Representação social de eventos somáticos ligados à esquistossomose
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INTRODUÇÃO
Os dados aqui apresentados integram o estudo acerca da "Representação Social da
Esquistossomose em Área Endêmica", proposto inicialmente com a finalidade de
subsidiar a elaboração e a contextualização de uma mensagem de vídeo educativo
sobre o tema. No entanto, a pesquisa realizada terminou por originar uma série
de reflexões abrangentes, ligadas à representação popular da etiologia,
sintomatologia, transmissão, tratamento e prevenção desta endemia, permitindo
conhecer algumas das repercussões dos conteúdos e práticas normalmente
empregados nas campanhas de controle da esquistossomose entre moradores de uma
área endêmica.
A análise do material bruto das entrevistas então realizadas nos surgiu uma
subdivisão das temáticas ligadas à esquistossomose segundo dois eixos
principais: 1. representações de eventos somáticos da esquistossomose e ações
humanas frente a eles; e 2. representações relacionadas ao meio ambiente,
eventos ecológicos e ações humanas frente a eles. O primeiro eixo temático,
objeto deste artigo, inclui os tópicos sintomatologia, etiologia e tratamento,
enquanto um segundo artigo ocupa-se das questões relacionadas com o ciclo de
transmissão e com a prevenção da endemia. Finalmente, um terceiro artigo
apresentará a hipótese resultante desta pesquisa, que subsidiou a construção da
mensagem do vídeo produzido e os resultados da avaliação deste material.
O desmembramento da temática ligada à representação da esquistossomose através
dos eixos corpo x ambiente, para fins didáticos de apresentação dos resultados,
foi a opção que menos comprometia a integridade dos discursos dos sujeitos,
permitindo, ao mesmo tempo, que se abrisse espaço para uma discussão mais
pormenorizada sobre a ampla gama de questões suscitadas em cada tópico, bem
como sobre suas implicações e inter-relações.
No presente artigo, para trabalharmos as representações de eventos somáticos
ligados à esquistossomose, tivemos como pressuposto uma das conclusões
fundamentais do trabalho de Pinto (1981). Segundo este autor, ainda que o
raciocínio concreto (que caracteriza o grupo de agricultores por nós
entrevistados) não se utilize a formalização característica do pensamento dos
adultos que receberam formação tradicional, ele não se torna menos real ou
menos válido para a ação. É necessário descobrir, sob a forma aparentemente
não-lógica do pensamento concreto, as proposições universais não-verbalizadas
que se encontram implícitas para podermos captar toda a riqueza do raciocínio e
sua validade prática e existencial.
Certamente, o presente estudo não esgota a riqueza da experiência concreta, dos
questionamentos e das representações partilhadas pelos moradores da área
endêmica investigada acerca da esquistossomose. Entretanto, ele aponta um
conjunto de percepções mistificadas e ideologizadas que parecem resultar de
padrões culturais tradicionais e de ações educativas com estas mesmas
características. Contudo, o maior interesse deste trabalho advém dos esforços
por parte da população no sentido de compreender as informações sobre
esquistossomose difundidas na região. Esta busca de ocorrência e de sentido no
universo em que vivemos, característica do pensamento humano, nem sempre é
levada em conta pelos profissionais de saúde, sobretudo quando trabalham com
grupos não-alfabetizados, cuja capacidade de pensar logicamente é muitas vezes
subestimada. Ao apresentarmos aqui os sinceros esforços dos moradores de uma
área endêmica no sentido de compreender o discurso do saber médico, esperamos
motivar os mesmos sinceros esforços por parte do saber médico no sentido de
compreender e respeitar os discursos construídos em outras sintaxes culturais.
O PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO
O trabalho foi desenvolvido numa área rural endêmica do município de Conceição
do Castelo, na região serrana do estado do Espírito Santo, Brasil. Colonizado
por imigrantes italianos e portugueses no início do século, o município
subsiste basicamente da produção de café e, em menor escala, da criação de
gado. A área compreende 25 localidades contíguas (cerca de 2.500 habitantes e
um total de 579 residências), tendo sido a mesma escolhida por apresentar
índices em torno de 30% de prevalência de esquistossomose, segundo dados da
Superintendência de Campanhas da Fundação Nacional de Saúde (Sucam/FNS, 1991).
Para a contextualização do estudo das representações sobre a doença,
levantamentos dados de perfil sócio-econômico e realizamos um inquérito de
morbidade referida (IMR) utilizando um instrumento de pesquisa composto por
questões abertas e de múltipla escolha. O objetivo da aplicação do IMR foi a
sondagem do nível de referências espontâneas à esquistossomose, sem qualquer
menção, por parte do pesquisador, ao seu interesse específico nesta doença, de
modo a dimensionar a importância atribuída ao problema na área em estudo.
Para aplicação do referido instrumento de pesquisa foi adotado o procedimento
de amostragem sistemática, considerando-se para o cálculo do tamanho da amostra
apenas a população adulta, estimada em 1.500 indivíduos. O limite de erro de
estimação foi fixado em 10%. A amostra obtida foi de 93 indivíduos, o que, no
conjunto das 579 residências, corresponde a um intervalo amostral de 6
residências. Assim, a cada 6 residências entrevistamos um adulto,
alternadamente homem/mulher, perfazendo, ao final, 92 entrevistados. Para nossa
orientação no campo utilizamos croquis das 25 localidades, fornecidos pela
Sucam/FNS.
Para o estudo da representação social da esquistossomose, onde privilegiamos a
profundidade e a literalidade dos depoimentos dos sujeitos, trabalhamos com
apenas dois terços da amostra de 93 entrevistados, ou seja, 62 indivíduos, o
que fez com que, para fins de análises quantitativas, o coeficiente de variação
dos resultados aqui obtidos passasse a ser de 12%. Para esta etapa,
aproveitando o mesmo sistema de amostragem já descrito, a cada três casas da
amostra anterior a primeira era sistematicamente excluída, sendo que nas outras
duas realizávamos, além do questionário já referido, uma segunda etapa de
entrevista, de acordo com um roteiro semi-estruturado que contemplava a questão
da esquistossomose através dos seguintes temas: Sintomatologia, Diagnóstico e
Tratamento, Etiologia, Transmissão e Prevenção.
Um roteiro de questões foi sendo aprimorado durante a fase de pré-testes no
campo (Quadro_1). Este roteiro foi utilizado a fim de que todos os temas fossem
contemplados pelos entrevistados, porém sem rigidez quanto à ordem de
abordagem. Das 62 entrevistas resultantes desta etapa, 23 foram registradas
apenas por escrito e 39 foram gravadas em fitas k-7, devido ao fato de, nestas
últimas, os entrevistados terem discorrido mais longamente sobre as
experiências vividas ou devido a desdobramentos das questões propostas. A
receptividade à participação na pesquisa foi de 100% e as 62 entrevistas, que
incluíam as duas etapas, tiveram, em média, uma hora e meia de duração.
