Alcoolismo feminino: um estudo de suas peculiaridades. Resultados preliminares
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Introdução
No decorrer dos anos observamos crescente interesse pelo alcoolismo feminino, e
a presença ou a ausência de mulheres nos serviços de saúde tem sido o foco
central das discussões. Durante muito tempo o alcoolismo esteve identificado
com a população masculina, considerando resultados que apontavam para uma
prevalência mínima de mulheres nos serviços de saúde especializados. Vanicelli
e Nash (1984) revisaram 530 estudos avaliando o tratamento de alcoolismo e
constataram que apenas 7% da população estudada era de mulheres. Hagnell e
Tunving (1972), num estudo nos Estados Unidos com uma amostra de 2.612
indivíduos, encontraram apenas uma mulher alcoolista. As taxas de abuso e
dependência de álcool chegavam a dois homens para uma mulher nos Estados
Unidos, e as taxas nos tratamentos eram de quatro a cinco homens para uma
mulher (Blume, 1990). Na América Latina essa proporção variava de 5:1 a 14:1
(Santana e Almeida Filho, 1987). Borini e Silva (1989), Cardim e Azevedo (1995)
e Hochgraf et al. (1990) também apontaram o elevado número de alcoolistas
homens nos serviços especificamente no Brasil.
A ausência de mulheres nos serviços, evidenciada através desses estudos, abriu
um leque de discussões que foram tanto da visão do alcoolismo como um problema
predominantemente masculino (Keller, 1980) à tentativa de investigar essa
questão compreendendo o comportamento social diante do alcoolismo em mulheres.
Robbins (1968) sugeriu que o alcoolismo vinculado ao sexo masculino seria
basicamente de natureza social, e que a ausência de mulheres nessa categoria
poderia estar vinculada a uma dupla moral implícita na prática do consumo de
álcool. Essa dupla moral não só não favoreceria o consumo entre mulheres como
aumentaria o estigma para com as mulheres que bebem, impondo ao sexo feminino
padrões mais rígidos.
Blume (1986) enfatizou o aumento do número de mulheres com problemas associados
ao consumo de álcool a partir da Segunda Guerra, na intenção de problematizar
as discussões focando o processo histórico e o contexto sociocultural, que
poderiam ter influência sobre a questão. No bojo dessas reflexões, autores como
Robbins e Martin (1993), Madrigal (1993), Hochgraf (1995), Oliveira e Silva
(2002), apontaram a importância de investigar as especificidades do alcoolismo
feminino considerando questões pertinentes à mulher no espaço social. Seus
achados sugerem a importância de levar em conta as diferenças de gênero no
alcoolismo, refletidas no comportamento de beber de homens e mulheres, o que
implica poder ponderar algumas afirmações em torno do alcoolismo em mulheres,
como no caso da invisibilidade nos serviços, e apontar para o quanto as
peculiaridades do alcoolismo feminino podem interferir nas ações de saúde que
envolvem essa problemática, tornando-as mais efetivas.
Diante do exposto, o presente estudo tem como objetivo discutir as
peculiaridades do alcoolismo feminino e a importância do seu significado nos
serviços especializados.
Métodos
Local da pesquisa
A pesquisa foi realizada na Unidade de Tratamento de Alcoolistas do Instituto
Philippe Pinel (UTA/IPP) no Rio de Janeiro. Criada em 1985, a unidade é um
serviço especializado que visa ao tratamento e à prevenção dos problemas
decorrentes do uso abusivo de bebidas alcoólicas, com objetivos de assistência,
ensino e pesquisa. A unidade possui 20 leitos para internação, sendo 15 para
homens e cinco para mulheres. Prioriza a ambulatorização e trabalha com o
enfoque da redução de danos. A triagem inicial é feita na recepção, com os
encaminhamentos necessários para a UTA. Na unidade é realizada uma segunda
triagem para início de tratamento. O procedimento do serviço pode incluir ou
não a internação. A indicação pode ser desintoxicação ambulatorial e/ou
encaminhamento direto para tratamento ambulatorial.
No ambulatório há psicoterapia individual, em grupo, terapia medicamentosa,
grupos de família, grupos operativos, hospital-dia e o grupo de mulheres.
Criado em 2001, o grupo de mulheres tem como objetivo mudanças nas ações de
saúde que envolvam o tratamento de mulheres alcoolistas.
