Da escola de ofício a profissão educação física: a constituição do habitus
profissional de professor
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Introdução
Este estudo emergiu num momento em que o movimento da profissionalização do
magistério vem sendo discutido na sociedade brasileira, tendo suas incursões
nas reformas dos programas de formação profissional ou na perspectiva de se
formar um professor mais poderoso que traga respostas ou soluções para o
ultrajante fracasso escolar.
De um lado questiona-se o neoliberalismo das reformas, apontando-se para o
funcionalismo da idéia de profissão, enquanto que de outro observa-se a
proletarização do professor e a terceirização da educação e do ensino.
Assim, para além desse pêndulo, este trabalho busca apontar que não é possível
desconsiderar a atual estrutura ou sistema no qual estamos vivendo, bem como
não é possível negar a cultura e historicidade da qual cada homem é portador em
seu corpo. O que implica em considerar a sua subjetividade. Portanto, o que se
busca discutir nesse texto diz respeito a perspectiva de mediação que pode
ocorrer entre o objetivismo e o subjetivismo, visando superá-los, tendo como
chave de leitura a teoria do habitus.
Dessa forma este trabalho tem como objetivo identificar nos elementos
constituintes do habitus profissional de professor as categorias pedagógicas
que possam contribuir para uma possível "gênese" da profissão docente pautada
nos saberes, práticas, valores. Como ponto de partida opta-se, inicialmente,
pela delimitação da compreensão do universo de algumas categorias, apontando
também a questão de estudo na forma de um problema e ou pressuposto (hipótese)
que nos movem na direção de possíveis encaminhamentos.
No âmbito desse processo por profissão vamos entender uma determinada atividade
que conta com a presença de um conjunto de atributos, características próprias.
Porém, no que diz respeito à idéia de profissão docente esta é considerada por
alguns autores (PAPI, 2005) como uma semi-profissão ou como ofício.
Na realidade brasileira, em virtude da adoção do modelo continental europeu,
vinculado ao campo de trabalho não se leva veemente em consideração as
distinções peculiares do modelo anglo saxônico e/ou anglo-americano em que se
opera uma radical separação, valorizando a qualidade da prestação de serviços
(COELHO, 1999). Em nosso país, bem como em outros países latinos-americanos ou
europeu tudo é profissão, sendo usado indistintamente, assim como nesse
trabalho para este momento. Porém, é uma realidade em transformação tanto no
Brasil como na Europa.
Neste contexto, Pintassilgo (1999) considera o professor como prático e como
intelectual. Como prático, verdadeiro artesão do ensino, possuindo uma visão
global do ato de ensinar, tendo como norte deste exercício "um saber de
experiência feito" (p. 97), pautado na afetividade e imaginação na organização
de sua atividade. Como intelectual, ao menos idealmente, quando assume sua
autonomia e criticidade em relação aos saberes e poderes, bem como em relação à
criação de seu estilo próprio de exercer a profissão, fazendo com que o docente
tenha como referência normas deontológicas e éticas, dando sentido a sua
profissão.
Entretanto cabe evidenciar que no campo do trabalho tanto o ofício como a
profissão são vistos como ocupações. No geral pode-se colocar que a ocupação é
o modo genérico de organizar o trabalho, sendo apenas "emprego" na sua forma
menos organizada e "profissão" na sua forma mais organizada.
Qualquer que seja a forma de definir 'profissão' ela é, antes de tudo
e principalmente, um tipo específico de trabalho especializado
[...]Obviamente, uma grande parcela de trabalho é efetuada em casa e
na comunidade, mas boa parte dele não é reconhecida como trabalho:
algumas vezes, porque não é formalmente recompensada; outras, porque
não se realiza em tempo integral. Outros tipos de trabalho são pagos
e realizados em tempo integral, mas informalmente, à margem da
economia oficial. O restante desse amplo universo de trabalho é
composto de ocupações e ofícios desempenhados na economia reconhecida
oficialmente. É aí que encontramos as profissões, listadas como um
tipo especial de ocupação nas modernas classificações oficiais
[...]"muitas profissões tiveram suas origens na economia informal e
só depois se tornaram reconhecidas oficialmente" (FREIDSON, 1998, p.
142 143).
De modo que a terminologia acaba remetendo a um método formal lógico,
possibilitando o controle e a organização do trabalho (FREIDSON, 1998).
Assim por profissionalização vamos entender o processo socializador de
aquisição de características inerentes ao exercício profissional, estando
estritamente ligada ao termo profissionalidade, ou seja, como as
características e capacidades específicas da profissão docente (IMBERNÓN, 2004,
p.24).
Porém, a utilização do termo profissionalidade é recente, da mesma forma que a
palavra em si, pois na língua portuguesa não é encontrada, Em sua origem
italiana pode aparecer como sinônimo de profissionalismo, pois o substantivo
profissionalidade corresponde ao caráter profissional de uma atividade
econômica. Da mesma forma que é também entendida como a soma de conhecimentos,
capacidades e experiências que se põem em jogo nessa atividade.
Nesta compreensão o debate sobre a profissionalidade docente passa,
necessariamente, pelos termos profissão, profissionalismo e profissionalização,
sendo apresentada como sinônimo de profissionalismo. Por exemplo:
"profissionalismo alguns estudos dizem profissionalidade características e
capacidades específicas da profissão; profissionalização: processo socializador
de aquisição de tais características" (IMBERNÓN, 2004, p. 24).
Desta forma aborda-se o termo profissionalidade como parte integrante do termo
profissionalismo, definindo o processo de profissionalização como o meio pelo
qual o professor adquire tais características e valores próprios da profissão,
ou seja, a profissionalidade docente.
No entanto, Contreras (2002), ao tratar do processo de profissionalização
docente, vai colocar que alguns autores evitam utilizar o termo
"profissionalismo", por conter uma descrição ideológica, junto aos valores
anteriores, acerca do status e dos privilégios sociais e trabalhistas aos quais
se aspira na profissão docente.
Para o autor, o termo profissionalidade surge no âmbito de se oferecer um novo
sentido ao termo profissionalismo: "Em seu lugar, optou-se pelo termo
profissionalidade, como modo de resgatar o que de positivo tem a idéia de
profissional no contexto das funções inerentes ao trabalho da docência." (p.
