Novas tecnologias e saúde do trabalhador: a mecanização do corte da cana-de-
açúcar
Introdução
A mecanização do corte da cana-de-açúcar no Estado de São Paulo, mais
particularmente na região de Ribeirão Preto, está em estágio avançado e tem
gerado discussões polêmicas entre os diferentes grupos sociais envolvidos com
as problemáticas do trabalho, da saúde e, principalmente, do meio ambiente.
De um lado, os problemas ambientais gerados pela produção da cana-de-açúcar, do
açúcar e do álcool (Marinho & Kirchoff, 1991; Szmrecsányi, 1994) animam,
principalmente, o movimento ambientalista, o Ministério Público e alguns
parlamentares na defesa do fim, ou pelo menos da regulamentação, das queimadas
nos canaviais. Uma vez que, do ponto de vista do rendimento e da segurança no
trabalho, é prejudicial para o trabalhador o corte manual da cana crua, a
alternativa que se coloca é a mecanização dessa atividade laboral. De outro
lado, as empresas, valendo-se das atuais exigências do mercado e também das
próprias ações dos movimentos sociais contra as queimadas e das denúncias e
alertas que, desde as greves de Guariba e Leme, vêm sendo feitas para tentar
resolver a questão social do bóia-fria, mecanizam as lavouras, mas, cortando,
principalmente, cana queimada. Na região de Ribeirão Preto, são queimados,
aproximadamente, 650.000 hectares de cana por ano. Por outro lado ainda, com a
crescente introdução de colhedeiras mecânicas, os trabalhadores assalariados
rurais, organizados ou não, ressentem-se da diminuição dos postos de trabalho
(Veiga Filho et al., 1994), da queda no valor real dos salários (Nogueira,
1992) e de uma sensível piora na qualidade das relações e condições de trabalho
(Scopinho, 1995, 1996; Scopinho & Valarelli, 1995).
Alessi & Scopinho (1994) verificaram que o processo de trabalho do cortador
de cana-de-açúcar da região de Ribeirão Preto gera um conjunto de cargas
laborais que se traduzem em um padrão de morbidade que, apesar de inespecífico,
está estreitamente relacionado ao modo de organizar e realizar a atividade.
Scopinho (1995, 1996) e Scopinho & Valarelli (1995) acrescentaram que o
estado geral de saúde dos trabalhadores é agravado pela precariedade do
conjunto das condições de vida em termos de, por exemplo, condições de higiene
e saneamento do local de moradia, grau de instrução, facilidade de acesso aos
bens de consumo coletivo em geral, existência de espaços institucionalizados ou
não de reivindicação de direitos etc.
Há quem justifique que a mecanização da colheita da cana, além de trazer
inúmeras vantagens econômicas e ambientais, é também uma forma de eliminar a
insalubridade, a periculosidade e a penosidade existentes nas frentes de
trabalho rural. Entretanto, cabe questionar e investigar até que ponto as
mudanças que estão sendo introduzidas na base técnica do processo de trabalho
de corte da cana-de-açúcar podem contribuir para reverter o perfil de
adoecimento dos assalariados rurais.
Scopinho (1995), observando guincheiros que trabalhavam em turnos de 24 horas
no carregamento da cana e operadores de colhedeiras escalados em turnos de 12
horas, supõe que a mecanização na lavoura canavieira pode não estar,
efetivamente, contribuindo para sanear os ambientes de trabalho e reverter o
padrão de desgaste-reprodução dos trabalhadores, e, sim, apenas imprimindo a
ele novos padrões. Se, por um lado, ocorre uma certa diminuição das cargas do
tipo físico, químico e mecânico, por outro, as máquinas acentuam a presença de
elementos que configuram as cargas do tipo psíquico e fisiológico porque
intensificam o ritmo do trabalho. A autora chama a atenção para a necessidade
de analisar os processos de trabalho mecanizados na lavoura canavieira para
identificar as cargas laborais e os padrões de desgaste-reprodução que elas
contribuem para condicionar (Scopinho, 1995).
Baseado nas questões levantadas por Scopinho (1995), o objetivo deste artigo é
o de analisar as mudanças que ocorrem na organização do trabalho do corte da
cana-de-açúcar com a introdução das colhedeiras e as conseqüências para a saúde
do assalariado rural canavieiro.
Segundo Silva (1981), o progresso técnico na agricultura, ao mesmo tempo,
subordina as forças da natureza e o trabalho à lógica de valorização do
capital. Embora este autor tenha frisado que a aplicação do progresso técnico
no processo produtivo não é feita no sentido de contrariar ou prejudicar os
trabalhadores, mas, principalmente, para favorecer os capitalistas através da
elevação da taxa de lucro, o fato é que, nas agroindústrias sucroalcooleiras,
para os trabalhadores, as inovações tecnológicas têm sido sinônimo de
deterioração das relações e condições de trabalho. Ou seja, na agroindústria
canavieira, o desenvolvimento do progresso técnico, por um lado, tem
significado desemprego e, por outro, a intensificação do ritmo de trabalho, o
que tem afetado seriamente a saúde e a segurança no trabalho (Scopinho, 1995,
1996; Scopinho & Valarelli, 1995).
Dessa forma, para investigar as conseqüências que a introdução do progresso
técnico na agricultura canavieira tem trazido para a saúde dos assalariados
rurais, analisa-se o processo de trabalho do corte de cana-de-açúcar
mecanizado, identificando as cargas laborais (Laurell & Noriega, 1989)
nocivas à saúde e o padrão de desgaste-reprodução (Laurell & Noriega, 1989)
manifestado pelos trabalhadores, comparando-o com o processo de trabalho do
corte manual da cana-de-açúcar, quando for possível e pertinente. Do ponto de
vista das relações de trabalho, a análise enfoca as formas contratuais, a
divisão das tarefas, as jornadas, os mecanismos de controle e supervisão do
trabalho, as formas de controle da produção e de remuneração dos trabalhadores,
os mecanismos de recrutamento e seleção, os processos de treinamento/
qualificação de operadores de colhedeiras mecânicas de cana-de-açúcar. Do ponto
de vista das condições em que se realiza o trabalho, a análise privilegia a
reconstrução do processo, considerando o objeto sobre o qual se aplica o
trabalho, os tipos de meios e instrumentos que são utilizados e como a
atividade se realiza.
Utilizam-se, basicamente, dados obtidos de observação direta do processo de
trabalho do corte mecanizado da cana-de-açúcar e entrevistas com trabalhadores
e sindicalistas, empresários, técnicos agrícolas e ligados à administração de
recursos humanos em duas empresas sucroalcooleiras localizadas no Estado de São
Paulo. A usina A situa-se no centro da região canavieira de Ribeirão Preto e,
na safra de 1995-1996, moeu 1.049.000 toneladas de cana, produzindo 1.540.000
sacas (50 kg) de açúcar e 28.506.000 litros de álcool, gerando 1.855 empregos
diretos, 1.475 dos quais no setor agrícola. A usina B situa-se na região
canavieira de Bauru, sendo considerada a maior usina do mundo em moagem de
cana. Na safra 1995-1996, a usina B moeu 6.113.750 toneladas de cana,
produzindo 7.367.120 sacas (50 kg) de açúcar e 139.425.000 litros de álcool,
gerando 8.956 empregos diretos, sendo 6.340 no setor agrícola (GPA, 1996).
Também foram entrevistados profissionais da rede oficial de saúde e da
previdência social, responsáveis pela assistência médica e pelo sistema de
informação em acidentes e doenças do trabalho.
