Problemas e possibilidades de participação comunitária no controle das grandes
endemias no Brasil
Introdução
Do ponto de vista epidemiológico, as chamadas grandes endemias têm assolado
populações ao longo da história, com grandes perdas sociais, localizadas
principalmente no nível dos extratos menos favorecidos. As doenças tropicais,
verdadeiros desafios à conquista e colonização dos trópicos, não apenas
confirmaram a regra e se dispersaram sobre milhões de pessoas, como também têm
sido capazes de resistir à modernidade: no século atual, mercê de grandes
avanços científicos, essas doenças concentraram-se via de regra nos países
subdesenvolvidos, como uma indicação suplementar de que a evolução da ciência e
da tecnologia também pode participar do processo de exclusão de pessoas e
populações (Nakajima, 1989). Quanto ao significado social, mais da metade da
população do planeta encontrava-se sob a ameaça das doenças tropicais em 1993 e
quinhentos milhões de indivíduos estavam infectados por pelo menos uma delas
(Remme et al., 1993). Na base de seu conceito, ultrapassada a fase de teorias
simplistas e de causalidade meramente biológica, cada vez mais se impôs a
necessidade de que fatores sociais e políticos fossem contemplados como
elementos fundamentais, tanto em sua compreensão, como em seu controle
(Briceño-León & Dias, 1993). Desde o final dos anos 50, após reiterados
insucessos dos sistemas de saúde no Terceiro Mundo, as discussões caminharam
para a busca de profundas reformulações que alcançaram o ápice em Alma-Ata.
Particularmente nos países mais pobres, onde têm persistido as doenças
endêmicas e as epidemias, uma série de tentativas mostrou-se insuficiente na
montagem de sistemas eficientes de saúde. A visão e as estratégias seguiam
burocráticas, biologicistas, hospitalo e medicocêntricas. Há quase três
lustros, Pitt (1983:1) proclamava à Organização Mundial de Saúde (OMS):
"Tropical diseases are indeed diseases of the poverty, since they are
prevalent in socially and economically depressed areas. Unless these social and
economic roots are not also corrected, success in disease control does not
appear to be attainable".À época, emergindo dos postulados que Alma-Ata
lançara aos povos por uma vontade real na busca de saúde para todos, preparava-
se no Brasil a VIII Conferência Nacional de Saúde. Ali seriam reiterados os
princípios da cidadania e textualmente se afirmava que "em primeiro lugar,
fique claro que as mudanças necessárias no sistema de saúde transcendem os
limites de uma reforma administrativa ou financeira" (MS, 1986:2).
A história fazia os caminhos. No contexto internacional, o Brasil mostrara-se
competente no controle da malária não amazônica e o programa de doença de
Chagas lograva avançar, depois de priorizado em 1982, cobrindo toda a imensa
área endêmica e reduzindo drasticamente a transmissão vetorial da parasitose.
Ainda assim, preocupavam os aspectos de sua consolidação (fase de vigilância)
praticamente impossível de levar-se a termo com um programa vertical.
Não obstante, as leishmanioses se urbanizavam e se expandiam, enquanto que,
para o desafio da esquistossomose, o governo continuava gastando rios de
dinheiro em moluscicidas caríssimos, devastadores do ambiente e ineficazes
contra os caramujos. Muito mais tarde, cólera e dengue viriam a incorporar-se
neste contexto, com características muito próprias e enorme velocidade de
dispersão, trazendo à baila o julgamento direto de dois subdiretórios que as
autoridades ministeriais, em geral, relegavam a plano inferior: saneamento
básico e atenção primária à saúde. Uma terceira e terrível emergência, a Aids,
foi mais fundo, a demandar concretamente ações educativas e mudanças
comportamentais que fossem eficientes e duradouras, um outro espaço considerado
ainda mais obscuro e 'sem importância' no contexto dos inseticidas e das
operações de guerra vigentes. Na ótica de então, partia-se do princípio que as
grandes endemias eram totalmente vulneráveis às clássicas ações de controle de
vetores, em paralelo com a cultura vigente de que a estratégia e o modelo
somente teriam eficiência numa perspectiva vertical e centralizada, que a
população era necessariamente ignorante e não cooperativa, e que, com
raríssimas exceções, nenhum sistema local teria competência para ser
incorporado às 'campanhas' (Dias & Dias, 1985). Também era usual, nesse
contexto, pensarem-se as endemias exclusivamente em termos de sua 'fase de
ataque', justamente aquela mais militarizada e mais vertical, portanto a mais
sintonizada com a lógica do poder vigente. Em paralelo, o regime da época
proibia formalmente toda tentativa de organização acadêmica ou popular, o que
literalmente obstruía no nascedouro qualquer hipótese de participação
comunitária (PC). Esse foi, sumariamente, um quadro recente e os impasses que a
comunidade científica e a Saúde Pública viveram em praticamente toda a América
Latina tiveram repercussões tangíveis no presente, que Breilh & Granda
(1989:1.122) descreviam: " Los Estados Latino-americanos, capitalistas y
dependientes, han sido definidos como 'eslabones débiles' del capitalismo
mundial, en vista de la fragil estructura económico-social sobre la que se
asientan genera una acumulación de contradiciones y de dificultades para
resolvelas, dando lugar a una superestructura sobrecargada de tareas". As
bases da reforma sanitária no Brasil começaram a cristalizar-se em 85-86, com a
queda da ditadura e a realização da VIII Conferência. Par e passo com a
transição política, caminhavam os processos de transição demográfica e
epidemiológica, bem como a revolução tecnológica, já apontando para um futuro
próximo de globalização da sociedade e agravamento das distâncias sociais
(Amâncio Filho, 1994; Rivas, 1985). Ao fim dos anos 80, no plano da política
mundial e sob a denominação enganosa de ajuste, iniciou-se uma avassaladora
transformação das estruturas econômicas e um desmantelamento do Estado. Na
busca de um equilíbrio fiscal (entendido como instrumento básico ao controle da
inflação), iniciou-se um processo de aumento de tributos, reduzindo-se os
subsídios à produção nacional, limitando-se os programas sociais e privatizou-
se o capital social: em nome da abertura econômica e do aumento da
produtividade, passou-se ao mercado o papel regulador que sempre coubera ao
Estado (Rodriguez et al., 1992).
A evolução mais recente dos conceitos e perspectivas embutidos na reforma
sanitária aponta cada vez mais fortemente para a necessidade da ampla
participação social no projeto maior da saúde, em termos da necessária
descentralização, da construção democrática das alternativas, do encontro da
eficiência e do controle social. A questão da participação comunitária tem sido
considerada como uma chave e um estrangulamento em face das perspectivas da
saúde, em países como o Brasil, onde "as ações de saúde sempre se
distribuíram de maneira estanque, desordenada e descontínua dos pontos de vista
operativo, político ou institucional (...) com o poder de decisão das áreas da
saúde geralmente desvinculado de instituições tecnicamente normativas, como a
Universidade, e muito distanciado da própria clientela" (Dias & Dias,
1985:127-128). No mesmo contexto, as grandes endemias constituem hoje um dos
maiores desafios à competência do modelo pensado, desde que afetam e dizimam
exatamente as populações que dependem diretamente do funcionamento desse
modelo. Sua abolição no primeiro mundo atesta que são preveníveis, em geral, na
dependência de ascensão social e de acesso às tecnologias já disponíveis. Como
enfocá-las num Sistema Único de Saúde (SUS), cujas bases éticas e políticas
pressupõem a eqüidade e a universalidade? As presentes notas têm por objetivo
central uma reflexão sobre a formulação e as perspectivas de uma participação
efetiva das populações no controle das endemias, tomando por base o exemplo
brasileiro em épocas recentes.
Aspectos gerais das grandes endemias no Brasil e suas relações visíveis com a
PC
O panorama atual das grandes endemias brasileiras apresenta três aspectos
básicos, sob o aspecto epidemiológico-operacional e com vistas à PC:
a) Urbanização de clássicas endemias que tradicionalmente eram de natureza
eminentemente rural, como a esquistossomose, a doença de Chagas, as
leishmanioses e a própria malária, por conta do processo demográfico-social
decorrente do novo modelo urbano-industrial que desde os anos 50 se implantou
no País. Essa conotação da malária não corresponde a uma mudança radical nos
padrões clássicos da endemia, mas a uma situação epidemiológica relativamente
nova e adicional no contexto brasileiro. O surgimento de importantes focos de
transmissão palúdica em Manaus, Porto Velho e outros espaços urbanos da
Amazônia vem se dando em paralelo com outras expressões epidemiológicas
tradicionais da doença, como a malária das fronteiras agrícolas, das frentes de
desmatamento, dos garimpos, das reservas indígenas etc.
Mudanças importantes ocorreram no contexto das relações de produção, cada vez
mais dificultando a fixação do homem no campo, especialmente o pequeno
produtor, estimulando a figura dos 'bóias-frias', aos poucos gerando
associativismo e organização de categorias etc. (Barata, 1993; Briceño-León
& Dias, 1993; Dias & Dias, 1985);
b) Evolução epidemiológica dos agravos e dos respectivos programas de controle,
no que diz respeito à demanda de vigilância epidemiológica e de importantes
câmbios estratégicos em sua formulação. Neste sentido, contemplam-se, de um
lado, a superação da clássica 'fase de ataque' do programa antipalúdico em toda
a área não amazônica e do controle da doença de Chagas em praticamente toda a
área endêmica e, de outro, mudanças fundamentais na estratégia de controle da
esquistossomose (praticamente desativando o uso massivo de moluscicidas) e da
própria malária (privilegiando o pronto diagnóstico e tratamento dos casos
sobre o clássico uso prioritário dos inseticidas). Por outro lado, aumentada a
expectativa de vida das populações em geral, novo panorama surge com a
superposição de doenças crônico-degenerativas (diabetes, hipertensão,
neoplasias) e da própria idade ao espectro tradicional da doença de Chagas, da
esquistossomose e da malária, como novo desafio ao manejo destas endemias
(Dias, 1993).
c) Surgimento (ou recrudescência) de antigas doenças, como dengue e cólera, em
panorama epidemiológico novo e específico, ao lado da expansão do HIV, que se
instalou inexoravelmente e hoje se superpõe e modifica a história natural de
outras doenças, como a tuberculose, a doença de Chagas, várias micoses e a
toxoplasmose.
