Risco de suicídio em paciente alcoolista com depressão
Introdução
O álcool é um depressor do sistema nervoso central (SNC) que exacerba os
sintomas depressivos, aumentando o risco de morte por suicídio. O caso clínico
que apresentamos chama a atenção para a necessidade de identificação e
tratamento específico da depressão em pacientes alcoolistas. O alcoolismo é
descrito por Edwards et al. (1999) como um conjunto de problemas relacionados
ao consumo excessivo e prolongado do álcool; é entendido como falta de controle
na ingestão indevida e regular de bebidas alcoólicas e todas as conseqüências
prejudiciais decorrentes. Segundo a Organização Mundial da Saúde (WHO, 2004), a
depressão é caracterizada por um período contínuo e prolongado de humor
deprimido e perda de interesse e prazer em quase tudo. Nessa situação são
comuns sintomas de fadiga, irritabilidade, baixas auto-estima e autoconfiança,
visões sombrias e pessimistas do futuro, idéias de culpa e desvalia e de auto-
agressão e suicídio.
Quando a depressão ocorre concomitante com o alcoolismo, resulta em um quadro
grave, aumentando o risco de suicídio (King et al., 1993). A depressão é uma
das co-morbidades que acompanham com maior freqüência o diagnóstico de
alcoolismo: 70% dos suicidas têm depressão maior e 15% das pessoas
hospitalizadas por esse transtorno depressivo tentam suicídio (King et al.,
1993). Anualmente, ocorrem 30 mil a 35 mil suicídios devido ao não-tratamento
de casos de depressão maior, entre eles as mortes causadas por acidentes fatais
relacionadas à depressão com o abuso de álcool (WHO, 2004). O abuso de álcool e
a depressão têm sido associados a maior risco de comportamento suicida tanto em
adolescentes como em adultos (Asnis et al., 1993; King et al., 1993; Pfeffer et
al., 1988). Alcoolistas que não estão sofrendo de uma doença depressiva podem
se matar, mas o risco certamente aumenta se a doença está presente (Edwards et
al.,1999).
Estudos multicêntricos com informações clínicas e biológicas de famílias com
mais de um caso de alcoolismo indicam que a ação de genes (em conjunto ou
separados) pode predispor o indivíduo a essa condição (Nurnberger et al.,
2001). Recente revisão da literatura no Brasil (Galduróz e Caetano, 2004)
demonstra o crescimento do consumo e da gravidade dos problemas relacionados ao
uso do álcool, com cerca de 11,2% da população brasileira preenchendo os
critérios para dependência (Carlini et al., 2002).
O objetivo deste artigo é relatar um caso de alcoolismo no qual o paciente
apresentava associadamente um episódio de depressão e idéias de auto-extermínio
e discutir as implicações dessa associação para diagnóstico e evolução.
Relato de caso
Paciente de 60 anos, sexo masculino, branco, natural do Rio de Janeiro, casado,
dois filhos, ensino fundamental completo, vendedor desempregado, foi atendido
no ambulatório do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) no Programa de Estudos e Assistência ao Uso Indevido de Drogas
(PROJAD) em abril de 2003, relatando uso de álcool há mais de 35 anos.
Queixava-se de depressão, insônia, pesadelos, desânimo, falta de esperança,
vontade de morrer e pensamentos persistentes de auto-extermínio. Relatava uma
tentativa de suicídio no passado que o levou à hospitalização por ingesta de
grande quantidade de diazepam. Depois disso, muitas vezes se via planejando seu
atropelamento ou suicídio com medicações. O paciente relacionava os pensamentos
suicidas com os sintomas depressivos, principalmente ligados a baixa auto-
estima, falta de perspectivas e incapacidade de prover a família. Ele afirmava
nunca ter usado outras drogas, mas as recaídas no abuso do álcool já o tinham
levado a diversas internações no passado. Na entrevista inicial apresentava
aparência cuidada e discurso coerente. Apesar de ter casa, conforto, esposa e
receber apoio da família, quando bebia costumava vagar pelas ruas, expondo-se a
riscos até ser recolhido por algum conhecido.
O tratamento foi iniciado com antidepressivos (imipramina 125mg/dia), além de
diazepam (20mg/dia) e clorpromazina (200 mg/dia) e atendimento psicológico
semanal. Seus exames clínicos foram positivos para diabetes mellitus, que o
paciente não levava em conta ao recair no uso do álcool, abrir mão da medicação
e se descuidar da dieta alimentar.
Além dos sintomas depressivos, o paciente demonstrava ansiedade por não
conseguir resolver questões como problemas financeiros. Ele atribuía as
recaídas aos sintomas depressivos, afirmava que bebia para que a depressão
melhorasse e "aproveitava o efeito do álcool como refúgio da depressão". Nesses
momentos, tinha vontade de morrer. Dizia: "eu me mataria se tivesse
oportunidade".