QUADRO 1. Roteiro Semi-Estruturado para Análise da Apresentação Social da
Esquistossomose.
Métodos de Análise de Dados
Os dados de perfil sócio-econômico e de morbidade referida foram tabulados e
analisados, sendo incluída neste artigo apenas uma síntese destes resultados,
de modo a contextualizar as análises aqui realizadas.
Os depoimentos sobre a esquistossomose foram transcritos na íntegra em dois
fichários, a fim de facilitar a análise do material bruto, e trabalhamos
separadamente segundo a mesma metodologia, através dos eixos temáticos
referidos na introdução. Dentre as questões indicadas no roteiro de
entrevistas, serão analisadas aqui somente aquelas referentes à sintomatologia,
etiologia e tratamento, uma vez que estas compõem o primeiro eixo temático,
objeto deste artigo.
Nas análises realizadas, foram as leituras dos depoimentos que sugeriram a rede
de questões (temas e subtemas) segundo as quais os dados foram sendo agrupados
e interpretados. Assim, por exemplo, a leitura de um determinado depoimento
sugeria um subtema relevante, que era reencontrado na leitura de outros
depoimentos. Desta maneira, foi possível, ainda, procedermos à quantificação de
alguns dos aspectos levantados por esta pesquisa.
Nossos dados passaram pelo processo de análise descrito por Minayo (1992), que
inclui etapas de categorização sucessivas, descrição (totalidade dissociada em
partes), contextualização, bem como compreensão e explicação das inter-relações
e condicionamentos associados ao modo como os indivíduos conferem e atribuem
sentido à esquistossomose a partir de sua vivência na área endêmica.
RESULTADOS
Características da População
Dentre os entrevistados, 89,2% nasceram no próprio município de Conceição do
acastelo ou nos municípios limítrofes. As mudanças de residência são raras e
restritas aos municípios vizinhos, destacando-se que 44,1% jamais se mudaram do
município onde nasceram.
Segundo a ocupação, 95,6% dos homens entrevistados são lavrados; entre as
mulheres, 97,8% são donas de casa, sendo que 36% delas definem-se como sendo
também lavradoras. Quanto à escolaridade, 36,5% nunca estudaram, 22,6% cursaram
as primeiras séries primárias (destes, menos de um terço diz saber ler e
escrever), 30,4% concluíram o curso primário, 7,0% freqüentaram alguma série do
curso ginasial, e apenas 3,5% cursaram o secundário.
Ainda entre os entrevistados, 47,3% são proprietários da terra que cultivam,
47,3% são colonos e 5,4% são assalariados. O sistema de relações de trabalho é
o mesmo desde o início do século: os colonos entregam metade da sua produção
cafeeira aos proprietários das terras que cultivam. Além disso, 45,5% deles
fornecem a terça parte da sua produção de arroz, 36,4% da sua produção de milho
e 36,4% da sua produção de feijão, sendo que este procedimento vem se tornando
cada vez mais raro, já que os preços elevados dos insumos agrícolas e o baixo
preço pago por tais produtos tornam sua produção insuficiente, até mesmo para a
subsistência das famílias dos colonos. Dentre os proprietários de terra, 81,8%
dependem, assim como os colonos, exclusivamente da força familiar na lavoura.
As atividades sociais raras, destacando-se os encontros promovidos pela Igreja
Católica, referidos por 86% dos entrevistados. A freqüência a estes e outros
eventos sociais é limitada pelo excesso de trabalho e pelo cansaço decorrente
do mesmo. Outro fator limitante, neste aspecto, é a ausência de transportes
coletivos, aliada as longas distâncias a serem percorridas em estradas de
barro. Dentre os entrevistados, 59,2% não possuem veículos automotores e,
dentre estes, 23,6% também não possuem bicicletas ou animais de montaria, não
dispondo, portanto, de qualquer meio de transporte.
Dentre as atividades econômicas relacionadas com a transmissão da
esquistossomose destaca-se o plantio de arroz em terrenos alagados, referido
por 35,5% dos entrevistados sobre esquistossomose como sendo uma das formas de
se contrair a doença.
O Inquérito de Morbidade Referida e a Experiência com a Esquistossomose
Na Tabela_1, os problemas levantados no Inquérito de Morbidade Referida foram
listados por ordem de freqüência, sendo que o mais freqüente dentre eles foi
estudado à parte (Rozemberg, s/d).
TABELA 1. Freqüência dos Problemas de Saúde Vividos na Família nas 48 horas
anteriores à Entrevistas (n = 93)
<formula/>
As verminoses foram o quarto problema mais aludido (Tabela_1), sendo que a
maior parte não foi especificada e apenas três referências corresponderam
especificamente à esquistossomose, conhecida na região como "caramujo" ou
"doença do caramujo". Chama a atenção, ainda, o alto nível de referências a
dores de barriga, o quinto problema mais aludido, que figuram aqui como
categoria independente de agravo à saúde, apesar de terem sido o segundo
sintoma mais freqüentemente atribuído à doença do caramujo (ver tabela_2).
TABELA 2. Freqüência dos Sintomas atribuídos à Doença do Caramujo (n = 62)
<formula/>
Quanto ao tempo de duração dos problemas referidos é importante observar que,
apesar de a questão proposta dizer respeito aos problemas de saúde vividos nas
últimas 48 horas, foram descritos, em sua maioria, problemas com mais de 1 ano
de duração (64,5%). Chama a atenção a alta freqüência de problemas vivenciados
há mais de 10 anos (24,5%), revelando a importância atribuída aos problemas
crônicos antigos na representação social da doença.
Em relação à questão "Você já teve a doença do caramujo?", dentre as 62 pessoas
entrevistadas, 74,2% responderam afirmativamente. Outros 25,8% disseram nunca
ter tido a doença porém 20,9% dentre estes informaram que seus filhos ou
cônjuges já tiveram ou estão com a doença. Portanto, apenas 4,8% nunca
experimentaram a doença em si mesmos e/ou em familiares moradores, e apenas um
dos entrevistados (1,6%) nunca ouviu falar deste problema. Em resposta a esta
questão, foram freqüentes as referências espontâneas à Sucam, órgão
governamental, que entre outras ações, realiza o diagnóstico e o tratamento da
doença em áreas endêmicas. Presença já familiar aos moradores, o guarda da
Sucam foi, para muitos, o primeiro a introduzir informações sobre a existência
deste problema: "a primeira vez que ouvi falar nisso foi a Sucam procurando
caramujo". Dos entrevistados, 42% acrescentaram à sua resposta o último
resultado da Sucam sobre sua família: "a última vinda da Sucam acusou caramujo
em mim e nos dois garotos"; "a última deu em todos da família". Revelando-se um
importante mediador entre o saber médico e a experiência da população com o
problema do caramujo, o trabalho de monitoração regular da Sucam tornou
possível, ainda, que 47% dos entrevistados acrescentaram espontaneamente às
suas respostas o número de vezes que tiveram a doença: 21% a tiveram uma vez;
13%, duas vezes; 6,5%, três vezes; 3,2%, quatro vezes; e 3,2% cinco vezes. Em
alguns casos foi expressa a perplexidade frente à quantidade de vezes em que se
viveu o problema em um curto espaço de tempo: "só no ano passado eu tomei
remédio de caramujo quatro vezes no ano!".
