Arranjos neocorporativos e defesa de interesses do médicos
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INTRODUÇÃO
A discussão acerca da representação funcional das diferentes categorias
profissionais envolvidas no processo de trabalho em saúde é relevante para o
estudo das políticas setoriais. Corporativismo é um termo vastamente empregado
tanto no discurso das lideranças como no próprio debate acadêmico. Por ter seu
uso vinculado a realidades bastante diversas ao longo da história, faz-se
necessário enfrentar a questão conceitual como um pré-requisito para a sua
utilização. Assim, esta dissertação se propõe a três objetivos que se
complementam: 1. recuperar o conceito de corporativismo à luz de seus
diferentes usos, buscando os elementos em comum que lhes dão sustentação ao
longo da história; 2. detectar na literatura que envolve a formulação de
políticas sociais em saúde os itens relevantes ao estudo da atuação dos atores
sociais coletivos, com especial destaque aos médicos; e 3. discutir as formas
tradicionais de vinculação entre organização de interesses e políticas públicas
nos Estados capitalistas avançados, no sentido de extrair tendências relevantes
ao caso brasileiro.
Em vista da discussão teórica efetuada, propõe se o estudo de arranjos de
caráter neocorporativo progressivamente presentes na formulação de políticas em
saúde no Brasil. Tais arranjos constituem-se numa sólida tendência em
desenvolvimento, onde os atores sociais coletivos, progressivamente organizados
e conscientes de seus interesses perante o Estado e os demais setores sociais,
passam a exercer, cotidianamente, as práticas de acordos em arenas cada vez
mais compartilhadas e sob a égide do Estado.
Trata se de constatar que o corporativismo, no Brasil, é difundido,
essencialmente, enquanto expressão de interesses "egoístas" e imediatos de
categorias profissionais. Um outro uso freqüente do termo, também agregado à
representação sindical, está na vinculação ao fascismo e, no Brasil, a toda a
estrutura sindical historicamente assentada na legislação corporativa pós-30. O
corporativismo, portanto, é uma presença constante e inevitável quando se fala
em defesa de interesses em nosso país. Propomos, então, uma adequação do
conceito, bem como a sua utilização prática em pesquisa, considerando as
políticas sociais em saúde enquanto um território definido pelo Estado, no qual
os atores sociais coletivos disputam bens e efetuam barganhas cada vez mais
estruturadas em arranjos duradouros de cunho neocorporativo e cujo modelo
gerencial do Sistema Único de Saúde emerge enquanto exemplo marcante e atual.
Tais arranjos se apresentam apenas como mais um dentre os diversos mecanismos
de tomada de decisões setoriais a serem estudados, tais como o papel da
estrutura burocrática do Estado, os acessos privilegiados de grupos
empresariais aos recursos sociais, a representação político partidária, etc.
O sindicalismo médico é utilizado como referência central em nossa discussão,
em virtude do impacto que teve em certo período a partir de 1977 na
incorporação dos médicos a experiências de defesa coletiva de interesses, com
ressonância decisiva nas demais categorias profissionais da saúde, e pela
prática de colocar-se perante a população, tentando vincular seus interesses
imediatos a objetivos sociais mais amplos. Estas experiências estão no cerne da
questão da representação funcional desenvolver a capacidade de formular
demandas coletivas de um segmento e convencer os demais quanto aos benefícios
comuns de determinadas conquistas. Trata se de passar o próprio (demandas
sindicais) pelo generalizado (melhorias nos serviços e na qualidade de vida).
MOVIMENTO SINDICAL MÉDICO
O papel do movimento sindical médico foi destacado em alguns estudos, sendo que
consideramos dois deles como de maiores destaque e coerência interna. Com
enfoques distintos, Campos (1988a) e Escorel (1987) buscam estabelecer as
referências centrais do sindicalismo médico. Para Escorel, o movimento sindical
médico, a partir das vitórias eleitorais do Movimento de Renovação Médica
(Reme) ao final da década de 70, estabeleceu alianças e projetos conjuntos com
outros setores da sociedade, extrapolando suas demandas exclusivamente
corporativas. Tal ponto de vista considera que o movimento sindical médico
chegou a se constituir numa das vertentes fundamentais da constituição do
Movimento Sanitário em nosso país, que desembocou no projeto da Reforma
Sanitária. Enquanto vertente, o sindicalismo médico seria um dos momentos da
"constituição/ação" do Movimento Sanitário. Esta análise tem o mérito de captar
uma certa articulação entre aspectos da prática sindical médica na conjuntura
de transição política do país. Ou seja, avalia os mecanismos de construção de
um determinado movimento de múltiplas origens profissionais a partir da atuação
de setores dinâmicos presentes nas lutas sociais. Por outro lado, acreditamos
ter ocorrido uma superestimação da adesão dos médicos a este processo. Na
verdade, a incorporação da categoria aos princípios básicos das teses dos
sanitaristas não ocorreu, tendo a mesma ficado restrita à atuação de lideranças
politicamente engajadas via instâncias (como a organização partidária) cuja
dinâmica operava por fora da base sindical. O Movimento Sanitário não foi
fruto, enquanto um item crucial, do sindicalismo médico e de suas experiências
cotidianas. Hoje fica mais fácil notar que não foram criadas bases sólidas dos
projetos reformadores entre os médicos, embora naquela conjuntura tenha havido,
isto sim, uma importante adesão de parcelas da categoria às reformas
democráticas em nosso país.
O trabalho de Campos (1988a) segue um caminho diferente, enfocando,
basicamente, as diferenças internas aos médicos, mesmo no que se refere às suas
lutas corporativas. Embora movimentos coletivos tenham se repetido envolvendo
segmentos distintos da categoria, estes não podem ser agrupados como uma
corrente política única ou mesmo marcadamente dominante. Ao se buscar
caracterizar as correntes políticas em atuação, remete-se não só a padrões
ideológicos existentes, mas também a tipos diferenciados de inserção no mercado
de trabalho que acabam por influenciar a prática política destes profissionais.
As correntes políticas são construídas recorrendo se a certas bases materiais.
O "kassabismo" (favorecido pelos médicos, em número cada vez menor, com maior
controle de sua prática, dotados de elevada autonomia, representando os ideais
liberais plenos na Medicina), o Reme (desenvolvido a partir das lutas sindicais
envolvendo os assalariados e que, em certo momento, expandiu-se para a toda a
estrutura representativa dos médicos) e o neoliberalismo (expressão da
crescente associação entre consultório médico e convênio empresarial,
responsável pela reatualização das aspirações liberais entre os médicos,
caracterizando um tipo de autonomia relativa) seriam correntes políticas
portadoras de projetos diferenciados, todas mantendo algum grau de organicidade
com a categoria, conforme assinala Campos.
