado do idoso, em geral, teve início anterior ao
tratamento quimioterápico. Das quatro famílias, três já possuíam os idosos
vivendo em companhia das cuidadoras, o que tornou compreensível que alguém do
próprio convívio domiciliar se tornasse a principal cuidadora.
As esposas Jô e Ana, mesmo antes do adoecimento de seus maridos, já realizavam
os cuidados domésticos e, sendo aposentadas com baixa renda financeira, não
possuíam condições de contratar ajuda externa remunerada. Ao se elegerem
cuidadoras acrescentaram aos afazeres diários os cuidados relacionados aos
esposos idosos, no tratamento do câncer.
Ressignificação da Vida do Cuidador
A proximidade com o idoso trouxe oportunidades aos familiares/cuidadores de
perceberem e valorizarem aspectos positivos, neste período em que a convivência
tornou-se muito mais próxima e intensa. Foram expostos como formas de auxiliar
no processo de superação das dificuldades e, com isso, evidenciaram novos
significados para a vida destas pessoas: maior união, solidariedade,
oportunidade de reaproximação, mudanças, reflexões entre as pessoas que
participaram deste estudo.
Dos aspectos positivos relatados, a maior união, solidariedade e reaproximação
entre o idoso e o cuidador e outros membros da família foram os mais evidentes.
Estudos confirmam a união que a doença trouxe entre os familiares, sendo
oportunizado aos membros que se solidarizem e que reorganizem seus papéis(14-
15). O desempenho do cuidado trouxe a oportunidade de reaproximação entre mãe e
filha, superação de conflitos e diferenças anteriormente existentes(1,12).
Em nosso estudo também foi percebida a oportunidade de aproximação, afeto,
carinho, não apenas da cuidadora, mas de outros filhos:
[...]hoje, nós nos tornamos mais amigas, sabe? [...] saber entender
ela, como ela também saber me entender[...]. (Sara - Entrevista 16/
05/2009)
[...] ela tá mais mãe, mais amiga [...] É porque a doença aproxima
mais a gente né! (Sara - Entrevista 28/05/2009)
Muito embora percebamos que quantitativamente tenhamos encontrado poucos
aspectos considerados como positivos na atividade de cuidar de um idoso com
câncer submetido a quimioterapia, é necessário valorizar a representação
destes, no contexto familiar de cada idoso e de seu cuidador, o que refletiu em
intensas sensações de alegria frente aos resultados alcançados, trazendo assim
novos significados para a convivência entre as pessoas e para as próprias
cuidadoras.
As dificuldades se apresentaram em maior variedade, foram destacadas:
transformações negativas nas relações familiares e sociais ao assumirem o papel
de cuidadoras, exigindo abnegação da própria vida, resultando em
comprometimento de aspectos físicos, emocionais e sociais.
Para o familiar cuidador, observamos que o adoecimento torna-se muitas vezes um
momento de reflexão, quanto à sua situação frente ao ente querido adoecido, bem
como quanto à sua própria vida; revelando sentimentos não públicos e aflorando
situações latentes.
[...] Tanto ela como eu ... é um alerta pra minha vida também!
Trabalhando, sempre correndo, sem ter tempo de olhar pra nós mesmos
... sabe? É o que aconteceu com ela ... acha que envolve só em
...casa, envolve só em cuidar dos outros, e ... da gente mesmo???
(Sara - Entrevista 16/05/2009)
Assumir integralmente o papel de cuidadora, mesmo que realizado com satisfação,
gerou mudanças em diferentes áreas da vida; deixar de fazer o que gostava para
dedicar-se ao cuidado integral do marido adoecido:
[...] e eu fui lutando, fui ficando só por conta ... Eu larguei o
serviço de cuidar de casa [...] O meu tempo é só pra ele! (Ana -
Entrevista 07/05/2009)
O isolamento social, caracterizado pelo distanciamento de familiares e amigos,
evidenciado pela pequena ou quase nula participação da cuidadora em eventos
sociais e momentos de lazer, resulta em sobrecarga emocional, sentimento de
solidão, insatisfação gerando prejuízos na sua qualidade de vida(1).