Em relação à questão "Quanta gente tem caramujo na região?", 87,5% das
respostas incluíram expressões do tipo "muita gente", "a maioria das pessoas",
"em todas as casas sempre tem alguém com esse verme".Os demais 12,5% preferiram
não generalizar, limitando-se a tentar situar os locais e residências aonde
"deu caramujo" nos últimos exames.
Sintomatologia
Em resposta à questão "O que sente quando está com a doença do caramujo?", dos
62 entrevistados, 22,5% disseram que eles próprios ou seus familiares não
sentem absolutamente nada:
J.F. "Eu tenho bastantes problemas de saúde, não dá pra ficar sem remédio.
Agora, pelo caramujo eu nunca senti nada não."
L.G.L. "Não sentia nada. Só soube por causa do exame da Sucam, que acusou
caramujo. Aqui em casa uma porção de filhos deu, mas nenhum reclamava de nada
não."
Os 77,4% restantes associam uma série de sintomas e sinais ao resultado
positivo do exame de fezes. Tais sintomas encontram-se dispostos na Tabela_2,
por ordem de freqüência, e dizem respeito às experiências pessoais e familiares
dos entrevistados com a doença do caramujo, destacando-se a fraqueza como
sintoma mais freqüentemente referido. A fraqueza é aferida pelo modo como
interfere no desempenho e na produtividade frente às tarefas materiais
concretas que caracterizam a rotina diária desta população:
J.S. "A minha filha sentia muito desânimo. A gente mandava ela trabalhar, fazer
alguma coisa, ela não tinha vontade de fazer nada, trabalhar assim, lavar umas
vasilhas, tratar uma criação. Assim, não tinha animação. Então, quando deu
nela, eu logo conheci, né?"
A.B. "Na roça, quando a gente abaixa, pegou um peso e colocou nas costas, já
cai no chão, não güenta carregar aquilo não. Aí começa a tonteira, as vista
fica todo bambo. É sempre assim o problema do caramujo, não tem jeito. E todo
ano a gente tem ele. Vem com dor de cabeça, vista escura. Só vê aqueles
grilinhos voando na frente dos olhos, assim."
Em relação às questões "O que mais pode acontecer com quem está com a doença do
caramujo?" e "Que parte do corpo é atingida?", obteve-se um nível elevado de
referências a experiência com episódios graves entre parentes e conhecidos
(32,3%), dado não esperado numa área de média endemicidade. Somando-se a estes
os entrevistados que reproduziram narrativas de terceiros sobre as formas
graves da doença, encontramos que 58,1% da amostra estão a par das possíveis
decorrências graves da doença.
Ainda em relação aos sintomas, verificamos que eles têm forte influência nas
representações da ação do caramujo no interior do corpo:
A.B. "Em mim o caramujo deu nos nervos. Eu sentia assim uma piscadeira no olho,
demais, quase não parava! Piscava de fazer medo. Ficava assim diária, né. Então
o médico falou que podia ser caramujo. Fez exame e deu. Os caramujo me atacava
nos nervos."
Assim como a localização dos sintomas, o tipo de exame diagnóstico realizado
também influencia a representação do local do corpo afetado pelo caramujo.
Deste modo, uma vez detectada através de exame de sangue, a doença é entendida
como adstrita ao sangue. É o que se verifica também para as categorias
referidas na Tabela_1 como "anemia no sangue" e "reumatismo no sangue".
Dentre todas as decorrências graves atribuídas à doença, a que causa maior
impacto no imaginário local é a barriga-d'água. As demais decorrência, mesmo
quando graves, não são percebidas de forma tão flagrante quanto o crescimento
desproporcional da barriga, que todas as vezes que foi descrito teve a morte
como conseqüência:
G.L.G. "Sei que eles foram tirando a água da barriga dela. Quanto mais tirava,
mais aumentava. A última vez tiraram 16 litros d'água! Depois ela morreu num
estado muito triste."
A permanência do caramujo por muito tempo no organismo é referência constante
nas narrativas de casos graves. O desenvolvimento de tais quadros é em geral
atribuído ao não-reconhecimento do problema a tempo de curar ou ao fato de, uma
vez reconhecido a tempo, o problema não ser tratado, deixando-se que atinja um
estado "muito afetado", responsável pelas mortes e por danos irreversíveis à
saúde:
A.B. "Morreu uma mulher aqui de barriga d'água. A pessoa fica com aquela
barriga e o caramujo vai comendo o sangue, chupando o sangue todinho, até que o
sangue da gente se transforma em água. Depois, se o camarada deixar o caramujo
na barriga 10 anos, quando faz o exame o sangue já está em água. Aí não tem
jeito mais. Dá anemia passada e acabou nunca mais."
A inexistência de recursos diagnósticos e terapêuticos disponíveis é apontada
como fator fundamental nestes relatos, que têm em comum ainda o fato de
enfatizarem tal situação como mais freqüente no passado, numa época em que as
pessoas, sem a monitoração regular do problema, eram surpreendidas pela doença
já em estado avançado. Os dados revelam, entretanto, que o desconhecimento das
possíveis decorrências graves do caramujo não é uma situação totalmente
pertencente ao passado. O material de pesquisa nos permite configurar um
processo dinâmico de transição entre o desconhecimento e o acesso às
informações, ainda que truncadas, decorrentes da observação das práticas
médico-sanitárias, das derivações das mesmas no imaginário local e da ampla
gama de recomendações preventivas divulgadas na área:
S.A. "Ouvi dizer que através do caramujo pode transmitir câncer na pessoa. Eu
só fui saber que era perigoso há muito pouco tempo. De primeiro a gente vê
falar nisso e não se importa."
P.B. "Esses dias teve uma palestra aí e eles falaram que vira coisa grave, né?
Acaba a pessoa morrendo daquilo (...) Eu achava que nem era tão..., né?
Pensava: Ah! Coisinha à toa. Mas agora eu penso: o verme é coisa grave mesmo,
porque se não tratar dele, ele vira outra coisa!"
Etiologia
Através das questões "O que é o caramujo?" e "Você já viu o caramujo?",
procuramos trabalhar melhor o que efetivamente seria "caramujo" para a
população. Tais questões foram propositadamente formuladas sem que
especificamente se nos referíamos ao caramujo "doença" (e/ou agente etiológico)
ou ao caramujo "animal" (molusco transmissor). Isto porque o nosso interesse
foi justamente checar em que medida tais distinções existiam para o grupo e
observar como as relações entre estes elementos seriam espontaneamente
representadas. Apresentando uma síntese relativa à freqüência de distinção
entre agentes etiológico e molusco transmissor nas respostas de 62
entrevistados à questão "O que é Caramujo" temos as seguintes categorias: a)
17,7% não conhecem (mas 6,8% já ouviram falar que existe); b) 37,3% fizeram
distinção entre o agente etiológico e o molusco transmissor; c) 46,7% sugerem
ou afirmam que o molusco é o próprio agente etiológico (que penetra o organismo
humano).