No campo específico e descritivo, as chamadas grandes endemias brasileiras
seguem presentes e importantes no País, representando valiosas perdas humanas e
financeiras, especialmente nos segmentos sociais menos favorecidos, que são por
elas os mais afetados (Schmunis, 1997; Banco Mundial, 1993). Por outro lado,
sua ocorrência reduz a auto-estima da população e - claramente - a
credibilidade do SUS (Briceño-León & Dias, 1993). De modo geral, o enfoque
de todas elas não apenas admite, mas, hoje, requer a participação comunitária
em todas as etapas de seu controle. Essa necessidade ocorre à luz tanto da
doutrina do SUS, como do resultado das modernas análises epidemiológicas, que
trabalham em conjunto os fatores de risco e as conotações específicas de cada
agravo na sua distribuição histórica e espacial. Resumindo por algumas doenças
e aproveitando algumas de suas peculiaridades específicas, de maneira
simplificada poderiam exemplificar-se quanto à PC no controle de endemias:
Malária
Em nível mundial, representa a mais séria e impactante das doenças
transmissíveis, colocando sob risco 40% da população dos trópicos, incidindo em
provavelmente mais de trezentos milhões de indivíduos/ano, penalizando
drasticamente o continente africano (mais de 90% dos casos e mais de 1,5 milhão
de mortes anuais) e afetando mais de um milhão de pessoas/ano nas Américas
(OPS, 1997; Tauil, 1997; WHO, 1993). Para o Brasil, com mais de 450 mil casos
anuais em 1996, deve-se considerar distintamente as áreas amazônica (mais de
99% dos casos) e não amazônica. Na primeira, os programas tendem a ser bem mais
centralizados e verticalizados, mais centrados em ações de ataque e a exigir
escalonamento de prioridades e diferenciação nas estratégias conforme o perfil
epidemiológico. Por exemplo, o conhecimento das estratificações de risco pode
otimizar os recursos em áreas estratégicas, conforme os elementos de controle
mais pertinentes à situação (Marques & Cárdenas, 1994). Na área não
amazônica, a perspectiva imediata e a longo prazo concentra-se essencialmente
em vigilância epidemiológica, situação em que a PC é cada vez mais requerida
por razões éticas, técnicas e mesmo econômicas. No Brasil, em 1996, de 455.194
exames positivos, 77,9% foram produzidos em áreas de alto risco, 15,8% nas de
moderado e 6,3% nas de baixo risco de transmissão, restando apenas 161 casos
autóctones (0,03% do total), na área não amazônica (OPS, 1997). Há distâncias e
dispersão enormes, num contexto em que as pressões de transmissão também podem
ser máximas, demandando grande agilidade e eficiência para que se poupem vidas
humanas e se contenha o ímpeto da expansão da endemia. Importante notar que
historicamente a malária brasileira era predominantemente não amazônica,
macrorregião em que o esquema clássico e vertical dos anos 50 funcionou a
contento e até motivou a esperança da erradicação da doença no Brasil. Foi a
era 'soperiana', nome originado do grande teórico do combate à malária nas
Américas, Fred Soper, época em que a malária amazônica significava pouco em
termos de proporção de casos, e quando o padrão epidemiológico do restante do
País era relativamente homogêneo, salvo exceções como a malária das bromélias,
no litoral Sul. A idéia da erradicação cristalizou-se nos anos 50, a partir da
IV Conferência Pan-Americana e VIII Assembléia Mundial de Saúde, entendendo
como erradicação "o fim da transmissão dos casos infectantes",
utilizando o modelo de campanhas curtas e perfeitas, numa estratégia comum a
todos os países e reduzida à sua máxima simplicidade, pela supressão de toda e
qualquer particularidade (Barata, 1993).
Hoje, a complexidade ecológica e social do paludismo amazônico desafia técnicos
e governos. Pequena e dispersa população, falta de saneamento, de paredes a
borrifar, de pessoal capacitado e disponível, de continuidade operacional, de
transporte ágil e, muitas vezes, de insumos básicos, dificultam o tradicional
programa, lado a lado com a escassez de pessoal técnico e a dispersão político-
administrativa. Numa outra escala, as prioridades de controle têm que seguir os
critérios epidemiológicos e sociais, o que é grande problema quando - pela
extensão da endemia e dos recursos envolvidos - interesses particulares
pesadíssimos podem vir a prevalecer através de lobbies e pressões. Escalonando
as atividades e racionalizando recursos, a incidência da malária tem se
reduzido lenta e gradualmente nos últimos anos no Brasil, mercê também de
mobilização humana, como, por exemplo, a desativação recente de garimpos em
Mato Grosso. Além da redução global da incidência, hoje no Brasil se nota
melhora do quadro epidemiológico, pela redução da proporção majoritária da
malária falciparum,de 54,2% em 1986, para 28,5% em 1996 (OPS, 1997; Marques
& Cárdenas, 1994).
No modelo tradicional, o combate à malária priorizou a luta contra o vetor -
principalmente a química contra o inseto adulto -, subsidiada por eventuais
obras de saneamento, por controle larvário e por tratamento dos doentes. A
partir de 1992, após a Conferência Mundial de Malária (Amsterdã), evoluiu-se
para objetivos gerais de um controle integrado, em busca da prevenção da
mortalidade e da redução da morbidade e das perdas sociais decorrentes. É de
destacar-se que o processo de organização dessa Conferência foi eminentemente
participativo, tendo como base estudos por país e a realização de pré-
conferências macrorregionais. Em particular, o tom mais avançado e
impulsionador das principais mudanças veio da conferência americana, realizada
no Brasil, onde pesquisadores e prestadores de serviço debateram exaustivamente
o tema, valendo-se das práticas locais e das novas realidades epidemiológicas e
institucionais (nota do autor, participante das conferências americana e
mundial).
As estratégias básicas centraram-se no homem infectado, no diagnóstico e ação
precoce, em vista do caso e da expansão da endemia, e na otimização de uma
epidemiologia capaz de caracterizar o evento e direcionar efetivamente as ações
de controle. Como requisitos fundamentais, ficaram claramente estabelecidas a
necessidade de vontade política, a integração da luta antimalárica no sistema
de saúde, a efetiva PC e a disponibilidade real de recursos humanos e
financeiros (Tauil, 1997). A PC pode e deve envolver-se em todas as etapas e
níveis do programa antipalúdico, nesta nova formatação, especialmente quando o
controle da malária é previsto para ocorrer de modo permanente, integral e
auto-sustentável. A começar pela definição de prioridades e alocação de
recursos (âmbito técnico-político), os três níveis de governo e a população
interessada têm que participar de forma ordenada e harmônica, inclusive
envolvendo outros e importantes espaços sociais como ONGs, sindicatos, Igreja
etc. Detectar e tratar prontamente os casos é a ação básica e prioritária,
preferencialmente de nível local, norteadora do esquema epidemiológico que irá
definir as ações complementares, como o controle vetorial e outras possíveis
intervenções ambientais. A organização local e o bom funcionamento do sistema
de saúde e outros correlatos são peças fundamentais neste contexto, aí
claramente envolvidos o nível de consciência da comunidade, sua capacidade de
organização e seu poder político. Aqui já aparecem claramente algumas posições
de Briceño-León (1994) e Dias & Dias (1986), quanto ao enfoque
participativo promovendo a responsabilidade individual para a cooperação
coletiva, à desconfiança das populações no Estado, à superação do estilo
autoritário do pessoal de saúde e a três aspectos essenciais na motivação e
percepção da população no que tange o controle de doenças: a vida muito calcada
no aqui e no agora, a sua maneira integrada de ver as coisas no contexto geral
de suas vidas e a sua disposição em mobilizar-se quando são claros e concretos
os motivos e problemas. Na sua essência, a prevenção individual, o diagnóstico
e o correto tratamento dos casos de malária pressupõem conhecimento,
mobilização das pessoas e acesso aos serviços habilitados. Por exemplo, é cada
vez maior a demanda passiva de exames de laboratório no diagnóstico da malária
nas Américas e no Brasil, o que indica o caminhar da descentralização, da maior
sustentação das ações, do grau de consciência das pessoas etc. (Marques &
Cárdenas, 1994; OPS, 1997). O grande problema da malária americana encontra-se
nos ambientes ecológica, geográfica e socialmente complexos das florestas
úmidas. Nesse contexto, não se podem desconhecer os imensos complicadores da
malária amazônica, em termos, principalmente, da grande dispersão e da
mobilidade das pessoas, significando talvez o maior desafio à inteligência e à
criatividade dos administradores e trabalhadores da saúde. Dois exemplos
recentes ilustram, no Brasil, o valor e a exeqüibilidade da PC em programas de
malária, com conotações distintas: 1) Em 1987, Silva (1988) descreveu a
implantação de um programa integral de saúde em comunidades do Maranhão, com
ampla PC desde o seu diagnóstico: a malária era hiperendêmica, e o programa
oficial, cheio de problemas operacionais, era insuficiente. Os casos, em
maioria imigrados da Amazônia, tardavam em média 34 dias para serem tratados,
com isso proporcionando casos autóctones de malária em grande quantidade. A
demora devia-se a fatores diversos, todos de natureza organizacional e
administrativa. Organizado e assumido pela população, com total parceria da
Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam) regional, os casos
suspeitos passaram a ser imediata e adequadamente diagnosticados e tratados,
extinguindo-se assim a malária autóctone e desdobrando-se o projeto em muitas
outras iniciativas de organização comunitária, inclusive de saúde, com evidente
aumento da auto-estima da população e descoberta de parcerias e
sustentabilidade das ações. 2) Em 1992, em face do preocupante quadro da
malária amazônica, o então Ministro da Saúde, Adib Jatene, buscou com a
Fundação Nacional de Saúde (FNS) as necessárias parcerias estaduais para
viabilizar a necessária descentralização do programa federal, seguindo os
ditames da racionalidade e do novo momento político. A distribuição de recursos
envolvia aspectos partidários e interesses políticos, ao lado de uma
tradicional cultura de os Estados deixarem à União o encargo das ações contra a
malária, fatos enormemente dificultadores ao câmbio pretendido. Como uma série
de reuniões técnicas entre o Ministério e as Secretarias Estaduais de Saúde não
lograva fazer avançar o projeto, o Ministro convocou os governadores de todos
os estados para um seminário político e científico durante dois dias, no Pará,
quando a malária foi por eles estudada, e a melhor compreensão dos fatos
ensejou uma nova postura política, com repercussão imediata e positiva no nível
dos encaminhamentos necessários.