O processo de trabalho do corte mecanizado da cana-de-açúcar
Scopinho (1995) mostra que, na região de Ribeirão Preto, os projetos de
mecanização da colheita da cana foram retomados em meados da década de 80, no
contexto de um conjunto de pressões econômicas e sociais relacionadas às
transformações dos mercados interno e externo, ao suposto afastamento do Estado
na regulação do setor sucroalcooleiro, às conquistas de direitos sociais
mínimos pelos trabalhadores rurais, à emergência dos movimentos ecológicos e da
legislação que procura proteger o meio ambiente contra a queima nos canaviais.
Atualmente, estima-se que a colheita mecanizada atinge entre 20% e 30% da área
plantada (Folha de São Paulo, 1993; Jornalcana, 1993; Veiga Filho et al.,
1994). Todavia, há usinas cujos índices de mecanização ultrapassam 60% (Veiga
Filho et al., 1994) e, segundo alguns sindicalistas, há um caso exemplar em que
ele se aproxima de 90%. A mecanização da colheita da cana exige que sejam
respeitadas algumas condições físicas, técnicas e de produtividade para
justificar o uso da máquina, sem haver o risco de elevar o custo da colheita
mecanizada para além do custo do corte manual. Respeitadas essas condições,
para o produtor, a utilização das colhedeiras reverte-se em aumento da
produtividade e qualidade da matéria-prima, bem como em diminuição dos custos
da produção agrícola, que representam entre 50% e 60% em relação ao custo total
(Scopinho, 1995).
A matéria-prima do processo de trabalho do corte mecanizado é,
predominantemente, a cana-de-açúcar queimada. Geralmente, o corte mecanizado da
cana crua tem sido realizado somente quando a plantação localiza-se nas
periferias das cidades ou sob as redes de energia elétrica, em cumprimento ao
Decreto-Lei 28.895/88.
A forma de plantar com sulcos rasos e espaçamento menor permite mecanizar o
primeiro corte. No entanto, no primeiro corte procura-se evitar o uso de
colhedeiras para não compactar o solo e também porque as canas podem danificar
a máquina por serem mais viçosas e pesadas. Segundo um dos entrevistados, a
tendência é mecanizar a colheita desde o primeiro corte porque deverá ocorrer
uma 'evolução' da tecnologia no sentido de minimizar a compactação e também um
aumento da pressão dos ambientalistas contra as queimadas.
Não é de hoje que a queimada da cana-de-açúcar tem gerado polêmica,
principalmente na região de Ribeirão Preto, e, pressionadas pelo poder público
e pela sociedade, as empresas já procuram soluções técnicas para os problemas e
também, com o objetivo de preservar a imagem de utilidade social do setor, já
se incorporaram à luta para a preservação do meio ambiente. Isto porque,
principalmente a partir de 1990, o poder judiciário instaurou uma verdadeira
guerra contra as usinas da referida região, em razão da prática das queimadas.
Além da concessão de liminares que proíbem as queimadas nas áreas urbanas,
desde 1991 foram movidas 86 ações contra as usinas em 13 municípios da região.
Dessas ações, 33 (38%) foram julgadas, e 24 (28%) foram ganhas pelas
promotorias públicas (Folha de São Paulo, 1995). Mesmo com esta pressão, as
queimadas continuam.
Parece, contudo, que existe uma tendência de aumento do corte mecanizado da
cana crua, a longo prazo. Na verdade, o que está por trás desta tendência não é
somente a preocupação com o meio ambiente ou com os trabalhadores. Sobretudo,
há vantagens de ordem econômica operacionais, industriais e agronômicas que
movem as usinas na direção do uso de colhedeiras mecânicas para cana crua
(Scopinho, 1995). Por enquanto, porém, por uma questão de racionalização do uso
da máquina, predomina o corte da cana queimada, mesmo com a pressão social e
legal contra esta prática e as vantagens proporcionadas pela mecanização do
corte da cana crua. Por exemplo, verifica-se, na usina B, que o rendimento das
colhedeiras é de, aproximadamente, 30% superior quando a cana é queimada. Por
isso, apesar de a mecanização do corte estar sendo colocada como uma medida de
proteção ambiental, parece que ela pouco tem contribuído para solucionar a
problemática da poluição provocada pelas queimadas. Ou seja, a prática da
queimada não tem sido uma garantia de oferta de empregos, e o uso de
colhedeiras mecânicas pode não eliminar a famigerada queima dos canaviais.
A queima ocorre algumas horas antes do corte e não é raro as máquinas e os
trabalhadores adentrarem o talhão de cana quando a temperatura ainda está
elevada. Um gerente agrícola afirmou que: "Após a queima de imediato dá
para entrar. Como é um fogo rápido a temperatura já normaliza logo em
seguida". Ocorre que esses talhões, logo após serem queimados, recebem não
apenas as máquinas, os equipamentos e os implementos necessários ao corte da
cana-de-açúcar mecanizado que são movidos por combustível líquido, como também
os demais veículos transportadores de combustíveis que lubrificam e abastecem
todos os motores in loco. É evidente o risco de ocorrer uma explosão provocada
por possíveis fagulhas ou braseiros deixados pela queimada.
Mesmo no corte mecanizado da cana crua, o risco de incêndio durante a operação
é muito grande. As palhas secas que permanecem no talhão podem incendiar, seja
porque entram em contato com as partes da máquina que, em virtude do
funcionamento quase ininterrupto, estão superaquecidas, ou porque podem ser
alvo, por exemplo, de uma ponta de cigarro acesa atirada a esmo. Como medida de
prevenção, permanece no talhão um caminhão-tanque carregado com água, que é
utilizada para apagar possíveis focos de incêndio e para lavar as partes da
máquina onde se acumulam as palhas secas.
Além do risco de incêndio e de explosões que podem atingir os trabalhadores no
ambiente de trabalho, as queimadas da cana representam um risco ambiental de
grandes proporções. A fuligem espalha-se pelas cidades causando incômodo às
populações pela sujeira que deixa nas residências. Parece também que as
partículas respiráveis da fuligem em muito contribuem para aumentar a
incidência de doenças respiratórias que atingem, principalmente, as crianças e
os idosos durante o período da safra (Franco, 1992). A fauna que habita os
canaviais também é prejudicada pelas queimadas. Depois que o fogo se apaga, à
medida que as máquinas cortam e retiram a cana, é possível observar as aves de
rapina na caçada aos pequenos roedores, cobras e outros animais peçonhentos que
a queimada dizimou.
O risco de contato direto ou indireto com animais peçonhentos existe no corte
mecanizado tanto quanto no corte manual, principalmente quando a cana não foi
queimada e as máquinas não possuem cabinas com sistema de ventilação ou
refrigeração que possam ser totalmente vedadas. Esse risco aumenta no decorrer
da jornada noturna, quando as operações são interrompidas e os operadores saem
da cabina durante as pausas para fazer as refeições ou os consertos que venham
a ser necessários nos equipamentos.
A exposição dos operadores de máquinas às intempéries diminui em relação ao que
ocorre ao cortador de cana, porque os primeiros, nas cabinas, ficam protegidos
da radiação solar, dos ventos e da chuva, do contato mais direto com animais
peçonhentos e também do ruído e da poeira que a circulação das máquinas pesadas
provoca no ambiente. No entanto, quando não existe sistema de ventilação e
refrigeração, a temperatura no interior das cabinas eleva-se e, para diminuir o
calor, o operador/motorista trabalha com os vidros abertos, ficando, assim,
exposto à poeira e ao ruído provocados pela circulação das máquinas, bem como
ao perigo de ser golpeado por pedras, tocos e pedaços de cana.