Este modelo tem a vantagem de dar conta da profunda heterogeneidade da
categoria, embora a progressiva mesclagem de vínculos profissionais leve a
alguma convergência (médicos simultaneamente servindo como assalariados e em
relação de autonomia relativa para viabilizar o projeto do consultório
particular). Caso este processo de convergência mostre-se como uma tendência
central, a construção de correntes políticas via mercado poderá perder a
necessária nitidez. Neste sentido, apontamos, mais adiante, para a necessidade
de se avançar nos estudos sobre a intermediação de interesses na saúde, a fim
de detectar os mecanismos fundamentais pelos quais tais interesses se
coletivizam e se transformam em projetos políticos e sociais.
PRÁTICA MÉDICA E REFORMA SETORIAL
O ideal de autonomia médica persiste enquanto a exteriorização de um exercício
ótimo da Medicina (Schraiber, 1989). O fato dos médicos encararem seu processo
de trabalho enquanto expressão de uma autonomia, vista como necessária e ideal,
repercute na formulação dos interesses e na própria atitude perante o mercado.
O assalariamento, visto como inevitável, traz consigo algo de contraditório no
que restringe a soberania (pelo menos em parte) às custas da subordinação
hierárquica e da não-determinação plena dos honorários. A autonomia pode,
entretanto, ser destacada como persistente enquanto item geral. Isto é
observado por diversos autores, que assinalam o papel do médico enquanto
tomador de decisões nos sistemas sanitários como um todo (Bjorkman, 1988), ou
pela sua capacidade de obstruir políticas públicas (Berlinguer, 1988).
Esta autonomia é vista por muitos como excessiva e danosa (Illich, 1975),
estando a serviço de um sistema sanitário potencialmente iatrogênico,
dispendioso e incapaz de promover benefícios na proporção dos recursos
empregados. O argumento de Illich se enfraquece, entretanto, ao negar a
eficácia do ato médico em lidar com um conjunto de situações onde revela
elevada resolutividade, como na assistência ao parto e ao perinatal, nas
emergências, no controle de variados processos crônicos (diabetes, hipertensão
arterial, neoplasias, etc). Seria ingênuo supor que o modelo assistencial
médico industrial tivesse se tornado hegemônico sem conseguir dar respostas
eficazes e imediatas a uma série de problemas. Tal constatação, no entanto, não
invalida a questão central apontada por inúmeros autores a de que o ato médico
tornou-se progressivamente caro, invasivo e ineficaz em diversos aspectos da
morbidade geral, e que a autonomia profissional tenha cursado com a
expropriação de direitos e de atribuições dos indivíduos. Isto coloca ainda
mais relevância na discussão acerca da autonomia profissional.
Segundo Donnangelo & Pereira (1979), a discussão acima remete-se à
politização do ato médico, onde os consumidores potenciais pressionam pela
extensão dos benefícios da ciência médica, onde se contesta o gigantismo
tecnológico e seus efeitos nocivos sobre os indivíduos, onde se nega a eficácia
geral no prolongamento da vida das comunidades, e onde se assinala o caráter
discriminatório na aplicação da tecnologia.
A organização dos interesses dos médicos tradicionalmente acompanhou o
desenvolvimento da profissão. A formulação das demandas pelas diferentes
associações, entre elas os sindicatos, respeita os cânones profissionais e
tende a propalar a eficácia da Medicina, a necessidade da autonomia e a
validade das conquistas tecnológicas. Tais elementos acabam reforçados pela
própria sociedade, no dizer de Berlinguer cada vez menos tolerante à dor e às
limitações da vida.
A politização da Medicina se expressa com particular ênfase em nosso país,
especialmente na década de 80, acompanhando o processo de redemocratização do
país, no debate acerca das políticas públicas em saúde resumido em torno da
Reforma Sanitária.
As ações em saúde consagradas na Conferência de Alma-Ata (1977), realçando os
papéis dos serviços básicos, refletiram-se na VII Conferência Nacional de Saúde
aqui realizada em 1980, onde ações integrando as políticas de âmbito federal
com as estaduais e municipais passaram a expressar a combinação de algumas
teses reformadoras, como a descentralização e a extensão de cobertura.
Entretanto, foi com a VIII Conferência, realizada em 1986, em plena conjuntura
de redemocratização política do país, que o projeto reformador ganhou impulso
suficiente para influenciar a própria Assembléia Nacional Constituinte, em
1988. As teses centrais do Movimento Sanitário reformador caracterizaram-se
pela reforma do Estado, enquanto instância capaz de redemocratizar, através de
suas políticas, as relações sociais e suas desigualdades. As características
dominantes da Reforma Sanitária foram, portanto, a promoção do acesso universal
da população aos serviços; a descentralização gerencial, com o reforço dos
papéis dos sistemas locais; a democratização da gestão dos recursos, através de
estruturas tripar-tites (governos, usuários e profissionais de saúde); e a
hierarquização dos serviços visando uma integração entre os diversos níveis de
complexidade. No conjunto, uma determinação de que o Estado atue como o
responsável primordial pela promoção da saúde da população.
Este processo desembocou na criação do Sistema Único de Saúde, onde ressaltamos
como relevante à nossa discussão a gestão compartilhada de recursos e ações
sanitárias, através de arranjos institucionais onde diferentes atores passam a
disputar seus interesses, tendo que compartilhar consensos e conquistar
determinados bens ou benefícios. Como veremos adiante, tal modelo admite as
demandas funcionais em políticas setoriais e locais, caracterizando arranjos de
caráter neocorporativo.
O movimento pela Reforma Sanitária apresentou-se aos médicos através de suas
lideranças e teve ressonância, a nosso ver, especialmente por itens como a
isonomia salarial entre os profissionais.
Enquanto movimento reformador do Estado, muitos foram os obstáculos que se
apresentaram à sua viabilização. Alguns, fruto das condições objetivas
envolvendo atores sociais; outros, decorrentes da própria proposta.
A começar pelo conteúdo básico da Reforma, Oliveira (1989) lembra que as
proposições já estavam em curso há muito tempo, tendo ocorrido apenas a
constituição de um rótulo "altissonante" para dar coesão a itens que remontam à
década de 60. Some-se a isto a literal transposição do modelo italiano, em que
pese o fato das estratégias serem necessariamente distintas, em virtude dos
atores sociais envolvidos. Na Itália, o movimento contou com uma base
partidária e sindical mais sólida, que precedeu o longo debate parlamentar
(Berlinguer, 1988). No Brasil, o peso da burocracia técnica sanitária na
elaboração do projeto, aliado ao maior envolvimento de uma elite sindical cujas
bases, como no caso dos médicos, estavam entre funcionários públicos, traz à
tona uma forma particular do "pessoal de Estado" em levar adiante suas demandas
corporativas: apresentar suas aspirações de expansão e reprodução enquanto
anseios populares (King, 1988). A Reforma Sanitária fundamentou-se como uma
reforma do Estado cujo eixo está na própria expansão do setor na saúde, o que
condiz com os interesses de uma tecnoburocracia atuante e voltada para a sua
reprodução.