As perspectivas e necessidade de PC no controle da malária são muito grandes,
sabendo-se também que no contexto amazônico requerem-se ainda algumas ações
verticais e centralizadas. Trata-se de uma situação concreta e esperada, em que
o objetivo básico é o controle da malária, a proteção efetiva da população.
Reside o desafio exatamente em compatibilizar e otimizar o programa numa
perspectiva responsável da necessária transição, exatamente um ponto em que a
PC pode imensamente contribuir. Ao manter seus valorosos contingentes na
Amazônia, a FNS deve amplificar esta transição, aperfeiçoando com os estados e
municípios as parcerias e os desenhos programáticos que melhor atendam às
peculiaridades locais e regionais do problema. Em particular, e como dado
positivo, ressalte-se a enorme rede implantada de colaboradores voluntários na
luta antipalúdica, operando há anos e silenciosamente nos Postos de Notificação
da Malária (PNM), e cujo caso está a merecer estudo aprofundado. Já numa
conotação mais geral de PC, uma questão básica desafia os parlamentares,
administradores e programas de governo: a perspectiva que se coloca de inclusão
do programa antimalárico como componente fundamental dos projetos de
desenvolvimento da Amazônia Legal. Mais pontualmente, aproveitando as
indicações de conceituados especialistas, as perspectivas de êxito num programa
integrado contra a malária amazônica dependem muito da construção de uma PC
efetiva e permanente, como se pode depreender de cada tipo de ação proposta: a)
apoio aos serviços locais de saúde para que adquiram a capacidade de
diagnosticar e tratar rápida e eficientemente os doentes; b) fortalecimento de
uma rede local/regional de laboratórios suficiente para o diagnóstico da
malária; c) desenvolver e apoiar atividades de capacitação dos trabalhadores de
Saúde Pública nas atividades de prevenção e controle; d) adequação e
aperfeiçoamento de um sistema integrado de informação que agilize a vigilância
epidemiológica; e) ampla disseminação de informações técnico-científicas
apropriadas e dirigidas aos trabalhadores de saúde e à população, objetivando
intensificar o diagnóstico e tratamento da doença e a prática contínua de
hábitos e medidas de proteção individual; f) apoiar pessoas, grupos e
instituições para que se ampliem as necessárias pesquisas operacionais que
contribuam para o melhor conhecimento das situações locais da endemia e seu
controle efetivo e permanente (Marques & Cárdenas, 1994). Além destas, mais
três situações se colocam no cenário da PC em malária, especialmente na
perspectiva do SUS: 1) o controle social dos recursos, procedimentos e
burocracia envolvidos no programa, a ser otimizado nos conselhos, comissões e
conferências de saúde; 2) o aprimoramento da cidadania em geral para coibir e
moderar o jogo de interesses e lucros que uma verdadeira indústria paralela da
malária implantou em muitas partes das regiões endêmicas, e 3) o enorme
potencial que a malária, por suas características de doença aguda e
temporariamente limitante, tem de induzir e propiciar a solidariedade humana
nos níveis grupal e comunitário, seja pelos cuidados pessoais, seja pelas
possibilidades de auto-ajuda, substituição de pessoas em frentes de trabalho
etc.
Como reflexão final deste tópico, lembre-se que a malária em nosso meio tem
sido historicamente tratada e discutida quase que exclusivamente por elementos
de governo, e de uma forma estanque e isolada no próprio problema que
constitui. Como desafios essenciais à implantação de um programa integral,
integrado e eminentemente participativo, dois dos reptos enunciados por
Briceño-León (1994:173-174) devem ser enfrentados e equacionados:
"Como conectar o problema específico da doença com as metas globais de
saúde e de bem estar social e econômico da população ?"
"Como outorgar a ajuda e a participação do Estado sem criar
dependência?"
Esquistossomose_mansoni
Entendidas as características da relação esquistossoma-homem, pode-se perceber
por que a esquistossomose é uma das doenças mais difundidas no planeta,
intrinsecamente ligada às maneiras de o homem morar, viver e trabalhar.
Distribui-se em mais de setenta países e acomete duzentos milhões de indivíduos
no mundo, com mortalidade estimada próxima dos duzentos mil casos anuais
(Pereira & Távora, 1994; Prata, 1997; Remme et al., 1993). No Brasil,
ocorre a esquistossomose mansoni (SM), dispersa especialmente no Nordeste e
Sudeste, trazida da África já nos primórdios da colonização européia, em
virtude do tráfico de escravos; embora de difícil cálculo, o número de
esquistossomóticos foi estimado entre dez e doze milhões de pessoas no Brasil
(Amaral & Porto, 1994; Ximenes et al., 1994). A dispersão da
esquistossomose deu-se lenta e progressivamente no País, a princípio ligada ao
tráfico de escravos, principalmente rural, instalando-se por conta do baixo
saneamento básico, da ampliação da fronteira agrícola (principalmente da cana,
no Nordeste, e do arroz e hortaliças, no Sudeste) e da ocorrência do molusco
transmissor. Paisagisticamente, a SM é doença de terras boas e bem servidas de
água, em regime perene, principalmente em baixadas e coleções hídricas
pequenas, onde a lavoura é mais fácil e agregados e familiares vão instalar-se,
num contexto de distorções econômicas e injunções sociais (Pereira &
Távora, 1994). A contaminação das águas procede das fezes das pessoas
infestadas, naturalmente num contexto de saneamento precário ou inexistente; em
paralelo, susceptíveis se contaminam nas águas naturais infestadas por
cercárias, mercê de vários tipos de contatos (trabalho, lazer, banhos,
passagem). O ciclo da doença é relativamente simples (homem-água-caramujo-água-
homem), mas de enorme complexidade social e profundamente adstrito à realidade
e às necessidades cotidianas das pessoas. No passado, o controle da SM foi
tremendamente problemático, com uma terapêutica muito difícil (drogas pouco
eficazes e de grande toxicidade), saneamento pobre e disperso, mobilização
comunitária e educação sanitária mínimas. Basta assinalar que, em 1994, nos
estados endêmicos para SM, a cobertura de água encanada ainda era de 69,7%
(49,2% no Nordeste), e a de esgotamento sanitário, de apenas 35,4% (7,8% no
Nordeste), enquanto a taxa de analfabetismo alcançava 23,9% no Sudeste e 55,8%
no Nordeste (Amaral & Porto, 1994). O combate químico aos caramujos era a
prioridade, mediante o uso de pesticidas caros, pouco eficientes e altamente
lesivos ao meio ambiente. Neste quadro, vigente no País até os anos 80, a
esquistossomose era considerada uma doença maldita, particularmente em face das
formas hepatoesplênicas que incidiam em pelo menos 2% dos casos (Pereira &
Távora, 1994). Com o surgimento de drogas efetivas, de baixa toxicidade e de
fácil administração, a partir dos anos 80 construiu-se uma nova e mais eficaz
estratégia de controle da SM; o grande avanço na terapêutica, quando bem
conduzida, mostrou-se muito eficaz na prevenção e na redução das formas graves,
e também, quando executada em grande escala, na diminuição da prevalência local
da SM e no virtual desaparecimento de formas agudas (Prata, 1997). Isso fez
centrar o programa no diagnóstico e tratamento dos infectados, em larga escala
e em toda a área endêmica, diretamente coadjuvada por medidas de educação e
saneamento, ficando o uso de moluscicidas restrito a raríssimos casos focais de
coleções hídricas com alta população de moluscos e elevados índices de
transmissão da SM. Intensificado em nível nacional principalmente nos anos 90,
o Programa de Controle de Endemias do Ministério da Saúde (PCE) expandiu-se
pelo Brasil. Para se ter uma idéia, em Minas Gerais, onde cerca de 450
municípios são endêmicos para SM, o PCE, que cobria 13 deles em 1990, evoluiu
para duzentos em 1995 e alcançou quatrocentos em 1997 (dados da Coordenação da
FNS/ MG). Importante ressaltar o processo altamente participativo que envolve a
instalação do PCE no município, partindo de um diagnóstico técnico prévio da
situação epidemiológica (humana e malacológica). Seguem-se negociações para
alocação de recursos (laboratório, insumos diagnósticos, capacitação,
supervisão e medicamento pelo lado federal, com pessoal, mobilidade e
instalação física pelo município. Aproveitam-se conferências e reuniões
municipais de saúde para discussão do problema e programação conjunta,
envolvem-se o sistema local de saúde, a rede de ensino, as associações
comunitárias etc.
Do espectro negativo inicial, que incluía morte, sofrimento, perda de
capacidade laboral e sensação geral de impotência, graças ao progresso
científico e a bons trabalhos de campo (no Brasil), passou-se a uma situação de
resolutividade e de perspectivas de controle da doença nos níveis individual e
coletivo (Prata, 1997). No primeiro, a cura da parasitose e mesmo a regressão
parcial de suas seqüelas depende de um diagnóstico relativamente simples e do
acesso ao tratamento adequado; no nível coletivo, toda uma formatação,
minimamente estabelecida na comunidade, impõe-se e depende de competência e
desejo político. Em ambos os casos, e até pela epidemiologia própria da SM no
Brasil, o bom funcionamento do SUS e ampla participação comunitária são
elementos essenciais. Pode-se simplificar, entendendo que um programa de SM no
Brasil pode começar massiva e centralizadamente, em níveis regionais ou
municipais, mas em pouco tempo se fazem necessárias atividades descentralizadas
para a consolidação do programa em clusters de localidades, bairros ou casarios
onde remanescem focos residuais No espírito do presente volume e exemplificando
como feito acima com a malária, as perspectivas e necessidades da PC no caso da
esquistossomose poderiam pontuar-se:
No caso da prevenção da SM, vários elementos cognitivos e comportamentais
entram em jogo, cabendo ampla discussão e informação nos níveis comunitário e
familiar. Mais dependente do comportamento do homem do que do vetor e
diferentemente da malária, a transmissão da SM se faz fora de casa, e em
circunstâncias muito variadas de contato do suscetível com águas naturais. O
comportamento humano também sobressai no que toca à contaminação das águas com
as fezes de portadores do verme. Neste contexto, toda uma série de hábitos e
posicionamentos das populações interessa ao problema, desde a questão
individual da higiene pessoal, até os aspectos mais gerais do acesso equânime à
informação e ao saneamento básico. Este é um campo extremamente fértil na ação
educativa que um programa de controle da SM poderia proporcionar, pois lida
diretamente com a realidade imediata e vivida das pessoas. É nesta perspectiva
que Freire (1976) idealizava sua ação cultural para a liberdade, pressupondo
que toda prática educativa implica uma concepção do ser humano e do mundo.