73).
Assim falar de "profissionalidade significa, nessa perspectiva, não só
descrever o desempenho do trabalho de ensinar, mas também expressar valores e
pretensões que se deseja alcançar e desenvolver nesta profissão" (p. 74).
Portanto, a profissionalidade docente se desenvolve, englobando três dimensões:
obrigação moral, compromisso com a comunidade e competência profissional que é
mais do que o saber fazer e envolve as outras duas dimensões. Dessa forma,
essas três dimensões têm como objetivo, no seu conjunto, apresentar os
componentes que estão envolvidos com a tarefa de educar e com o exercício de
sua profissionalidade dentro de um contexto de produção da cultura.
No âmbito dessa cultura os saberes docentes foram se constituindo também como
algo plural no âmbito sócio-cultural da profissão, podendo apresentar
modificações com o passar do tempo (BENITES, 2007). Neste contexto, para
Benites (2007) o termo saber estaria incluindo informações, crenças,
habilidades e aptidões relacionadas a uma determinada profissão. Assim, para a
autora, em relação ao trabalho docente, o mesmo pode envolver uma grande teia
de saberes, perpassando a matéria a ser ensinada, a fundamentação teórica sobre
a ação docente, saber preparar e dirigir atividades, saber avaliar, utilizar a
pesquisa e a inovação. Entre outras palavras este arcabouço envolveria um
conjunto de saberes: curriculares, das ciências da educação, da tradição
pedagógica, disciplinares, da ação pedagógica e da experiência, podendo
apresentar uma variação de autor [PIMENTA (1997); TARDIF(2002)]para autor em
sua sistematização de acordo com o recorte adotado, podendo não ter o mesmo
significado.
Da mesma forma que esta cultura engendra um corpo de saberes que dão
sustentação a profissionalidade ela também aponta para a composição de uma
identidade entendida, neste estudo, como o processo de construção social de um
sujeito historicamente situado.
De acordo com Benites (2007, p.10) em se tratando da identidade profissional,
esta se constrói com base na significação social da profissão e de suas
tradições. Neste itinerário, a profissão de professor, como as demais
profissões, emergiu num dado contexto como resposta às necessidades postas
pelas sociedades, constituindo-se num corpo organizado de saberes e um conjunto
de normas e valores. Estes saberes, valores e normas, com o passar do tempo,
materializam-se na forma de uma tradição, criando ou gerando uma identidade
social que envolve a criação de procedimentos institucionalizados de formação
específica, especializada e prolongados; constituição de associações
profissionais e manifestação de um estatuto de legalidade.
Dessa forma tanto a questão da profissionalidade, como os saberes docentes e a
identidade profissional, bem como os conceitos de profissão ou formação trazem
como compreensão desse processo a idéia de cultura. A cultura pode ser expressa
por meio de seus valores e sentimentos, rituais, instituições, objetos e
costumes que circundam a vida individual e coletiva da sociedade. Portanto, ao
"'viver' uma determinada cultura, estaremos reproduzindo-a, reinterpretando-a e
transformando-a "(CHAIM_JUNIOR, 2007, p. 14).
Assim, Knoblauch (2007, p.4-5) assinala que a escola, enquanto instituição é
responsável por transmitir um conjunto de esquemas fundamentais, na forma de
uma "'força formadora de hábitos', baseados numa mesma cultura". De modo que a
escola teria a função de transmitir um habitus cultivado, um sistema de
disposição geral baseado numa mesma cultura, caracterizando a internalização de
uma cultura, a incorporação do habitus, para que este produza práticas. Porém,
um mesmo habitus, por sua vez, admite práticas diferenciadas como um produto da
relação entre o habitus e uma determinada situação conjuntural.
A noção de habitus será entendida na mesma dimensão que Pierre_Bourdieu (1989)
atribuiu ao mesmo, considerando que tende a conformar e orientar a ação dos
indivíduos, pois, na medida que influencia o relacionamento entre pessoas,
"produz alguns produtos" que tendem à perpetuar o costume de uma cultura.
Nesta direção, Setton (2002) assinala que o habitus é uma noção que auxilia a
pensar as características de uma identidade social, de uma experiência
biográfica, um sistema de orientação, ora consciente, ora inconsciente.
Portanto, com base nos estudos de Bourdieu (1989, 1994a, 1994b, 1994c, 1994d,
1994e, 1996, 2007), verifica-se que o habitustraduz exatamente o modo de ser
professor, contemplando características específicas que podem nos auxiliar na
compreensão da prática profissional do professor, bem como proporcionar uma
leitura mais objetiva sobre a figura do professor, constituindo-se no foco
deste trabalho que se elucida com a seguinte questão ou problemática:
Quais são os elementos constituintes do habitus profissional de professor de
Educação Física que contribuem para a construção da identidade docente, mas que
não são revelados a priori?
Na busca de respostas a este problema parte-se do pressuposto de que embora o
conhecimento específico do professor seja pautado num saber tácito e na
academia/formação os conhecimentos apareçam pré-configurados não será possível
avançar na questão pedagógica se não se efetivar uma mediação entre o
objetivismo (estruturalismo) e o subjetivismo (construtivismo).
A teoria do habitus: uma gramática para a leitura da profissão professor
Bourdieu (1989), num raro texto, autobiográfico, assinala que se tivesse que
caracterizar o seu trabalho em duas palavras, ou seja, se tivesse que lhe
aplicar um rótulo falaria de constructuvist structuralism ou de structuralism
constructuvist,tomando a palavra estruturalismo no sentido daquele que lhe é
dado pela tradição saussuriana e lévi-straussiana.
O texto assinala para a perspectiva de se tentar entender como determinados
grupos sociais ou instituições (igreja, política, ciência, arte, esporte,
educação, mídia etc) demarcavam o seu "território", na luta política pela
obtenção de um espaço social, caracterizado por um capital específico, capital
cultural, "capital simbólico", bem como organizavam a sua identidade em termos
de prática social e representação.