Do ponto de vista das condições ambientais das frentes de trabalho, à medida
que as máquinas se movimentam dentro do talhão, levanta-se uma nuvem de poeira
que mistura a terra e a fuligem da palha de cana queimada. Embora o jato mais
denso de poeira e fuligem saia da parte traseira da máquina, próximo ao
ventilador que separa as palhas da cana antes que ela seja jogada na caçamba,
uma grande quantidade de partículas fica suspensa no ar, quantidade esta que
aumenta à proporção que, ao longo do dia, aumenta o número de máquinas em
movimento e de manobras feitas. Além da poeira, o movimento das máquinas gera
também ruído e trepidação que afetam mais diretamente os motoristas e os
operadores de máquinas. Apesar de não ter sido objetivo desta investigação
realizar medições dos riscos ambientais, ressalta-se a necessidade de
quantificar os níveis de ruído e poeira existentes nas frentes de trabalho
rural mecanizadas para melhor avaliar os efeitos desses tipos de cargas na
saúde dos trabalhadores.
O corte mecanizado requer a utilização de meios e instrumentos de trabalho,
tais como caminhões e tratores rebocadores, caçambas para conter a cana
cortada, caminhões-oficina, caminhões-tanque para água e para combustível, além
das colhedeiras. Essa prática torna-se economicamente viável somente com a
utilização de um número mínimo de colhedeiras: entre três e cinco (Scopinho,
1995).
De fato, na usina A, o corte mecanizado estava sendo implantado na safra 96/97
com a aquisição de três colhedeiras com capacidade para cortar, em média, 3.900
ton./dia. Como a previsão de moagem de cana na referida safra era de, em média,
6.000 ton./dia, isto significa que o índice de mecanização desta usina pode ser
de, aproximadamente, 65%.
Na usina B, na safra 95/96, as quatro frentes de colheita mecânica reuniam 36
máquinas, que colhiam, em média, 10.000 ton./dia, o que significa,
aproximadamente, 37,6% da moagem diária (em média, 26.581 ton./dia). Nesta
usina, as máquinas que colhem cana picada possuem um rendimento de 30 a 40
ton./hora, em média; as máquinas que colhem cana inteira têm um rendimento
menor entre 25 e 30 ton./hora , porque elas consomem mais tempo em manobras
para se adequar à velocidade do caminhão que recebe a cana cortada.
Além das colhedeiras, outras máquinas e equipamentos são necessários para a
realização do corte mecanizado. Uma das exigências é a de uma infra-estrutura
mecânica de apoio, que consiste na presença de um caminhão-tanque, para o
abastecimento de combustível e lubrificantes, e de um caminhão-oficina equipado
com todos os instrumentos e materiais (prensa, macaco, furadeira, morsa, óleo
lubrificante, graxa, gerador, oxigênio, acetileno, solda etc.) necessários para
a realização da manutenção e reparo das colhedeiras in loco(Alves, 1992;
Scopinho, 1995).
As colhedeiras operam acompanhadas de um veículo, que traciona uma caçamba,
que, por sua vez, recebe a cana cortada, inteira ou picada. Assim, o
carregamento da cana cortada para a usina é feito simultaneamente ao corte,
dispensando as carregadeiras mecânicas (guinchos) e os seus operadores. Este
veículo também pode ser um caminhão com carroceria adaptada para conter os
toletes de cana. Mas, para evitar a compactação do solo, já estão sendo
utilizados tratores mais leves que acompanham a colhedeira dentro do talhão e
tracionam o que se chama de transbordo para receber a cana cortada. O
transbordo é uma caçamba que, ao ser preenchida, é levada pelo trator ao
caminhão transportador, o qual fica aguardando fora do talhão. O caminhão
transportador conduz uma, duas ou até três ('treminhão') caçambas repletas de
cana cortada até o pátio de descarregamento da usina.
Quanto aos caminhões transportadores, eles realizam o que é chamado na usina B
de operação bate-e-volta. Esta operação envolve caminhões do tipo 'cavalo', que
permitem o engate de caçambas (ou 'julietas') que recebem a cana do transbordo.
Enquanto o cavalo transporta a(s) caçamba(s) para o pátio de descarregamento de
cana na usina, outras caçambas vazias estão sendo preenchidas pelo transbordo
no talhão. No pátio, o cavalo transportador deixa as caçambas cheias e volta
para a frente de trabalho na lavoura com outras caçambas vazias, para depois
retornar com as cheias, e assim por diante.
Segundo os entrevistados, a operação bate-e-volta também está sendo implantada
no transporte da cana proveniente do corte manual, na balança e no pátio para
evitar as filas na balança. Se, por um lado, esta operação otimiza o uso dos
recursos porque economiza tempo, custo do transporte e o desgaste dos
equipamentos, por outro lado, intensifica o ritmo do trabalho na lavoura, já
que contribui para eliminar as porosidades que ainda podem ocorrer nas jornadas
dos operadores de máquinas agrícolas por falta de caminhão para o transporte da
cana. Quer dizer, esta é uma das estratégias utilizadas para tentar garantir o
funcionamento ininterrupto das colhedeiras, mas que submete os trabalhadores a
um ritmo muito intenso de trabalho. A introdução das colhedeiras mecânicas
representa um avanço no sentido da subordinação real da agricultura à indústria
(Alves, 1992), inclusive impondo à primeira o ritmo pretensamente ininterrupto
de funcionamento da segunda. Isto representa um conjunto de profundas
transformações no modo de organizar o trabalho no corte da cana-de-açúcar, que
são discutidas na seqüência, começando pelos recursos humanos necessários para
a realização do corte mecanizado.
Na usina B, as 36 colhedeiras ocupam 27 operadores, três mecânicos de
manutenção, um encarregado da frente (chamado frentista) e uma turma
(aproximadamente quarenta trabalhadores) de cortadores-bituqueiros. As máquinas
e os trabalhadores são distribuídos em quatro frentes de trabalho; cada uma das
frentes possui 20% a mais de pessoal para cobrir as folgas. Na usina A, as três
colhedeiras ocupam sete operadores, quatro mecânicos, seis cortadores-
bituqueiros e oito motoristas.
A mecanização do corte não prescinde do trabalho do cortador e do bituqueiro,
que agora também pode ser um misto de cortador-de-cana-bituqueiro (Alves,
1992). O bituqueiro é um trabalhador cuja função é dar o acabamento no talhão,
cortando, amontoando e recolhendo os pés de cana que a colhedeira não conseguiu
cortar, bem como os toletes que escaparam da caçamba. Na usina B, esses
trabalhadores não pertencem a uma turma fixa, uma vez que realizam um trabalho
complementar. São contratados aqueles que residem nas proximidades das frentes
de trabalho, para racionalizar o tempo e reduzir custos com transporte.
Além da presença de bituqueiros, pode haver também a presença de cortadores
manuais nos talhões, que trabalham onde a máquina não consegue cortar por causa
dos acidentes topográficos. Segundo um técnico agrícola, evita-se ao máximo
misturar os processos de corte manual e mecanizado, e procura-se trabalhar com
a perspectiva de, em curto prazo, reformar todos os talhões para o corte
mecanizado. Na usina B, a maior parte dos talhões estão projetados para o corte
mecânico, o que significa que, em curto espaço de tempo, a mecanização do corte
deverá generalizar-se nesta empresa, visto que, pela própria definição do
entrevistado, o planejamento na agricultura canavieira é "um processo que
inicia-se hoje para realizar-se ao longo de um futuro de aproximadamente cinco
anos" (gerente agrícola).
A introdução das colhedeiras mecânicas provoca uma grande redução do número de
postos de trabalho na fase do corte. Segundo o presidente da Sociedade dos
Produtores de Açúcar e Álcool (Sopral), no Estado de São Paulo, aproximadamente
60% da área plantada com cana pode ser imediatamente mecanizada, enquanto que
20% é mecanizável, mas exigirá investimentos para a adequação do terreno.
Apenas 20% não é mecanizável, o que exige a manutenção do sistema de corte
manual. Para ele, a mecanização total das áreas canavieiras do Estado é um
processo lento e que deverá ocorrer dentro dos próximos dez ou 15 anos (Folha
de São Paulo, 1993; Jornalcana, 1993).