Caminho semelhante tomou Hollanda (1976), propondo a educação para a saúde como
um processo de compreensão de vida, utilizando exatamente a SM como modelo de
re-admiração e re-interpretação da realidade das pessoas e busca de câmbios
para essa realidade. No 'modelo' SM, os níveis de discussão e de consciência da
comunidade passam obrigatoriamente pela análise das relações de produção e das
relações homem-água, homem-meio e homem-saneamento, não havendo como
desencadear-se qualquer ação sustentada e coletiva se não forem claramente
contempladas essas relações e se não for instituído um projeto ativo,
comunitário, político e eminentemente participativo A historicidade e o caráter
político e vivencial do ser humano definem essa situação: "Seres
históricos e inseridos no tempo, e não imersos nele, os seres humanos se movem
no mundo, capazes de optar, de decidir, de valorar. Têm o sentido de projeto
(...). A relação entre a consciência do projeto proposto e o processo no qual
se busca sua concretização é a baseada ação planificada dos seres humanos, que
implica em métodos, objetivos e ações de valor (Freire, 1976:43).
Na etapa de instalação e desenvolvimento do diagnóstico e tratamento dos
infectados, a PC é requerida e extremamente oportuna. Intrinsecamente ligado ao
PCE está toda a questão da logística do trabalho, da otimização das tarefas e
etapas, da fundamental necessidade de grande cobertura e de mínima
continuidade, da imprescindível colaboração de todos para que exames e
tratamentos sejam realizados adequadamente etc. Normalmente, no PCE/ Brasil os
insumos básicos de diagnóstico e tratamento são providos pela FNS (Governo
Federal) aos estados e municípios, cabendo a estes a execução do trabalho, em
máxima interação com as comunidades. Nesse ponto, o PCE já propicia ao SUS um
aperfeiçoamento importante, reforçando o entrosamento entre as três esferas de
governo e, mais ainda, é quando a comunidade começa a discutir e a trabalhar um
programa específico (SM), que diz respeito a sua vida, que é um direito seu na
medida em que foi negociado e implantado dentro da doutrina de eqüidade e
universalidade do SUS (inclusive com recursos próprios) e que proporciona e
requer a sua participação fiscalizadora. Ampliando seus limites técnicos, o PCE
pode ainda propiciar o diagnóstico e o tratamento de outras enteroparasitoses
de grandes grupos populacionais, na dependência de pequenos ajustes no exame de
fezes e na disponibilização de medicamentos antiparasitários de amplo espectro
e dose única, como o albendazol e o secnidazol (Pimenta Jr. et al., 1996). De
modo especial, a PC será reforçada e exercitada à medida em que os resultados e
o andamento do programa forem repassados e discutidos pela população, servindo
inclusive para alimentar a auto-estima e a confiança da comunidade no serviço
público (Briceño-León, 1994; Dias & Dias, 1985). Um ponto de extremo valor
na luta contra a SM é a discussão objetiva, em nível comunitário, das questões
ligadas ao saneamento básico que permeiam o controle definitivo da endemia em
grande número de situações (Amaral & Porto, 1994).
Nas fases de consolidação do PCE, como acima apontado, o quadro
epidemiológico transforma-se para pequenos focos de transmissão e redução da
morbi-mortalidade (Kloetzel, 1967; Prata, 1997). Nesse, o controle da SM evolui
naturalmente para uma etapa permanente de vigilância descentralizada, com
epidemiologia própria de cada situação particular, em que a PC é
imprescindível. Numa experiência recente em Pedro de Toledo, estado de São
Paulo, Marçal Jr. et al. (1997) verificaram que após um programa convencional
bem-estruturado e contínuo de diagnóstico e terapêutica da SM durante 12 anos
houve significativas quedas nos índices de prevalência, de carga parasitária e
morbidade da doença. Ultimamente, no entanto, as taxas de cobertura do programa
estavam diminuindo, possivelmente em razão de uma situação de descaso da
população com a SM, exatamente pela diminuição dos quadros graves e
incorporação da doença ao cotidiano das pessoas, assoberbadas na sua vida por
problemas muito mais graves e urgentes. Nessa fase, a PC institucionalizada e
efetiva pode fazer uma grande diferença quanto às prioridades e
encaminhamentos. De modo geral, e ainda conforme Marçal Jr. et al. (1997), a
experiência tem demonstrado que a participação da comunidade pode chegar a ser
razoável num programa de SM, levando-se em conta apenas as exigências atuais do
programa. Essa constatação põe às claras uma deficiência histórica dos
programas de saúde governamentais no tocante às relações com a comunidade em
nosso meio: a visão limitada e imediatista dos responsáveis pelos programas, ao
encarar a PC de maneira superficial e equivocada. Avaliando a PC em programas
de saúde nas Américas na década passada, entre outros principais problemas, um
grupo da Organização Pan-Americana de Saúde (OPS) apontava: "Más
específicamente, existe una situación paradójica en la manera en que la mayoría
de los sistemas de salud perciben la PC. A menudo dichos sistemas consideran
que la PC es un complemento del sistema de salud, un medio para obtener la
cooperación y los recursos adicionales para apoyar los programas del sistema de
acuerdo con sus propias condiciones y bajo su control (...) La paradoja
consiste en que la responsabilidad de la comunidad en las actividades y las
condiciones de salud deriva de su participación y control en dichas
actividades, aspectos que el sistema de salud generalmente no está preparado
para fomentar o, en algunos casos, ni siquiera aceptar"(OPS, 1984:36).
Pelo outro lado, e via de regra, essa participação comunitária se mostra muito
aquém das potencialidades da comunidade e muito dissociada das tendências mais
modernas de participação popular nos programas de doenças endêmicas, as quais
exigem um grande envolvimento das populações-alvo na definição de políticas de
saúde e no próprio desenvolvimento das ações de controle (Marçal Jr. et al.,
1997).
Doença_de_Chagas
Largamente dispersa e exclusiva da América Latina, a doença de Chagas humana
(DCH) é, dentre as chamadas grandes endemias, a que maior impacto de morbi-
mortalidade produz na região (Schmunis, 1997). Em contraste com múltiplas
complicações em seu tratamento específico, a DCH apresenta grande
vulnerabilidade às ações de prevenção, mormente nas suas formas mais habituais
de transmissão, pelo inseto vetor e por transfusão de sangue (Dias & Coura,
1997). De um lado, a transmissão vetorial liga-se basicamente às relações de
classe e de produção no meio rural, dependente das maneiras de o homem morar e
das condições de sua vivenda (onde se aloja e coloniza o inseto vetor). Falta
de higiene, pobreza, provisoriedade, subemprego, analfabetismo, anomia e uma
extrema fragilidade política são elementos desse contexto. Do lado
transfusional, a DCH se relaciona com a qualidade do sistema de saúde e com os
fatores de migração interna que progressivamente carreiam doadores infectados
para os centros urbanos, onde ocorrem as transfusões de sangue (Dias, 1993;
Schmunis, 1997). No Brasil, a doença rural se urbanizou nos últimos quarenta
anos, por causa da grande migração populacional. Em paralelo, mercê de um
programa ministerial de controle dos vetores domiciliados (priorizado em 1982 e
levado a cabo de maneira contínua desde então), os índices de transmissão
declinaram drasticamente em mais de 95% da área endêmica; na mesma linha, a
doença transfusional experimentou enorme redução a partir da década passada,
quando, principalmente sob a ameaça da AIDS, o nível de controle e de qualidade
das transfusões de sangue sofreu sensível melhora no País (Dias & Coura,
1997; Schmunis, 1997). Hoje a DCH encontra-se virtualmente controlada no
Brasil, e o programa francamente em sua etapa de vigilância epidemiológica,
restando como desafios a manutenção desta vigilância e o atendimento médico e
previdenciário aos infectados remanescentes, cujo número se estima em torno de
quatro milhões (Dias, 1997).
Exatamente na questão da vigilância epidemiológica e em sua prevenção, a DCH
apresenta-se como importante modelo à PC, o que será abordado em seguida. Na
DCH tem-se uma situação similar à de algumas enfermidades imunopreveníveis, em
que ações verticais e centralizadas, de maneira contínua e tecnicamente bem-
conduzidas conseguem alcançar altos níveis de controle, mesmo na ausência de
câmbios estruturais e econômico-sociais que fundamentam as raízes da endemia.
Desde os trabalhos pioneiros de Emmanuel Dias, ficou claro que as chaves do
controle da DCH estavam na prioridade política dada ao seu controle, à
continuidade deste controle e à efetiva vigilância epidemiológica como etapa e
estratégia de consolidação (Dias, 1958; Dias, 1987). Na transição político-
demográfica de então (anos 60 e 70), nenhuma perspectiva havia para um programa
minimamente suficiente de melhoria da habitação rural, assim como era ainda
nebulosa e complicada a implantação de um programa nacional de bancos de
sangue. Controlado o vetor no interior das casas, o impacto já seria enorme
sobre a transmissão da DCH, tendo sido esta a base inicial do programa
brasileiro. Optou-se então pela luta química sistematizada e racionalizada
contra os triatomíneos domiciliados, o que foi feito por valorosas equipes da
Sucam (a Superintendência de Controle de Endemias - Sucen - já lograra ótimos
resultados em São Paulo), tendo este programa mantido suas bases técnicas
operacionais praticamente até hoje, à custa de decisão política e de boa
qualidade técnica. No bojo dessa determinação ocorreu decisiva participação da
comunidade científica brasileira, não apenas denunciando com números a
realidade epidemiológica da doença no País, mas estabelecendo as bases técnicas
de um programa nacional e demonstrando sua viabilidade ao governo.