Do lado dos movimentos sociais urbanos, é importante destacar a sua crescente
demanda por serviços públicos. A lógica dos interesses coletivos não perpassa
profissões como a Medicina, cujos rígidos vínculos corporativos determinam
barreiras substantivas a qualquer processo reformador (Costa, 1989).
Tais obstáculos não esmoeceram o ímpeto dos formuladores da Reforma Sanitária
em superar os limites corporativos. O movimento médico foi considerado por
muitos como capaz de operar alianças históricas com o movimento popular
(Teixeira, 1988). Tais expectativas estavam muito vinculadas ao próprio
processo de redemocratização do país e à intensificação das lutas sindicais e
políticas, gerando esperanças de que limites tradicionais da organização social
brasileira pudessem ser superados ao longo do esvaziamento dos regimes
militares. Os entraves, entretanto, foram se avolumando após as primeiras
experiências gerenciais dos reformadores, constituindo-se num evidente dilema.
O dilema reformista estaria no fato da Reforma ter se desenhado em cima da
crise do sistema, apresentando-se como alternativa em uma conjuntura peculiar
(a "Nova República") onde o peso de forças políticas conservadoras no interior
do aparelho governamental expôs seus formuladores à situação de gerir sem
plenos poderes, levando a um desgaste da própria estratégia reformadora
(Teixeira, 1988). Nesta altura, as diferenças com relação ao processo italiano
já se apresentavam por demais claras. Entretanto, assinale-se, as teses básicas
acabaram sendo acolhidas no texto da nova Constituição, pendente, obviamente,
de regulamentação posterior.
Os limites, no entanto, não estariam apenas no equilíbrio de forças no governo.
O processo de articulações "por cima" privilegiado pelos reformadores, com
todas as suas conseqüências, não levou em consideração o peso decisivo do
mercado em condicionar e distribuir recursos de origem pública (Campos, 1988b).
Conforme lembra Campos, entre outros, o Instituto Nacional de Assistência
Médica e Previdência Social (Inamps) e diversos fundos públicos bancaram a
mercantilização da assistência médica em nosso país. O peso do mercado na área
da saúde surge como um evidente elemento de condicionamento da atuação dos
atores sociais. No caso dos médicos, quaisquer reformas terão que levar em
conta os meios como se organizam e expressam interesses, tendo o mercado como
fonte de demandas que não podem ser tomadas, a priori, como conversíveis aos
interesses coletivos. A contínua expansão dos serviços privados em saúde em
nosso país (Favaret-Filho & Oliveira, 1989) enfraquece uma das mais caras
expectativas dos reformadores: a subordinação de amplas camadas da medicina
privada à lógica do Estado.
CORPORATIVISMO E ESTADO
O corporativismo tem sido descrito a partir de pontos de vista variados. Além
disso, tornou-se senso comum vinculá-lo aos processos de defesa de interesses
imediatos de categoriais funcionais. Outra base empírica encontra-se nas
políticas de Estado, como o fascismo, e em diversos mecanismos de cooptação de
lideranças sindicais no sentido de torná-las cooperativas com políticas
governamentais. Deste modo, torna se importante uma precisão teórica do que
seja corporativismo e as formas como este influencia a organização política e
social brasileira.
O fundamento básico do corporativismo encontra se no fato de atividades
profissionais se organizarem em associações de interesses coletivos
(corporações). Tal doutrina "propõe, graças à solidariedade orgânica dos
interesses concretos e às formas de colaboração que podem daí derivar, a
remoção ou neutralização dos elementos em conflito" (Incisa, 1986). Tal
definição, embora vinculada a regimes autoritários, guarda dois aspectos que
persistem como fundamentos do que hoje é definido como neocorporativismo: a
solidariedade interna de grupos profissionais e a intervenção do Estado
demarcando o processo de redução do conflito.
O desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo interferiu na
organização corporativa por ofícios, subvertendo o modelo tradicional (Marx
& Engels, 1982). Isto nos obriga a distinguir entre as prescrições
corporativas católicas (vinculadas a um comunitarismo destruído pelo
capitalismo) e o corporativismo dos Estados autoritários que acompanharam o
processo de acumulação de capital em sociedades como a brasileira (Vianna,
1976). Ou seja, mudanças nos modos de produção ou de regimes imprimem
características próprias à organização corporativa.
Ainda no campo conceitual e ligado às práticas sindicais, deve-se ressaltar o
debate de Lenin (1973) com o que denominou economicismo (apontado como uma
tentativa de afastar das lutas sindicais a colocação de alternativas de
organização política do Estado, acreditando que, espontaneamente, pelas
experiências cotidianas, os proletários chegariam à ruptura com o Estado
burguês). Lenin assinala que, pela via das lutas econômicas, os trabalhadores
não superariam níveis "trade-unionistas" de lutas sociais. Assim, trava embate
com estratégias de caráter corporativo no interior da esquerda, embate este que
vai influenciar toda a atuação posterior da esquerda marxista, inclusive no
Brasil.
O corporativismo aparece, portanto, como mecanismo de regulação para o Estado e
como entrave estrutural para a esquerda marxista. Para o marxismo, o processo
de conscientização das classes dominadas é crucial. Gramsci (1978) define como
catarse "a passagem do momento puramente econômico (ou egoísta-passional) ao
momento ético-político, isto é, a elaboração superior da estrutura em super-
estrutura na consciência dos homens".
Não devemos, no entanto, atribuir às estruturas corporativas o único papel na
viabilização da crescente hegemonia burguesa (e, com ela, o desenvolvimento do
capitalismo). Segundo Gramsci (1968), elementos não-organizados, como os
intelectuais, desempenharam papel de destaque. Dentre estes, os médicos são
vistos como intelectuais tradicionais e alvo de políticas de cooptação da parte
da nova classe burguesa, no sentido de atuarem como veiculadores de novos
valores. Os médicos, assim como juristas e eclesiásticos, para Gramsci, tendem
a procurar ocupar espaços ideológicos acima das classes fundamentais, embora o
seu progressivo papel subordinado na nova sociedade capitalista não tenha sido
esquecido por Marx & Engels no próprio Manifesto Comunista, ainda nos
primórdios da construção de uma esquerda que influenciou decisivamente o
movimento sindical em todo o mundo. Neste caso, buscava-se ressaltar o violento
e acelerado processo de conformação das estruturas e atores sociais à lógica do
capitalismo em desenvolvimento.
O Estado capitalista desenvolveu relações com atores coletivos, com especial
atenção às práticas do movimento sindical operário. Para Panitch (1981), o
corporativismo emerge como uma estrutura do capitalismo avançado, "que integra
grupos produtivos, organizados através de um sistema de interação mútua, de
representação e cooperação ao nível das lideranças, e de mobilização e controle
social ao nível das massas". Trata-se, obviamente, de uma visão pessimista
quanto a tal modelo de intermediação de interesses. A gestão por parte dos
sindicatos de parcelas do poder não seria suficiente para que tal modelo
deixasse de ser "funcional" ao sistema. A social-democracia moderna aparece
como patrocinadora, na Europa, de experiências corporativas, cabendo ressaltar
que o conceito de corporativismo tradicional implica o controle do Estado sobre
a representação funcional e a defesa fragmentada de interesses ao nível das
profissões. Tais características permaneceram nos modelos neocorporativos,
acrescidas da sistemática democrática especialmente expressa pela autonomia das
organizações de interesses em assuntos internos. Os modelos neocorporativos,
aliás, embora surgidos pelas mãos dos sociais-democratas, persistiram em
governos conservadores (Przeworski, 1989).