Procedimentos
Os dados desse estudo são decorrentes de um recorte de pesquisa sobre o
alcoolismo feminino. O estudo foi realizado com nove integrantes do grupo de
mulheres da instituição, e o critério de inclusão era participar dele há pelo
menos um ano. O propósito desse critério era proporcionar reflexão e discussão
em torno das mulheres que já estavam em tratamento, especial-mente num espaço
direcionado às mulheres. As entrevistadas tinham idades entre 40 e 52 anos e
perfil socioeconômico diferenciado.
Foram feitas entrevistas individuais semi-estruturadas. A intenção era ter um
roteiro prévio, porém dando espaço de liberdade para as entrevistadas fazerem
associações concernentes à sua história de vida que considerassem relevantes.
Dessa forma, as afirmações poderiam trazer elementos significativos para a
investigação, principalmente se esses elementos fossem coincidentes. Buscaram-
se, dentro dos objetivos desse método, a descrição do caso individual, a
compreensão das especificidades culturais mais profundas dos grupos, a
comparabilidade de diversos casos (Minayo, 1992).
As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas. Foram observadas e
garantidas todas as questões éticas de acordo com a Resolução 196/96. O
protocolo de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
instituição e todos os pacientes assinaram um termo de consentimento livre e
esclarecido antes que qualquer procedimento do estudo fosse aplicado.
Resultados
Com relação ao local onde bebem, 90% declararam beber no âmbito da esfera
privada e diferenciaram esse comportamento do beber na esfera pública. Setenta
por cento afirmam ter sofrido algum tipo de violência física/sexual na infância
e/ou adolescência por parte de parente próximo. Desses 70%, duas começaram a
beber na infância; três, na adolescência e uma, na idade adulta. No momento da
entre-vista, seis das nove mulheres entrevistadas eram ou foram casadas, sendo
que cinco delas tiveram parceiros (maridos ou não) alcoolistas. Oitenta por
cento das casadas sofreram violências doméstica e sexual por parte dos
companheiros e todas haviam sofrido algum tipo de violência sexual/física na
infância ou na adolescência. A possibilidade de ter controle sobre o beber foi
trazida por 40%. Entre as situações exemplificadas sobre esse controle, o
período de gravidez e amamentação dos filhos foi o ponto comum. Verificou-se
maior adesão ao tratamento após a criação de um espaço de tratamento
diferenciado para mulheres.
Discussão
A percentagem alta de mulheres que bebem privadamente não atesta que mulheres
alcoolistas não bebam em público. Porém a representatividade dada por elas ao
beber na esfera privada, como o comportamento que revela o seu alcoolismo,
parece apontar uma particularidade do beber feminino.
Estudos comparativos de gênero descrevem comportamentos diferenciados para
homens e mulheres alcoolistas. As expressões desses comportamentos são
originadas na formação, na educação de meninos e meninas, quando a identidade
de gênero vai se constituindo (Robbins e Martin, 1993). Achados desses autores
apontam estilos de desvios de gêneroem que o comportamento dos homens
alcoolizados seria um com reações para fora, externalizado, enquanto as
mulheres tenderiam a um comportamento mais retraído, ficando menos expostas e
internalizando emoções.
Outro aspecto a considerar seria a preservação da auto-imagem, relacionada ao
preconceito diante das mulheres que bebem: cobrança diante de papéis a cumprir,
como no caso da maternidade, ou posturas não consideradas femininas
socialmente. A repressão ao consumo de álcool pelas mulheres provoca
sentimentos de culpa (Smart, 1980), podendo ter como conseqüência um beber
escondido. Ao mesmo tempo, essa autopreservação aponta também para um
autocuidado, que parece ter relação com a possibilidade de controle sobre o
beber. Todavia achados de outro estudo verificaram, num período de seis meses
de tratamento, taxa de abstinência menor entre as mulheres do que entre os
homens (Hochgraf, 1995). Ao mesmo tempo foi observado que era mais fácil para
as mulheres reduzir o consumo do que manter a abstinência, indicando, sob certo
ângulo, que elas teriam mais controle sobre o beber do que os homens, mantendo-
se bebedoras sociais com mais facilidade do que eles (Hochgraf, 1995).
A abstinência observada no período de gravidez e amamentação dos filhos na
nossa amostra sugere que aspectos relacionados à diferença de gênero no
alcoolismo podem afetar o comportamento de beber. A função social da mulher
enquanto cuidadora poderia funcionar como freiopara o ato de beber (Robbins e
Martin, 1993). Dados de maiores recaídas em mulheres que têm menos filhos
morando com elas foram encontrados por Hochgraf (1995).
