Autopercepção da imagem corporal entre estudantes de nutrição: um estudo no
município do Rio de Janeiro
Introdução
Ao longo do tempo o conceito de corpo saudável ou bonito tem sofrido
transformações. Até o início do século XX, a mulher era desejada quando tinha o
corpo roliço, devido à deposição de gorduras em quadris, coxas, barriga e
mamas. Na época pré-industrial, os períodos de carência alimentar eram
freqüentes e a mulher de peso excessivo simbolizava uma mulher forte, com
energia suficiente para enfrentar esses períodos conturbados e proteger sua
família (INAD, 2004; Andrade, Bosi, 2003; Almeida et al., 2005). Ao longo do
século XX e, sobretudo, a partir da década de 1960, esse ideário vem se
modificando: inicia-se a busca pelo corpo magro, atlético e por formas
definidas que passam a constituir mesmo objeto de consumo, tendo em vista a
oferta de produtos e serviços em um mercado que cresce a cada dia (Ferriani et
al., 2005; Oliveira et al., 2003; Andrade, Bosi, 2003; Almeida et al., 2005).
O culto ao corpo está diretamente associado à imagem de poder, beleza e
mobilidade social, sendo crescente a insatisfação das pessoas com a própria
aparência. Enquanto nosso estilo de vida alicerçado nos avanços tecnológicos
está contribuindo para a diminuição dos níveis de atividade física laborais e
de lazer, fenômeno associado ao aumento do consumo de alimentos hipercalóricos,
os padrões de beleza exigem perfis antropométricos cada vez mais magros (INAD,
2004; Schwartz, Brownell, 2004). Entretanto, nos últimos 20 anos, a proporção
de casos de sobrepeso e obesidade no Brasil, que variava entre 16% e 26%,
aumentou para aproximadamente 40% na população adulta, exceção feita às
mulheres de melhor renda da região Sudeste. Nesse grupo, na última década,
observou-se queda da proporção de pessoas obesas. Supõe-se que essa queda
esteja relacionada com o acesso a informações sobre cuidados com a saúde, bem
como aos meios para efetivá-los.
As mulheres jovens, por serem mais vulneráveis às pressões dos padrões
socioculturais, econômicos e estéticos, constituem o grupo de maior risco para
desenvolver distúrbios alimentares. Esses transtornos apresentam múltiplas
causas, incluindo fatores genéticos, ambientais e comportamentais,
caracterizando-se, portanto, como problema sócio-sanitário. Pessoas com
anorexia e bulimia nervosa têm em comum uma preocupação excessiva com peso e
dieta, apresentando insatisfação e distorção de sua imagem corporal. Tal
preocupação é sintoma importante para a detecção dessas doenças (Oliveira et
al., 2003; Cordás, Castilho, 1994).
A imagem corporal é a figura de nosso próprio corpo que formamos em nossa
mente, ou seja, o modo pelo qual o corpo se apresenta para nós mesmos ou como o
vivenciamos (Cordás, Castilho, 1994). Conforme Slade (1988), o termo imagem
corporalrefere-se a uma ilustração, que se tem na mente, de tamanho, imagem e
forma do corpo, expressando também sentimentos relacionados a essas
características, bem como as partes que o constituem.
A insatisfação com o corpo tem sido freqüentemente associada à discrepância
entre a percepção e o desejo relativo a um tamanho e a uma forma corporal
(Almeida et al., 2005). Embora constitua objeto complexo para investigações,
existem evidências de que a mídia tem influência sobre os distúrbios na esfera
da alimentação e da imagem corporal, pois ao mesmo tempo em que exige corpos
perfeitos, estimula práticas alimentares não-saudáveis. O desfile de figuras
jovens, com corpos esqueléticos ou musculosos apresentados em revistas, cinema
e comerciais torna muito difícil, principalmente para os jovens, considerar a
beleza em sua diversidade e singularidade, ou seja, como componente individual,
sem se prender a padrões estéticos cada vez mais inatingíveis (INAD, 2004;
Saikali et al., 2004). Há 20 anos as modelos pesavam 8% menos que a média das
mulheres da época; hoje a diferença é de aproximadamente 23%. Isso pode ser
associado à diminuição do peso das modelos e/ou ao aumento do peso das mulheres
em geral ou, mais provavelmente, pela associação dos dois fenômenos,
potencializando o sentimento de inadequação (INAD, 2004).
No âmbito de um estudo sobre imagem corporal, dois aspectos específicos podem
ser distinguidos: a exatidão da estimativa do tamanho e os sentimentos em
relação ao corpo e às porções do mesmo.