Na categoria C que corresponde à maior parte dos entrevistados (47,5%), a idéia
apresentada é a de que o molusco é ele próprio o agente externo que, uma vez
alojado no organismo humanos, provocaria a doença. Para estes mesmos
entrevistados, no entanto, tal idéia, que, segundo eles, é veiculada pelo saber
médico, parece absurda ou ridícula. A perplexidade gerada pela ausência de
consciência lógica desta idéia faz com que, junto com ela, caiam no descrédito
outras idéias ligadas à doença também divulgadas pelo saber médico:
A.P. "Eu já vi o caramujo. Eles [Sucam] mostraram. Porque ali tem um poço de
peixe. E eles pescaram. Não tem aquele negócio deles pescar? Aí então eles
pegaram o caramujo, mas eu não sabia que era aquilo não. Você acha que é? Eu
não acreditei não! é um bicho grande assim ó! Ave Maria! Eles pescaram e vieram
aqui me mostrar se eu tinha visto, se eu conhecia. Aí eu falei: Não. E ele me
mostrou. E foi desse poço de peixe que tem aqui. E meus menino pesca diária aí!
Mas sei lá, eu... eu custo até a acreditar. Porque na água, se tiver um bicho
grande daquele você vai tomar? Diz que ele entra quando é miudinho. Foi o que o
home falou. Depois diz que vai ficando grande. E fica grandão assim! Mas eu não
acredito não. Aliás, eu quase não acredito que existe coisa de caramujo assim.
Eu fiquei pensando que era esse bicho, e aquilo me colocou emocionada! Eu não
acredito não! Porque, como é que pode vir na gente uns bichos daqueles?"
F.V. "Agora aqueles caracolzinho que dá assim na água, que eles fala que é
caramujo, eu tenho prá mim que aquilo não é não (...) Até na caixa d'água
costuma vir aqueles bichinho! Mas aquilo não é o que dá no fígado da pessoa.
Aquilo não pode ser não, eu desconfio que não, porque uns bicho daquele vai
entrar na gente?"(risos) (intervenção da esposa do entrevistado: "Uai, mas
entra! Entra porque quando a gente faz o exame dá!")
A possibilidade de o caramujo ser a doença faz com que a desconfiança se
estenda a outros moluscos, como os gastrópodes terrestres de concha cônica,
abundantes nos jardins e no solo dos cafezais:
J.L.B. "Eu falo que o caramujo é aquele negócio que tem uma lesma, né? O
caramujo que nós conhece é aquele. Aí eu penso: será que a gente tem isso na
barriga? (...) às vezes eu tô capinando, né, aí eu encontro aquilo e falo: será
que é esse bicho que tá me comendo por dentro? Porque aquele a gente dá o nome
de caramujo, né?"
Ainda na categoria C, apenas 10,5% dos entrevistados parecem não ter dúvidas,
deixando sua imaginação atuar sobre os estilhaços de informações recebidas do
saber médico. Aqui é plenamente assumida a representação de um molusco, tal
como é visto no meio exterior, "morando" dentro do organismo humano:
V.S. "O caramujo, diz que é um verme escondido dentro de uma capinha, escondida
ali, do jeito mesmo destes caramujos que a gente vê por aí, às vezes nas
pedras, agarrado no lodo por ali. Assim é ele. A gente toma ele na água e ele
vai e transforma naquilo, escondido! Precisa saber do remédio especial pra
matar ele ali dentro daquela capinha que ele mora. Mesmo assim, a vez toma
aquele remédio, mas depois come uma comida que agrada ele, e daí o remédio não
resolve."(E como ele sai do corpo?) "Não saia não. Acredito que ele dissolve
por ali. Ele morre. Porque a gente não vê ele! E nem também a gente encontra
nas fezes aquela capinha dele [concha do molusco]. Então quer dizer que não
entendo."
Passamos agora a apresentar os resultados relativos à categoria B, que perfaz
37,3% da amostra de entrevistados. Para este grupo, o caramujo, ou verme-
caramujo, é entendido como algo muito pequeno que habita o interior do caracol.
Verifica-se aqui uma distinção aparentemente bem-demarcada entre os termos
"caramujo" e "caracol". Ana língua portuguesa, ambos designam moluscos. Na
região onde trabalhamos, o termo "caramujo", intensamente divulgado pelas
campanhas de combate à esquistossomose, passou a ser utilizado para designar a
doença e seu possível agente etiológico o verme-caramujo, enquanto o termo
"caracol" designa o molusco que lhe serve de morada:
S.B.P. "O verminho mesmo eu não sei expricar não. Agora esses caracolzinho que
eles diz que guarda o caramujo dentro.. Ah! Esse eu mostro prá senhora em
qualquer lugar por aí."
A.B. "O rapaz da Sucam mostrou o caracol. Mas o caramujo no aparelho
(microscópio) eu nunca vi não. Só vi o caracol. O rapaz catou lá. Nós tavo
batendo o arroz e ele foi lá no meio de nós. Aí pegou na peneirinha deles lá e
falou: Ó aqui! Esses punhado aqui. Cada caracolzinho desse tem mil caramujinho
dentro (...)"
V.P. "O cara da Sucam mostrou a gente um tipo de um caracolzinho que fica no
fundo da água, que é onde o verme pode se germinar e viver, né? Agora ele
mesmo, o caramujo, eu nunca vi não..."
Nesta categoria, portanto, o caracol é descrito como sendo a "morada",
"casinha", "casca" ou "abrigo" onde o verme-caramujo "mora", "vive", "gera" ou
"se cria". Tal distinção entre o caracol e o verme poderia ser considerada um
indício de uma representação aproximada à científica. Ademais, através da
designação "verme" atribuída ao agente etiológico, os entrevistados poderiam
estar se referindo à representação científica do que seja um verme. Tal
interpretação é inclusive comum nas pesquisas que se destinam a avaliar o nível
de conhecimento sobre esquistossomose em populações. Neste caso, tal categoria
de respostas corresponderia ao "certo", ou seja, ao conhecimento correto sobre
a etiologia da doença. Felizmente, a análise qualitativa, apoiada na
profundidade dos depoimentos, nos permitiu resgatar uma representação de
"verme" bastante peculiar, demonstrando que o uso de um mesmo termo não
significa, absolutamente, que se esteja falando de uma mesma coisa. O verme-
caramujo aparece para o grupo como uma espécie de miniatura do caracol,
possuindo a mesma natureza deste. Assim, nos desdobramentos dos relatos
verifica-se que a distinção entre "caracol" e "caramujo" não é completa e que,
com freqüência, um se transforma no outro:
J.S. "Ele é uma espécie de caramujinho, você já deve ter visto uns caramujinhos
assim pequeno. O verme é gerado ali! Eles tem uma saída ali. Por ali é que sai
os vermezinho, de dentro daquele caramujo (...) os vermes são muito pequeninos.