Na visão do autor, a ciência social, tanto a antropologia como a sociologia e a
história, oscila entre dois pontos de vista, aparentemente incompatíveis: o
objetivismo (ou fisicalismo = física social) e o subjetivismo [psicologismo
(que pode tomar diversas colorações fenomenológica, semiológica etc)]. O
primeiro pode tratar os fatos sociais como coisas e deixar de lado tudo o que
eles devem-se ao fato de serem objetos de conhecimento (ou de desconhecimento)
na existência social; enquanto que o segundo, pode reduzir o mundo social às
representações que dele fazem parte os agentes.
Para o autor, ambos os momentos estão numa relação dialética, uma vez que se o
momento subjetivista está próximo quando o tomamos isoladamente nas análises
interacionalistas, o mesmo aparece separado do momento objetivista quando se
observa a posição (pontos de vista) dos respectivos agente na estrutura.
Dessa forma para romper com esta oposição artificial, que se estabeleceu entre
as estruturas e as representações, é preciso, antes, romper com o modo de
pensamento substancialista que leva a não reconhecer nenhuma outra realidade,
além das que se oferecem à intuição direta na experiência cotidiana dos
indivíduos e grupos.
Mas há uma grande probabilidade de que o espaço, isto é, as relações,
escape ao leitor, apesar do recurso a diagramas (e a analise
fatorial): de um lado, porque o modo de pensamento substancialista é
mais fácil, mais "natural"; e, depois, porque, como muitas vezes
acontece, os meios que se é obrigado a empregar para construir o
espaço social e para torná-lo manifesto podem esconder os resultados
que eles permitem alcançar. Os grupos que se devem construir para
objetivar as posições que eles ocupam escondem estas posições, (...).
É possível, a esta altura da exposição, comparar o espaço social a um
espaço geográfico no interior do qual se recortam regiões. Mas este
espaço é construído de tal maneira que quanto mais próximos estiverem
os grupos ou instituições ali situados, mais propriedades eles terão
em comum; quanto mais afastados menos propriedades em comum eles
terão (BOURDIEU, 1989, p. 154 o grifo é nosso).
No geral, o autor conclui que o mal entendido, na leitura das análises que
propõe, resulta do fato de que as classes, no papel, correm o risco de serem
aprendidas como grupos reais. O espaço social está construído de modo que os
agentes, que ocupam posições semelhantes ou vizinhas, estão colocados em
condições semelhantes e submetidos a condicionamentos semelhantes, podendo-se
produzir práticas também semelhantes.
De fato, as distâncias sociais estão inscritas nos corpos, ou, mais
precisamente na relação com o corpo, com a linguagem e com o tempo
(outros aspectos estruturais da prática que a visão subjetivista
ignora).
Se acrescentarmos que esse sense of one's place, bem como as
afinidades de Habitus vividas como simpatia ou antipatia, estão na
origem de todas as formas de cooptação amizades, amores,
casamentos, associações, etc. logo, de todas as ligações duráveis e
às vezes juridicamente sancionadas, perceberemos que tudo nos leva a
pensar que as classes no papel são grupos reais, e tanto mais reais
quanto mais bem construído for o espaço e menores unidades recortadas
nesse espaço. (p. 155)
Pondera-se que, assim como o subjetivismo predispõe a reduzir as estruturas às
interações, o objetivismo tende a deduzir as ações e interações da estrutura,
consistindo-se num erro considerar as classes ou os grupos no papel como
classes e grupos reais.
Assim, o erro maior, o erro teoricista encontrado em Marx,
consistiria em tratar as classes no papel como classes reais, em
concluir, da homogeneidade objetiva das condições, dos
condicionamentos e, portanto das disposições, que decorre da
identidade de posições no espaço social, a existência enquanto grupo
unificado, enquanto classe. (p. 156)
Como saída, a noção de espaço social permitiria escapar à alternativa do
nominalismo e do realismo em matéria de classes sociais, dado que somos nós que
construímos o espaço social.
Em outros termos, através da distribuição das propriedades, o mundo
social apresenta-se, objetivamente, como um sistema simbólico que é
organizado segundo a lógica da diferença, do desvio diferencial. O
espaço social tende a funcionar como um espaço simbólico, um espaço
de estilos de vida e de grupos de estatuto, caracterizados por
diferentes estilos de vida.
Assim, a percepção do mundo social é produto de uma dupla
estruturação: do lado objetivo, ela é socialmente estruturada porque
as propriedades atribuídas aos agentes e instituições apresentam-se
em combinações com probabilidades muito desiguais: assim como os
animais com penas têm mais possibilidades de ter asas do que os
animais com pêlo, (...). Do lado subjetivo, ela é estruturada porque
os esquemas de percepção e apreciação, em especial os que estão
inscritos na linguagem, exprimem o estado das relações de poder
simbólico: penso, por exemplo, nos pares de adjetivos: pesado/leve,
brilhante/apagado, etc. (p. 160-161)
Neste contexto encontramos também as lutas simbólicas, envolvendo a apreensão
da percepção do mundo social no âmbito do lado objetivo - relacionadas a ações
de representação individual e coletiva destinadas a mostrar e a fazer valerem
determinadas realidades como o manifesto de um grupo, buscando a sua
visibilidade e/ou ao nível individual, visando a apresentação de si, a
manipulação da imagem de si e, sobretudo, de sua posição no espaço social e
do lado subjetivo tentando mudar as categorias de percepção e apreciação do
mundo social, as estruturas cognitivas e avaliatórias: as categorias de
percepção, os sistemas de classificação (as palavras, os nomes que constroem a
realidade social).
Essas lutas simbólicas, tanto as lutas individuais da existência
cotidiana como as lutas coletivas e organizadas da vida política, têm
uma lógica específica que lhes confere uma autonomia real em relação
às estruturas em que estão enraizadas. Pelo fato de que o capital
simbólico não é outra coisa senão o capital econômico ou cultural
quando conhecido e reconhecido, quando conhecido segundo as
categorias de percepção que ele impõe, as relações de força tendem a
reproduzir e reforçar as relações de força que constituem a estrutura
do espaço social. Em termos mais concretos, a legitimação da ordem
social não é produto, como alguns acreditam, de uma ação
deliberadamente orientada de propaganda ou de imposição simbólica;
ele resulta do fato de que os agentes aplicam às estruturas objetivas
do mundo social estruturas de percepção e apreciação que são
provenientes dessas estruturas objetivas e tendem por isso a perceber
o mundo como evidente (p. 163).