Mudanças nos hábitos alimentares da família também estiveram presentes na vida
das cuidadoras:
[...] é fazer uma comida diferente, porque ele não está podendo comer
de tudo [...] Ele só estava conseguindo comer sopa [...]. (Jô
Entrevista - 26/01/2009)
Eu às vezes passava 3 dias sem comer comida. Eu fazia sopinha,
aqueles caldos, pra ele tomar um pouquinho, aí eu tomava aquilo, não
fazia comida. Então, ele (Nenê) falava: "Você precisa comer, se eu
perder você, como é que eu fico?" (Ana - Entrevista - 07/05/2009)
Além destas, observamos que inicialmente houve falta de conhecimento sobre como
lidar com a situação, mesmo quando analisamos a participante que exercia
atividade profissional de cuidadora de idosos. Todas se mostraram despreparadas
e inseguras e, mediante a falta de recursos e informações acessíveis em
domicílio, passaram a buscar ajuda com pessoas leigas:
[...] olha, o tratamento, também foi uma novidade pra mim, eu nunca
tinha entrado num hospital de pacientes com câncer; os sintomas que
ela teve ... o que eu tive assim (orientações) foi uma amiga minha
que também tava com a mãe terminando de fazer a radio[...]. (Sara -
Entrevista 16/05/2009)
Em recente revisão da literatura, os autores comprovam que há falta de
conhecimento e preparo para cuidar de idosos em diferentes condições crônicas,
o que pode comprometer o cuidado e trazer sobrecarga ao cuidador(16). Foram
trazidas ainda outras mudanças na rotina de vida diária. A cuidadora que era
recém-casada, anteriormente ao adoecimento de seu pai, vivia apenas para o
cuidado de sua casa e de seu marido. A vinda de seu pai para conviver com o
casal alterou totalmente sua rotina de esposa cuidadora do lar:
[... ] mas tá muita correria mudou muito, não só a minha; a vida dele
também né coitado, mas a minha, mudou muuuuito!! (Maria - Entrevista
29/04/2009)
Hãã ... minha vida virou de cabeça pra baixo!! Porque a gente tem uma
rotina em casa né, faz tudo sempre nos horários certos ... eu faço
tudo ... eu tenho que estar me deslocando com ele né. Eu tô muito
cansada! [...] eu não tenho ninguém em casa pra me ajudar, sou eu que
faço tudo! (Maria - Entrevista 14/05/2009)
O casal passou a ter conflitos e até mesmo uma convivência distante, o esposo
ficava vários dias fora de casa (viajava a trabalho) e Maria, sem poder tomar
partido de qualquer lado, torna-se nervosa, entristecida e mais solitária na
função de cuidadora:
Minha mãe briga com ele: "você acha que tá num hotel?... a Maria é
muito boba... faz tudo que você quer[...] (Maria - Entrevista 14/05/
2010)
Ai meu marido fala: "você é boba!!! Ele tem que comer o que tem em
casa; você não tem que ficar se desdobrando pra fazer as coisas!"
[...] eu, eu não falo nada, deixo ele falar sabe? (Maria - Entrevista
14/05/2010)
O exercício do cuidado, muitas vezes solitário, também apareceu como um dos
fatores que sobrecarregavam as cuidadoras, sendo necessário que, em muitos
momentos, deixassem o seu próprio cuidado para cuidar do outro. Este aspecto
foi destacado em estudos em que a carga de atividade dos cuidadores era
realizada quase sempre de forma solitária(1,17-18). Com a abnegação de seus
costumes e valores, em detrimento da vida dos idosos adoecidos que se
encontravam sob os seus cuidados; esta foi, na verdade, as mais perceptíveis
transformações na vida das cuidadoras. A observação da condição de cuidador
solitário traz indignação para quem cuida, por visualizar os demais membros da
família com a liberdade perdida(1).
Outros estudos relatam diferentes sentimentos negativos, que se tornam
presentes nos cuidadores de pessoas com qualquer grau de dependência. Em
relação à atividade exercida, os mais comuns foram: estresse, sobrecarga,
dedicação exclusiva, auto-cobrança; depressão, ansiedade; tensão, conflitos,
perdas e frustrações(1,15,17). Encontramos em nossas cuidadoras, todos os
sentimentos citados nos estudos, comprovando mais uma vez que a atividade de
cuidar de pessoas idosas com câncer submetidas a quimioterapia pode gerar
condições de vida negativa. O cuidador traz para si cargas físicas, emocionais
e psicológicas que podem incorrer em prejuízos à sua própria vida, sendo essa
uma ressignificação negativa.
As condições sócio-econômicas insuficientes também interferiram no processo:
[...] e ele (Joaquim) não ter convênio ... a minha preocupação era
esta: gasto! E eu sabia a dimensão do problema; o gasto, então, eu
não, não sabia como é que a gente iria fazer, né! (Maria - Entrevista
29/04/2009)
[...] dificuldade é dinheiro!! Dificuldade pra cuidar é dinheiro.