E então no nosso corpo eles vão crescer e gerar. E diz que se eles fica
determinado tempo ali, eles se transforma naquele caracolzinho ali por dentro
do seu intestino. Dali eles vão é produzindo mais! Dali eles vão gerando outros
e mais outros."
Diagnóstico e Tratamento
Em resposta à questão "Como descobriu que estava com caramujo?", 100% dos
entrevistados já fizeram pelo menos uma vez o exame de fezes junto a Sucam.
Destes, 16,5% descobriram o problema em consultas médicas, enquanto 68% referem
a Sucam como sua exclusiva fonte de detecção do problema. Os demais 15,5%,
apesar de referirem a confirmação da Sucam, apoiam-se também no conhecimento
adquirido dos sintomas, ou seja, dispõem de uma forma endógena de detecção do
problema. As respostas deste grupo minoritário demonstram ainda uma maior
autonomia em relação ao trabalho dos guardas da Sucam e um papel menos passivo
no processo recorrente de exame e tratamento, pois, ao invés de "sendo
tratados", eles se percebem "utilizando" os serviços da Sucam: "Faço os exames
mesmo que a Sucam não passe"; "mesmo que a Sucam não venha eu vou atrás de
exame de caramujo de 6 em 6 meses".
Em relação à questão, "Como se trata o problema do caramujo?", todos os
entrevistados, satisfeitos ou não com os resultados do Mansil (Oxaminiquine),
atribuem a ele o status de única droga capaz de combater a doença, não tendo
sido referido nenhum outro procedimento ou remédio, caseiro ou industrializado,
para combater esta verminose, ao contrário de outras verminoses e problemas
apresentados na Tabela_1, para os quais existem inúmeras receitas. "Existe
remédio é o que mata eles, né... é o remédio especial prá caramujo. Remédio
mais forte que eles, descamba com eles". "Para outros vermes a gente pode usar
hostelã, chifre queimado (...) mas para o caramujo precisa ser o remédio
especial prá matar ele".
Em resposta à questão "E o tratamento resolve?", 71% dos entrevistados informam
que o tratamento "costuma resolver", "deve resolver", ou "melhora", sendo em
geral referido o fim ou o alívio dos sintomas como referencial de resolução do
problema. Contudo, este dado quantitativo é pouco elucidativo. Ao longo dos
depoimentos, uma série de outros aspectos foram levantados pelos entrevistados
em relação ao uso da droga prescrita.
Dos entrevistados, 7,5% referem a ineficácia do remédio frente ao quadro de
reinfecções recorrentes, enquanto para outros 15% o fato de terem que tomar
repetidas vezes o remédio gerou uma representação desta doença como sendo
incurável. Neste último caso, o remédio passa a ser visto como tendo um poder
limitado no controle da doença, sendo que, ao invés de atribuído à recorrência
da infecção, o fato é imputado a uma espécie de indestrutibilidade do verme-
caramujo dentro do organismo humano:
J.C.L. "Quem toma uma vez o remédio de caramujo, tem que tomar sempre (...)
Porque geralmente quem teve, acusa de novo! Então quer dizer que o remédio
sara, mas deixa sempre uma resmazinha do bicho. Alguma coisa sempre fica."
A.G. "Por aqui tem muita gente que toma o remédio hoje, e inhantes de completar
um mês já corre prá fazer exame de novo. Não tá certo! Teria de deixar passar
de três mês prá cima. Porque aí já deu o tempo do verme germinar. Ele já evêm
germinando de novo no organismo da gente.. O remédio não resolve tudo, porque
os verme já fica sendo parte do corpo da pessoa. Quando a gente se enfraquece,
eles produz mais (...)"
Do total de entrevistados, 8% referiram a necessidade de se evitar a ingestão
de álcool, psicotrópicos e alimentos gordurosos por ocasião do tratamento;
15,1% relatam terem sofrido intoxicação com o uso do Mansil; e 14,9% informaram
que seus familiares ou conhecidos sofreram intoxicação com o uso desta droga.
Quanto aos relatos acerca da intoxicação de terceiros, em geral estes eram
confrontados com a experiência favorável dos próprios informantes por ocasião
do uso do Mansil, imputando-se a responsabilidade pela intoxicação à vítima, ou
seja, bastaria o usuário seguir as recomendações médicas e "fazer do jeito que
o médico manda" que o Mansil não traria maiores problemas. Todavia, a situação
é vista de forma bem diferente por aqueles que narram as suas próprias
experiências de intoxicação:
M.A.B.P. "Eu sei que me disseram que peguei na água esse negócio de caramujo.
Eu não sentia nada. Mas depois que tomei o remédio comecei sentir tonteiras,
vontade de vomitar. Foi do remédio."
Nestes casos, a experiência negativa com o uso do medicamento, unida à
insignificância ou mesmo à ausência dos sintomas anteriores ao tratamento, pode
concorrer para a veemente rejeição da droga, que foi expressa por apenas um dos
entrevistados:
M.R. "(...) E o homem da Sucam me perguntou quando era que a menstruação ia
acabar (...) Aí acabou num dia, no outro ele veio e me deu o remédio. Ah, foi
só tomar que aquilo começou me tontear. Ah, mas eu vomitava! Não via ninguém!
(...) Aquilo rodava a casa toda. Até tarde eu fiquei assim, custou a passar
(...) Depois disso, toda vez que a minha menstruação vem me faz tudo aquilo de
novo. E foi esse remédio de caramujo que me fez ficar assim. Agora não tomo
nunca mais aquilo."[E se não tomar, o que acontece?] "Esse meu menino, ele
também teve problema de... Deu caramujo. Ele começava com dor nas pernas e uma
coisa e outra. Daí eles falaro que era do caramujo. Mas não tinha. Não é dizer
que ficou ruim não. Aquilo não era nem tanto por causa do caramujo nada."
O depoimento acima reflete uma postura singular. Para outros entrevistados que
referem problemas decorrentes do uso do Mansil, o que se verifica é um quadro
de conflito, onde se é obrigado a optar entre duas situações consideradas
igualmente desfavoráveis a doença ou o remédio:
A.B. "Já tive caramujo três vez. Tomei o remédio. Da primeira vez não valeu de
nada, aí peguei tomei de novo. Agora ontem eu tive de tomar a terceira vez...
Mas diz o Dr. que o homem que toma remédio de caramujo mais que três, quatro
vez, diz que nunca mais ele é homem na vida. Diz que acabou. Porque aí já parte
prás doença ruim. Mas tem que tomar, se ficar com ele (caramujo) é pior (...)
