Transtorno de pânico e hipocondria
Introdução
O transtorno do pânico (TP) foi conhecido por diferentes terminologias, mas
sempre com certa precisão descritiva, desde a Antigüidade. Foi caracterizado
como entidade nosológica autônoma oficial apenas a partir da terceira revisão
do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-III), com base
nos trabalhos de Donald Klein nos anos 1960. Anteriormente o TP integrava
oficialmente o grupo das neuroses de ansiedade e das neuroses fóbicas.
Palpitações, taquicardia, sudorese, tremores, sensação de falta de ar, asfixia,
desconforto torácico, náusea, desconforto abdominal, medo de morrer,
parestesias e calafrios podem levar o paciente com TP a ter preocupações
hipocondríacas.
A hipocondria é a preocupação com medo ou a idéia de sofrer de uma enfermidade
com base numa interpretação errônea de sintomas ou funções corporais, em que o
indivíduo teme sofrer de uma doença grave (critério A do DSM-IV) apesar de
avaliações e garantias médicas apropriadas (critério B do DSM-IV). O transtorno
hipocondríaco na Classificação Internacional de Doenças (CID-10) é similar
àquele no DSM-IV, incluindo queixas somáticas persistentes ou preocupação
duradoura com a aparência física. Mesmo com avaliação e garantias médicas
apropriadas, os hipocondríacos contam com preocupações não-delirantes de doença
grave baseadas na interpretação equivocada de manifestações somáticas, o que
traz prejuízos com duração mínima de seis meses (DSM-IV).
A discussão dos critérios conceituais e diagnósticos da hipocondria é freqüente
(Abramowitz et al., 2002; Noyes et al., 2003; Ornbol et al., 2004), assim como
a sua relação com o TP (Torres et al., 2002; Hiller et al., 2005; Scrignar,
2004). A hipocondria é observada em 4% a 6% dos indivíduos na área médica
(Barsky, 2001). Dois terços dos pacientes com hipocondria apresentam outro
transtorno psiquiátrico associado, incluindo transtorno depressivo maior (40%
dos casos); TP (10% a 20%), transtorno obsessivo compulsivo (TOC) (5% a 10%) e
transtorno de ansiedade generalizada (Torres et al., 2002).
Relato de caso
F., 29 anos, branca, casada, católica, balconista, residente no Rio de Janeiro.
Queixa principal (QP): arritmia e falta de ar.
Em 2002, a paciente apresentou um quadro que denominou de crise nervosa grave,
apresentando dispnéia, taquicardia e sudorese de extremidades, tendo sido
levada para a unidade de emergência de um hospital próximo pelos familiares.
Realizou exame físico, exames laboratoriais e eletrocardiograma, todos normais.
A suspeita inicial de infarto agudo do miocárdio (IAM) foi descartada.
A partir desse acontecimento F. passou a freqüentar diversos serviços de saúde
na busca de um diagnóstico para o que denominava ser um problema cardíaco,
argumentando que seu pai e seu avô paterno morreram de IAM. Desde então F.
peregrinou por diversos serviços de cardiologia com o intuito de realizar um
check-upcardiológico, sendo internada com suspeita de IAM toda vez que sentia
os seguintes sintomas paroxísticos: sudorese, taquicardia, dispnéia, tremor e
sudorese de extremidades e aperto no peito.
Em meados de 2004 F. novamente se submeteu a exames cardiológicos, queixando-se
dos mesmos sintomas. Os exames nada constataram de anormal. Um cardiologista
encaminhou-a ao atendimento psiquiátrico. Compareceu ao Instituto de
Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ) em novembro
de 2004. Veio acompanhada do marido, pois temia andar na rua sozinha e passar
mal. Fazia uso de 5mg diários de diazepam, prescrição feita pelo médico que a
encaminhou ao IPUB. Durante a entrevista aventou diversas vezes a hipótese de
sofrer de arritmiacardíaca. Prescrição inicial: paroxetina, 10mg/dia, no
período noturno e manutenção do diazepam 10mg/dia.
A sintomatologia se reduziu em intensidade e freqüência no primeiro ano de
tratamento.