Desse modo, as relações objetivas de poder tendem a se reproduzir nas relações
de poder simbólico, bem como na luta simbólica pelo monopólio da nominação
legítima, produção do senso comum, pois os agentes investem o capital simbólico
que adquiriram e que pode ser juridicamente garantido, como os títulos
escolares títulos de propriedade simbólica que dão direito às vantagens de
reconhecimento.
A legalização do capital simbólico confere a uma perspectiva um valor
absoluto, universal, livrando-a assim da relatividade que é inerente,
por definição, a qualquer ponto de vista, como visão tomada a partir
de um ponto particular do espaço social.
Há um ponto de vista oficial, que é o ponto de vista das autoridades
e que se exprime no discurso oficial. Esse discurso, (...), preenche
três funções: em primeiro lugar, ele opera um diagnóstico, (...), um
ato de conhecimento que obtém o reconhecimento e que, com muita
freqüência, tende a afirmar o que uma pessoa ou uma coisa é, e o que
ela é universalmente, para qualquer homem possível, logo,
objetivamente. (...). Em segundo, o discurso administrativo, através
das diretivas, ordens, prescrições, etc., diz que as pessoas têm de
fazer, considerando o que elas são. Em terceiro, ele diz o que as
pessoas realmente fizeram, como nos relatórios oficiais. (p. 164)
Enfim, o que se tem é, de fato, um jogo em que o poder simbólico tem o poder de
fazer grupos e está fundado na posse de um capital simbólico, sendo este
considerado uma espécie de crédito (poder atribuído àqueles que obtiveram
reconhecimento). Depois há a eficácia simbólica que depende do grau em que a
visão proposta esta alicerçada na realidade. Entretanto, toda esta proposta e
as premissas que orientam o trabalho do autor desembocam-se em dois pontos
centrais de sua reflexão, a noção de habitus e a compreensão de campo.
A noção de habitus
Uma das funções maiores da noção de habitus consiste em descartar
dois erros complementares nascidos da visão escolástica: por um lado,
omecanicismo, que sustenta que a ação é o efeito mecânico da coerção
por causas externas; por outro lado, o finalismo, que, em particular
com a teoria da ação racional, sustenta que o agente atua de forma
livre, consciente, e, como dizem alguns utilitaristas, with full
understanding, já que a ação é fruto de um cálculo das possibilidades
e dos benefícios (BOURDIEU, 1989, pág. 183)
A idéia de habitus foi uma proposta da Escolástica que ficou conhecida por
tentar conciliar a Filosofia e a Teologia nas escolas da Idade Média. Esta
concebia o habitus como uma disposição estável para se operar numa determinada
direção, num processo de repetição, visando criar uma certa naturalidade entre
sujeito e objeto na compreensão de que o hábito deveria se constituir na
segunda dimensão do homem.
Decorrente desta compreensão reinterpreta-se a noção de habitus, colocando que
este se apresenta como disposição estável para operar numa determinada direção.
De modo que através da repetição, conseqüentemente, cria-se certa naturalidade
entre sujeito e objeto dando o sentido de que o hábito se tornava uma segunda
dimensão do homem, o que efetivamente assegurava a realização da ação
considerada.
Se o mundo social tende a ser percebido como evidente e a ser
apreendido para empregar os termos de Husserl, segundo uma modalidade
dóxica, é porque as disposições dos agentes, o seu habitus, isto é,
as estruturas mentais através das quais eles apreendem o mundo
social, são em essência produto da interiorização das estruturas do
mundo social. (BOURDIEU, 1989, p 158).
As estruturas sociais e as estruturas mentais perpassam todo este processo,
abarcando de um lado o objetivismo e de outro o subjetivismo. Dito de outra
forma se pode colocar que há uma correspondência entre as estruturas sociais e
as estruturas mentais, entre as divisões objetivas do mundo social dominantes
e dominados nos diferentes campos e os princípios de visão e divisão que os
agentes lhes aplicam (BOURDIEU, 1991, p. 113).
Na análise de exploração das estruturas cognitivas (construtivista) os agentes
investem nas ações e representações pelas quais constroem a realidade social;
enquanto que nas estruturas sociais (estruturalista), estruturas objetivas, a
contribuição está na análise dos esquemas de percepção, de apreciação e de ação
que os agentes, alunos, assim como professores, põem em ação em seus
julgamentos e suas práticas. Posto de outro modo, o discernimento decorrente
desse processo aponta para a operação de um habitus, Isto é, de esquemas
geradores de classificações e de práticas classificáveis. Portanto, o habitus
está vinculado geneticamente e também estruturalmente a esquemas, forma
incorporada, e a uma tomada de posição prática sobre este espaço. (BOURDIEU,
1991, p. 114).
A idéia de habitus se apresenta para Bourdieu (1989, 1990a, 1994a, 1994d,
1994e), bem como em estudiosos de seu trabalho (ORTIZ, 1994; WACQUANT, 2007a,
2007b, entre outros) como um sistema de esquemas para a elaboração de práticas
concretas, uma espécie de gramática das ações que serve para diferenciar uma
classe de outra no terreno social.
Para o autor, pode-se considerar o habitus como aquilo que se adquiriu, mas que
se encarnou de modo durável no corpo sob a forma de disposições permanentes.
Habitus seria algo "potencialmente gerador", "um produto dos condicionamentos"
que tende a reproduzir a lógica objetiva dos condicionamentos, mas fazendo-
a sofrer uma transformação.
Bourdieu (1983, 1989, 1990a, 1990b, 1994b, 1994e) considera que o habitus tende
a conformar e orientar a ação, mas, na medida em que é produto das relações
sociais, ele tende a assegurar a reprodução dessas mesmas relações objetivas
que o engendraram. A interiorização, pelos atores, dos valores, normas e
princípios sociais assegura, dessa forma, a adequação entre as ações do sujeito
e a realidade objetiva da sociedade como um todo (BOURDIEU, 1989, 1994b, 1996;
ORTIZ, 1994; WACQUANT, 2007b).