Porque se você não tiver dinheiro é difícil. Porque sempre ele falava
pra mim assim: "a gente tem que ter uma economia porque na hora que a
gente precisar, na hora duma doença [...] Nós acabamos com o dinheiro
de um terreno! (Ana - Entrevista 28/05/2009)
Como se trata de pacientes atendidos pelo SUS e da classe popular, temos um
grupo que apresenta maior vulnerabilidade social. Ao considerarmos situações de
agravos à saúde, como o câncer, o precário poder financeiro fica comprometido,
especialmente se o paciente é o provedor da família.
Ah, dificuldade é dinheiro! Dificuldade pra cuidar é dinheiro. Nós
acabamos com o dinheiro! [... ] era um tal de ir no sacolão, no
supermercado e [... ] haja dinheiro, e compra remédio, e compra isso
e compra aquilo [...]". (Ana - Entrevista 28/05/2009)
Estudos apontam a dificuldade financeira para o cuidado como uma das
principais, podendo gerar angústia no cuidador, que deseja oferecer o melhor
para seu idoso.(1,16,19-20)
Independentemente das necessidades partirem do cuidador ou do próprio paciente,
todo o núcleo familiar sofre certo comprometimento financeiro, exigindo
redirecionamento de prioridades, de necessidades pessoais e coletivas, o que
normalmente gera sensação de desconforto, insegurança e medo de não serem capaz
de oferecer o cuidado necessário, pela falta de recursos. Ressaltamos a
escassez de estudos e publicações que trazem propostas de intervenções e
estratégias para diminuir a sobrecarga do cuidador do idoso; este fato foi
evidenciado em publicação recente(16).
Apesar de todas as dificuldades vivenciadas, sofrimentos, resignação e
abnegação, a quimioterápica antineoplásica é vista pelos pacientes e seus
familiares/cuidadores como sinônimo de esperança e de nova oportunidade de vida
(15).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Prestar cuidado informal pode trazer sobrecarga ao cuidador e desestruturação
da vida, pois, diante do despreparo haverá ansiedade, insegurança, auto-
cobrança e desgaste, que geram sofrimento. Desta forma, acreditamos que as
exigências para exercer o cuidado de uma pessoa idosa adoecida pelo câncer, que
está passando pelo tratamento quimioterápico, enfrentando seus efeitos
colaterais e reações adversas, são muito maiores do que simplesmente
disponibilidade de tempo, ou um carinho. A necessidade de ressignificação da
própria vida deve partir do próprio cuidador, mas, deverá contar com a equipe
de saúde, oferecendo apoio formal e atuando como facilitadora deste processo,
não permitindo que se perpetue a condição de cuidador inseguro, solitário e
adoecido pelo cansaço. O envolvimento emocional, as limitações de conhecimento
e o desempenho de novos papéis no contexto domiciliar são dificuldades
frequentes vivenciadas pelos cuidadores, as quais são traduzidas em sentimento
de sobrecarga física, emocional e financeira.
Frente ao exposto e levando-se em consideração o objetivo deste artigo,
consideramos que preparar o cuidador para exercer esta atividade no domicílio é
papel do enfermeiro visto que, cuidar do idoso fragilizado e de seu cuidador é
uma responsabilidade deste profissional. O apoio formal é importante referência
para o cuidador e traz consigo o sentimento de confiança. Assim, o enfermeiro
atuará como facilitador, pois, reconhece as reações adversas e efeitos
colaterais inerentes ao tratamento, bem como o cuidado necessário diante das
principais dificuldades encontradas pelos cuidadores. A consulta de enfermagem
ao cuidador deve privilegiar informações, esclarecer dúvidas e ajudá-lo a
enfrentar as dificuldades com os recursos adequados às suas necessidades sócio-
culturais. Reconhecemos que ainda são precários os suportes públicos para o
adequado acompanhamento dos idosos e seus cuidadores, mas, com a implantação
das políticas e programas de atenção específicos que têm sido planejados,
poderão contribuir para a diminuição destas condições e, consequentemente, com
a diminuição da sobrecarga.
Mediante a acurada percepção, esta deve mobilizar toda a equipe de saúde para o
envolvimento e preparo deste cuidador, buscando assim disponibilizar pessoas
capacitadas e seguras para o cuidado de seu paciente em domicilio, de maneira
que sejam minimizadas as consequências negativas do processo de cuidar em
domicílio, mantendo, sobretudo, a qualidade de vida do paciente e dos
cuidadores.