Portanto, a relação entre corporativismo e Estado, que remonta à própria
construção do capitalismo, retorna (como será assinalado por Schmitter, 1974)
no capitalismo avançado com peculiariadades que o diferenciam do antigo modelo
dirigista, do qual o fascismo foi uma expressão típica.
O Brasil e outros países latino-americanos caracterizaram-se por modelos
corporativos diferenciados. Segundo O'Donnel (1976), "sociedades diversas,
corporativismos diversos". Na América Latina, segundo este autor, o padrão de
Estado burocrático-autoritário (que sucedeu, pela via militar, os governos
populistas em decomposição) refletiu-se no próprio tipo de corporativismo. O
"corporativismo bifronte" seria expresso pela convivência entre o componente
estatizante (subordinação ao Estado de organizações da sociedade civil) e o
privatista (abertura de áreas do Estado à representação de interesses presentes
na sociedade civil). Trata-se, portanto, de assinalar a permanência de padrões
corporativos em países como o Brasil, sem excluir outros modos de representação
de interesses e sem se prender ao modelo dirigista (estatizante) oriundo do
período varguista pós-30.
Para assinalar a complexidade da organização política em nosso país, vale
enfatizar que o processo de cooptação pelo Estado guarda características
freqüentemente classificadas como pertencentes a uma relação patrimonialista
entre sociedade e Estado. Como assinala Schwartzman (1988), "o estamento
burocrático brasileiro é permissivo e incorpora, com facilidade, intelectuais,
empresários, líderes religiosos e dirigentes sindicais". Delineia-se, deste
modo, uma corporativização da vida nacional com o Estado, através do seu
estamento burocrático, atuando no enquadramento das associações que se
destaquem por uma atuação mais dinâmica.
Para dar conta de tamanha variedade, como a aqui lembrada, Schmitter (1974),
através de um trabalho clássico, procurou, recorrendo à construção de modelos
típicos-ideais, destacar os diferentes tipos de corporativismo, segundo grupos
de nações. Para tanto, partiu, inicialmente, de uma definição do que seria o
modelo corporativo típico-ideal e deu origem a toda uma escola acadêmica que
passou a ser reconhecida pelos estudos sobre modelos neocorporativos.
Procurando destacar o corporativismo como uma das possibilidades de
representação de interesses em sociedades modernas, dentre as quais o
pluralismo despontava como a mais reconhecida, assinalou Schmitter que
"corporativismo pode ser definido como um sistema de representação de
interesses no qual as unidades componentes são organizadas em número limitado,
de caráter singular, compulsório, não-competitivo, reconhecido ou concedido
(senão criado) pelo Estado, e portadoras de monopólio representativo deliberado
em suas respectivas categorias, em troca da observação de certos controles na
sua escolha de lideranças e articulação de demandas e sustento".
Para acomodar países distintos, como o Brasil e a Suécia, entre os sistemas
corporativos, recorre à subdivisão em dois tipos: um mais autônomo e penetrante
(corporativismo societário), e outro dependente e penetrado (corporativismo de
Estado). Ao aplicar tais modelos ao estudo de diferentes nações, observa que
tais não configuram exemplos "puros", mas sim padrões dinâmicos em cima dos
quais se desenvolveram as formas corporativas. O corporativismo societário
mostrou-se concomitante ao Estado de Bem-estar Social do capitalismo avançado,
emquanto o corporativismo de Estado emergiu como uma necessidade estrutural do
Estado capitalista atrasado. Na verdade, observa- se que o corporativismo
societário nasceu do declínio lento, mas seguro, do pluralismo preexistente, ao
passo que o corporativismo de Estado emergiu a partir da morte prematura e
rápida de um pluralismo nascente, como ressalta.
O Brasil encaixa-se no que Schmitter assinala como corporativismo de Estado, e
as relações históricas deste modelo com o sindicalismo brasileiro foram bem
desenvolvidas por Vianna (1976).
SINDICALISMO E CORPORATIVISMO NO BRASIL
A associação habitualmente feita no Brasil entre sindicalismo e corporativismo
torna-se evidente a partir da década de 30, ao longo da construção do Estado
Novo de Getúlio Vargas. Foi neste período que a Legislação Trabalhista e o
próprio Estado adquiriram, de modo progressivo, feições corporativas que
influenciaram a acumulação de capital no país. No Brasil, os anos 30 são
referências essenciais para o entendimento do movimento sindical e das leis
trabalhistas, que são, até hoje, imbuídas de tal herança.
O estudo de Vianna (1976) sobre este assunto é profundo e abrangente,
fornecendo uma interpretação bem particular para o processo de identificação da
burguesia industrial da época com o Estado corporativo. Assinala o modo como
ocorreu a transposição do projeto liberal fordista da burguesia industrial
(obstaculizado pelas condições vigentes no país) rumo à estratégia de forte
participação do Estado nas relações mercantis e sociais. Chama também a atenção
para o papel modernizador desta burguesia industrial, construindo a sua
hegemonia, de forma lenta e molecular, junto às demais facções burguesas (como
os setores agrário-ex-portadores). O peso que a transformação dos sindicatos
livres nascentes em estruturas oficiais teve no processo de acumulação explica,
em parte, a longa duração da legislação sindical corporativa em nosso país.
O fracasso do modelo liberal fordista no Brasil deu-se em meio a uma crise de
hegemonia, e o corporativismo (com leis e estruturas características) surge
como a via de modernização autoritária adotada no país. O paradoxo do abandono
do liberalismo característico de países de capitalismo originário (que seria a
forma "vocacional natural" da burguesia) e da adoção do Estado forte nos anos
30 só é entendido através dos obstáculos enfrentados pela nova burguesia em
enquadrar os trabalhadores através da "educação pelas fábricas" para a obtenção
do consenso.
Neste sentido, o Estado entrou nas relações trabalhistas buscando fortalecer o
sindicalismo oficial, criado por legislação da época e submetido a diversas
limitações quanto à sua autonomia interna e práticas reivindicatórias. O
florescimento de um sindicalismo livre e autônomo, desde o início do século XX,
no Brasil, foi enfrentado pelo Estado através da repressão política, associada
a crescentes incentivos seletivos ao sindicalismo oficial (assistência médica
por convênios oficiais, financiamento a associados, imposto sindical, etc).