Em 1974, ainda em franco período de recessão, começaram os experimentos de
vigilância epidemiológica, vislumbrando-se no horizonte os desafios da
manutenção de uma atividade permanente quando a doença já estivesse sob
controle e a densidade vetorial fosse muito baixa nos domicílios (Dias &
Garcia, 1978). A época era particularmente difícil, com um programa nacional
contra a DCH ainda extremamente vertical e limitado, e um ambiente de ditadura,
no qual qualquer reunião era encarada como suspeita ou subversiva, mormente se
fosse percebido um processo de participação e organização comunitária. Não
havia clima para reuniões, o Ministério da Saúde era distante e insulado,
praticamente não havia sistema municipal de saúde e a desarticulação dos três
níveis de governo era total, apesar de uma certa convivência pacífica entre
eles. Lembre-se de que estávamos às vésperas de Alma-Ata, mas o País se
encontrava institucionalmente ausente deste processo. Em tal contexto, foi
gestado um programa pioneiro de PC em Bambuí, Minas Gerais, região até há pouco
hiperendêmica. Trabalhando com professoras rurais do Município, um grupo
técnico transdisciplinar elaborou um processo de discussão e planejamento
conjunto sobre a DCH e suas possibilidades de controle, chegando-se a um
projeto auto-sustentado para uma vigilância-piloto de cinco anos. Prefeitura
Municipal e Ministério da Saúde acordaram sua participação no projeto,
inclusive com presença nos treinamentos e alocação de recursos materiais e
humanos, tudo isto referendado por um documento elaborado em conjunto com a
própria comunidade. Por meio de encontros e planejamentos sucessivos, inclusive
com visitas programadas às localidades rurais e estágio em laboratório, os
professores das 36 escolas rurais levaram o problema e suas hipóteses:
propunha-se que cada inseto suspeito capturado no Município fosse enviado às
escolas rurais ou ao Centro de Pesquisas da Fiocruz, para exame e
desencadeamento de uma visita técnica à casa notificante, com expurgo caso se
tratasse do triatomíneo vetor. Coerente e pacientemente, o projeto foi até o
fim dos cinco anos, com desdobramentos importantes no nível comunitário. Entre
outros desdobramentos, o projeto desencadeou a formação de uma cooperativa
local, houve reivindicação e providências quanto a vacinação e tratamento de
enteroparasitoses na zona rural, houve atividades sobre hanseníase (outro sério
problema no Município), houve estudo dirigido com os professores sobre direitos
humanos e melhoramento de suas atividades pedagógicas etc. (Dias & Dias,
1985; Dias & Garcia, 1978). Analogamente, desdobramentos semelhantes também
ocorreram num outro projeto de doença de Chagas levado a cabo em Cansanção, MG
e descrito neste volume por Rosinha Borges Dias, o que reforça a validade deste
tipo de abordagem. O esquema funcionou a contento, com resposta e participação
da comunidade. Os professores resolveram e foram capazes de envolver mais de
cem lideranças comunitárias nos encontros de planejamento e, ao fim do período
aprazado, o projeto deixou sua formalidade e seguiu sozinho, mantendo-se
automaticamente funcionante até os dias atuais, quando perfaz 23 anos de
existência; os resultados finalísticos são excelentes: no nível de transmissão,
sucessivos inquéritos sorológicos têm demonstrado a interrupção da transmissão;
no nível demonstrativo, o programa mostrou-se viável e serviu como modelo da
vigilância que a Sucam/FNS implantou em todo o País (Bryan et al., 1994; Dias,
1991). Das lições aprendidas deste programa, os próprios protagonistas
(professores, técnicos e lideranças) depreenderam que o mesmo foi bem sucedido
em termos de treinamento e execução por causa de (Dias & Dias, 1985):
o programa foi elaborado com base no concreto (coisas, interesses e
necessidades reais das pessoas);
baseado nesse concreto, os integrantes do grupo realizaram trabalhos e
reflexões, um fazer e um pensar. Fazer: readmirar a própria realidade e
aprofundar sua análise dessa realidade mediante visitas ao campo com roteiros,
experiências de campo e laboratório, dramatização de situações familiares,
levantamentos e entrevistas etc. Pensar: estudar essa realidade, geralmente em
pequenos grupos, refletindo sobre o que foi encontrado e o que foi realizado;
liberdade e flexibilidade no programa, conforme necessidade sentida e
expressa pelo conjunto de participantes. Por exemplo, os temas dos encontros
semestrais de avaliação foram selecionados pelo nível de interesse do grupo
(votação, inclusive, entre 1974 e 1979);
valorização constante do trabalho, com retorno e avaliações de rotina:
reencontros formais e informais, visitas constantes às escolas, coerência na
resposta à comunidade (expurgos pós-notificações), apresentação dos resultados
às instituições e lideranças etc.;
contato prolongado e continuado, pelos cinco anos aprazados com a população;
integração da comunidade com serviços e instituições (saúde, educação,
prefeitura, Sucam, Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural - Emater,
Igrejas, Fiocruz);
decisões democráticas e simplicidade no esquema.
A evolução do controle e da epidemiologia da doença de Chagas no Brasil aponta
cada vez mais nos rumos da descentralização e da PC. De um lado, com a
urbanização dos pacientes e a focalização e rareamento dos triatomíneos
domiciliados, desaparece a racionalidade do grande programa vertical. Nesse
quadro, também se acentua a progressiva e drástica redução dos vetores
domiciliados, consistindo hoje em peridomiciliar a total maioria dos focos
residuais (no peridomicílio não funcionam bem os inseticidas, daí requerendo-se
a imprescindível participação dos moradores no que toca à organização, à
limpeza periódica e ao manejo deste espaço. O peridomicílio funciona como ponta
de lança à invasão do ambiente doméstico por triatomíneos silvestres da maioria
das regiões chagásicas do Brasil, que o fazem à busca de alimento ou mesmo por
terem sido desalojados de seus ecótopos naturais pelo próprio homem, em suas
intervenções de plantio, desmatamento etc. (Dias & Coura, 1997). Como
outros exemplos de PC em doença de Chagas, lembrem-se dos casos da melhoria
habitacional, da doença transfusional e da atenção ao infectado.
Quanto à melhoria habitacional, esta trata-se de importante estratégia contra a
transmissão vetorial da endemia. Praticamente os triatomíneos não logram
domiciliar-se em vivendas higiênicas e de boa qualidade, cuja existência está
naturalmente vinculada ao status social e econômico dos moradores e/ou a
programas específicos de governo. Como a doença de Chagas incide exatamente
sobre populações rurais, marginadas e excluídas, uma perspectiva programática e
de amplo alcance no âmbito rural só pode ocorrer em termos de iniciativas
governamentais, o que nunca aconteceu realmente no Brasil (Dias, 1987). De modo
geral, não se podem entender programas habitacionais desvinculados de processo
participativo. A habitação diz muito mais de perto ao povo que o inseticida,
expressando vivamente a epidemiologia social da doença de Chagas, em termos da
provisoriedade, da desagregação política e social, da instabilidade laboral e
da falta de bens de produção da população exposta. Mexer na casa, por sua vez,
é mexer diretamente com pessoas e com relações entre pessoas, intervenção
profunda na estrutura microssocial, trazendo à tona problemas da economia
grupal, da posse da terra e das relações de trabalho. Uma avaliação
transdisciplinar do assunto entendeu ser obrigatória a PC em programas
habitacionais, rechaçando-se formalmente campanhas demagógicas, transitórias e
verticalistas nesse campo; no Brasil, verificou-se que muitas vezes a gente
rural não melhora ou reconstrói a sua casa por várias razões profundamente
existenciais, como falta de recursos ou posse do terreno, instabilidade laboral
no lugar, desencanto e desestímulo em face da pobreza etc., nunca por mera
'ignorância', por 'preguiça' ou simplesmente por 'falta de vontade de melhorar'
(Dias & Dias, 1985). De maneira realística há que se admitir que, na
realidade destas populações, praticamente todas as iniciativas hão de vir de
fora, ser induzidas ou provocadas por gente e recurso externo, que nunca deverá
ser impositivo, ignorar a população ou chegar com verdades prontas e interesses
secundários. Isso é muito difícil, no contexto dos países e populações em foco,
contemplando-se então, ao longo da América Latina, programas de habitação rural
limitados, não participativos, descontínuos, verticalizados e geralmente pouco
efetivos no nível do objetivo maior (melhoria social da população) e
específicos (controle da doença de Chagas, por exemplo) (Dias, 1993). Por outro
ângulo, quando possíveis e corretamente assumidos, programas habitacionais em
áreas chagásicas podem propiciar inúmeras e riquíssimas perspectivas de ampla
discussão da realidade local, de organização social, ajuda mútua, créditos
rotativos; há o despertar de lideranças, cooperativismo, ampliação da
comunicação etc., levando a comunidade a discutir mais profundamente seus
problemas de base, inclusive os políticos e sócio-culturais, também aumentando
sua auto-estima (Briceño-León, 1994; Dias & Dias, 1985).