Em 1994, o Instituto de Economia Agrícola (IEA) realizou uma estimativa da
substituição de mão-de-obra por colhedeiras mecânicas na lavoura canavieira.
Segundo este estudo, no Estado de São Paulo, até o ano 2000, para uma área
mecanizável de 46% da área plantada com cana, o uso de colhedeiras significará
uma redução de 38.569 postos de trabalho e uma taxa de desemprego de 22,9%. Na
região da antiga Divisão Regional Agrícola de Ribeirão Preto (Dira-RP), até o
ano 2000, supondo uma área mecanizável de 60%, a perda acumulada de postos de
trabalho atingirá 28.197. A variação da taxa de desemprego será de 18% a 51%,
entre 1994 e 2000 (Veiga Filho et al., 1994). De acordo com as observações
feitas por Scopinho (1995) em uma usina-destilaria da região de Ribeirão Preto,
que operava no ano de 1992 com duas máquinas em pleno funcionamento e uma
terceira em fase de teste, uma máquina corta, em média, 40 ton./hora e pode, em
condições ideais, operar ininterruptamente 24 horas por dia. Portanto, uma
máquina pode cortar 960 ton./dia. Na mesma usina, um homem, em jornada de oito
horas, cortava, em média, 7 ton./ dia. Para cortar 960 ton./dia no sistema
manual, a usina necessitava de, aproximadamente, 137 homens. Esses dados
mostram que, em condições de pleno funcionamento, em um dia, uma só máquina
poderia substituir o trabalho de, aproximadamente, 137 homens ou três turmas de
trabalhadores.
De fato, observou-se que as 36 máquinas da usina B cortavam 10.000 ton./dia e
substituíam, aproximadamente, 1.200 homens. A usina A, que na safra 95/96
empregou de oitocentos a novecentos cortadores manuais, deveria reduzir esse
contingente pela metade na safra 97/97, porque poderia cortar, aproximadamente,
a metade da cana de que necessitaria com as três máquinas adquiridas. Segundo o
raciocínio de um operador de colhedeiras dessa usina, se lá a previsão de
moagem é de 6.000 ton./ dia e se as máquinas têm capacidade para cortar 3.900
ton./dia, então o número de cortadores manuais contratados deverá ser reduzido,
aproximadamente, pela metade. Mas, segundo o entrevistado, como esta é a
primeira safra de corte mecanizado, pode ser que o número de contratações de
cortadores manuais não diminua em 50% de imediato, uma vez que as colhedeiras
ainda estão sendo testadas. Ele ponderou que as máquinas não operam em qualquer
tipo de terreno, por isso o corte manual sempre existirá, ainda que como uma
atividade complementar à da máquina.
Um forte indicador do aumento nos índices da mecanização nos próximos anos são
as reformas que estão sendo feitas nos talhões onde é possível o uso das
máquinas. O uso da colhedeira requer um redimensionamento dos talhões e
modificações no sistema de plantio, entre outras (Alves, 1992; Scopinho, 1995)
que já podem ser detectadas porque, lembrando as palavras de um gerente
agrícola entrevistado, o planejamento na agricultura canavieira é " um
processo que inicia-se em um futuro de, aproximadamente, cinco anos". Quer
dizer, com base no número de talhões que estão sendo reformados hoje, é
possível projetar uma tendência acentuada de crescimento do corte mecanizado da
cana, o que é coerente com a estimativa de Veiga Filho et al. (1994) de redução
crescente de postos de trabalho na lavoura canavieira em virtude da mecanização
da colheita (Veiga Filho et al., 1994).
O trabalho no corte mecanizado apresenta grandes modificações em relação ao
corte manual, no que se refere às jornadas e às formas de contratação e de
remuneração. No corte manual da cana, a contratação é do tipo temporária; a
jornada é exclusivamente diurna, de segunda a sábado, com oito horas diárias
mais aquelas utilizadas in etneri, e a forma de remuneração é por produção.
Os limites da força de trabalho humana não permitiam que o trabalho na
agricultura acompanhasse o ritmo intenso de funcionamento das moendas
industriais durante a safra. No corte mecanizado, a grande modificação é a
forma de organizar o trabalho em turnos noturnos e alternados. Na usina B,
realizavam-se três turnos alternados de oito horas, com revezamento semanal.
Cada trabalhador fazia, em média, uma e meia hora extra por dia. Na usina A,
realizavam-se dois turnos alternados de 12 horas com o seguinte sistema de
revezamento: sete jornadas diurnas com folga de 48 horas, seguidas de sete
jornadas noturnas.
Merece atenção especial o fato de o processo de trabalho do corte mecanizado
realizar-se em turnos noturnos e alternados. Esse modo de organização do
trabalho baseia-se na implantação de um esquema de rodízio entre os
trabalhadores, de tal forma que garanta o funcionamento ininterrupto da
produção para além do expediente convencional, inclusive à noite e aos sábados,
domingos e feriados, pressupondo o trabalho em horários irregulares e a
sujeição dos trabalhadores a uma escala de plantões. Do ponto de vista da
empresa, essa é uma estratégia que permite maximizar o uso dos meios e
instrumentos de trabalho, porque diminui em grande escala os seus períodos de
ociosidade. Esse modo de organizar a produção tem como conseqüência maior a
intensificação do ritmo de trabalho.
São conhecidos os efeitos nocivos que a intensificação do ritmo de trabalho
pode trazer para a saúde dos trabalhadores. Os estudos existentes na literatura
mostram que tal forma de organizar o trabalho pode gerar distúrbios diversos no
nível do sono, da ordem temporal interna do organismo e da vida social do
indivíduo, já que afeta o chamado ritmo circadiano, provocando, entre outros
males, o agravamento de doenças em geral, o aumento da susceptibilidade aos
riscos em geral, o estresse, o sofrimento psíquico, o envelhecimento precoce,
as alterações orgânicas de diversas ordens, principalmente nos sistemas
cardiovascular e gastrointestinal (Ferreira, 1987; Fischer, 1990).
Um operador de colhedeira revelou que sente-se prisioneiro da escala de
serviços; deplorou o fato de não ter mais a 'liberdade' que tinha de faltar
quando trabalhava no corte manual. O entrevistado informou que as faltas, as
férias, os desconto de horas, enfim, toda e qualquer ausência do trabalho deve
ser programada com antecedência mínima de 15 dias. Ele sugeriu que, no corte
mecanizado, o trabalhador perdeu autonomia em relação ao cortador manual de
cana. Neste caso, apesar da supervisão dos feitores e fiscais, durante a
jornada o trabalhador é relativamente mais livre para fazer pequenas pausas
para tomar água, café, comer ou fumar. Na usina A, no corte mecanizado, a
jornada chega a ser de 11 horas trabalhadas de fato, registradas pelos
horímetros que existem nas colhedeiras. As pausas para o descanso dos
trabalhadores não estão previstas durante a jornada de trabalho, e as refeições
são feitas nos momentos em que, por motivo de falta de caçamba ou quebra da
máquina, a operação paralisa-se.
Nas usinas estudadas, a forma de contratação do operador de colhedeira é
predominantemente direta e permanente, embora, na usina B, seis motoristas e
quatro tratoristas estivessem contratados temporariamente. Fica cada vez mais
evidente a tendência de contratação direta e permanente na lavoura canavieira
com a introdução do progresso técnico, conforme apontam Alves (1992) e Cortéz
(1993).