A estrutura sindical corporativa, segundo Erickson (1979), deixou de cumprir
seu papel amortecedor de tensões sociais no início dos anos 60. O "trabalhismo
radical" foi enfrentado pelos militares no golpe de 1964. Estes, às custas da
repressão política, reforçaram as amarras ao sindicalismo engendradas pela
legislação corporativa. Esta foi mantida ao longo dos regimes militares, para
ser questionada, de modo incisivo, a partir de 1977, com a retomada das lutas
sindicais maciças e a emergência do chamado sindicalismo autêntico, que buscou
livrar-se da custódia do Estado.
NEOCORPORATIVISMO E POLÍTICAS SOCIAIS
O conceito de neocorporativismo nos parece bastante útil ao entendimento das
relações entre o Estado capitalista e os atores sociais organizados. Tais
arranjos foram desenvolvidos em diversos países da Europa, observando-se uma
influência marcante de sindicatos operários em políticas de rendas, de
trabalhadores em serviços públicos na elaboração das políticas sociais, e um
conjunto complexo de relações sociais que não podem ser reduzidas ao modo
clássico de pensar o corporativismo, tendo em vista a convivência entre a
intervenção do Estado e um certo pluralismo na representação funcional. Nosso
interesse, no momento, não reside no estudo do neocorporativismo enquanto um
possível paradigma nas Ciências Sociais. Nos interessa apreender os mecanismos
de interferência de atores coletivos nas políticas públicas e a do Estado nos
processos de elaboração de interesses observados na sociedade. Isto em
decorrência da necessidade, a nosso ver, de que os marcos teóricos das
pesquisas sociais no Brasil assimilem a tendência aqui observada de que
arranjos de caráter neocorporativo se apresentem cada vez mais nos cenários
local, setorial e, menos nitidamente, nacional.
A distinção entre os diversos enfoques acerca do corporativismo se faz
necessária. Para Regini (1986), "a diferença fundamental é a seguinte: num
sistema neocorporativo, a organização representativa dos interesses
particulares é livre para aceitar ou não suas relações com o Estado,
contribuindo, portanto, para definí-las, enquanto no corporativismo clássico é
o próprio Estado que impõe e define estas relações".
O Estado capitalista avançado é o território privilegiado para a discussão
conceitual por nele conviverem, há longo tempo, políticas sociais desenvolvidas
e sólidas organizações sindicais. Para Offe & Ronge (1987), tal Estado não
pode ser reduzido a um mero instrumento de uma classe específica ou mesmo de
segmentos sociais. "...o Estado não defende os interesses particulares de uma
classe, mas sim os interesses comuns de todos os membros de uma sociedade
capitalista de classe". Tal defesa não pode, entretanto, ser confundida com uma
utopia democrática. Dar conta de interesses comuns é a expressão da necessária
legitimação deste Estado. A referência ao modo de produção capitalista define o
caráter das estratégias a serem desenvolvidas. Como assinalam, "...nossa tese
consiste em afirmar que existe uma, e somente uma, estratégia geral de ação do
Estado. Ela consiste em criar as condições segundo as quais cada cidadão é
incluído nas relações de troca". Tais relações de troca implicam a
caracterização do indivíduo na forma mercadoria, pela venda de sua força de
trabalho, sendo esta forma-mercadoria o "elo entre as estruturas políticas e as
econômicas".
As estratégias básicas de reprodução da forma-mercadoria seriam, de um lado, o
auto-matismo de mercado (que pressupõe uma reincorporação posterior das
unidades de valor seletivamente excluídas da forma-mercadoria através do
balanço oferta/demanda), e, do outro, as políticas estatais de preservação das
unidades de valor segundo políticas anti-cíclicas (keynesianas). Tais
estratégias apresentam contradições significativas: a primeira, pelo
desequilíbrio na força de trabalho decorrente de demissões não acompanhadas de
ressocialização imediata; a segunda, pelos crescentes gastos fiscais em
políticas públicas. Offe & Ronge delineiam uma terceira via em andamento na
Europa Ocidental, baseada em três itens: programas de reciclagem profissional,
visando aumentar a capacidade de troca da força de trabalho; aceleração da
capacidade de troca de bens de capital via integração supranacional de mercados
e diversas políticas nacionais e regionais de pesquisa e desenvolvimento; e
"saneamento planejado" de segmentos da produção atrasados quanto à sua
capacidade de rápida produção e circulação de bens.
Tais estratégias pressupõem um ampla interferência do Estado nas relações de
troca e na relação entre os interesses sociais organizados. Isto revela um
Estado organizador do processo econômico e interessado na ação dos atores
sociais.
Algumas contradições fundamentais emergem do quadro descrito. Uma delas estaria
em que o Estado, para viabilizar a reprodução da forma-mercadoria (de cuja
atuação depende a sua própria sobrevivência via recolhimento de impostos,
etc.), lança mão de políticas que pressupõem o crescimento da força de trabalho
em serviços empregada nas próprias agências estatais. Tais segmentos sociais
estariam distante de se comportarem pela lógica da mercantilização. Seus
referenciais de produção seriam distintos daqueles presentes na esfera
mercantil plena. Desta maneira, haveria uma desmercantilização da força de
trabalho a serviço da reprodução desta enquanto mercadoria. Como assinala Offe
(1982), "do meu modo de ver, esta relação entre welfare e capitalismo é
contraditória: sob as condições de capitalismo moderno, uma estrutura de apoio
de instituições não-mercantilizadas é necessária para um sistema econômico que
utiliza a força de trabalho como se fosse uma mercadoria". O crescimento do
setor de serviços na rede pública seria, então, um subproduto "não-funcional"
da expansão capitalista.
A REPRESENTAÇÃO DE INTERESSES E O NEOCORPORATIVISMO
A representação de interesses não se dá apenas pela vontade dos indivíduos
representados, mas atende a um complexo mecanismo que vai desde a própria
elaboração de quais demandas são relevantes e plausíveis, passando pela
capacidade de tais demandas homogeneizarem, mesmo que apenas por um instante,
os indivíduos em torno de seus representantes, até chegar ao papel que as
instituições públicas desempenham no sentido de torná-las aceitáveis ou não, ou
mesmo de reconhecerem seus interlocutores.
A formação e a atuação de grupos de interesses, segundo Offe (1989a), dependem
de três pontos: da vontade e identidade coletiva do grupo; da "estrutura de
oportunidades" sócio-econômica; e das práticas institucionais proporcionadas
pelo sistema político a estes grupos, na forma de "status público". O autor
critica a teoria pluralista por estar demasiado presa à expressão das vontades
individuais. Assinala Offe: "A forma e o conteúdo concretos da representação de
interesses organizada é sempre um resultado do interesse, mais a oportunidade,
mais o status institucional".
O Estado aparece como força interferente na intermediação de interesses. O
status público, positivo ou negativo, atribuído via incentivos ou sanções,
estimula ou cerceia interlocutores, voltando-se para a estratégia final de
redução do conflito global da sociedade. Na verdade, não ocorre uma redução do
conflito, mas uma fragmentação destes ao longo da sociedade. O status público
atribuído às organizações de interesses é considerado por Offe um item crucial
na intermediação de interesses na sociedade.