No âmbito da doença de Chagas transfusional, hoje também em franca redução no
País, a PC é oportuna inicialmente quanto à básica necessidade de que a
população saiba e possa exigir transfusões de boa qualidade, corretamente
indicadas e acessíveis a todos, cabendo ao Estado o aprovisionamento dessas
condições. No estágio atual, a melhor estratégia de prevenção corresponde à
triagem pré-transfusional de todos os doadores de sangue do país, por meio de
reações sorológicas, o que está sendo conseguido em cerca de 80% a 85% dos
casos. Esta estratégia já era possível há vinte ou trinta anos, mas foi somente
com o advento da Aids, nos anos 80, que a triagem dos doadores foi sendo
expandida, até tornar-se legalmente mandatória. Isso serve para ilustrar a
questão do peso da mídia, da organização e da representatividade social (muito
maior nos pacientes de Aids que nos de Chagas, sífilis ou hepatite) nas
decisões políticas (Dias & Dias, 1985; Dias, 1993).
a) Ainda sobre a doença de Chagas transfusional dois aspectos envolvem
objetivamente a questão da PC: 1) mais genérica e institucionalmente, a
disponibilidade de sangue (leia-se doadores conscientes e voluntários) e uma
adequada política nacional de sangue e hemoderivados são problemas ainda em
aberto, caso em que a PC se faz muito importante, seja no exercício da
solidariedade consciente de toda a sociedade quanto à doação responsável de
sangue, seja na concretização do SUS com vistas à boa hemoterapia a serviço de
todos (com a ampla discussão social no nível de Conselhos e Conferências); e,
2) mais especificamente, emerge a questão do indivíduo chagásico, diagnosticado
quando vai doar seu sangue e que vai necessitar e merecer atenção médica e
eventualmente previdenciária (Dias, 1997). Lembre-se ainda de que a doença de
Chagas transfusional é também uma questão de responsabilidade e competência de
administradores, parlamentares e profissionais de saúde. A sociedade e a lei
não podem aceitar sua ocorrência, dizia-se há mais de dez anos: "Para
aqueles poucos que tratam do assunto irresponsável ou mercantilisticamente, a
lei comum e a efetiva cobrança judicial deveriam necessariamente ser
aplicadas....para não se arcar mais com este peso, originado apenas na
ignorância de alguns e na má fé de uns poucos"(Dias & Dias, 1985:134).
b) Atenção ao chagásico. Simplesmente lembrando-se de que ficará como o grande
repto aos países e sanitaristas, ao controlar-se a transmissão, contemplando os
16 ou 18 milhões de infectados já existentes na América Latina (Schmunis,
1997). Sendo em sua maioria os chagásicos pobres, rurais, dispersos e
excluídos, os desafios mais essenciais corresponderão à efetivação e bom
funcionamento do SUS, contemplados seus princípios de universalidade e
eqüidade. Esse produto não se construirá sem ampla participação social, nas
bases, na área técnica e nas áreas de governo e decisão. Ocorrendo a doença de
Chagas, a comunidade organizada e a instância política têm que reivindicar,
criar e fazer funcionar um sistema de diagnóstico precoce e de atenção adequada
ao infectado, em sua maior parte manejável nos níveis primário e secundário de
atendimento, mas também proporcionando os cuidados mais especializados àqueles
5% ou 10% de chagásicos que evoluem para as formas graves, estes últimos,
inclusive, dependentes de previdência social (Dias, 1997). Certamente não serão
os chagásicos - dispersos e sem representação - que lograrão isto, mas a parte
mais consciente, engajada e responsável da comunidade, que deveria começar
pelos segmentos científico e universitário.
Outras_endemias_prevalentes:_com_alguns_exemplos_pontuais_de_problemas_e
possibilidades_de_Participação_Comunitária
Hanseníase (MH) e tuberculose (TBC). Doenças endêmicas ainda muito
preocupantes no Brasil, a despeito de merecerem atenção especial (programa
específico) por parte do governo. A MH apresenta ainda taxas de prevalência
iguais ou acima de 10 casos/100.000 habitantes, sendo o grande desafio reduzi-
la para <1 caso/100.000 habitantes no ano 2.000; a TBC mantinha níveis de
incidência em torno dos 50 casos/100.000 habitantes em 1994, número este que
poderá reduzir-se a <15 casos/100.00, como nos países desenvolvidos (Penna,
1994; Hijjar, 1994). Em termos gerais, não há maior obstáculo ao tratamento
adequado dos doentes, havendo disponibilidade de recursos em termos de
medicamentos e insumos necessários ao diagnóstico. Os programas próprios há
anos se inseriram com prioridade na rede básica e o grande fantasma da
resistência às drogas disponíveis não representa o principal problema. Ao
contrário, no caso do MH, a resolutividade terapêutica avançou muito com os
esquemas de poliquimioterapia (pqt), mudando um conceito histórico de que o mal
era de cura extremamente demorada e complexa. Na TBC, com tendência à redução
da incidência e da mortalidade nos últimos lustros, a emersão dos quadros
complicados com Aids e taxas inusitadamente altas em regiões especiais como o
Rio de Janeiro têm que ser assuntos melhor avaliados. Ambas as doenças
apresentam como problema principal, no Brasil, o binômio cobertura do
diagnóstico e continuidade terapêutica. Isso significa hoje uma efetivação do
SUS, que é a básica instância de atendimento e acompanhamento. Um alto nível de
consciência social sobre estas doenças é requerido, como forma de superação de
tabus e de viabilização do diagnóstico e do correto tratamento; a localização
dos doentes e contatos não pode depender apenas de busca ativa por serviços
gerais de saúde, com pouca mobilidade e pessoal geralmente assoberbado com
outros agravos e tarefas. Como exemplo, é preocupante o fato de que nos anos
90, entre 13% e 17% dos pacientes com TBC diagnosticada tenham abandonado seu
tratamento (Hijjar, 1994). Dentre as estratégias mais efetivas a implantar, ou
em vias de implantação, o eficiente funcionamento da rede básica de saúde, no
nível municipal, corresponde à tarefa fundamental. Daí decorrem prioridades
muito claras de PC, assinaladas por especialistas, que devem nortear as ações
finalísticas quanto a estas duas históricas doenças. No nível mais geral,
impõe-se "empenho nas negociações políticas(...) para alcançar a
priorização do controle em todos os níveis do SUS e da organização político-
administrativa do País",e "aumentar a participação de médicos gerais
e outros profissionais, nas atividades de detecção e controle"; no campo
da população, o desafio básico reside na ampliação dos conhecimentos sobre
estas doenças, com vistas à detecção de casos novos e ao completo e adequado
tratamento de todos os casos (Penna, 1994:43).
Leishmanioses. A forma cutâneo-mucosa (LTA) é extremamente difundida no País,
sendo vetor um mosquito (flebotomíneo) e principal reservatório, o homem. De
enfermidade tipicamente rural, passou a urbanizar-se em várias partes do
Brasil, como se tratasse de uma ruralização de espaços urbanos periféricos. No
princípio desta década, e francamente sub-notificados, registraram-se entre
10.500 e 22.000 casos novos de LTA no País, 50% deles no Nordeste (Pereira
& Fonseca, 1994). O diagnóstico e o tratamento são relativamente simples,
sendo exeqüíveis na maior parte do País; já a prevenção é complexa,
principalmente quando residências e campos de trabalho (situações de vida e de
trabalho) se alocam em encostas de morros e matas que são habitatsprediletos do
flebotomíneo. As estratégias de atenção partem dos casos diagnosticados e
tratados, no nível de serviços básicos de saúde, requerendo ampla PC, que
inclusive viabiliza ações de higiene peridomiciliar e facilita programas focais
de desinsetização. Já o caso da leishmaniose visceral (LVA) é muito mais grave
e também tendente à urbanização, com cerca de dois a três mil casos anuais
registrados no País, 90% deles no Nordeste (Monteiro et al., 1994). Na luta
contra a LVA, além do esquema acima, tem-se usado com prioridade a estratégia
de diagnóstico e pronta eliminação de cães infectados, através de pesquisa
censitária nas áreas de transmissão ativa. Trata-se de outro ponto em que a PC
e a educação sanitária são essenciais, envolvendo-se ampla informação e boa
epidemiologia aplicada, espírito de visão do coletivo, eficiência das ações de
controle etc. Não se pode esperar, por exemplo, que numa área endêmica de LVA,
casos humanos permaneçam sem diagnóstico por falta de acesso ao SUS ou
incompetência dos profissionais em realizar este diagnóstico e iniciar o
tratamento, como tem sido muito freqüente; igualmente, numa localidade com
transmissão ativa e programa instalado, uma demora dos laboratórios em
processar o sangue colhido dos cães examinados por mais de vinte dias é no
mínimo perda de tempo, cabendo às autoridades e à sociedade conhecer as causas
dessa demora e instalar as providências. Lamentavelmente, entre as principais
razões para a ineficiência desses laboratórios, têm-se destacado questões de
natureza burocrático-administrativa, como técnicos funcionando em meio
expediente, falta de cumprimento de pontualidade e horário, ausência de
planejamento na disponibilidade de insumos, mau uso e falta de manutenção de
equipamentos etc. São problemas pertinentes à comunidade, em que os implicados
diretos muitas vezes não se dão conta do prejuízo social acarretado por sua
incompetência ou falta de responsabilidade (de uma avaliação conjunta entre a
FNS/MG, a Fundação Ezequiel Dias (SES/MG) e a Secretaria Municipal de Saúde de
Belo Horizonte, outubro de 1996).
Como um ponto crucial do programa integrado de LVA envolve adequada
distribuição de recursos, hoje em sua maioria federais, um correto envolvimento
político dos gestores é fundamental, podendo depender de negociações e ampla
discussão com a sociedade, incluindo obrigatória presença de conselhos de saúde
e comissões bipartites regionais nesse processo. Um exemplo disso ocorreu em
Minas Gerais, recentemente, onde recursos de um programa ministerial (Programa
de Controle de Doenças Endêmicas do Nordeste - PCDEN) foram repassados ao
Estado para, entre outras destinações, aquisição de insumos na luta antiLVA,
entre os quais veículos de captura de cães vadios para uso nos municípios.
Possibilitou-se ampla discussão do assunto em nível técnico e da Bipartite
Estadual, com vistas aos critérios técnicos e epidemiológicos adequados à
distribuição dos carros, mas houve problemas e trabalho intenso para que
critérios político-partidários muito fortes não mudassem totalmente o
planejamento epidemiológico pré-acordado (Nota do autor, à época coordenador
regional da FNS).