Trata-se de uma disposição estável para se operar numa determinada direção.
Através da repetição, conseqüentemente, cria-se certa naturalidade entre
sujeito e objeto dando o sentido de que o hábito se tornava uma segunda
dimensão do homem, o que efetivamente assegurava a realização da ação
considerada. De modo que habitus se define como um sistema de disposições
duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas dispostas a funcionar como
estruturas estruturantes,como princípios geradores e organizadores de práticas
e de representações que podem ser objetivamente adaptadas a seu propósito.
Dessa forma, entender o habitus como um conjunto de disposições, decorrentes
das estruturas sociais, preparadas para a ação significa falar numa dimensão
prática, num sentido prático que apela para um domínio de conhecimento pré-
reflexivo, pois o agente orienta sua ação no mundo sem pensá-lo. Portanto,
trata-se de uma hipótese construída no papel.
No geral, o habitus pode ser considerado como uma sociologia genética das
disposições relacionadas ao agir, sentir, acreditar e pensar e de suas
atualizações com a tarefa de ultrapassar a oposição entre sociedade e individuo
(LAHIRE, 2002a).
A compreensão de campo (espaço social)
Bourdieu (1983, 1989, 1990b, 1994c, 1994d, 1994e) chega à noção de campo, como
sendo o espaço onde as posições dos agentes se encontram a priori fixadas. O
campo se define, assim, como o locus onde se trava uma luta entre os atores em
torno de interesses específicos que caracterizam a área em questão. Por
exemplo:
(...) o campo das práticas esportivas é o lugar de lutas, pois entre
outras coisas disputam o monopólio de imposição da definição legitima
da prática esportiva e da função legitima da atividade esportiva,
amadorismo contra profissionalismo. No geral este campo está ele
também inserido no campo das lutas pela definição do corpo legitimo e
do uso legitimo do corpo, lutas que além de oporem entre si,
treinadores, dirigentes, professores de ginástica e outros
comerciantes de bens e serviços esportivos, opõem também os
moralistas... (BOURDIEU, 1983, p. 142),
Para Bourdieu (1983, 1989) um "campo" se legitima no exercício de determinadas
práticas sociais que formam também um "habitus" em função de um "capital
simbólico" que é obtido através de lutas políticas na demarcação de seu
território. Porém, o "campo" é definido como um espaço social de relações
objetivas, pois...
Os campos se apresentam à apreensão sincrônica como espaços
estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem
das posições nestes espaços, podendo ser analisadas independentemente
das características de seus ocupantes (em parte determinadas por
elas) (BOURDIEU, 1983, p. 89).
Dessa forma, o autor chega à noção de campo, como sendo o espaço onde as
posições dos agentes se encontram a priori fixadas. O campo se define, assim,
como o locus onde se trava uma luta entre os atores sociais em torno de
interesses específicos que caracterizam a área em questão. É um espaço onde se
manifestam as relações de poder, sempre a partir do "capital social" dos
agentes que estão em dois pólos: dominantes e dominados. Dentro dessa
perspectiva resolve-se o problema da adequação entre ação subjetiva e
objetividade da sociedade, uma vez que todo ator age no interior de um campo
socialmente predeterminado.
Bourdieu dedica grande parte de seu trabalho conceituando_o
quedenomina campo de produção de bens culturais e simbólicos,
identificando-os abstratamente na sociedade enquanto espaços
portadores de especificidades: campo escolar, campo científico, campo
artístico, campo político, campo jornalístico etc.
Os campos possuem traços estruturalmente equivalentes ou determinados
homologias estruturais e funcionais que lhes proporcionam
identificação. Entretanto, possuem especificidades, objetivos e
determinadas características que são inerentes e irredutíveis a
outros campos. Há em cada um dos agentes (profissionais, grupos e
instituições) que se movimentam desenvolvendo ações e práticas
sociais e produzindo capital de diferentes espécies e graus de
legitimidade.
Os agentes, no interior de cada campo e externamente, vivenciam
divergências, conflitos e consensos, tendo como fundamento o quantum
de capital simbólico conquistado ou acumulado historicamente. O
capital simbólico, como aponta Bourdieu, é uma espécie de crédito,
refere-se ao poder atribuído àqueles que obtiveram reconhecimento
suficiente para ter condições de impor reconhecimento (CANESIN, 2002,
p. 97).
Dessa forma, o campo deve ser entendido enquanto espaço objetivo de um jogo, um
lugar de luta onde se manifestam e se definem as relações de poder. No interior
de cada campo estão reservados espaços para os dominantes (aqueles que possuem
um máximo de capital social) e para os dominados (ausência do capital
específico que define o campo). Assim, a estrutura de um campo tende a se
definir pela conservação ou subversão da estrutura de distribuição do capital
específico ou simbólico. Sobre o assunto Lahire (2002b, p.47-48) nos apresenta
uma síntese muito clara com relação a compreensão de campo de Bourdieu, com
base nas obras "Quelques propriétés des champs" (1980) e "Le champ littéraire"
(1991) ao assinalar que:
Um campo é um microcosmo incluído no macrocosmo constituído pelo espaço
social (nacional) global.
Cada campo possui regras do jogo e desafios específicos, irredutíveis às
regras do jogo ou aos desafios dos outros campos (o que faz "correr" um
matemático e a maneira como "corre" nada tem a ver com o que faz "correr"
e a maneira como "corre" um industrial ou um grande costureiro).
Um campo é um "sistema" ou um "espaço" estruturado de posições.
Esse espaço é um espaço de lutas entre os diferentes agentes que ocupam as
diversas posições.
As lutas dão-se em torno da apropriação de um capital específico do campo (o
monopólio do capital específico legítimo) e/ou da redefinição daquele capital.
O capital é desigualmente distribuído dentro do campo e existem, portanto,
dominantes e dominados.
A distribuição desigual do capital determina a estrutura do campo, que é,
portanto, definida pelo estado de uma relação de força histórica entre as
forças (agentes, instituições) em presença no campo.
As estratégias dos agentes entendem-se se as relacionarmos com suas posições
no campo.