A representação funcional (neocorporativa) emerge como adaptada ao
desenvolvimento capitalista e capaz de dar conta de itens variados, os quais
incluem o papel de selecionar questões que sirvam de informação global ao
sistema, sem a sobrecarga de demanda que a representação partidária tende a
oferecer. A agenda política da social-democracia européia na década de 60 já
dava sinais de sobrecarga devido às políticas de crescente proteção social,
fazendo com que os modelos neocorporativos se desenvolvessem, em países como a
Alemanha Ocidental, em cima do enfraquecimento do sistema de representação
territorial assegurado pelos partidos políticos. Poder-se-ia dizer que a
representação funcional neocorporativa desenvolveu-se junto com uma certa
degeneração do sistema de representação partidária (perda de identidade dos
partidos, sobrecarga de demandas, etc.). Uma síntese de tal processo e das
mudanças no conceito de corporativismo é encontrada em Offe (1989a): "Essa
dupla natureza do corporativismo é essencial: implica restrições impostas à
base de poder de grupos, assim como um ganho em termos de autonomia. Significa
etatisation da política de grupos em um caso e `promessa de não-interferência'
do poder do Estado no outro...O aspecto característico do corporativismo
moderno, em contraste com os modelos autoritários, é a coexistência de dois
circuitos, havendo uma substituição apenas limitada da representação
territorial pela representação funcional".
No rastro de certo esvaziamento da representação partidária, o modelo
neocorporativo não se apresenta como estável ou necessariamente persistente,
mas como uma instância adicional aos modos de representação de interesses que
pode ter seu alcance aumentado ou diminuído conforme elementos conjunturais de
cada região ou setor. A despolitização do cotidiano, implementada pela ação do
Estado, soma-se à fragmentação do conflito como uma das "vantagens" do modelo
em termos de estabilização dos processos sociais. No entanto, como assinala
Offe, tal modelo está longe de ser estável, pois carrega também um certo grau
de imponderabilidade. Seria também um modelo frágil devido às suas
contradições. A estabilização do modelo corporativo depende de sua capacidade
de "pressupor o consenso" e de uma aceitação incontestável do método de
aceitação/exclusão de organizações e dos resultados alcançados, o que está
longe de constituir- se numa garantia absoluta. Outro aspecto é a
intensificação do conflito politico não-institucional, ou seja, a possibilidade
de que grupos voltados a temas extra-sindicais (questão urbana, defesa
ambiental, etc.) ou de que se rompa o mecanismo tradicional de colaboração
entre elites sindicais, com o fortalecimento de lideranças que denunciem o
caráter do pacto de classes implícito no neocorporativismo.
Um outro cenário, menos factível, consistiria "na correção do viés de classe do
corporativismo". Tal se daria em virtude de um magnífico aumento do poder de
barganha dos trabalhadores, dotados de sindicatos cada vez mais fortes e
organizados, forçando a um deslocamento do centro de poder para os organismos
paritários, com a subordinação das outras partes aos desígnios do movimento
social organizado. Tal possibilidade é vista com bastante desconfiança também
por autores como Panitch (1981), que ressalta o forte elemento de colaboração
embutido no desenvolvimento do corporativismo, e Przeworski (1989), que
descreve as "bases materiais" onde se estabelece o consentimento dos
trabalhadores com as regras do jogo do modelo capitalista, dos quais são reféns
(perdem com a crise do sistema e não têm garantias efetivas de ganhos
proporcionais decorrentes da superação das crises econômicas).
Para Offe, o modelo neocorporativo tem seu equilíbrio tendendo ao
fortalecimento das posições burguesas. Os trabalhadores tendem a ser mais
comprometidos com os acordos decorrentes dos organismos tripartites do que os
empresários. Para estes, as tomadas de decisões, em termos de investimentos e
de itens que dizem respeito ao processo de acumulação e reprodução do capital,
passam basicamente por canais diversos dos comitês, sendo que seus
representantes não podem assegurar o mesmo grau de solidariedade de seus pares
como o observado entre os sindicatos operários. Para os sindicatos dos
trabalhadores industriais, a centralização cada vez maior torna-se uma
necessidade para enfrentar grupos econômicos cada vez mais abrangentes, o que
compromete itens como a autonomia das entidades de base (Wallerstein, 1989).
DEMOCRACIA E POLÍTICAS DE PROTEÇÃO SOCIAL
A questão democrática surge acompanhando a representação de interesses na
sociedade. Ela envolve a defesa coletiva e individual de interesses perante o
Estado e entre os próprios segmentos sociais. O Estado de Bem-Estar Social,
como desenvolvido em países da Europa Ocidental, foi constituído em cima de
alguns parâmetros importantes: democracia política, densidade eleitoral da
esquerda social-democrata, políticas econômicas inicialmente de caráter
anticíclico (keynesianas), formulação de políticas sociais redistributivas pelo
Estado e de proteção individual. Em tais contextos, a participação dos
sindicatos de trabalhadores, com destaque para o setor industrial e as grandes
centrais sindicais, desempenhou um papel importante, chegando, em determinados
momentos, a parcerias de caráter co-gestionário. Desta forma, o
neocorporativismo, tanto em sua expressão geral nos grandes acordos nacionais
como em suas dimensões setoriais ou locais, apresentou-se enquanto elemento
freqüentemente associado ao Estado de Bem-Estar.
Uma questão está nos possíveis limites redistributivos e protecionistas desta
convivência entre Estado e atores sociais coletivos. Afora a constatação do
caráter de classe burguês dos modelos neocorporativos, há também todo o debate
que envolve a própria crise do padrão "welfariano" desde a década de 70, a qual
originou, nos anos 80, o vendaval neoliberal, colocando as estratégias sociais-
democratas (dependentes fundamentalmente do Estado) em dúvida quanto à sua
capacidade de agregar justiça social com desenvolvimento econômico sob a égide
de políticas públicas.
Neste universo emerge a pergunta feita por Offe (1989b): Seria o Estado de Bem-
Estar Social uma decorrência natural e necessária da progressiva democracia
política? Surpreendentemente, Offe detecta mecanismos onde a escolha
individual, freqüentementemente anônima através do voto em eleições, atua no
sentido de influenciar o desmonte de estruturas de proteção social. Para este
autor, democracia e welfare não se alimentam mutuamente, e ele assinala o
enfraquecimento do "estatismo centrado no trabalho" (onde indivíduos atuariam
em função de solidariedades determinadas funcionalmente, esperando-se
comportamentos eleitorais de uma maioria de trabalhadores em favor do welfare
state) e da hipótese de auto-reprodução institucional do modelo (os bens
proporcionados pelo Estado de Bem-Estar gerariam um consenso que bloquearia
possíveis iniciativas restritivas dos benefícios da parte de partidos
conservadores).