Dengue e cólera. São endemias que recrudesceram no País nos últimos anos, em
virtude de intensa movimentação humana e de insuficiência de vigilância
epidemiológica quando da ameaça de sua reintrodução. Ambas apresentam alta
velocidade de propagação e soem acometer grandes populações, se dadas as
condições bioecológicas e sociais pertinentes. Em comum, ambas as doenças
exigem para seu controle: um mínimo de saneamento básico, um mínimo de
organização e eficácia do sistema de saúde e um alto nível de PC. No caso da
cólera, sua ocorrência retrata de forma extremamente clara e fiel a pobreza e a
falta de saneamento básico, enquanto, instalada a epidemia, os casos de morte
corresponderão diretamente à fragilidade ou incompetência do sistema local de
saúde. No auge da última epidemia brasileira, em 1992, chamou atenção a grande
taxa de ataque ao Norte e Nordeste do País, exatamente nas áreas de pior
saneamento básico, em contraste com uma mortalidade que sempre esteve baixa,
por volta de 1%. Quanto à comunidade, a ocorrência de cólera suscitou pavor e
abalo na auto-estima, seja por causa de ancestrais imagens de morte e
desolação, seja pelo reconhecimento de que a doença só se propagava por conta
de uma miséria patente, que às vezes se tenta disfarçar. Importante notar que
muito maior e permanente impacto negativo sempre fora observado nas áreas em
questão, dado pelas clássicas doenças de veiculação hídrica, pela desnutrição e
pela insuficiência de recursos assistenciais, redundante em altíssima e
presente mortalidade infantil, que não emulava políticos e era paisagem e
rotina para a população (um dos melhores produtos da cólera foi reduzir estes
dados). A PC foi exercitada entre as pessoas e populações, estimulando-se a
solidariedade humana e, de alguma forma, princípios de organização civil e de
redes de informação. A evidência e o impacto da doença geraram desdobramentos e
créditos políticos, naturalmente ensejando disputas, pressões e interesses,
enquanto grandes recursos eram alocados, geralmente sem maior participação da
população afetada. Registre-se, entre outros, um episódio marcante no nível
federal, nunca repassado à população: vultosa verba emergencial foi liberada
para obras e insumos nos municípios mais afetados, decidindo-se que metade do
recurso sairia pelo Ministério da Saúde (MS) e a outra parte pelo Ministério do
Bem-Estar Social, hoje extinto. Enorme esforço e inúmeras reuniões técnicas
foram realizados, para cumprirem-se os exíguos prazos demandados pela
emergência, o que foi logrado pelo MS a duras penas; no entanto, as verbas do
outro lado não apareciam, complicando o produto final. O assunto clareou-se
numa dificílima reunião técnica, quando alguém do MBES desabafou, explicando
que ao MS competia prover saúde, mas que ao seu cabia dar sustentação política
ao governo de então, tendo, portanto, que operar em outra lógica e em outra
dimensão (Nota do autor, à época presidente da FNS).
A cólera permanece entre nós, mais suave e menos retumbante; dentre outras, uma
lição quanto à PC destaca uma relação construtiva possível, quando as coisas e
os esforços operam no nível do concreto e do cotidiano das pessoas. Pelo outro
lado, a cólera também mostrou, lamentavelmente, que recursos aparecem e
estimulam, mas que ações sustentadas nunca podem basear-se exclusivamente em
aportes externos que a população não define nem controla: há dez anos, Ugalde
(1987:29) já comentava a falência de programas de PC em saúde na América
Latina, tratando exatamente destes pontos: "En los paises sub-
desarrollados proyectos de PC son generalmente inducidos por agencias externas
y gubiernos centralizados, hecho que genera un gran riesgo de transformar esos
proyectos en modelos para introducir valores de la 'sociedad de consumo' en
pequeñas comunidades, así como para controlar liderazgos, mano de obra o
instituciones periféricas". Também é fácil entender por que projetos
locais ou pilotos de PC podem manter a comunidade interessada enquanto perdura
a assistência externa, e uma 'consciência política' da população não se
desperta, em situações tradicionais latino-americanas, uma vez que - se efetiva
e conseqüente - a PC conduz à organização comunitária e a atitudes naturalmente
subversivas (Ugalde, 1987; Werner, 1980).
O dengue tem sido dentre as endemias, juntamente com a malária, o maior desafio
a uma saúde pública eficaz e eficiente no Brasil, consumindo extrema energia e
incontáveis recursos que nunca aparentam ser suficientes para resolver um
problema que só faz aumentar. Sem vacina e sem terapêutica específica, o
fantasma do dengue se concentra na explosão da transmissão e no espectro da
forma hemorrágica, que demanda hospitalização em massa e pode ter alta
letalidade. Os esforços mais viáveis dirigem-se para o controle do vetor (ou
sua erradicação?), em que parte das ações depende diretamente do governo e uma
outra parte - provavelmente hoje a maior no contexto das grandes endemias
brasileiras - depende de efetiva e continuada participação da população.
Parafraseando a Dra. Elmira Afradique, sanitarista mineira, pode-se dizer que o
dengue tem uma das melhores propostas para o SUS, ameaçando toda a população,
exigindo rede básica e cuidados secundários, requerendo medicina preventiva e
não dispensando a participação de toda a comunidade. Somente como exemplo, o
controle do Aedes (ou sua erradicação), passa muito além das caras e agressivas
fumigações espaciais de fosforados (fumacê), tão a gosto de políticos e de
empresas fornecedoras: é o controle larvário o ponto nevrálgico, a exigir
verdadeira luta corpo-a-corpo no seio da população. E a epidemiologia tem
mostrado, há anos, que os principais focos do mosquito entre nós residem no
íntimo das habitações (focos em vasos de flores e entulhos de quintal), lado a
lado com focos importantes em borracharias, lixões e ferros velhos (MS, 1996).
Para o primeiro caso, somente a população organizada e motivada poderá acabar
definitivamente com os criadouros, mercê de ação contínua e de longo prazo,
introdução de alguns hábitos e mudança radical de alguns outros. Foi assim em
locais como Honduras e Cuba, recentemente. Para as últimas situações é mister
uma cumplicidade e uma parceria entre comunidade, empresas e governo, seja na
cobrança das medidas que se impõe, seja na formulação e implantação de posturas
e códigos sanitários, a despeito de interesses setoriais de problemas
orçamentários. Como demanda básica e subproduto altamente valioso, o problema
do lixo tem que ser resolvido, em nível individual e coletivo. Em todos os
casos, a PC se impõe e pode ser ampliada, como exercício de cidadania e de
crescimento social, cabendo ao dengue, virose relativamente simples, ajudar a
propiciar este desdobramento. Isso já fora acentuado por Bryan et al. (1994:
70): "It is important to realize that community participation per se has
inherent value because of its positive effect on the development of social
relationships and community solidarity. Community involvement should not simply
be considered yet another mechanism for controlling a particular health
problem, or means for lowering operational costs in otherwise vertically
structured programs, or a process for returning the burden of unresolved health
issues to local populations. Rather, the dynamic process of community
participation represents a necessary strategy for community survival...".
As experiências vividas quanto à luta contra o dengue no Brasil têm sido ricas
e pedagógicas no que toca à PC. Não obstante, essa participação carece de
consistência e de continuidade, tendo sido pontual, irregular e quase sempre
meramente casuística. Os esforços têm se dado basicamente na medida da doença
instalada e de forte pressão governamental (inclusive com recursos e intensiva
propaganda). Abaixados os níveis de transmissão e de infestação vetorial, quase
que por encanto cessam os esforços comunitários e são afrouxados os trabalhos
no nível local, o que praticamente inviabiliza hipóteses de erradicação e
sempre deixa 'para o próximo verão', a ameaça da recrudescência. Quanto à
consistência, um desperdício tem ocorrido nas campanhas de dengue, que seguem
estimulando a PC de maneira muito restrita ao assunto específico do mosquito,
portanto à margem de grandes temas da realidade social e da vida das populações
expostas à doença. Também deixou muito a desejar a discussão do tema durante
todo o processo da última Conferência Nacional de Saúde, a partir das etapas
municipais. Um último ponto é oportuno neste exemplo do dengue, ligado à
motivação da comunidade: em uma reunião técnica nacional no Ministério da Saúde
(MS, 1996), ao se buscarem palavras-chave e de ordem à motivação da sociedade,
curiosamente centrou-se de início no medo e no risco, para, ao final,
acrescentar-se algo de auto-estima e confiança:
"O dengue mata, mas sua eliminação nós podemos conseguir".
Algumas considerações à guisa de conclusão
O tema é amplo e merece ser retomado, nesses anos de construção do SUS e de
profundas mudanças nos rumos e perspectivas das grandes endemias brasileiras. A
existência dessas doenças induz à formulação de um SUS prioritariamente aberto
para as classes sociais excluídas e indica atitudes e posturas médicas e
sociais que privilegiem as ações preventivas e a participação ativa e contínua
de toda a sociedade. Também se deve lembrar que essas doenças endêmicas ocorrem
em razão de desníveis sociais e distúrbios bioecológicos, cuja definitiva
superação extrapola em muito o âmbito da medicina, incluindo obrigatoriamente
nesta pauta a PC e muitos outros setores da população organizada e do governo,
de forma sistêmica e racional. Na seção 2 deste artigo, alguns exemplos sobre
perspectivas e problemas correlatos ao tema da PC e das endemias vieram à tona
no cenário brasileiro, de modo geral demonstrando-se que alguns caminhos são
possíveis e que a PC é um processo de lenta e permanente construção. Por outro
lado, exemplificaram-se problemas e situações que comum e freqüentemente
obstaculizam ou desvirtuam a PC, ressaltando-se o descompromisso de áreas
técnicas e políticas com a população, a distância, a dependência da PC de
recursos externos, a limitação da PC ao tema específico do 'projeto' ou da
'campanha' etc.