A alta taxa de mulheres vítimas de violência física/sexual na infância/
adolescência, coincidindo com o fato de começarem a beber naquela ocasião, foi
dado relevante da pesquisa e aponta a perspectiva de que a violência pode
contribuir para gerar alcoolismo. O mesmo já foi descrito por Windle et al.
(1995), cujos achados indicaram que mulheres alcoolistas têm quatro vezes mais
história de abuso sexual na infância do que homens, e por estudos recentes de
Simpson e Miller (2002), que apontam índices mais altos de abuso físico/sexual
na infância em mulheres alcoolistas ou que fazem uso de substâncias psicoativas
do que em mulheres que não o fazem.
As casadas vítimas de abuso na infância/adolescência também sofreram violência
doméstica por parte dos companheiros. Alguns estudos relatam achados com
índices elevados de mulheres alcoolistas vítimas de violência doméstica (Miller
et al., 2000). Entretanto não foi detectada relação do abuso sofrido na
infância com a perpetuação da violência doméstica sofrida na vida adulta.
Sugere-se que essa seja questão para futuras pesquisas, devido à sua relevância
e à sua complexidade.
A questão do abuso físico e sexual na infância é extremamente delicada. A
naturalidade da ambivalência afetiva no processo de desenvolvimento na infância
e na adolescência aponta que em situações de abuso por pessoas da família,
quando a criança fica dividida entre o amor e o ódio diante da violência física
e emocional, a ambivalência assume proporções graves que a criança não tem
condições de suportar (Azevedo, 2001). A situação se agrava devido à baixa
notificação e pela dificuldade em lidar com a questão por ser o abusador alguém
da família, acarretando medo e sentimentos de culpa (Pizá, 1999). Ainda há a
dificuldade, encontrada pelos profissionais de saúde, de se sentir à vontade
para lidar com essa questão, incluindo a ausência de perguntas dessa natureza
nas anamneses realizadas nos serviços (Zilberman e Blume, 2005).
A porcentagem de mulheres que sofreram algum tipo de violência na infância/
adolescência casadas com companheiros alcoolistas encontra-se de acordo com os
estudos de Gomberg (1981), cujos achados indicam que mulheres vítimas de abuso
físico ou sexual tendem a se casar com homens alcoolistas. Entretanto seus
depoimentos apontam para a impossibilidade de construir relações mais
duradouras com companheiros que não tenham problemas de alcoolismo. A maioria
delas teve contato com a bebida muito cedo e conviveu com amigos e amigas
também alcoolistas, o que propiciava a relação com uma pessoa que bebesse.
A criação do espaço de tratamento específico para mulheres ' caracterizado pelo
Grupo de Mulheres Alcoolistas ' no serviço onde foi realizada a pesquisa
revelou adesão ao tratamento de 70% das mulheres atendidas contra evasão de 90%
antes da criação do espaço. Esses dados, no entanto, não são suficientes para
indicar a necessidade de tratamentos separados para homens e mulheres, mas
sugerem que mudanças nos modelos de atenção junto às mulheres alcoolistas
poderiam favorecer ações mais efetivas por parte das equipes de saúde nessa
área.
Não é incomum mulheres procurarem os serviços de saúde com queixas
vagas,encobrindo o real problema que as afeta. Mulheres alcoolistas tendem a
procurar serviços de clínica ginecológica ou médica referindo-se a sintomas
físicos ginecológicos ou a sintomas psíquicos, como ansiedade ou depressão,
sem, contudo, revelar seu problema de alcoolismo. Situação semelhante é
encontrada por mulheres vítimas deviolência (Zilberman e Blume, 2005).
Conclusão
O fato de o estudo ter uma população pequena de mulheres lhe confere algumas
limitações quanto à afirmação de resultados. No entanto os resultados obtidos
nesserecorte da pesquisa apontam a relevância, já sinalizada por outros
autores, de estudos que dêem seguimento a pesquisas relacionadas ao alcoolismo
feminino e suas peculiaridades. Nesse contexto, a discussão levantada pelos
resultados reforça o diálogo sobre a importância de mudanças nas ações de saúde
que envolvam o atendimento a mulheres alcoolistas levando-se em conta sua
complexidade.