A introdução de colhedeiras no corte da cana permitiu mudar a forma de
remuneração do trabalho. No corte manual, o rendimento depende da agilidade e
destreza do trabalhador e a forma de pagamento por produção é utilizada para
intensificar o ritmo do trabalho. No corte mecanizado, o ritmo do trabalho é
intensificado pelo uso da máquina, o que permite remunerar por tempo e não mais
por produção. Nas usinas pesquisadas, encontrou-se um sistema de remuneração
misto com uma parte fixa (diárias) e outra variável (bonificações, prêmios). Na
usina B, a remuneração do operador é feita de acordo com as horas trabalhadas e
é composta de uma parte fixa e outra variável. A parte variável soma os prêmios
de safra, as horas extras (cada operador realiza, em média, uma e meia horas
extras por dia) e uma bonificação que, na verdade, é uma porcentagem sobre a
produção de cana cortada. Os motoristas de caminhão também são horistas, mas
não recebem nenhum tipo de bonificação. Esta é um fator de incentivo para o
desenvolvimento ininterrupto da produção e funciona como um dos mecanismos de
controle do desempenho do operador. Todavia, por ser o trabalho do operador de
colhedeira de natureza coletiva, ou seja, por ele ser membro de um coletivo de
trabalho cuja finalidade é o corte da cana-de-açúcar, o seu rendimento depende
também de outros fatores, tais como existência de cana madura para cortar,
condições climáticas e presença de outras máquinas, principalmente os caminhões
transportadores de cana. Por exemplo, se não houver caçambas disponíveis para o
carregamento da cana cortada, a colhedeira permanece parada porque não há onde
depositar a cana. Este é um dos principais fatores que afetam a parte variável
do salário.
Somados todos esses itens, o salário direto do operador na usina B perfaz um
montante entre quatro e cinco salários mínimos, o que representa,
aproximadamente, o dobro do salário de um cortador manual. No entanto, um
mecânico entrevistado chamou a atenção para o fato de que o salário do operador
é muito baixo, porque o trabalho exige muita responsabilidade. Compõem ainda o
sistema de remuneração nesta usina os benefícios sociais básicos, tais como
convênio com assistência médica e farmácia, por exemplo. Na usina A, os
trabalhadores são horistas; a bonificação estipulada pela usina não está
relacionada com a produção de cana cortada, podendo constituir-se, por exemplo,
no pagamento de horas extras a mais do que as efetivamente trabalhadas. Durante
a safra, as horas extras são remuneradas, mas na entressafra elas são
acumuladas e compensadas com períodos de folga, além das férias regulares, que
podem durar até 15 dias. Nesta usina, a remuneração do corte manual é de um
salário mínimo, em média, e, no limite superior, o salário do cortador pode
chegar a quatro salários mínimos e o do operador de máquina a oito.
A mecanização da colheita contribuiu para reduzir a média salarial dos
cortadores de cana. O uso das colhedeiras, além de contribuir para aumentar a
oferta de mão-de-obra no mercado de trabalho, contribui também para diminuir o
rendimento do cortador, porque sobram as canas de pior qualidade para os homens
cortarem, já que a máquina não opera em terrenos acidentados ou onde a cana,
por exemplo, cresceu tombada. Um levantamento do IEA mostra que o valor médio
real dos salários pagos entre 1990 e 1992 (momento de proliferação do uso das
colhedeiras) foi 54,9% menor do que na década de 80 (Nogueira, 1992).
Um operador da usina A afirmou que o seu salário é o dobro do salário de um bom
cortador de cana, mas ainda é insuficiente, porque a sua responsabilidade
aumentou consideravelmente. Ele observa que há apenas uma semelhança entre os
dois sistemas de remuneração: os mecanismos de diminuição de ganho. No corte
manual, as principais formas de controle e diminuição dos ganhos salariais
podem ser observadas na medição e na pesagem da cana (Adissi, 1990; Alves,
1992; Paixão, 1994; Eid, 1994; Silva, 1995). No corte mecanizado, ocorrem
'erros' no cômputo das horas trabalhadas e no pagamento das horas extras, que
raramente é feito de acordo com o que está estipulado na lei. Na usina A, os
operadores fazem turnos de 12 horas mas recebem apenas 11, pois é descontada
uma hora para fazer a refeição que eles efetivamente não fazem. Além disso, os
operadores não recebem a hora in etneri, quer dizer, viajam até uma hora e
trinta minutos para chegar ao local de trabalho e não são remunerados por isso.
Então, na verdade, a jornada efetiva dos operadores desta usina pode chegar a
ser de até 15 horas diárias.
Além de modificar as relações de trabalho, reduzir o número de postos de
trabalho na lavoura e os salários, a mecanização da colheita da cana tende a
modificar também o perfil ocupacional dos trabalhadores rurais. De acordo com o
responsável pelo planejamento agrícola da usina B, os requisitos exigidos para
a contratação de operadores de colhedeiras são nível de instrução básico (ler e
escrever) e treinamento. Nesta empresa, os operadores de colhedeiras,
geralmente, eram cortadores manuais que manifestaram a intenção de trabalhar
com máquinas agrícolas e interesse em receber um treinamento especial. Os
entrevistados afirmaram, unanimemente, que no mercado de trabalho ainda há
escassez de mão-de-obra treinada para operar máquinas agrícolas. Por outro
lado, há também os que afirmaram que falta mão-de-obra no corte manual porque:
"Hoje em dia ninguém quer cortar cana. Muitos vão trabalhar nas cidades
como vigilantes, domésticos. Sempre evitam cortar cana porque o salário é muito
baixo e o serviço é pesado".
Na usina B, os trabalhadores rurais que manifestam interesse em operar máquinas
agrícolas são submetidos, primeiramente, a um conjunto de testes psicológicos,
que procuram medir aptidões e habilidades psicomotoras, cognitivas e de
personalidade; sendo aprovados, passam para a fase de treinamento. Nesta usina,
anteriormente o treinamento era oferecido pelos instrutores do fabricante de
máquinas, mas, atualmente, a própria usina possui uma oficina-escola para
capacitar os interessados em fazer carreira no setor de mecanização.
Segundo um técnico agrícola, o treinamento é feito em duas etapas. A primeira
contempla atividades teóricas com aulas que abordam princípios gerais de
mecânica. Tendo diante de si o conjunto das peças que compõem os diferentes
tipos de máquinas, os treinandos aprendem sobre o funcionamento dos motores e
as formas de uso mais adequadas para evitar o seu desgaste desnecessário. A
segunda etapa consiste em um aprendizado de caráter mais prático. É realizada
no campo e os treinandos têm a oportunidade de operar as máquinas com o
acompanhamento de um instrutor. Uma vez treinados, os virtuais operadores
aguardam o surgimento de vagas nos postos de trabalho do setor de mecanização.
Depois de treinado e, havendo vagas, o trabalhador inicia operando máquinas de
pequeno porte até que desenvolva habilidade suficiente para operar as de grande
porte, tais como as colhedeiras.
Assim, é possível fazer carreira no setor de máquinas agrícolas, pois há uma
hierarquia de cargos, em cujo top encontram-se os operadores de colhedeiras, de
esteiras e de máquinas com pneus de grande porte. Um operador entrevistado
confirmou, relatando o seu próprio caso, a existência da possibilidade de
ascender do corte manual para o mecanizado, desde que o cortador demonstre
interesse e vontade de aprender. Este entrevistado corta cana desde os 16 anos
e passou por várias empresas canavieiras. Na usina B, ele manejou o podão
durante quatro anos, e há dois anos opera as colhedeiras.
"O corte manual é um serviço muito bruto. Quem está lá sempre dá um
jeitinho de sair. Foi que nem eu fiz. Eu estava trabalhando lá, saí de
ajudante. Consegui me livrar.(...)é uma chance. É um conhecimento que a gente
tem com um encarregado, talvez um teste que faz. As usinas agora, todas elas
fazem, têm escolinha para quem quiser. Então vai lá, faz um teste com a
psicóloga e, se passar no teste, aí então, assim que estiver precisando, eles
vão lá chamar. No tempo que eu entrei era conhecimento, agora tem a
escolinha." (Operador)
No entanto, este mesmo operador confessa que recebeu apenas um treinamento
informal e estritamente prático para trabalhar com as colhedeiras. Ele relatou
como foi o treinamento, sentindo-se orgulhoso por ter aprendido praticamente
por si só: "Não, o máximo que deram foi uma explicação. Ficou um operador
aqui junto comigo uns três ou quatro dias, então a gente vai aprendendo.