Durante o período entre as consultas, F. entrou em contato diversas vezes para
discutir os efeitos colaterais da paroxetina que leu na bula. Indagou sobre o
uso crônico do antidepressivo e se este poderia promover aumento súbito da
pressão arterial ou piorar sua arritmia. Parou o tratamento de forma abrupta
duas vezes, temendo que as medicações pudessem surtir efeitos colaterais que
prejudicassem seu aparelho cardiovascular. Em uma de suas consultas, no final
de novembro de 2005, sugerimos um tratamento psicoterápico. F. reagiu de forma
hostil, dizendo: "não sou problemática", e referindo que seus familiares sempre
reclamam de que ela tem mania de doença.
Atualmente F. faz uso de 40mg/dia de paroxetina e 10mg/dia de diazepam. A
freqüência e a intensidade dos sinais e sintomas do TP diminuíram
significativamente. Ela já consegue ir para seu trabalho sozinha e refere que o
tratamento psiquiátrico ajuda a tratar seu nervosismo. No entanto F. ainda não
descarta a hipótese de um problema cardíaco ainda não-diagnosticado.
Discussão
A hipocondria está incluída nos transtornos somatoformes (DSM-IV),
caracterizados pela presença de sintomas físicos que sugerem uma condição
médica geral, mas que não são explicados por uma condição clínica, por efeito
de substâncias ou por um outro transtorno mental, distinguindo-se dos demais
transtornos somatoformes quando a idéia de ter uma doença grave ocorrer não
somente no curso do transtorno de somatização (DSM-IV). O diagnóstico de
hipocondria vem sendo discutido por diversos autores em estudos clínicos e
pesquisas sistemáticas que utilizam escalas apropriadas (Hiller et al., 2005;
Noyes et al., 2003; Longley, 2005).
Um estudo de prevalência em três grandes capitais brasileiras mostra que o
transtorno somatoforme acomete mais mulheres do que homens: 5,2: 1 (Brasília);
4,3: 1 (São Paulo) e 2,3: 1 (Porto Alegre) entre mulheres e homens,
respectivamente (Naomar et al., 1997). Num estudo realizado no Hospital
Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF), da UFRJ, a taxa de prevalência de
hipocondria foi 6,15% (Brasil MA, 1997).
A distinção entre transtornos de ansiedade e somatização pode ser muito
difícil. No TP podem ocorrer sintomas somáticos múltiplos, mas isto deve
ocorrer durante o ataque de pânico. O TP pode coexistir com transtornos
somatoformes quando os sintomas somáticos ocorrerem fora dos ataques de pânico,
situação em que ambos os diagnósticos podem ser feitos (Hiller et al., 2005).
A hipocondria e o TP envolvem uma preocupação excessiva com doenças físicas,
atenção seletiva corporal, interpretações catastróficas de sinais ou sensações
corporais como alguma doença grave e comportamentos repetidos de verificação da
saúde, como pode ser visto no caso relatado. A co-morbidade entre TP e
hipocondria parece ser maior que o esperado ao acaso, e, ao contrário do TP,
onde as preocupações sobre a sintomatologia física tendem a desaparecer com o
controle das crises, no curso da hipocondria essas preocupações são geralmente
de caráter crônico e intermitente (Shinoda et al., 1999; Katerrndahl, 1999;
Torres et al., 2002). No caso da paciente, suas preocupações com seu estado de
saúde parecem extrapolar o TP, apesar do controle da sintomatologia da doença,
necessitando de uma abordagem específica.
Conclusão
Um manejo diferencial desses pacientes é necessário, pois a relação médico/
paciente fica comprometida pela falta de confiança do paciente em função do
prejuízo da crítica, pela dificuldade de delegar o controle ao médico, pela
vigilância desses pacientes nas manifestações somáticas e nos efeitos
colaterais dos medicamentos e também pela inabilidade do médico em lidar com
pessoas com sinais e sintomas somáticos funcionais diversos (Shinoda et al.,
1999; Katerrndahl, 1999; Mayou, Farmer, 2002; De Waal, 2004). São fundamentais
a detecção e a abordagem adequada desses casos difíceispara que se elabore um
vínculo com o paciente e a estratégia terapêutica adequada a fim de evitar o
uso excessivo e iatrogênico dos serviços de saúde (Noyes et al., 2003; Bass e
May, 2005), evitando assim o retardo no diagnóstico e no tratamento adequado.