Entre as estratégias invariantes, pode-se ressaltar a oposição entre as
estratégias de conservação e as estratégias de subversão (o estado da relação
de força existente). As primeiras são mais freqüentemente as dos dominantes e
as segundas, as dos dominados (e, entre estes, mais particularmente, dos
"últimos a chegar"). Essa oposição pode tomar a forma de um conflito entre
"antigos" e "modernos", "ortodoxos" e "heterodoxos"...
Em luta uns contra os outros, os agentes de um campo têm pelo menos interesse
em que o campo existae, portanto, mantêm uma "cumplicidade objetiva" para além
das lutas que os opõem.
Logo, os interesses sociais são sempre específicos de cada campo e não se
reduzem ao interesse de tipo econômico.
A cada campo corresponde um habitus (sistema de disposições incorporadas)
próprio do campo (por exemplo o habitusda filologia ou o habitusdo pugilismo).
Apenas quem tiver incorporado o habituspróprio do campo tem condição de jogar o
jogo e de acreditar n(a importância d)esse jogo.
Cada agente do campo é caracterizado por sua trajetória social, seu habituse
sua posição no campo.
Um campo possui uma autonomia relativa: as lutas que nele ocorrem têm uma
lógica interna, mas o seu resultado nas lutas (econômicas, sociais,
políticas...) externas ao campo pesa fortemente sobre a questão das relações de
força internas.
A teoria dos campos dá continuidade a uma longa tradição de reflexões
sociológicas e antropológicas sobre a diferenciação histórica das atividades ou
das funções sociais e sobre a divisão social do trabalho. (grifos nossos)
Na área da educação física Cesana (2005) lembra que é o caso específico daquilo
que chamamos de "profissão" que tem como referência um corpo organizado de
conhecimento e como princípio regulador desta autoridade o conhecimento
científico. O interessante é que Bourdieu (1983, 1990) remete ao entendimento
de que os espaços podem ser analisados pelos espaços estruturados de posições
ou postos que podem, por sua vez, ser analisados independentemente de seus
ocupantes. Este procedimento identifica a escolha pelo referencial do autor
para abordar construções sociais, como as profissões, pois em Bourdieu a
estrutura social é definida pelas profissões e os capitais a elas associados.
Por último, para entender o pensamento de Bourdieu em relação às construções
sociais surge o termo illusiocom um conhecimento pautado no fato de se ter
"nascido dentro do campo" ou "do jogo" (filho de jogador de futebol que quer se
tornar jogador).
A illusio
O illusioé uma espécie de conhecimento baseado no fato de ter nascido
dentro do jogo, de pertencer ao jogo pelo nascimento: dizer que
conheço o jogo desse modo significa que o tenho no sangue, no corpo,
que ele joga em mim sem mim; um pouco como quando meu corpo responde
a um pontapé antes mesmo de eu o ter percebido enquanto tal.
(BOURDIEU, 1989b, p. 44 apud LAHIRE, 2002b, p.51).
Entretanto também é possível viver num universo sem ser totalmente possuído por
ele, pela illusioespecífico desse universo, sem entrar em concorrência, sem
desenvolver estratégias de conquista do capital específico desse universo. Por
exemplo: participar de um universo como praticante amador, simples consumidor
ou na qualidade de simples participante na organização material desse universo,
sem participar diretamente do jogo que nele se joga, mas investido no interesse
e na crença, numa crença compartilhada que efetiva o pertencimento a um campo
(espaço social). (LAHIRE, 2002b, PAIVA, 2003). Esta crença, segundo Cesana
(2005, p.83) se traduz por interesse e investimentos que produzem e promovem
tal jogo. Considerando:
O investimento no jogo jogado em um campo que tira seus agentes do patamar
comum, de certa indiferença, e os inclina e dispõe a operar com as distinções
pertinentes à lógica do campo e;
O interesse pelo jogo que valora e legitima as apostas sociais nele geradas.
Portanto, a illusio é a condição original de um campo e seu jogo, no qual ela
é, ao mesmo tempo, o arbitrário fundador e o produto.
Desta forma, Paiva (2003) observa que o reconhecimento da illusiona obra de
Bourdieu busca identificar, pelo menos em parte, o que é capaz de dar unidade
ao grupo. Para a autora...
"A construção da especificidade do campo da educação física caminha a
par da constituição da illusio já que, para falar em campo, é preciso
que se estabeleça e se reconheça um acordo tácito entre agentes e
instituições sobre aquilo que merece ser disputado, ou seja, os
consensos produzidos acerca da importância do jogo, bem como as
formas legítimas de jogá-lo, produzindo assim, a identidade social do
grupo
(...) cabe observar que, no caso do reconhecimento da illusio, trata-
se de identificar, pelo menos em parte, o que é capaz de dar unidade
ao grupo, argüindo as questões que lhe são colocadas ou as que são
por ele assumidas como sendo suas questões obrigatórias. (PAIVA_e
RON, 2003, p. 58-59)
Por questões obrigatórias se entende aquela que os homens "ilustrados", de uma
determinada época, estão de acordo em discutir mesmo discordando a respeito das
questões que discutem, pois sob uma perspectiva histórica é possível perceber
como vai se "produzindo a necessidade e a crença de que é preciso delegar a um
grupo de especialistas o arbítrio acerca das educações do corpo" ( p. 59).
Sobre este assunto vai ser colocado também que, das relações entre os campos, a
noção de subcampo auxilia na compreensão desse jogo, pois...
Entendemos que, de fato, a educação física pode ser pensada, em
parte, como um subcampo do campo pedagógico e/ou como um subcampo do
campo acadêmico. Significa dizer que ela pode ser analisada com base
nas formas de organização e comunicação que articulam as práticas e
representações que movem esses campos. Entretanto, parece-nos que é
justamente a produção de uma especificidade do campo educação física
constituída na interface dessas temáticas e que, portanto, o faz se
apropriar e ressignificar a lógica de ambos a partir de interesses
que lhe sejam, ou deveriam ser, próprios que permite não restringi-
la ou reduzi-la a um subcampo do campo pedagógico ou do acadêmico,
não sucumbindo, assim à facilidade de recortes definitivos que
privilegiassem a análise de suas práticas pedagógicas ou científicas.