Na maioria das vezes os autores enfatizam a mensuração exata das medidas
corporais, deixando de lado aspectos e comportamentos sociais que podem
influenciar as distorções da imagem corporal. Na tentativa de mudar esse
quadro, têm sido desenvolvidos instrumentos que visam detectar os sentimentos
subjacentes a essa distorção. Nesse sentido, buscando incorporar outros
aspectos, como a influência do meio social, Cooper et al. (1987) desenvolveram
o Body Shape Questionnaire (BSQ), instrumento que, embora não isento de
limitações, apresenta-se como recurso técnico de utilidade em estudos com
populações clínicas e não-clínicas quando se busca avaliar a imagem corporal,
tendo sido utilizado neste estudo com o objetivo de identificar a autopercepção
da imagem corporal entre estudantes de nutrição em uma universidade pública do
município do Rio de Janeiro.
O estudo desse objeto junto a esse segmento específico é de grande interesse,
dada sua inserção na equipe interdisciplinar que atua no manejo dos transtornos
do comportamento alimentar, bem como o papel central dessa categoria no âmbito
do cuidado em saúde e alimentação, em especial nas práticas de promoção à
saúde. Nesse espaço ganham destaque as práticas educativas, o que ressalta seu
papel como elemento multiplicador de conceitos e de práticas, no sentido da sua
manutenção ou da sua transformação.
Métodos
O presente estudo integra o projeto de pesquisa Comportamentos Alimentares
Anormais e Práticas Inadequadas de Controle de Peso entre Estudantes
Universitários, de delineamento transversal. O projeto foi desenvolvido no
âmbito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no período 2003-2004,
abrangendo diferentes cursos de graduação: nutrição, medicina, psicologia,
educação física, letras e engenharia, de modo a possibilitar um contraste de
gênero e de inserção na área da saúde.
Em virtude da inexistência de estudos de prevalência que apontem a magnitude do
problema junto a esse segmento específico, para o cálculo do tamanho amostral
adotou-se o valor sugerido pelo estudo de prevalência de comportamentos
alimentares anormais realizado por Nunes et al. (2001) devido à interface entre
os fenômenos insatisfação com a imagem corporale práticas alimentares anormais
e de risco.
A amostra pesquisada foi de 220 universitários, porém optou-se por excluir os
informantes do sexo masculino, uma vez que representavam um número pequeno no
curso (n= 27), além de envolver uma dimensão importante do fenômeno em
observação ' gênero ', aparentemente não-resgatável pelo instrumento,
finalizando-se com uma amostra de 193 alunas.
O instrumento utilizado para a coleta de dados, conforme já apontado, foi o BSQ
(Cooper et al., 1987) em sua versão para o português (Cordás, Castilho, 1994),
inventário utilizado para avaliar o grau de insatisfação com a imagem corporal.
As categorias do BSQ foram determinadas a partir da distribuição dos escores
obtidos com a aplicação do Questionário de Imagem Corporal em uma amostra da
população geral inglesa. Elas refletem níveis crescentes de preocupação com a
imagem corporal que correspondem às seguintes faixas, de acordo com o somatório
de pontos do questionário:
nenhuma: menor ou igual a 80;
leve: entre 81 e 110;
moderada: entre 111 e 140;
grave: maior ou igual a 140.
Adicionalmente à aplicação do BSQ foi solicitado às estudantes que referissem
seu peso e sua altura no momento do estudo, bem como o peso e a altura por elas
almejados. Segundo a literatura, a correspondência entre os pesos referido e
aferido é satisfatória, podendo ser utilizado o peso referido em pesquisas
populacionais quando a aferição for inviável ou quando houver necessidade de
tornar o estudo mais rápido ou diminuir seu custo (Silveira et al., 2005;
Schmidt et al., 1993; Chor et al., 1999). A partir dessas variáveis
antropométricas foi calculado o índice de massa corporal (IMC), adotando-se a
classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS), e estimou-se a
insatisfação com o peso como informação complementar aos escores obtidos com a
aplicação do BSQ (OMS, 1995).
A descrição geral dos dados obtidos neste estudo será apresentada por meio de
freqüências simples e relativas, adotando-se para a análise a associação entre
as variáveis selecionadas na realização do teste qui-quadrado, tendo sido
utilizado para armazenamento e análise dos dados o programa SPSS 11.0.
Resultados
Dos 193 questionários, a distribuição da faixa etária variou dos 17 aos 32
anos, sendo a média de idade 20,9 anos (± 2). A maioria das estudantes (92,2%)
é natural do estado do Rio de Janeiro, sendo que 51,3% dos seus pais possuem
nível superior completo. Foram consideradas sedentárias as estudantes que deram
resposta negativa quanto à prática de atividade física, encontrando-se nesse
grupo uma prevalência de inatividade de 45,6%.
