Lazer, agressividade e violência: considerações sobre o comportamento das
torcidas organizadas
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Introdução
A Revolução Industrial promoveu profunda transformação social e política na
sociedade. As cidades começaram a se constituir ao redor das fábricas, formando
grandes centros urbanos, enquanto, os trabalhadores do meio rural
estabeleceram-se nos subúrbios das cidades (GOMES , 2008). Em decorrência
disto, esses centros urbanos possuíam diversos imigrantes sem identificação com
esse espaço e, tão pouco, com pessoas locais. Na tentativa de superação desses
entraves, o futebol desponta como uma atividade na qual as pessoas podiam se
reunir, gerando alguma identidade de grupo. Com isso, surgem os clubes de
bairros, que fazem crescer o interesse social pelas cidades urbanas. Cresce
também o sentimento de pertencimento a determinado grupo ou agremiação (TOLEDO
, 1996).
Ao longo dos anos, o futebol ganha importância no tempo destinado ao lazer da
população em geral, como uma atividade que proporciona prazer e inúmeras
emoções. Logo, acaba sendo muito presente no tempo destinado ao lazer, tanto em
relação à sua prática, quanto em relação à assistência, chegando a ser um
fenômeno social muito representativo (ESCHER ; REIS, 2006).
Todavia, a paixão despertada pelo futebol não se apóia apenas em elementos
hedonísticos, podendo, inclusive, gerar comportamentos agressivos e violentos
em um momento que deveria ser de diversão. Os confrontos físicos entre as
torcidas, prática recorrente em muitos países, poderiam caracterizar o que se
convencionou chamar de lazer desviante (STEBBINS , 1997; ROJEK , 1999a;
WILLIAMS ; WALKER, 2006). Este é caracterizado por condutas que ferem os
princípios e normas morais de uma sociedade, práticas geralmente ligadas à
criminalidade. Assim, por intermédio da vivência exacerbada do prazer, procura-
se justificar condutas anti-sociais (WILLIAMS ; WALKER, 2006).
Conquanto haja grande interesse em se focalizar o futebol como prática
desportiva, pouco ainda se conhece sobre os elementos subjetivos envolvidos
nesta atividade. As questões referentes à vivência de prazer e a adoção de
condutas violentas são ainda bem pouco explorados e merecem atenção acadêmica,
o que instigou o olhar deste estudo.
Dentro desta premissa, o objetivo desta presente pesquisa foi investigar, nos
estudos acadêmicos, o comportamento agressivo das torcidas organizadas e seus
desdobramentos no tempo destinado ao lazer. Para atender a tal objetivo, deve-
se, inicialmente, diferenciar agressividade e violência.
A agressividade seria a capacidade ou o potencial que determinado individuo
possui para realizar uma ação violenta. Já a violência é uma forma do
comportamento agressivo, na qual a pessoa possui intenção em lesar outrem de
maneira grave (MACHADO , 1997). Cabe salientar desde já, que a violência é um
fenômeno amplo e não está restrita aos esportes. Para se compreender esse
aspecto subjetivo, deve-se considerar o contexto social de uma forma mais
ampla, pois a violência pode possuir diversas causas (ESCHER ; REIS, 2006).
Este artigo discutirá, mais especificamente, a violência no futebol, sua
relação com o comportamento das torcidas organizadas (T.O.), assim como, seus
impactos no tempo destinado ao lazer da população.
Em relação à compreensão sobre a representatividade social do futebol, por
exemplo, no que tange à escolha de um time, não raro, esta já ocorre logo ao
nascimento, por pressão familiar (REIS , 2006). Outro exemplo seria a
quantidade de pessoas que uma única partida chega a movimentar, assim como,
suas ressonâncias nos dias posteriores às partidas. A atenção de muitas pessoas
e da mídia, não raro, continua focada em determinada partida de futebol que
ocorreu há dois ou três dias atrás, gerando repercussões interessantes e,
muitas vezes, inexploradas pelos estudiosos.
Para entender um pouco mais do significado do futebol para o brasileiro, Daólio
(2005) o apresenta, assim como o carnaval, como manifestações populares, que
seriam capazes de expressar a sociedade brasileira. Já Da Matta (1982)
categoriza o futebol como uma expressão de representações e dramatizações da
sociedade brasileira, ou seja, a partir do futebol a sociedade brasileira é
descoberta e expressa suas características.
O aumento da afinidade da população pelo futebol fez com que este se
profissionalizasse, fato fundamental na expansão do futebol de forma global.
Tal fato contribuiu também para sua ampliação no território brasileiro (REIS ,
2006). Segundo Toledo (1996) o futebol já era considerado um esporte de massa
em 1930, todavia, cabe ressaltar alguns aspectos que contribuíram
posteriormente na sua expansão e disseminação. Uma delas foi referente às
transmissões por rádio na década de 30, pelas quais se iniciou a expansão em
relação ao esporte bretão.