A caracterização da illusio a crença na necessidade de se arbitrar
com legitimidade as questões afetas aos saberes e fazeres corporais
pedagogizados e pedagogizáveis, escolares e não escolares - do campo
da educação física, mostrou que as pedagogias do corpo nele
construídas ou autorizadas só o são com o aval científico; o
conhecimento científico que busca discutir especificamente modos de
educação física e não do esporte ou da atividade física só o
podem fazê-lo a partir do olhar pedagógico (PAIVA_e_RON, 2003, p.
59).
Dessa forma, retomando o que já foi colocado, a especificidade da construção do
campo Educação Física caminha a par da constituição da illusio, reconhecendo-se
os acordos tácitos entre agentes e instituições sobre aquilo que merece ser
disputado, produzindo os consensos acerca da importância do jogo, as formas
legitimas de jogá-lo, produzindo a identidade social do grupo.
No geral, há necessidade de identificar e sistematizar a problemática que dá
sentido ao campo, o objeto da disputa e os interesses específicos em jogo. O
acordo tácito estabelecido entre os jogadores, o efeito de campo na/da área, os
agentes e instituições que disputam e disputaram a construção de legitimidade
(s), as estratégias de conservação e subversão adotadas, as formas específicas
de organização e comunicação que foram/são acionadas para instaurar/defender o
monopólio da legitimidade, o habitus que permite o conhecimento e
reconhecimento do campo, o capital específico do campo e os bens simbólicos que
produz (PAIVA, 2003, p. 65).
O Habitus profissional como hipótese
Com efeito, nada é menos natural do que o modo de pensamento e de
acção que é exigido pela participação no campo político: como o
habitus religioso, artístico ou científico, o habitusdo político
supõe uma preparação especial. É, em primeiro lugar, toda a
aprendizagem necessária para adquirir o corpus de saberes específicos
(teorias, problemáticas, conceitos, tradições históricas, dados
econômicos, etc.) produzidos e acumulados pelo trabalho político dos
profissionais do presente e do passado ou das capacidades mais gerais
tais como o domínio de certa linguagem e de certa retórica política,
a do tribuno, indispensável nas relações com os profanos, ou a do
debater, necessária nas relações entre profissionais. (BOURDIEU,
1989, p.169)
O exemplo apresentado nos coloca numa relação imediata com a questão da
profissão e do exercício profissional, envolvendo um processo anterior, o da
iniciação, com suas provas e ritos de passagem na aprendizagem de um habitus.
Porém, este processo de passagem exige um domínio prático da lógica imanente
daquele campo, bem como uma submissão de fato aos valores, às hierarquias e às
censuras inerentes a este campo.
O conceito de habitusprofissional foi utilizado por Perrenoud_et_al (1993) para
se referir às rotinas construídas pelos professores ao longo de sua trajetória,
considerando que este é a "interiorização do exterior". Para o autor o
habitusprofissional compõe-se de: rotinas (que o professor constrói ao longo
dos seus anos de trabalho); momento oportuno (a utilização de saberes e
representações explícitas capazes de dirigir uma ação); ação racional
(utilização de certos conhecimentos, aliados ao raciocínio rápido, em extrema
urgência); improvisação regrada (parte imprevista na ação planejada, o agir na
urgência).
Nesta direção Sanchotene (2006, p. 270) vão assinalar que o habitustraduz a
nossa capacidade de operar, de forma prática, em uma rotina econômica sendo
durável, mas não estático ou eterno, bem como não é uma aptidão natural, mas
social. De modo que este habitusprofissional, por não ser reflexivo, por estar
baseado na repetição, nas rotinas e por consolidar algumas regularidades no
cotidiano escolar, contribui para o desenvolvimento de um currículo oculto nas
aulas e nas escolas.
Na visão de Sanchotene;_Molina_Neto (2006), com base na leitura de Perrenoud_et
al (2001), o professor de educação física produz rotinas econômicas que derivam
dos saberes práticos. Em outras palavras, práticas que deram certo são
incorporadas ao habitusprofissional dos professores. Na maioria das vezes,
porém, são práticas não questionadas, ou seja, resolvem as situações de forma
imediata. Em contrapartida, para que haja a conscientização do
habitusprofissional é necessário, entre outros aspectos, tempo para a reflexão,
possibilitando trazer este habituspara a consciência. Sendo assim, a
intensificação dificulta a superação do habitusprofissional e favorece a
utilização de rotinas e de materiais "pré-fabricados".
Assim, ao trabalhar com a intensificação aliada ao habitusprofissional torna-se
possível montar uma cena que vai de encontro ao que sugere Perrenoud (1993) em
seu estudo sobre as possibilidades de formação de novo habitusprofissional.
Para o autor, é necessário fazer uma tomada de consciência do habitus,trazê-lo
à tona, conhecê-lo: A tomada de consciência muda o habitusporque o combate em
tempo real e na situação. Deste modo, a intensificação pode ser considerada
fator que dificulta a formação de um novo habitusprofissional, influenciando as
possibilidades de mudança na prática pedagógica.
Porém, sobre outra perspectiva Tardif_et_al (1991) procurando identificar e
definir quais os saberes que intervêm no habitusprofissional, na prática
pedagógica dos professores, concluiu que os professores se utilizam, em grande
medida, dos saberes da experiência, dos saberes específicos que se fundam nos
saberes cotidianos e no conhecimento do meio. São saberes práticos que
"incorporam-se à vivência individual e coletiva sob a forma de habituse de
habilidades, de saber fazer e de saber ser" (TARDIF_et_al, 1991, p. 220). Para
o autor os saberes da experiência formam um conjunto de representações a partir
das quais os professores interpretam, compreendem e orientam sua profissão e
sua prática, e constituem a cultura docente em ação.
No âmbito desse processo a profissão é vista como um campo(espaço social), no
sentido dado por Bourdieu (1994d), marcado por uma lógica particular, por
hierarquias e por disputas, de onde se torna necessário desvelar os fragmentos
invisíveis da constituição de um habitus profissional, visando relativizar as
imagens de negligência e incompetência técnica que possam ser atribuídas aos
professores.
Neste contexto, Silva (2005) vai afirmar que o habitusé desenvolvido somente no
e com o exercício da docênciae por isso enfatiza que o ato de ensinar na sala
de aula seria melhor denominado por habitus ao invés do termo prática docente.