(...)"É, foi praticando e aprendendo". Apesar de um técnico agrícola
afirmar que há um treinamento formal oferecido pela cooperativa, os operadores
afirmaram que o iniciante aprende com os mais antigos. Na usina A, um operador
avaliou que os conteúdos ministrados nos treinamentos e que diziam respeito a
noções gerais de mecanização hidráulica foram tratados de maneira insuficiente,
genérica e superficial, deixando a desejar, uma vez que não houve demonstração
prática dos princípios e mecanismos da colhedeira. A chamada parte prática do
curso consiste no treinamento da atividade de operar a colhedeira no canavial.
A propósito, os operadores de colhedeiras entrevistados revelaram,
unanimemente, que gostam e orgulham-se do que fazem. Como a grande maioria é
proveniente do corte manual, que é um trabalho mais árduo do ponto de vista do
esforço físico, de remuneração menor e que ainda tem um baixíssimo valor
social, eles consideram que ascender para a condição de operador de máquinas
pesadas é um passo bastante significativo na carreira. A mecanização da
colheita está sendo entendida pelos cortadores manuais como uma oportunidade de
sair da condição de bóia-fria, uma designação genérica e carregada de
significado social pejorativo (pobre, miserável, analfabeto e sem qualificação,
doente, migrante que não tem paradeiro certo porque o seu trabalho é temporário
etc.). Mas há casos em que os trabalhadores retornam para o corte manual porque
não se adaptam à organização do trabalho no corte mecanizado.
Do ponto de vista do esforço que o trabalho no corte mecanizado exige e do
desgaste que provoca, um dos entrevistados afirmou:
"Olha, vou ser sincero falar, não tem diferença não. Tem... talvez a gente
ganha um pouquinho a mais do que quem corta cana, mas o sofrimento, a
preocupação, a responsabilidade... porque quem corta cana é uma pessoa
despreocupada, não corre nenhum tipo de risco. Se ele falar eu não vou
trabalhar amanhã ele não vai, se ele falar que não vai também depois de amanhã
ele não vai, não tem que dar satisfação para ninguém. Agora, nós não.(...)
Serviços deles são brutos, mas o nosso também é bruto. Nunca ouvi falar que
morreu um cortador de cana cortando cana. No serviço nosso já ouvi falar de
muitos acidentes, gente que socorreu gente que perdeu o braço, gente que está
paralítico até hoje. Eu acho que não tem diferença nenhuma entre os dois.
Talvez a pessoa que trabalha no corte de cana, eles acham que o nosso é muito
diferente do deles. Mas, aí ele passa a trabalhar e vai ver que não tem
diferença nenhuma."
A fala anterior revela também uma certa frustração da expectativa de que o
trabalho seria mais leve no corte mecanizado. O entrevistado considera que, no
corte mecanizado, o trabalho é tão penoso quanto no corte manual. O fato de um
trabalho ser ou não penoso está diretamente relacionado ao grau de controle que
o trabalhador tem sobre o processo. Como afirma Sato (1993), o trabalho é
penoso quando: "...o trabalhador não tem conhecimento, poder e
instrumentos para controlar os contextos de trabalho que suscitam vivências de
desconforto e desprazer, dadas as características, necessidades e limite
subjetivo de cada trabalhador. Ou seja, o trabalho é penoso quando o
trabalhador não é o sujeito da situação..." (Sato, 1993).
Ainda na fala transcrita anteriormente, destaca-se um trecho que, mais uma vez,
sugere a diferença fundamental entre o corte manual e o mecanizado: no
primeiro, apesar da existência de normas e da supervisão, o homem controla o
processo determinando o ritmo de trabalho; no segundo, é a máquina saber
acumulado do homem quem comanda o processo impondo-lhe o seu ritmo.
A atividade do corte é sempre realizada em dupla: o operador de máquina e o
motorista do caminhão ou trator que traciona o transbordo que recebe a cana
colhida. Neste aspecto, a atividade no corte mecânico é muito diferente daquela
no corte manual, que é uma atividade individual. No corte manual, embora
existam as regras sobre como deve ser feito o trabalho e a supervisão dos
feitores e fiscais, na verdade, é o homem que impõe o ritmo na atividade,
podendo decidir sobre a realização de pausas para tomar um café e fumar, ou
comer uma refeição, acelerar ou retrair o passo, levar um determinado número de
ruas do talhão etc. Enfim, a tarefa está sob o domínio do cortador, o que
sempre permite um lastro de tempo maior para o desenvolvimento de atividades
livres. No corte mecanizado, o operador da colhedeira e o motorista do caminhão
ou trator dirigem os veículos movendo-os paralelamente para a frente, até
atingirem o final das ruas. Enquanto se movem, devem manter um espaço de,
aproximadamente, três metros entre o caminhão e a colhedeira e, sobretudo,
devem sincronizar a velocidade dos veículos de tal forma que a cana colhida não
seja despejada para fora do transbordo. Ao chegarem ao final da rua do talhão,
ambos manobram para retornar pelo mesmo caminho. Este é outro momento que
também exige atenção e sincronia, pois qualquer movimento imprevisto feito por
qualquer uma das partes pode provocar uma colisão e/ou tombamento. Ambos
comunicam-se por meio de sinais feitos com as mãos e do uso da buzina. Segundo
um operador, evitar acidentes depende também do motorista do caminhão, que não
pode distrair-se ou cochilar.
Ao encher uma caçamba, o operador preenche um impresso que acompanha a cana
cortada para a balança da usina. Este é um impresso semelhante ao 'pirulito'
preenchido no corte manual e nele devem constar as informações sobre a ordem de
queima, número do talhão e a sua localização geográfica, o número da colhedeira
e o do operador e a produção de cana cortada. O preenchimento deste impresso é
importante para o operador porque os dados são usados no cômputo da parte
variável do seu salário. A atividade do operador de colhedeira é,
predominantemente, repetitiva e monótona, já que consiste, basicamente, na
condução da máquina de um lado para o outro dentro de um talhão, seguindo as
ruas de cana. Eventualmente, esse ritmo é interrompido para o abastecimento e/
ou conserto das máquinas.
Na entressafra, os operadores desempenham atividades no preparo do solo,
plantio e tratos culturais da lavoura de cana-de-açúcar, operando diferentes
tipos de máquinas e implementos agrícolas. Conforme aponta Cortéz (1993), a
mecanização da colheita coloca uma tendência de estabilização do número de
contratações nos períodos de safra e entressafra, exigindo a formação de um
trabalhador rural polivalente, apto para desempenhar diferentes atividades em
todas as quatro fases do cultivo da cana-de-açúcar. Além da capacidade de
desempenhar atividades nas diferentes fases do ciclo produtivo da cana, aponta-
se também uma tendência para multifuncionalidade dentro de uma mesma fase do
cultivo. Quer dizer, os operadores de máquinas estão sendo lenta mas
constantemente treinados para executarem certas atividades de manutenção e
reparação das máquinas, o que futuramente poderá permitir a dispensa de, pelo
menos, uma parte dos mecânicos que acompanham uma frente de trabalho
mecanizada.