Fazer o quê? Acontecer o que acontecer, os problema da roça ninguém dá valor
mesmo! (...) Ontem eu fui tratado com seis comprimido de caramujo. Veio um
sobrando, veio sete. Aí eu tirei um e abri. Despejei assim na mão, uma coisa
amarelinha, igual gema de ovo. Aquilo chegou a cortar a sola da minha mão!
Joguei no chão logo, e falei: Deus me livre! Você tá vendo o que vai no nosso
estômago? É disso daí que parte a úlcera, a gastrite, parte tudo daí. Porque é
que os lavrador tá cheio de úlcera aí, caído no hospitala? Através do caramujo!
Porque vai tomando aqueles venenos, daí os problema vai amontoando. Por causa
disso que a maioria morre. Porque hoje a doença tá pegando jovem e matando
tudo."
DISCUSSÃO
Considerações sobre Representação e Educação em Saúde
O material de estudo evidenciou serem esporádicos os programas de educação em
saúde na região, cujos discursos são assistidos passivamente pela população. Os
enormes esforços de abstração e generalização exigidos para a compreensão
destes discursos contribuem para o baixo aproveitamento de tais experiências
educativas, que terminam por representar, para o grupo, uma espécie de "castigo
a mais" após um dia extenuante de trabalho.
Mello et al. (1988), estudando a percepção popular das verminoses, concluíram
que a população investigada demonstrava ser capaz de "repetir" as informações
fornecidas pelo saber médico, sem, no entanto, integrá-las às suas práticas.
Também nossos dados apontam para um nível elevado de "informações" sobre a
esquistossomose. Não acreditamos, porém, na possibilidade de se tentar qualquer
correlação direta entre o nível de "informações" sobre um problema e o
comportamento frente a ele. No presente estudo, transpondo o nível da mera
checagem das "repetições" de conhecimentos alheios, procuramos acompanhar o
pensamento dos entrevistados de modo a trabalhar com a questão dos significados
e da interpretação do grupo acerca de tais informações do saber médico,
exaustivamente divulgadas na área. Com isso, verificamos que os conhecimentos
ditos "corretos" não contêm necessariamente os elementos mínimos que lhes
garantam qualquer consistência lógica, do ponto de vista do grupo em questão.
Esperar que o "nível de informações" forneça indícios sobre o comportamento
adotado frente a um problema seria, em primeiro lugar, desconhecer este campo
de mediação fundamental que é o campo das representações, onde efetivamente o
pensamento humano interpreta e atribui sentido às novas informações e acomoda
logicamente seus conteúdos. Além disso, mesmo as representações sociais,
segundo Herzlich (1991), podem no máximo nos indicar alguns dos códigos a
partir dos quais elaboram-se as significações ligadas às condutas coletivas,
que, contudo, permanecem sempre múltiplas e complexas.
Pinto (1981) aponta para o fato de, no adulto, o conhecimento ser retido quando
este possui para ele significado prático ou emocional, tendendo os adultos, em
geral, a valorizar mais a compreensão dos fenômenos do que sua pura e simples
retenção na memória. Segundo este autor, "para o adulto não é tão importante
conhecer coisas novas isoladamente quanto sistematizar seu conhecimento,
integrado os elementos novos em conjuntos mais harmônicos e totalizantes". O
processo de aprendizagem do adulto seria definido, portanto, pela compreensão e
explicação de sua própria vivência concreta, onde os novos conhecimentos são
integrados na medida em que ampliem a compreensão, e não por seu valor
intrínseco e abstrato.
Tal característica, comum aos adultos, potencializa-se quando em grupos imersos
no mundo das coisas concretas e do trabalho produtivo, desenvolvendo uma forma
de pensar muito concreta, com poucas manifestações abstratas. O material de
estudo demonstrou que, entre os moradores da área investigada, as informações
sobre a doença são depreendidas mais através da observação do comportamento dos
guardas sanitários da Sucam do que através de palestras ou aulas, as quais em
geral partem de proposições gerais e universais e utilizam-se de argumentações
lógicas abstratas. São a observação da rotina de trabalho desenvolvida pelos
guardas da Sucam e a experiência pessoal concreta com os diagnósticos por eles
fornecidos para as "suas águas" e "suas fezes" que aparecem nos depoimentos,
constituindo-se em "pistas epidemiológicas" que influem, em larga escala, na
forma da população pensar e adquirir conhecimentos sobre a doença.
A busca dos guardas sanitários por moluscos nas águas resulta em fortes
impressões junto à população, em face da serenidade e do empenho com que estes
atores sociais embrenham-se em charcos, canais, alagados e margens de rios e
lagoas à procura de pequenos caracóis, que são "pescados" em conchas metálicas.
Este ritual exótico por si só já fornecia indícios suficientes para a
associação entre a procura do caramujo nas águas e a doença no organismo
humano. Entretanto, provavelmente no intuito de estreitar ta; associação entre
a doença e o molusco transmitir, os planejadores, técnicos de campanhas de
controle e/ou médicos simplificaram de tal forma as informações que desejavam
veicular, a ponto de divulgar a doença pelo nome de "caramujo", designação
comum no estado do Espírito Santo, o que aponta fortemente para a construção de
uma representação do molusco como sendo ele mesmo a "doença" que invade o
organismo humano.
Representações de Fatos Somáticos ligados à Doença e seu Tratamento
Os depoimentos compilados na Tabela_3 têm por base a "aceitação" da idéia
inicial de que o caramujo (esquistossomose) está dentro do corpo. Eles
ilustram, a riqueza de imagens que se constroem e se consolidam, dando sentido
aos conceitos e às informações dissociadas que a criatividade humana se
encarrega de ordenar. Tais representações não são reflexos nem cópias de
conceitos adquiridos passivamente; pelo contrário, elas trazem nitidamente a
marca da imaginação individual e coletiva. Acompanhamos, em alguma extensão, o
que se configura como uma dinâmica de apropriação do saber médico, através da
seleção, teste de consistência e elaboração destes conteúdos, que passam a ser
integrados a outros preexistentes.
TABELA 3. Freqüência das Possíveis Decorrências Graves da Doença do Caramujo
apresentadas segundo as Partes do Corpo que podem ser Atingidas
<formula/>
A idéia inicial da existência do caramujo no interior do corpo deriva do saber
médico e chega à população completamente desenraizada, desvincula de outros
conceitos científicos capazes de lhe conferir sentido no universo do saber
médico onde foi gerada. Em algum momento (para muitos um momento presente) tal
idéia já foi estranha e surpreendente. Uma informação suficientemente distante
do contexto imediato e da compreensão das pessoas, algo pertencente ao "mundo
do discurso". Ao mesmo tempo, este dado novo era muito próximo, pois dizia
respeito a eventos que ocorreriam dentro do corpo das pessoas, interpondo-se,
portanto, entre as pessoas e o seu próprio sentir, seu sofrer. Segundo
Moscovici (1961), é justamente neste espaço entre o "conceito" e a "percepção"
que o ser humano constrói suas representações. A representação faz a passagem
entre o conhecimento direto e o indireto, entre o testemunho e a observação. os
estilhaços de conhecimento, expressões ouvidas em algum lugar, retornam ao
espírito, misturando-se às impressões vividas, até que as expressões comuns
apossam-se deles. Ainda segundo Moscovici, "os conceitos sem percepções, as
percepções sem conceitos, as palavras sem conteúdo e os conteúdos sem palavras
buscam-se, deslocam-se e trocam-se (...) Para isso empregam-se as
representações sociais, e é daí que elas resultam".