O paciente informava que seus sintomas depressivos se iniciaram depois que
começou a beber. Ele considerava que perdas significativas, como a morte da mãe
em 1979 e a do pai em 1980, agravaram os sintomas depressivos. Recordava que a
depressão se tornou muito intensa a partir de 1996, quando teve sua primeira
internação depois de um episódio de intensa libação alcoólica seguida de black-
out.Ele relatava a perda de diversos empregos por causa do alcoolismo. Até ser
atendido no PROJAD, desconhecia que os sintomas que apresentava tinham relação
com o transtorno depressivo, e, ao ser esclarecido do que se tratava, passou a
se dedicar mais ao tratamento.
Evolução clínica
Dois meses após o início do tratamento com os antidepressivos descritos e as
sessões de terapia cognitivo-comportamental (TCC), foram observadas mudanças no
comportamento do paciente. As sessões de TCC eram individuais, com
aproximadamente uma hora de duração, e nos dois primeiros meses foram semanais,
totalizando oito sessões. Devido à impossibilidade financeira do paciente de
comparecer com assiduidade, os atendimentos passaram a ser mensais, somando
mais 19 sessões.
Nas sessões de TCC, o foco do trabalho visou a motivação e a mudança de padrões
rígidos de pensamento apresentados. Quando os sintomas depressivos estavam mais
proeminentes, ocorria o retorno de pensamentos de ruína, idéias de suicídio,
desvalia, baixa auto-estima, que eram acompanhados pela volta ao abuso do
álcool. Progressivamente, em paralelo ao controle dos sintomas depressivos,
observaram-se maior adesão ao tratamento médico e psicoterápico e o surgimento
de motivação para participar de oficinas terapêuticas. Na evolução, notou-se
progressiva diminuição dos sintomas depressivos até sua extinção. O paciente
enfatizava a melhora da auto-estima e o desaparecimento dos pensamentos de
autodestruição.
Discussão
A redução dos sintomas depressivos observada no decorrer do tratamento do
paciente associou-se ao uso de antidepressivos, à cessação dos fenômenos da
abstinência e aos atendimentos psicológicos. O encaminhamento à oficina de
jardinagem e a abertura de perspectivas de trabalhos podem, também, ter
contribuído para minimizar os sintomas. Por longo período em sua vida o
paciente tentara atenuar o sofrimento causado pelos sintomas depressivos com o
uso constante e intenso de álcool. Pode-se interrogar se, no passado, ele
tivesse tido a oportunidade de ser tratado de sua depressão, sua história de
vida poderia ter sido diferente.
Lehman et al. (1989) referem-se à etiologia das condições de co-morbidade como
doença psiquiátrica primária com subseqüente abuso de substância, ou abuso de
substâncias com conseqüências psicopatológicas. Apontam que há situações em que
existe uma etiologia comum causando as duas doenças. Existem evidências
sugerindo que a depressão, na maioria das vezes, é um sintoma causado pelo
alcoolismo e não o inverso (Vaillant, 1999). Quando o início da depressão é
anterior ao uso de álcool, pode ser conseqüência de uma personalidade distímica
e/ou acompanhada de situações extremas de vida, como questões sociais,
familiares ou legais. Quando a distimia recebe o tratamento indicado, pode
prevenir episódios depressivos (Castel et al., 2002). A distimia é poucas vezes
diagnosticada e tratada adequadamente, talvez devido à sua identificação
recente como entidade clínica. Isso significa que muitos clínicos gerais e
psiquiatras não estão familiarizados com esse diagnóstico (Nardi, 2002).
Devido à complexidade da relação entre os quadros, na maioria das vezes não é
possível identificar qual das entidades iniciou-se primeiro. Na prática
clínica, é preferível apenas considerar a coexistência dos diagnósticos para se
estabelecer o tratamento. Edwards et al. (1999) alertaram que o diagnóstico da
depressão pode ser extremamente difícil em bebedores-problema com possibilidade
de suicídio. Por isso, o diagnóstico correto é muito importante para o manejo
adequado. Infelizmente, em nosso país a insuficiência da formação acadêmica
sobre o uso abusivo de substâncias é um empecilho para a adequada atuação
clínica (Cruz, 2005).
O tratamento da depressão deve ser prolongado. Um episódio de depressão não-
tratado pode durar de seis a 24 meses, e a própria natureza da doença inclui
episódios recorrentes. A depressão é uma das co-morbidades freqüentes entre
alcoolistas e aumenta os riscos de recaídas e de suicídio (Araujo e Monteiro,
1995; Alves et al., 2004). No caso de indivíduos alcoolistas, quando os
sintomas depressivos reaparecem, aumentam as chances de recaída no uso abusivo
do álcool. O controle dos sintomas depressivos aumenta a chance de evitar a
recaída.
Conclusão
O caso relatado exemplifica a importância da identificação dos quadros de
depressão que podem ocorrer entre pacientes dependentes do álcool, pois o
tratamento adequado pode se associar à remissão dos sintomas depressivos, à
redução das chances de recaída e à diminuição do risco de suicídio. Para que
aumente a habilidade com que seus diagnóstico e tratamento sejam realizados, há
necessidade de se aperfeiçoar o treinamento específico, na graduação e na pós-
graduação, para atender o dependente de substâncias.