Sabe-se que uma certa rotação nos cargos e a diversificação nas atividades é
positiva para o trabalhador, porque possibilita combater a repetitividade, a
monotonia na realização das tarefas etc., ajudando no desenvolvimento do
raciocínio e motivando para o trabalho. No entanto, as múltiplas exigências da
condição de trabalhador polivalente associadas ao ritmo intenso e quase
ininterrupto de trabalho na lavoura canavieira mecanizada podem levar o
trabalhador ao estresse. Talvez a maior exigência requerida no corte mecanizado
seja atenção e concentração para que a sincronia dos movimentos e velocidades
seja quase exata. O operador e o motorista do caminhão que carrega a cana
cortada devem estar sempre atentos aos movimentos das máquinas, mas cabe ao
operador da colhedeira perceber a velocidade do caminhão e adequar-se a ela:
"...eu estou vendo qual máquina que anda mais, qual que anda menos. Então,
ele procura controlar sempre o ritmo e a gente vai no ritmo dele".
Já está demonstrado que a alternância de turnos e o trabalho noturno afetam as
funções cognitivas em geral, principalmente a memória, a atenção e a
concentração, e que isto pode significar uma diminuição da segurança no
trabalho (Fischer, 1990; Maury & Queinnec, 1993; Meijman et al., 1993). No
corte mecanizado da cana, um pequeno desvio da atenção pode traduzir-se em
acidentes, como colisão e tombamentos de veículos pesados, com graves
conseqüências para os operadores e motoristas. Este tipo de risco é avaliado de
forma contraditória por um dos operadores, pois, ao mesmo tempo, ele nega e
aponta o perigo que está presente: "Não, não tem perigo. A gente trabalha
junto já, então eu sei a hora que ele passa, ele sabe a hora que eu vou passar.
Mas, sempre é bom ter cuidado".
Em suma, a mecanização do corte da cana representa um importante passo na
direção da subordinação real da agricultura à indústria sucroalcooleira,
inclusive podendo a primeira adotar o ritmo intenso e quase ininterrupto de
funcionamento da segunda, ou seja, 24 horas por dia durante a safra. Para os
capitalistas, a intensificação do ritmo de trabalho na lavoura canavieira
significa aumento da produtividade do trabalho com melhoria da qualidade da
matéria-prima, diminuição de custos de produção e maior agilidade na
amortização do capital investido em inovações tecnológicas. Já para os
trabalhadores rurais, a intensificação do ritmo de trabalho pode significar a
deterioração da saúde e da segurança no trabalho. Na seqüência, analisa-se como
o conjunto das cargas laborais inerentes ao processo de trabalho no corte
mecanizado pode prejudicar a saúde dos trabalhadores.
As cargas laborais do processo de trabalho do corte mecanizado e o desgaste dos
operadores de colhedeiras
A análise do processo de trabalho do corte mecanizado da cana-de-açúcar
demonstra que os operadores de colhedeiras estão submetidos a um conjunto de
cargas laborais que podem ser classificadas conforme Laurell & Noriega
(1989):
cargas físicas: a radiação solar, as mudanças bruscas de temperatura, umidade
provocada pela chuva ou sereno; ruído e vibrações provocadas pelo movimento das
máquinas, iluminação deficiente no turno noturno; cargas químicas: poeira da
terra, fuligem da cana queimada, neblinas e névoas decorrentes das mudanças de
temperatura, resíduos de produtos químicos utilizados nos tratos culturais da
cana; cargas biológicas: picadas de animais peçonhentos e contaminação
bacteriológica por ingestão de água e alimentos deteriorados; cargas mecânicas:
acidentes de trajeto e acidentes em geral provocados pelo manuseio de máquinas
de pequeno e de grande porte, pelos diversos tipos de equipamentos, implementos
e ferramentas, risco de incêndio e de explosão; cargas fisiológicas: posturas
incorretas, movimentos repetitivos, trabalho noturno e alternância de turnos;
cargas psíquicas: atenção e concentração constantes, supervisão com pressão,
consciência da periculosidade e ausência de controle do trabalho, ritmos
intensificados, ausência de pausas regulares, subordinação aos movimentos das
máquinas, monotonia e repetitividade, responsabilidade, ausência de treinamento
adequado, ameaça de desemprego e de redução no valor real do salário, entre
outras.
Esse conjunto de cargas laborais inerentes ao processo de trabalho do corte
mecanizado acentua-se durante a jornada noturna, exceto a radiação solar,
obviamente. Segundo um técnico agrícola, o rendimento do corte mecanizado é
maior no turno noturno porque, por medida de segurança, reservam-se as áreas
mais fáceis e menos acidentadas para as turmas que operam à noite. Segundo os
trabalhadores, não há diferença entre o trabalho noturno e o trabalho diurno,
mas tudo depende da qualidade da cana. Se a cana estiver muito emaranhada, o
operador pode confundir as ruas e sair da reta, porque a visibilidade é muito
menor. Embora as máquinas possuam sistemas especiais de iluminação dianteiro e
traseiro, observa-se que o risco de ocorrência de acidentes, como, por exemplo,
colisão de veículos e picada de animais peçonhentos, é redobrado na jornada
noturna. O campo de visibilidade fica limitado e nublado porque, além de a
iluminação ser insuficiente, a safra ocorre no inverno, estação em que a
madrugada é coberta de neblinas e névoas. Ademais, a monotonia e a
repetitividade dos movimentos podem fazer dormir no volante os operadores e
motoristas.
As medidas de proteção contra essas cargas são precárias e insuficientes. A
concepção de proteção à saúde que prevalece é aquela que está centrada na
atenção individual e curativa. Primeiramente, admite-se para o trabalho apenas
aqueles que possuem condições satisfatórias de saúde e não correm o risco de
ter o seu estado agravado pelo trabalho. Quando o trabalhador adoece, as
práticas são, predominantemente, curativas e direcionadas mais para a
recuperação do indivíduo enquanto força de trabalho do que para a proteção de
sua saúde. O uso de equipamentos de proteção individual (EPIs) é considerado a
forma mais eficiente de controle e monitoramento dos riscos ambientais e,
praticamente, a única maneira de proteger o trabalhador contra os acidentes e
doenças do trabalho.
Os trabalhadores entrevistados revelaram ter feito exame médico apenas na
ocasião da admissão. Nenhum deles se referiu à realização de exames periódicos,
apesar da exposição às cargas anteriormente mencionadas, principalmente ao
ruído, poeiras, vibrações, movimentos repetitivos, trabalho em turnos, entre
outras. Os equipamentos de proteção coletiva, como, por exemplo, os extintores
contra incêndio, nem sempre são encontrados nos veículos e, quando existentes,
nem sempre o condutor sabe se funcionam e como utilizá-los em caso de acidente.
E nem mesmo os EPIs mais elementares, como fone de ouvido e máscaras, e
vestimentas básicas, como boné e botina, são freqüentemente utilizados pelos
trabalhadores. Geralmente, as luvas são utilizadas apenas quando há necessidade
de consertar a máquina. As colhedeiras mais modernas possuem cinto de segurança
que dificilmente são utilizados pelos trabalhadores. Quando interrogado sobre o
porque de não usar o fone de ouvido, um operador respondeu: "Já acostumei
sem ele. É bem difícil, eu não uso". A sua resposta sugere que o
equipamento é incômodo e inadequado para o uso por tempo prolongado. E o mesmo
trabalhador, ao responder sobre que outros tipos de equipamentos deveria usar,
mostrou também que desconhece as regras de segurança e proteção relativas ao
seu trabalho:"...eu acho que só o fone".