Considera Offe que tais pressupostos não se sustentam à luz da experiência
européia dos anos 80, onde pode-se alinhar: derrotas eleitorais de socialistas
e sociais-democratas, contínuas, perante partidos conservadores portadores de
discursos anti-welfare state; interrupção dos gastos em políticas de bem-estar
social e declínio em participações orçamentárias; ausência de esforço militante
no interior da sociedade em favor de tais políticas; desserção eleitoral de
núcleos expressivos das classes trabalhadoras em favor de liberais-
conservadores; fortalecimento de movimentos sociais não vinculados a classes
sociais, como pacifistas, ambientalistas, etc.
Segundo Offe, ítens como a carga fiscal, a crítica ao "paternalismo" de
políticas de auxílio desemprego e a mudança do perfil ideológico de segmentos
formadores de opiniões, no sentido de avaliar como negativo o peso excessivo de
Estado, debilitaram o consenso em torno do Estado de Bem-Estar Social. A
relação dos indivíduos com a "coisa pública" passa a merecer especial atenção.
Na democracia, o custo da recusa é zero para o indivíduo (o não-eleitoral), o
que estimula a que cada um efetue cálculos no sentido de maximizar seus ganhos,
na ausência de constrangimentos coletivos. A mudança nas estruturas de
oportunidades em sociedade (com a intensificação da tecnologia, a diversidade
profissional, os ganhos econômicos de trabalhadores na esfera industrial, etc.)
seria a base para uma certa decomposição individualista dos modelos
neocorporativos baseados na ação coletiva solidária.
Os agentes individuais, assim, passam a medir seus ganhos específicos com cada
bem público produzido e, além disso, na ausência de incentivos ideológicos ou
de sanções, omitem-se nas contribuições à produção de determinados bens
sociais, mesmo estando de acordo com os mesmos.
Desenha se, deste modo, um quadro onde cada agente individual atua de acordo
com uma lógica de maximização dos ganhos, o que é condizente com valores do
liberalismo, onde a obtenção do máximo por cada um serve de alavanca para o
desenvolvimento da sociedade.
Claro está que os padrões de democracia partidária, arranjos neocorporativos e
ação individual decorrente da maximização de ganhos convivem nas sociedades
capitalistas desenvolvidas, sendo o impacto político diferenciado conforme
nação ou conjuntura.
Para as pesquisas em nosso país, consideramos a necessidade de absorver os
elementos descritos pelo fato do Brasil inserir-se na rede internacional de
trocas do capitalismo e não estar à margem de tendências observadas nos países
centrais. Isto estimula a recusa a conceitos de representação de interesses
exclusivamente baseados no patrimonialismo, no corporativismo autoritário ou na
luta direta entre as classes sociais. O estudo da organização dos interesses
socialmente colocados passa pela observação de elementos detectados em
sociedades com um padrão de acumulação capitalista mais intenso, para que se
apreenda as singularidades nacionais, regionais ou setoriais.
PONTOS PARA O ESTUDO DE POLÍTICAS SOCIAIS NO BRASIL
1. As análises sobre políticas sociais no Brasil, e, em nosso caso, sobre as
políticas de saúde, podem se beneficiar com a incorporação de elementos
presentes nos estudos sobre o neocorporativismo. As relações corporativas
tradicionais são bem reconhecidas em nosso país, assim como o caráter
autoritário predominante nas relações entre o Estado e a representação
funcional. O conceito de neocorporativismo, em que pese os enfoques
diferenciados, pressupõe elementos adicionais tais como troca, espaços para
negociação e organização funcional dos diferentes atores coletivos. Estes
aspectos não são absorvidos pela conceituação tradicional de corporativismo.
Tais elementos encontram-se presentes e em desenvolvimento na área da saúde em
nosso país, principalmente se tomamos como referência as relações
governamentais (nos vários níveis), as aspirações participativas e co-
gestionárias presentes nas pautas das associações de interesses dos
trabalhadores da área, e as definições de caráter democratizante presentes na
elaboração do Sistema Único de Saúde (gestão dos recursos e serviços
compartilhada entre Estado, trabalhadores de saúde e usuários).
2. Os arranjos neocorporativos não constituem elementos paradigmáticos em
Ciência Política, mas estruturas que vão se desenvolvendo na sociedade
capitalista no sentido de dar conta da redução do conflito global da sociedade
e da resolução localizada de problemas que se colocam para o Estado e para os
atores sociais coletivos.
3. Os textos de Offe ganharam destaque recente em nosso país, podendo sua
importância ser medida através das constantes referências à sua obra observadas
em trabalhos de autores nacionais na área de pesquisa social, inclusive na
saúde. Ao colocarmos em destaque os seus pontos de vista, vemo-nos obrigados a
discernir quais conceitos têm aplicação mais direta ao nosso campo de trabalho,
haja vista a enorme diferença entre as bases empíricas.
4. Inicialmente, é necessário esclarecer algumas das diferenças centrais entre
o caso brasileiro e o dos países de capitalismo desenvolvido (especialmente a
Europa). Os itens mais significativos, afora as próprias dimensões em termos de
produção econômica, poderiam, apenas como resumo, ser colocados da seguinte
maneira:
* Não houve, no Brasil, a construção de um Estado de Bem-Estar que pudesse
servir de base para ações de superação do mesmo e nem de análises
comparadas de políticas sociais dentro de um contexto assistencialista
geral. Nossos estudos devem, assim, ser colocados de um modo diferente ou
seja, são partes de conjunturas e processos de desenvolvimento de um
Estado não voltado para a proteção social global;
* Os agentes societários, no Brasil, não experimentaram um processo
histórico de organização de modo a provocar impactos duradouros na
organização do Estado, e mesmo o movimento sindical (o exemplo mais
sólido de práticas de representação de interesses) só mais recentemente
dá passos rumo a uma influência nas políticas de Estado que possam levar
a comparações com os arranjos neocorporativos de outros países (na
verdade, o sindicalismo brasileiro passou a maior parte de sua história
dentro de padrões corporativos do tipo dirigista, implantado desde a
década de 30, suplantando as formas de sindicalismo independente só mais
recentemente retomadas);
* No Brasil, pela sua própria formação social, os conflitos extra-
institucionais são muito mais freqüentes e violentos do que no quadro
europeu e, conforme a conjuntura, chegaram a ocupar o primeiro plano no
padrão de conflitos no país (conflitos de terra, movimentos de
resistência aos regimes militares, greves" selvagens", etc.);
* O Estado brasileiro não pode ser interpretado apenas com o instrumental
de Offe, pois o acesso burguês às políticas e à burocracia tem, além dos
elementos assinalados, componentes patrimonialistas e autoritários, que
colocam distante a pura e simples racionalidade de "viabilização da
forma-mercadoria";
Por fim, dentre outras diferenças, a formação partidária brasileira está
longe de apresentar um quadro consistente de representação territorial e
ideológica, mesmo com o advento mais recente do Partido dos
Trabalhadores, com a legalização dos partidos comunistas e com a
reimplantação de partidos (em geral conservadores) de bases regionais;
5. Por outro lado, uma vez tomados os cuidados assinalados, os estudos de Offe
contribuem de modo muito rico para o entendimento das políticas públicas no
Brasil e das suas relações com as formas societárias de representação de
interesses. Um ponto que chama a atenção, por exemplo, é o fato do discurso de
esquerda e das demandas de diversos setores organizados da sociedade estarem
centrados na chamada "participação popular" perante as políticas públicas, o
que torna atual a discussão acerca das formas de arranjos neocorporativos se
estabelecerem no Brasil pela via do discurso de esquerda (principalmente se
agregarmos exemplos sobre as práticas sindicais recentes em serviços públicos).