Parte-se de uma realidade presumida para depois sentir-se a necessidade de
reconstruí-la, torná-la familiar. Assim, uma vez considerada a existência do
caramujo no organismo, o mesmo é posto em ação pela atividade mental criativa.
Ele é representado "andando" durante as cólicas abdominais, "comendo o sangue e
os órgãos", "chupando os orgãos até que estourem", "criando família" ou
"germinando". Tais atividades atribuídas ao caramujo migram do universo
conhecido (atividades animais) para tornar o desconhecido familiar, o bizarro
comum, integrando-o ao quadro coerente do real e usando uma linguagem que
permita falar do "caramujo".
Contrariamente à fama de vilão que lhe é imputada, o caramujo não é um animal
agressivo ou rápido, nem possui ganchos, pinças ou garras que favoreçam sua
associação com ferimentos, mordidas ou com qualquer capacidade ofensiva
evidente. Descrito como uma lesma inofensiva e, ao mesmo tempo, forçosamente
associado pelo discurso médico a uma doença fatal, o caramujo instiga a
curiosidade popular, alimentando uma contradição que se atenua através da sua
mitificação. De acordo com o mito instituído, uma vez instalado no corpo
humano, o caramujo teria uma ação lenta, sorrateira, porém progressiva. Esta
idéia encontra ressonância na observação do molusco no meio ambiente. Ademais,
sua concha, "onde ele se esconde", reforça esta sua capacidade mítica de
dissimulação e de disfarce: "Ele é traiçoeiro... se esconde e gera. Pior que
nós vivem,os aqui no meio deles"; "O caramujo não parece, mas ele é um bicho
atentado."
Vimos que este mito acerca de um molusco, tal como é visto no ambiente, habitar
o organismo humanos é fonte de descrédito e perplexidade. À medida que mais se
aprofunda a discussão acerca da passagem do caramujo para o interior do corpo
humano, com maior freqüência e vigor são postas em cheque as informações do
saber médico divulgadas sobre o assunto. O mistério relacionado com a entrada
do molusco no organismo levanta uma série de dúvidas quanto à existência
efetiva da doença. A questão nos é então devolvida sob nova formulação: "por
que motivo um molusco entenderia de entrar no organismo humano?
A hipótese da ingestão acidental do caramujo é a alternativa mais plausível
encontrada pelo grupo, independente dos esforços da educação em saúde por
substituí-la pela hipótese da penetração pela pele, confirmada pela ciência
médica. A população sabe que esta segunda hipótese é a que o profissional de
saúde quer ouvir, mas, por uma questão de coerência, entende que se um caramujo
consegue passar através da pele, seguramente ele passa também pela boca. A
idéia bizarra da ingestão acidental de um molusco é atentada quando se aventa a
possibilidade da existência de diminutas miniaturas do caracol, conhecidas como
"vermes-caramujo", invisíveis e espalhados por toda a parte solo, água,
alimento, poeira, podendo penetrar sorrateiramente no corpo humano sem serem
percebidos e, uma vez dentro do corpo, transformando-se "naquilo".
A prolificidade e a abundância do molusco no meio ambiente confirmam, e a prova
potencial infectante a ele atribuído, e a prova material de que o caramujo
efetivamente entrou no corpo é fornecida pelo exame de fezes. Tal prova, porém,
é vedada ao manuseio do homem comum, que não consegue encontrar em suas
próprias fezes nem mesmo a "capinha" (concha) do caramujo. Apenas o
profissional de saúde, detentor do conhecimento e do poder para tal, tem acesso
às provas materiais do caramujo, em relação às quais o homem comum deverá
mostrar aquiescência.
Uma vez mitificada a doença, somente uma solução também mitificada terá forças
à altura para combatê-la. Esta solução é o "remédio de caramujo", "uma droga
especial" reconhecida por unanimidade como a única capaz de "acabar com o
caramujo". Desta maneira, é o medicamento especial que efetivamente
materializa, para o homem comum, o poder mítico da medicina e da ciência, o
único capaz de compreender, diagnosticar e neutralizar a ação do verme-
caramujo. Mesmo que a droga mostre-se incapaz de "acabar com tudo" (vermes no
organismo), ela. como vimos, promoveria uma espécie de desbaste periódicos,
fundamental para se evitar a metamorfose completa do caramujo em caracol no
interior do corpo humano.
Em outros contextos, o uso de medicamentos pode ser representado como uma ação
iminentemente curativa. Contudo, aqui ele adquire o status de ação preventiva
por excelência, já que previne a transformação de uma doença simples e
recorrente numa doença grave, envolta em representações de sofrimento e de
morte bastante divulgadas na região.
Um exemplo extremo disto é encontrado nos depoimentos daqueles que, tendo
experienciado as formas graves da doença no passado, pelo fato de continuarem a
residir na área endêmica, já contraíram várias outras vezes o caramujo,
ilustrado bem a forte valoração positiva do remédio como elemento de prevenção
e de separação entre estas duas circunstâncias:
E.D. (extraiu o baço há 20 anos devido à esquistossomose) "Todo ano eles fazem
o exame duas, três vezes por ano. Inclusivamente por uns tempos não acusava o
verme de jeito nenhum. Aí, tem poucos anos pra cá voltou a acusar o verme outra
vez. Mas agora eu tomo remédio, né? Aí todo ano fica essa rotina, né? Faz o
exame e se der o verme toma logo, que é prá não deixar formar aquela doença."
Assim, este grupo de moradores de uma área endêmica contrai periodicamente a
doença ou convive permanentemente com este risco. Em tal situação, o problema
deixa de ser o de "ter/não ter caramujo", posto que este é um evento comum na
vida de todos. Este problema pode ter importância em outras áreas onde ainda
possa ser visto como "um perigo a ser evitado", mas não pode ter o mesmo peso
aqui. Assim, na área endêmica em estudo, a idéia de risco foi gradualmente
sendo deslocada para uma outra condição: a de : estar/não estar tratado". A
idéia de perigo passa a gravitar apenas em torno daqueles que "não fazem exames
de fezes periódicos", "não tomam o remédio", "deixam o caramujo ir ficando".
Estes, na representação desta população, configuram o grupo que se arrisca a
ficar "realmente doente". Modificando o limiar do "perigo", do "risco", o grupo
distancia um pouco mais o "pior" para melhor conviver com suas circunstâncias
desfavoráveis.