Para a autora o habitus professoral pode ser organizado por meio de um
principio hologramático composto por três elementos que mantém uma relação
complexa entre si: ações didáticas, hexis corporal e postura. Há em cada
elemento que o compõe "uma referência básica comum a todos que mostra, às vezes
mais sutilmente às vezes menos, o tipo de habitus professoral que o conjunto
dessas reações organiza" (SILVA, 2007, p. 60).
As ações didáticas dizem respeito diretamente ao domínio que o professor tem do
conteúdo, bem como o modo de ensiná-lo. Segundo a autora, essas ações são
realizadas por meio do que ela denomina discurso professoral, em que o que
importa é o conteúdo deste discurso. Em relação à hexis corporal a autora
citando Bourdieu (1983) afirma que:
são movimentos corpóreos que os sujeitos que exercem uma determinada
prática laborativa realizam quando a exercem, neste caso professores/
as. Esses sujeitos realizam gestos e comportamentos muito parecidos,
quase iguais, e os exercem sem que haja um 'acordo' consciente entre
eles, mas esses movimentos são harmônicos quando se olha o conjunto
desses sujeitos na prática (SILVA, 2007, p. 66).
Desta maneira, no professor, a héxis corporal surge como mensageiro da
qualidade profissional daquele através da "fala corporal", da motivação e
disposição. Vale lembrar que a héxis corporal nada tem a ver com a aparência
física do professor, mas sim aos movimentos que auxiliam o seu ensino em sala
de aula. E por o ultimo a postura do professor que diz respeito aos valores que
regem suas ações sociais e relacionais. Assim, podemos dizer que a postura, nos
três elementos explicitados, é a que aparece de forma mais sutil. Porém, todos
estes elementos podem se manifestar simultaneamente, um sobrepondo ao outro ou
separadamente.
Dessa forma temos o habitus professoral que, de acordo com Silva (2007), é
composto por ações didáticas do docente reveladas por meio do seu discurso
professoral; pela hexis corporal representada por movimentos realizados pelo
professor como uma ferramenta que auxilia o seu ensino em sala de aula e pela
postura do professor manifestada através dos valores que norteiam suas ações de
um modo geral.
A guisa de conclusão algumas questões sobre o habitus
Os primeiros trabalhos acerca do habitus professoral tiveram início no fim da
década de 80, sendo um re-significação desse conceito. No âmbito desses estudos
outro conceito que influenciou na elaboração do habitus professoral foi a noção
de experiência formulada por Edward Palmer Thompson, em 1981, bem como os
estudos realizados a respeito dos saberes docentes por Maurice Tardif em 2002
(SILVA, 2005). Porém, o pioneiro foi Perrenoud (1993, p. 21) ao assinalar que
"a profissão é composta por rotinas que o docente põe em acção de forma
relativamente consciente, mas sem avaliar o seu caráter arbitrário, logo sem as
escolher e controlar verdadeiramente".
No dia-a-dia estes "esquemas" nas ações dos professores mais experientes
funcionam eficazmente, mas não são organizados de forma consciente. Esta falta
de necessidade em organizar as ações conscientemente faz com que os professores
mais experientes não consigam também mais se lembrar de que maneira suas ações
pedagógicas foram fundamentadas.
Knoblauch (2005), concordando com Perrenoud (1993), afirma que o habitus
docente produz e regula práticas sem obediência consciente a regras, adaptando-
as a seu fim, sem o conhecimento desta finalidade. O agente social, neste caso
o docente, é construído por meio de reestruturações constantes de suas ações,
gerando novas experiências que são integradas ao seu habitus inicial. Por
conseguinte, a autora coloca que mesmo que uma instituição de ensino tenha
passado por diversas modificações estratégicas de intervenção, há um conjunto
de esquemas fortemente instalado no interior da escola, denominado cultura
escolar, que ao ser incorporado pelos professores pode ser encarado como
facetas do "habitus docente constitutivo da profissão" (p. 11).
Townsend_e_Tomazzeti (2007) corroborando com o assunto, afirmam que o habitus
professoral (ou docente) é composto por dois "sub-habitus": o habitus
rotinizado e o habitus reflexivo. O primeiro diz respeito à "constância,
automatismo, porque não envolve a utilização consciente do uso dos esquemas de
pensamento" (p. 211); o segundo "envolve a necessidade de um trabalho mental a
partir da natureza das ações realizadas e dos desafios confrontados em
determinado contexto, abrangendo a consciência, isto é, um pensar sobre os
motivos da sua ação, a partir do uso de uma sabedoria prudente" (p. 212).
Para fins de exemplificação, o professor ao realizar a ação de um atendimento
individualizado a um aluno com dificuldades deixa transparecer naquele momento
a faceta do habitus rotinizado e ao pensar sobre o exercício da ação realizada,
no instante em que ela está ocorrendo ou posteriormente a ela, manifesta
naquele momento a faceta do habitus reflexivo (TOWNSEND_e_TOMAZZETI, 2007).
Assim,
O habitus é a 'gramática geradora das práticas', o sistema de
esquemas que orientam tanto a improvisação(na ilusão da
espontaneidade)como a acção planificada, tanto a evidencia como a
dúvida metódica, tanto a invenção de novas estratégias como a
concretização de esquemas e receitas, tanto as condutas inconscientes
ou rotineiras como as decisões (PERRENOUD, 1993, p. 24, grifo nosso)
Portanto, a importância do habitus deriva do fato de se poder "pensar e
analisar um conjunto coerente de disposições subjetivas capazes,
simultaneamente, de estruturar representações e gerar práticas como o produto
de uma história". Como o produto de uma seqüência necessariamente heterogênea
de condições objetivas que define "a trajetória dos indivíduos como movimento
único através de campos sociais, tais como a família de origem, o sistema
escolar ou o universo profissional". (DUBAR, 1997, p. 74).
Neste contexto trabalhar com a questão da docência em si, vinculada a
compreensão dos saberes docente na trajetória de vida pessoal (e profissional)
do professor, bem como com a inferência de que esta também trás subjacente a
ela um habitus, pode nos auxiliar na decodificação dessa identidade.