Com a crescente reorganização do movimento sindical em níveis nacionais;
Central Única dos Trabalhadores (CUT), Confederação Geral dos Trabalhadores
(CGTs), Força Sindical; e dos demais movimentos sociais (sem-terra,
comunitários, ambientalistas, etc.), a questão da introdução de arranjos
corporativos na mediação de conflitos em bases diferentes da tradição
corporativista autoritária entra na ordem do dia, freqüentando o próprio
noticiário jornalístico (pacto social, comissões paritárias, "sindicalismo de
resultados", etc.), estando ainda em aberto qual será o padrão dominante de
resolução de conflitos no país (ou mesmo se tal se dará por mecanismos extra-
institucionais).
6. Constata-se, com maior nitidez, os impactos de atitudes de representação
organizada de interesses sobre a organização de políticas sociais, como pode
ser verificado através de diversos exemplos as tentativas, no momento
discursivas, de articulação de pactos sociais no Brasil envolvendo governo,
centrais sindicais e associações empresariais (governo e "organizações-pico");
a organização de câmaras setoriais para enfrentar políticas de preços (até o
momento sem a participação dos sindicatos de trabalhadores); os acordos de
correntes sindicais com o Ministério do Trabalho (embora mais característicos
de arranjos corporativos tradicionais); e a atuação fortemente organizada dos
diferentes setores da sociedade junto à Assembléia Nacional Constituinte um
processo que pode ser cosiderado como um pacto social nacional de transição
política.
7. No setor saúde, o processo experimentado na Assembléia Nacional Constituinte
e na elaboração e aprovação dos princípios gerais do Sistema Único de Saúde é
um exemplo da importância desfrutada por propostas participativas e co-
gestionárias junto aos partidos de esquerda e sindicatos. Neste modelo, o
Estado surge como estendendo "um tapete" (que seriam as políticas públicas) que
funciona como espaço de conflitos e negociações entre os diferentes atores
sociais coletivos. Seria, deste modo, o Sistema Único de Saúde um exemplo de
arranjo neocorporativo, apesar da exclusão do setor privado de seu espaço
decisório, estabelecida pelos seus proponentes. Acordos de condução de
políticas a níveis locais, especialmente no âmbito dos municípios, onde
sobressaem-se as relações entre governos e trabalhadores de saúde, e mesmo de
associações comunitárias, compõem um padrão setorial de arranjos
neocorporativos que não podem ser também esquecidos na pesquisa social.
8. O enfraquecimento do padrão de Estado assistencialista na Europa e nos
Estados Unidos cria, no Brasil, um ambiente favorável ao ataque ideológico
neoconservador às políticas estatais, enfraquecendo aqui este modelo de
distribuição de "bens públicos" e interferindo na execução de diversas
políticas (habitacional, educacional, sanitária). O enfraquecimento, aqui
também notado, no modelo de correção das injustiças sociais via políticas de
Estado atinge a própria esquerda brasileira (Partido dos Trabalhadores (PT),
sociais-democratas, PCs, etc.), cujas políticas têm sido nitidamente vinculadas
a dois padrões: às políticas redistributivas do Estado e ao estímulo
participativo dos setores sociais não detentores de capitais conferindo aos
projetos da esquerda no Brasil padrões neocorporativos subordinados à expansão
da burocracia estatal.
9. Nota se no discurso neoconservador brasileiro uma tendência à transposição
global dos diagnósticos e das soluções observadas nos países centrais, sem a
elaboração adequada de um projeto adaptado às bases nacionais. Porém, o
conhecimento dos determinantes desta "onda conservadora" é crucial, pois torna-
se provável a colocação destes princípios nos projetos de atuação dos diversos
ministérios envolvidos com as principais políticas sociais (como já foi notado
no Ministério da Saúde e nas políticas científicas, por exemplo).
10. O destaque dado por Offe aos elementos individuais presentes na ação
coletiva não serve apenas para assinalar os limites de explicações fundadas
exclusivamente em modelos neocorporativos. Ele também assinala a importância
dos estudos levarem em conta os cálculos racionais na ação coletiva, não como
um enfoque racionalista (onde o desejo do indivíduo fosse cerceado pelas
estruturas), mas enfatizando a presença de estruturas de oportunidades nas
quais os atores coletivos e individuais atuam. As políticas sociais em saúde
conformam um terreno de atuação e conflitos a ser estudado sem se ocultar a
forte participação do Estado (o que enfraquece os modelos pluralistas de
análise), sem se submeter ao paradigma da luta de classes no capitalismo (o que
enfraquece uma leitura conservadora do marxismo), e sem subestimar os
mecanismos pelos quais os interesses individuais se coletivizam em nossa
sociedade.
12. Os itens aqui descritos conformam um projeto em desenvolvimento que se
constitui em uma tendência que pode ou não se fortalecer, conforme fatores
conjunturais. Um destes fatores seria, por exemplo, um acesso mais
significativo da esquerda social-democrata a níveis cada vez mais elevados de
decisões políticas do Estado. A isto se contrapõem outras tendências, como o
caráter burocrático e autoritário do Estado Brasileiro, restringindo o acesso a
seus níveis centrais de decisão política por canais societários.
13. A relevância do que foi aqui discutido para o estudo ao qual nos propomos,
como desdobramento desta dissertação, está em que o processo de trabalho e a
produção de serviços em saúde sofrem impactos das atitudes individuais e
organizadas dos profissionais do setor, especialmente dos médicos. A
consolidadação de um padrão negociado de redução de conflitos e de gestão de
políticas sociais evidencia mais ainda os mecanismos de defesa de interesses
das categorias profissionais da saúde, especialmente dos médicos. As atitudes
individuais e coletivas destes profissionais (e a forma como tenderão a operar
com os padrões cada vez mais negociados de atuação profissional) são cruciais
para o resultado destas políticas e para o próprio processo de trabalho em
saúde. Itens como jornada de trabalho efetiva dos médicos, tempo de consulta,
consumo de equipamentos e medicamentos, controle de qualidade dos serviços e
supervisão técnica, democratização dos prontuários médicos, captação individual
de clientela, entre outros, são elementos de forte impacto no produto final das
políticas sociais no setor (não apenas nos serviços públicos, mas, obviamente,
no setor privado) com os quais governos (federal ou locais), usuários e
profissionais do setor se defrontam e nos quais arranjos de resolução de
conflitos tendem cada vez mais a se impor.