Uma única entrevistada informou rejeitar a medicação, é possível que a
expressão desta postura contra-hegemônica por parte de outros entrevistados
tenha sido inibida pela situação de entrevista sob a qual trabalhamos. De
maneira geral, no entanto, até a fração da população que se descreveu como
assintomática expressou sua adesão ao uso do medicamento.
Lefèvre (1991) aponta os assintomáticos usuários de medicamentos como
"pacientes exemplares", pois "combatem um inimigo que não se manifesta
organicamente, ou seja, sem nenhum testemunho empírico que justifique este
combate".Nestes casos, o indivíduo se aceita como doente "para o outro", isto
é, para o médico, para a ciência, o que implica uma crença absoluta na verdade
médica, na palavra da autoridade. Tal crença vigorosa foi de fato evidenciada
em outro estudo realizado com a mesma população (Rozemberg, s/d).
No caso específico do "remédio de caramujo", vimos que 30% dos entrevistados
descreveram experiências negativas, decorrentes não da doença, mas da
utilização da droga, que foi inclusive apontada como responsável por doenças
graves que levam os usuários à invalidez e à morte. Segundo Lefèvre (1991), tal
situação indica uma grave fratura interna no "mito do medicamento", uma vez que
a crença na ciência e em suas promessas defronta-se com a realidade
amedrontadora dos fatos: o remédio demonstra sua insuficiência e seus efeitos
colaterais.
O fato de a escolha entre duas situações consideradas igualmente desfavoráveis
a doença ou o remédio (e outras doenças a ele atribuídas) pender para o lado do
remédio indica, no caso específico da população investigada, não apenas a
manutenção da crença na verdade médica curadora, mas muito particularmente no
"mito do caramujo" dela derivado. Ao continuar engolindo o remédio, o indivíduo
está de alguma maneira "engolindo" esta história, improvável, misteriosa e
cheia de incoerências.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso estudo revelou um elevado nível de experiência pessoal e familiar com a
esquistossomose. As ações oficiais ligadas ao diagnóstico, tratamento e
monitoração da endemia são valorizadas, tendo sido fortemente introjetadas pela
população. Apesar disso, no âmbito do Inquérito de Morbidade Referida, a
esquistossomose (doença do caramujo) foi pouco mencionada, o que pode estar
relacionado: 1. ao fato de a doença estar subsumida na categoria "verminoses",
não estando a mesma especificada; 2. ao fato de a doença ser referida através
de seus sintomas mais freqüentes; 3. ao fato de 22,5% dos entrevistados terem
se declarado assintomáticos; e 4. à maneira particular como a esquistossomose é
representada enquanto problema de saúde.
Enquanto trabalhadores materiais diretos, os agricultores dependem, para
sobreviver, de sua fina percepção acerca de eventos naturais que aprenderam a
identificar e dominar com destreza. Não lhes é fácil simplesmente "aceitar" que
aquilo que sentem ou sofrem no interior de seu corpo possa ter relação com o
caramujo, uma espécie de animal que seria ao mesmo tempo uma doença. Assim, é
possível que, ao lado de quadros efetivamente assintomáticos, existam outros
onde possíveis sintomas vivenciados não sejam atribuídos ao caramujo, o que
demonstra que parte da população permanece refratária à "crença" em tal doença.
Além disso, vimos que o conjunto das práticas e representações em torno deste
problema coloca-o numa posição inatingível pelas práticas e receitas caseiras
capazes de curar as demais verminoses. Assim apesar de ser um problema falado,
vivido, medicado e conhecido no dia a dia dessas comunidades, a doença do
caramujo representa um problema em grande parte "alheio", já que ela é ao mesmo
tempo "trazida" e "solucionada" pela Sucam, não chegando a população a tomar
posse da mesma e a problematizá-la como objetivo de suas próprias ações de
saúde. Uma vez detectada, a doença do caramujo já vem com a sua solução pronta,
garantida, gratuita e de origem exógena: "A gente não liga por causa do
caramujo, porque vem a Sucam e dá o remédio. Aí a gente volta e fala: Ah! Vamos
trabalhar lá mesmo (várzea de arroz contaminada). A Sucam passa de novo e dá o
remédio."
É evidente que não se trata aqui de uma "opção" por se expor à contaminação
numa área insalubre. Inúmeras dificuldades concretas determinam a contingência
de se depender de tais condições para o trabalho de subsistência. O que se
discute aqui é a relação de dependência que se estabelece entre a população e
as "soluções" (no caso, os recursos terapêuticos) disponíveis para a doença do
caramujo. Assim, ao exigir, questionar e criticar o trabalho realizado pela
Sucam, assumindo, em alguma medida, a monitoração do problema nos níveis
familiar e comunitário, a população demonstra seu esforço em se apropriar desta
questão.
Os temas trabalhados neste artigo correspondem à primeira hora de duração das
entrevistas dos sujeitos desta pesquisa. Apesar de serem todas questões
abertas, podendo dar margem a referências sobre a contaminação do meio pelas
fezes e sobre as ações de saneamento ambiental, tema central para qualquer
discussão sobre a esquistossomose, tais aspectos foram mencionados por apenas
7,5% dos entrevistados. Um próximo artigo tratará destas referências, bem como
das demais questões da entrevista que versam principalmente sobre o ciclo de
transmissão e sobre a prevenção da endemia. Propositalmente, no presente
trabalho sequer mencionados estes aspectos tão fundamentais para a prevenção e
controle da esquistossomose, já que sua ausência ilustra muito bem os efeitos
atuais do "mito do caramujo" sobre as representações da esquistossomose. A
mitificação da doença, que em parte decorre da polarização excessiva da atenção
das autoridades na prevenção do contato humano com as águas (onde efetivamente
o homem se infecta) e na obtenção de um alto nível de adesão ao uso do
medicamento, atua como um fetiche sobre a população, concentrando-a no medo do
molusco e na adoção do quimioterápico.
Com isso, porém, desvia-se sistematicamente a atenção popular das questões que
efetivamente recolocariam a discussão no âmbito das ações humanas concretas,
ligadas ao saneamento básico e às condições gerais de vida que concorrem para a
manutenção da transmissão da esquistossomose.
Assim, apesar de conduzir a adesão popular aos procedimentos preventivos
imediatos, a representação da esquistossomose aqui esboçada reflete a ausência
de uma discussão mais madura e conseqüente entre técnicos e população, bem como
a insistência em se manter a população numa posição de inferioridade frente ao
saber médico, postura que ainda hoje caracteriza as ações de saúde pública em
nossas sociedades.
AGRADECIMENTOS
À Drª Maria Cecília de Souza Minayo por sua orientação e leitura crítica do
original. Aos Drs. Carlos Coimbra Jr. e Odécio Sanches pelas consultorias
fundamentais à pesquisa de campo. Ao Dr. Frederico S. Barbosa e sua equipe do
Programa de Controle da Esquistossomose da Ensp/Fiocruz, à Fundação Nacional de
Saúde e à Prefeitura Municipal de Conceição do Castelo pelo apoio ao
desenvolvimento do trabalho de campo.