As medidas antropométricas referidas pelas alunas apontaram como média de
altura 163,6cm (± 6,6), média de peso informado 55,8kg (± 8,6) e média do IMC
20,8kg/m2(± 2,5), o que foi considerado adequado e tendendo para o limite
inferior. Para estimar a satisfação com o peso, solicitou-se que fosse
respondido qual o peso desejado, tendo sido constatada uma diferença de 2kg (±
4,5) entre o peso informado e o desejado. Quando calculado o IMC, com base no
peso desejado, o valor encontrado foi 20,1kg/m², inferior, portanto, ao peso
informado (atual). Também foi solicitado que as universitárias informassem qual
seria sua altura ideal, sendo a média encontrada 166,3cm (± 5,5), maior que a
informada (Tabela_1).
A análise do instrumento utilizado mostrou que a média de pontos do BSQ entre
as estudantes de nutrição foi 81,2 (± 33,6), sendo o escore mínimo 34, e o
máximo, 191. A classificação final por níveis de preocupaçãocom a imagem
corporal apontou que 59,6% das estudantes não apresentavam alteração da auto-
imagem corporal, enquanto 6,2% possuíam distorção grave (Tabela_2).
Foram relacionados os resultados do BSQ e as variáveis IMC, insatisfação com o
pesoe idade, visando buscar associações entre uma delas e os distúrbios da
imagem corporal. Observou-se que 91,7% das universitárias que apresentaram
resultado do BSQ normal/leve eram eutróficas, assim como aquelas com resultado
do BSQ moderado/grave (82,9%). Das estudantes com resultado de BSQ moderado/
grave, 11,4% estavam acima do peso (sobrepeso/obesidade) (p= 0,026). Quanto à
insatisfação com o peso, foi encontrado que 58,7% das alunas com BSQ normal/
leve gostariam de perder dois ou mais quilos. Já entre as estudantes que
apresentaram BSQ moderado/grave, 94,3% queriam perder dois ou mais quilos (p<
0,001) (Tabela_3).
Discussão
Os achados referentes à prática de atividade física mostraram que praticamente
metade da amostra era inativa (45,6%), o que corrobora outros resultados da
literatura, como os de Silva e Malina (2000), que desenvolveram um estudo no
sistema público de ensino de Niterói-RJ com adolescentes de 14 e 15 anos e
encontraram 41,6% de meninas sedentárias. A inatividade física é resultante do
estilo de vida moderno de trabalho e de lazer, caracterizado por atividades
inertes que favorecem o aumento da prevalência de obesidade em todas as faixas
etárias. É interessante observar que o desejo de ter ou permanecer com o corpo
magro não encontra correspondência com o perfil de prática de atividades
físicas do grupo e contraria, ainda, o discurso científico da nutrição, que
preconiza a atividade física como elemento relevante na promoção da saúde e do
corpo saudável.
Os valores do IMC informado e o desejado tendem, ambos, para o limite inferior
da normalidade, o que sugere um desejo de adequação ao padrão ideal de corpo na
atualidade. O peso idealizado menor que o informado (atual) e a altura ideal
maior que a informada também nos levam a supor uma forte influência do
imaginário referente aos ideais de beleza na sociedade brasileira sobre as
futuras nutricionistas no que se refere ao desejo de atingir o padrão das
modelos expostas pela mídia.
Confrontando esses resultados com a literatura, em um estudo realizado junto a
universitários croatas aplicando-se o BSQ, os resultados mostram que a
insatisfação corporal tem papel significativo na auto-estima das meninas.
Quando as croatas foram comparadas com estudantes do sexo feminino do Reino
Unido e, principalmente, dos Estados Unidos, os seus escores ou foram
significativamente mais baixos (Pokrajac-Bulian et al., 2005). Comparando os
resultados com alguns achados disponíveis na literatura nacional, a pontuação
média no BSQ das estudantes de nutrição no presente estudo foi 81,2 (± 33,6),
ligeiramente mais alta que a encontrada em estudo entre atletas realizado por
Oliveira et al. (2003) no Rio de Janeiro, que foi 77,8 (± 28,7).
Os resultados desta investigação vão ainda ao encontro dos achados de outro
estudo, desenvolvido por Almeida et al. (2005) sobre a percepção da forma
corporal entre mulheres atendidas em diferentes serviços ambulatoriais de saúde
de Ribeirão Preto (SP), que verificou uma concentração de escolhas próprias de
não-obesidade nas silhuetas representativas de mulheres, caracterizando, para o
segmento feminino, a exigência de corpos magros como sinônimo de normalidade.