Verifica-se que, no processo de trabalho do corte da cana-de-açúcar mecanizado,
ocorre uma certa diminuição das cargas do tipo físico (radiação solar, mudança
brusca de temperatura, calor, frio) e químico (poeira, fuligem) em relação ao
corte manual, em virtude de uma certa proteção oferecida pela cabina da máquina
(principalmente quando ela possui sistema de ventilação e refrigeração). No
entanto, se a máquina não dispõe de cabina, a poeira continua sendo um sério
elemento de risco. Conforme o depoimento de um tratorista: "...as vítimas
maiores da poeira somos nós...", porque persistem a tosse, a dor na cabeça
e na garganta e um resfriado crônico constantemente agravados pela inalação de
poeiras e fuligens. Todavia, surgem também novos elementos de risco, como o
ruído e as vibrações provocadas pelo movimento das máquinas. Os operadores de
máquinas queixam-se com freqüência de dores lombares, em razão da posição
predominantemente sentada em que trabalham; queixam-se também de dores de
cabeça e "zoeira no ouvido", por causa do ruído e da trepidação.
Pode-se dizer que o perfil de adoecimento dos operadores de máquinas agrícolas
é semelhante àquele do cortador manual de cana (Alessi & Scopinho, 1994),
mas sobressaem as doenças psicossomáticas. A organização do trabalho em turnos
noturnos e alternados associada à atenção e à concentração que a atividade
requer provocam uma intensificação do trabalho e fazem aumentar as queixas de
doenças, que afetam principalmente os sistemas cardiovascular e
gastrointestinal. Por exemplo, dores no estômago e azia são as queixas mais
comuns entre os motoristas e operadores de máquina, e os antiácidos (sal de
fruta) são os medicamentos mais consumidos entre esses trabalhadores. Alguns
afirmaram que os problemas gástricos são provocados pela poeira e pelo cheiro
de óleo queimado que os motores exalam sem parar; outros relataram que o
apetite fica muito alterado porque as refeições são feitas em horários
irregulares e locais inadequados. Quando a jornada é realizada em turnos
noturnos e alternados, os ritmos biológicos ficam alterados de tal forma, que
muitos indivíduos têm os processos relacionados ao apetite e ao sono seriamente
afetados. A propósito, as palavras de um operador revelaram como são feitas as
refeições durante os meses de safra: "...esse, é uma coisa até... a gente
fala, essa é uma coisa até engraçada. A gente almoça na hora que vai abastecer
a máquina... talvez na hora em que quebra uma coisa, uma hora que dá um
intervalo porque não tem caminhão. É a hora que a gente almoça e às vezes está
acabando de almoçar e já chega caminhão, já guarda a comida ali, toma um café
ali e volta a trabalhar de novo".
Note-se que os operadores de máquinas agrícolas continuam sendo bóias-frias, no
sentido mais popular que tem o termo, que é o de designar aquele trabalhador
que transporta a sua própria comida (geralmente o almoço) em caldeirões ou
marmitas para o local de trabalho, onde faz as refeições. Por terem que levar a
'bóia', estão também expostos ao risco de uma contaminação por agentes
biológicos que podem proliferar em razão do calor.
Os entrevistados são unânimes em admitir a impossibilidade de conciliação do
sono, principalmente quando qualquer intercorrência doméstica atrapalha o
horário ou impede o silêncio necessário para a sua tranqüilidade. O convívio
social e as atividades de lazer em geral ficam totalmente prejudicados na
safra. Quando a jornada é diurna, o cansaço impede a diversão, além de o tempo
livre ser muito curto; quando a jornada é noturna, além do cansaço, falta
companhia, porque o trabalhador descansa enquanto os outros trabalham, sem
contar que ele se sente prisioneiro do compromisso de ter que se apresentar no
local de trabalho no final da tarde. "Estado de nervo, é o que mais dá.
Nossa! Talvez tem dia que a gente não pode nem... o moleque da gente vem
brincar com a gente e a gente não tem nem disposição e já fica até bravo. É, um
do maiores problemas da gente é o estado de nervo."
Quanto às cargas mecânicas, Alessi & Scopinho (1994) verificaram que, no
corte manual da cana, predominam acidentes leves, com tempo de afastamento
menor do que 15 dias, que não requereram internação e não deixaram seqüelas.
Quanto aos ferimentos, 80,50% atingiram principalmente os membros superiores e
inferiores e foram provocados pelos instrumentos de trabalho. No corte
mecanizado, parece que a introdução da máquina provoca uma diminuição no número
de acidentes e um aumento na sua gravidade.
Para verificar essa hipótese, procurou-se levantar o número de acidentes e
doenças registrados em Comunicação de Acidentes do Trabalho (CAT), referentes
aos operadores de máquinas agrícolas e cortadores de cana. No entanto, no
Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) o sistema de informação em acidentes
e doenças, que deveria ser construído com base nos dados registrados nas CATs,
é praticamente inexistente. A tentativa de informatização foi feita, mas,
segundo os profissionais entrevistados, os recursos materiais e humanos são
escassos, além de parecer não haver interesse institucional em construir um
sistema de informações ágil e eficiente em saúde do trabalhador. Na região de
Ribeirão Preto, a saúde pública é o setor estatal que tem tomado algumas
iniciativas em termos de informatização/ sistematização dos dados registrados
nas CATs. A Divisão Regional de Saúde (DIR-18) informatizou, em caráter
experimental, os dados referentes aos acidentes de trabalho ocorridos no ano de
1995 nos 24 municípios pertencentes à sua regional. Porém, a forma de
sistematização dos dados não permite analisar o registro da ocorrência de
acidentes em termos da função exercida pelo trabalhador. Só é possível obter
este tipo de dado por meio do processamento manual dos 4.429 documentos
emitidos, por exemplo, somente durante o ano de 1995, o que não foi possível
realizar no contexto desta investigação, por causa dos limites de tempo. O
levantamento desses dados poderá ser objeto de um novo projeto de pesquisa, uma
vez que os dados quantitativos são importantes para validar os dados
qualitativos obtidos dos relatos e das observações feitas.
Segundo o relato dos trabalhadores entrevistados, os acidentes ocorrem com mais
freqüência quando são realizados os consertos e a limpeza nas máquinas. Eles
são mais raros em relação ao corte manual, porém mais graves, e, geralmente,
trata-se de cortes provocados pelo manuseio de lâminas afiadas sem o devido uso
da luva de proteção. É raro mas pode ocorrer a perda de membros inferiores e
superiores quando ocorre colisão, tombamentos e atividades de manutenção que
necessitam ser feitas com o motor em funcionamento. Lembrando as palavras de um
operador: "Nunca ouvi falar que morreu um cortador de cana cortando cana.
No serviço nosso já ouvi falar de muitos acidentes, gente que socorreu gente
que perdeu o braço, gente que está paralítico até hoje".
A fala dos trabalhadores sobre o seu estado de saúde é contraditória: ao mesmo
tempo em que eles negam as doenças, também as afirmam e ainda apontam as
enfermidades mais prevalecentes. À semelhança dos cortadores manuais de cana
(Alessi & Scopinho, 1994; Scopinho, 1995), em geral, os operadores de
máquinas agrícolas não percebem relação existente entre os sintomas e as cargas
existentes no ambiente de trabalho: "Não, nunca tive problemas. Sempre
aparece um problema mas não por causa do trabalho. Todo mundo tem uma gripe,
uma dor de cabeça, uma dor nas costas e no estômago".
Finalmente, é válido destacar que os resultados desta investigação confirmam as
hipóteses levantadas por Scopinho (1995), apontando que a mecanização tem
trazido importantes mudanças nas relações e condições de trabalho na lavoura
canavieira. Porém, tais mudanças não têm logrado melhorar substancialmente as
condições de vida e de trabalho dos assalariados rurais canavieiros.
Agradecimentos
Agradecemos à Fapesp pelo auxílio-pesquisa; ao Dr. Fernando Antônio Cerdeira, à
Dra. Tany Maria Soares; ao Prof. Dr. Sidney Valladares Pimentel e à Profa. Dra.
Luiza B. Alonso, pela leitura crítica e apresentação de sugestões.