Nos anos 90, com a evolução da proposta do SUS, os rumos da descentralização se
impuseram também nas questões da PC e do controle das endemias. Até mais que
outras, estas doenças praticamente obrigam um enfoque através do sistema
público, em face da população envolvida e do caráter eminentemente preventivo
em seu combate. A princípio, hipóteses genéricas e tão a gosto de alguns
setores, como terceirização, privatização ou provimento via seguros, têm pouca
ou nenhuma viabilidade para resolver o problema das doenças endêmicas entre
nós. Daí, como pressuposto que traga em seu bojo elevado nível de PC, um Estado
forte e voltado para o social ainda se impõe, a despeito de fortes correntes em
contrário. Essas correntes, naturalmente, não conhecem as endemias ou estão
distantes delas, como o estão das populações por elas acometidas.
Sem dúvida, requer-se um caminho natural em termos de racionalidade técnica e
de uma exigência intrínseca da implantação de um SUS que contemple as endemias,
já que seria no mínimo incoerente a manutenção de programas verticais e em
nível federal executando ações e programas em municípios e localidades
afetados. Não obstante, uma série de problemas se apresentava quanto ao
encaminhamento prático desta descentralização, entre os quais se destacam:
A falta de conhecimento e prática na execução dos programas específicos, por
parte de estados e municípios, ficando historicamente à União o trabalho a
realizar e, por decorrência, a competência em fazê-lo (com exceção do Estado de
São Paulo, que trabalhou com instituições próprias a partir de 1957 - Serviço
de Profilaxia da Malária - SPM, Sucen). O controle das grandes endemias foi
historicamente atribuição do nível federal, um modelo que vem da organização
dos antigos Serviços Nacionais (malária, peste, febre amarela) e que chegou ao
ápice quando se entendeu que a malária era erradicável e foi criada a Campanha
de Erradicação da Malária (anos 50). Nesse sentido, a par de recursos e
modelagem internacionais (o que já direcionava para um esquema federal), a
própria doutrina da erradicação fazia pressupor uma operação altamente
centralizada e uma organização paramilitar (Marques & Cárdenas, 1994).
A falta de entrosamento, de planejamento comum e de ações compartidas entre
os níveis de governo. Nesse ponto, destaca-se o nível municipal, ao qual ficou
cabendo a imensa maioria das ações a realizar, lembrando-se ainda das
desarticulações 'horizontais', como a distância entre setores afins, como
saúde, educação, justiça, trabalho, planejamento etc. Cabe refletir aqui, por
exemplo, no enorme descompasso hoje visível entre as áreas sociais políticas e
econômicas de governo em nosso País, com nítidos prejuízos e sofrimento para as
populações menos favorecidas.
A natural questão corporativa da categoria federal. De um lado, todo o
problema de hierarquia e salários (geralmente melhores na União), dificultando
a adesão ou aceitação dos servidores federais, que viam na descentralização um
risco importante de perdas pessoais; de outro, uma preocupação em desmontarem-
se estruturas e programas existentes sem saber ao certo como funcionar
totalmente descentralizado.
A incapacidade técnica e institucional em tratar-se a comunidade numa
perspectiva histórica, pedagógica e politicamente adequada, gerando
desencontros e frustrações, inclusive no que toca à implantação e funcionamento
dos Conselhos de Saúde.
A esperável resistência de fortes e vários setores da sociedade à implantação
do SUS, em decorrência de altos interesses envolvidos.
A ocorrência de um histórico modelo de medicina curativa (hospitalocêntrico)
prevalente no País, deixando exíguo espaço às ações e temas de Saúde Pública, à
PC, ao saneamento básico e à prevenção de doenças.
No nível mais específico da PC com respeito ao controle de endemias, uma
conclusão geral se coloca: ela se torna cada vez mais necessária em casos como
a explosão do dengue e da definitiva implantação da vigilância epidemiológica
(no caso de todas as grandes endemias), assim como é imprescindível para lograr
de vez a cobertura e a continuidade requeridas em programas como os de MH e
TBC. A PC no controle dessas doenças significa um processo em construção que
requer impulso externo, competência em sua condução e liberdade para ampliar-se
com autonomia e de modo auto-sustentado, democrático e responsável. Há ainda
muito que aprender, em termos de postura e compreensão das equipes técnicas que
se envolvem com a comunidade, muitas vezes de forma meramente burocrática e
induzida de cima ou de fora, sem maior compromisso ou responsabilidade social.
Nessa perspectiva, consideramos oportuno resumir os principais problemas
inerentes à PC em saúde, na América Latina, levantados por expertos da OPS na
década passada (OPS, 1984):
1) A contradição histórica entre a concepção médica da maioria dos sistemas
governamentais de saúde (curativistas, paternalistas, centrados em doenças,
verticais nas relações com a população), em face do enfoque preventivo, de
companheirismo e mais amplo em relação a fatores sociais e ambientais, que
pressupõe a PC.
2) A situação paradoxal, em que os sistemas governamentais de saúde percebem ou
admitem a PC tão-somente como complemento e apêndice de sua própria lógica e de
suas atividades, incapazes de aceitá-la como efetivamente controladora destas
atividades.
3) A grande complexidade existente no câmbio de estruturas e mentalidade dos
sistemas de programas de saúde, inclusive tomando-se em conta que a PC não pode
ser usada como solução para todos os problemas.
4) A própria complexidade, o tempo necessário e a continuidade que se exige na
formulação, na implantação e no exercício da PC, diante das necessidades e da
realidade dos sistemas de saúde existentes.
5) As dificuldades de conciliação entre as prioridades de um programa, de uma
política ou de uma equipe, com as prioridades e o momento histórico da
população em pauta.
6) As maneira e a lógica na dotação e liberação de recursos, que muitas vezes
determinam as prioridades ao invés de refleti-las.
7) As dificuldades de compatibilização entre os programas, no nível
comunitário, e os grandes sistemas governamentais que os determinam e
sustentam: que aprender dos projetos-piloto e como adaptar os elementos
essenciais destes projetos aos grandes programas regionais ou nacionais?
Já do lado da comunidade (aqui falando-se de pobres e excluídos), problemas e
debilidades quanto à PC têm sido apontados por outros estudos, como o de
Hernandez (1996):
a) Provisionalidade: visão e expectativa comuns dos membros da comunidade, que
esperam mudar-se tão logo alcancem melhores condições de vida, o que afeta o
sentido de raízes comunitárias e diminui a internalização de compromissos com a
comunidade e seu desenvolvimento.
b) A perda de sua memória histórica: como fundamento básico para qualquer
mudança, a história comum tende a perder-se na pobreza das relações e na medida
em que a identidade não se constrói, valoriza ou transmite a novas gerações.
c) Perda de relação entre o público e o privado: o público fica distante, não
me diz respeito, não tem dono etc.
d) Paternalismo, altamente enraizado na cultura latino-americana, gerando
dependência de gente de governo, resistência a mudanças, populismo e
demagogias, mercado de influências, etc., além de inexorável visão fatalista de
que 'minha vida está nas mãos de outros', seja o governo, ou mesmo Deus.
e) A subestimação das próprias capacidades, proveniente de uma falsa
consciência de incapacidade e negatividade, reforçada por inúmeros fracassos e
pela visão imediatista que a vida provoca, situação que dificulta o conceito e
a prática de prevenção.
f) A desestrutura social, cada vez mais reforçada pela violência crescente e
por reiteradas frustrações.
Para finalizar, e entendendo o tema como provocativo e indutor de reflexão, é
cabível colocarem-se algumas questões de fundo, que emanam do grande desafio da
PC e da Educação em sua perspectiva processual de formadores da cidadania, com
vistas à formação dos legítimos sujeitos do desenvolvimento. Sua função
insubstituível, como diz Demo (1986), é de ordem política, requerendo
componentes importantes a serem assumidos por suas lideranças, tais como:
"A noção de formação, não de adestramento, pois parte da potencialidade
do educando, assumido como interessado primeiro do processo.
A noção de participação, de autopromoção e de autodefinição, ou seja, o
conteúdo central da política social, entendida como realização da sociedade
participativamente desejada.
A noção de sujeito social, não de objeto, de paciente, de cliente, de
elemento.
A noção de direitos e deveres, sobretudo os fundamentais, tais como os
direitos humanos, os deveres do cidadão, o direito à satisfação de necessidades
básicas, o direito à educação, etc.
A noção de democracia, como forma de organização sócio-econômica e política
mais capaz de garantir a participação como processo de conquista.
A noção de liberdade, igualdade e comunidade, que leva à formação de
ideologias comprometidas com processos de redução das desigualdades social e
regional, com o desenvolvimento, a qualidade de vida e o bem estar
culturalmente definidos, com a satisfação das necessidades básicas e a garantia
dos direitos fundamentais.
A noção de acesso à informação e ao saber, como instrumentos de crescimento
da economia e da sociedade, bem como da participação sócio-econômica e
política.
A noção de acesso a habilidades capazes de potenciar a criatividade do
trabalho, visto aqui como componente cultural, mais do que como simples
elemento produtivo"(Demo, 1986:52-53).
Tudo isso nos remete ao reconhecimento de que estamos ainda extremamente
distanciados de um mínimo de participação da comunidade nos termos gerais de um
processo social libertador, e particularmente no controle de doenças endêmicas.
Num momento muito especial em que as ortodoxias estão se desmoronando, vê-se
que as estruturas e a lógica tradicionais (inclusive as burocracias, a
tecnologia, os sindicatos e os partidos políticos) são insuficientes para
determinar o curso da História (Garcia, 1987). Na verdade, os projetos em curso
têm sido paliativos, demorados, tecnocráticos e efêmeros, geralmente
caracterizados por falta de conteúdo sócio-econômico e freqüentemente
empurrados para situações assistencialistas e compensatórias, distantes das
questões que mexem nas estruturas de produção e de poder (Demo, 1986). De fato,
não se tem ainda um projeto definido de PC na construção do SUS e, menos ainda,
luta contra as endemias, em termos efetivos de auto-sustentação e de uma
parceria construída entre estado (provedor-estimulador) e a população (sujeito-
efetora). Paradoxalmente, e quase que por ironia, no enfrentamento da malária,
da doença de Chagas e do dengue tem-se aberto um espaço de exercício à
participação e de avaliação crítica em nossa sociedade. É uma oportunidade
adicional e concreta de rediscussão do Estado, que a população, organizações
sindicais, igreja, universidade e legítimas lideranças deverão agarrar, na
medida de seu ideal histórico e de sua responsabilidade social.