No presente estudo, entre as universitárias com autopercepção da imagem
corporal moderada ou gravemente alterada (18,6%) foi encontrado que 82,9%
apresentavam IMC adequado e 11,4% apresentavam IMC de sobrepeso/obesidade. Esse
elevado percentual de universitárias eutróficas com alteração moderada/grave da
auto-imagem corporal é um dado preocupante, tendo em vista que elas são futuras
nutricionistas que também deverão atentar para a detecção e o manejo de
comportamentos alimentares de risco.
Em relação ao resultado do BSQ e à insatisfação com o peso, foi observado que,
mesmo no grupo de alunas que apresentavam níveis de preocupação com a imagem
corporal normal/leve, um percentual expressivo gostaria de perder dois ou mais
quilos (58,7%). Entre aquelas com alteração moderada/grave da autoimagem
corporal esse mesmo desejo atinge quase a totalidade das universitárias
(94,3%), o que corresponde ao alto grau de distorção detectado, fator de risco
para transtornos na esfera da alimentação. Um estudo longitudinal entre meninas
norueguesas apontou que a imagem corporal é fator preditor para a prática de
dietas, tendo relação direta com o aumento da idade (Friestad, Rise, 2004). E a
prática de dietas freqüentes é fator de risco para o desenvolvimento de
transtornos do comportamento alimentar, sobretudo de quadros de anorexia
nervosa (Morgan et al., 2002).
Esses dados confirmam que a percepção do peso corporal se sobrepõe ao IMC, ou
seja, a forma como a pessoa se percebe é mais decisiva do que a massa corporal
em si, podendo influenciar alterações importantes do comportamento alimentar.
Esse fato evidencia a necessidade de explorar o tema em diferentes segmentos
populacionais, de modo a conhecer a magnitude do fenômeno e delinear
estratégias voltadas ao problema (Nunes et al., 2001).
A autopercepção da imagem corporal e, principalmente, a imagem corporal
idealizada pelas universitárias informantes deste estudo ajustam-se ao padrão
preconizado pelo contexto sociocultural em que vivemos, no qual sobressaem o
que certos autores denominam lipofobiae império da magreza. Em se tratando de
graduandas de nutrição, o impacto desse achado é ainda mais relevante, pois se
profissionais no campo da saúde e da nutrição, apesar de sua expertisenesses
domínios, desejam atender a essas normas, evidencia-se a importância do tema
como questão sócio-sanitária. Além disso, a condição de cuidadores adoecidos
dificulta a construção de um olhar diferenciado para com o outro no momento em
que tiverem que lidar com algum caso de transtorno alimentar, obscurecendo a
distorção da auto-imagem como preditora para o desenvolvimento de transtornos
alimentares.
O desconhecimento do tema por parte dos profissionais de nutrição e de saúde
gerado pelo despreparo acadêmico associado ao caráter secreto das práticas
torna mais difícil a sua detecção. Portanto, a multidimensionalidade dos
transtornos do comportamento alimentar, que inclui a percepção do próprio
corpo, deve ser discutida com esses profissionais para que entendam a
influência da sociedade de consumo e o processo de construção dos ideais de
beleza nos processos de subjetivação em curso e possam conduzir um manejo
clínico no qual se considerem os limites nos quais a perda de peso trará
impacto positivo à saúde das pessoas.
Assim, este estudo visa contribuir para a identificação da avaliação da auto-
imagem corporal no segmento focalizado. É necessário o desenvolvimento de
outros estudos com esse grupo, além da associação desses achados a dados
relativos a comportamentos alimentares inadequados, uma vez que tais fenômenos
se conjugam como fatores de risco para o desenvolvimento de transtornos
alimentares.
Vale ressaltar, ainda, que este estudo alerta para a importância que deve ser
dada à educação de adolescentes e jovens discutindo a pressão cultural exercida
sobre o corpo, sobretudo os universitários, foco específico do estudo, em
especial aqueles inseridos na área da saúde, por serem futuros multiplicadores
de conceitos e práticas relacionados ao corpo e à alimentação, bem como agentes
fundamentais em detecção e manejo de distúrbios nesse domínio que se
caracteriza como necessidade básica humana.
Conclusão
Os resultados encontrados neste estudo evidenciam que o ideal de corpo magro
imposto pela sociedade prevalece, pois um grupo de estudantes de nutrição com
peso adequado apresentou insatisfação com sua imagem corporal, desejando
alterá-la para adequar-se aos padrões sociais. Em se tratando de futuras
nutricionistas, o impacto desse achado é ainda mais relevante, tendo em vista
seu papel no manejo desses quadros.