Na década de 50, por meio da televisão, as partidas ganharam um atrativo a
mais, a imagem. Agora, era possível visualizar aquilo que o rádio não permitia,
atraindo, assim, mais adeptos. Estes fatos foram somados aos dois primeiros
títulos mundiais conquistados pelo Brasil no final da década de 50 e início de
60, além da utilização da imagem da seleção campeã mundial em 1970 como
propagandas política, por parte do governo militar. Estes fatos também
contribuíram neste processo de expansão (REIS , 2006).
Por fim, o aumento do número de campeonatos e estádios contribuiu para a
afirmação do futebol como mania nacional. Estes elementos, por sua vez,
retiraram a perspectiva mais local do futebol, expandindo-o em âmbito nacional.
O primeiro Campeonato Brasileiro realizado em 1971 comprova tal expansão, pois
este oportunizou confrontos até então inéditos no futebol nacional.
Devido à expansão e representatividade social do futebol, por fim, este passa a
ser alvo de investimentos em dinheiro e propaganda. Em meio ao processo de
expansão e consolidação do futebol em âmbito nacional, diversas pessoas passam
a se interessar em praticá-lo, assim como, em acompanhá-lo (TOLEDO , 1996).
Surgem então, movimentos e grupamentos de pessoas que possuíam afinidade e
gostos em comum, que ultrapassavam os times, surgindo, assim, as torcidas.
Torcidas Organizadas
Para a compreensão do surgimento das torcidas, Toledo (1996) explicita
inicialmente o processo histórico de desenvolvimento das mesmas, salientando
como ponto principal, a diferenciação no público de uma partida de futebol. Tal
diferenciação é decorrente do surgimento das torcidas uniformizadas e,
posteriormente, das organizadas.
Sendo assim, surge uma ruptura entre o público em uma partida de futebol, em
que se nota o torcedor comum e o organizado. O torcedor comum é aquele que
acompanha os jogos, independentemente da freqüência, e local do estádio, sendo
que este torcedor não está associado a nenhum tipo de grupo. Já os torcedores
organizados são aqueles vinculados a determinado grupo e corroboram suas regras
(PIMENTA , 1997).
Como componentes de um contexto social maior, as torcidas organizadas, assim
como qualquer outra organização, estão sujeitas a adequação aos parâmetros
sociais. Logo, deve-se sempre levar em consideração o contexto social mais
amplo. Desta forma, pode-se melhor compreender alguns fatos que serão aqui
expostos em relação às torcidas. Para Reis (2005) estes parâmetros sociais são
definidos pelo capital.
As primeiras torcidas organizadas eram grupamentos de pessoas que visavam
apoiar seus clubes, com a utilização de instrumentos musicais, de uma forma
alegre e com a utilização de uniformes. Este conjunto de pessoas era denominado
de "charanga", ou seja, eram torcedores equipados com instrumentos musicais e
uniformes. Estas charangas possuíam um chefe de torcida, o torcedor-símbolo. A
Torcida Uniformizada do São Paulo, criada em 1940 e a Charanga do Flamengo,
criada em 1942 foram apontados como os primeiros movimentos enquanto uma
torcida organizada, nos estudos consultados (TOLEDO , 1996; PIMENTA , 1997;
MURAD , 2007).
Considerando a sociedade atual, as torcidas tiveram de aderir ao modelo
capitalista de existência. Desta forma, as torcidas organizadas, nos moldes
contemporâneos, mais se assemelham a empresas. Possuem organização burocrática,
contendo: Conselho Deliberativo e Fiscal, Diretoria Executiva, Conselho
Vitalício, estatuto, quadro de associados, mensalidades e eleições (PIMENTA ,
1997).
Este esquema de organização demonstra uma espécie de evolução organizacional
nas torcidas, uma vez que estas apresentam algo além da simples uniformização
dos componentes. O termo "torcida uniformizada" é anterior ao termo "torcida
organizada", porém ambas podem coexistir (TOLEDO , 1996). Este fato demonstra a
possível evolução ou, simplesmente, uma nova forma de organização dentro destas
instituições. Tal forma perpassa ainda a oferta de projetos sociais e serviços
aos seus associados e à comunidade.
Ao se procurar efetivamente compreender o que deu início ao surgimento da
mobilização de pessoas em torno das torcidas, Mário Filho (1964) relata, em seu
estudo, que o uso de fitas específicas no chapéu por parte de alguns
torcedores, mais especificamente os sócios, é que foi um marco importante.
Estas fitas eram trazidas da Europa, a fim de marcarem um grupo característico
de espectadores. Tal símbolo gerava grande expectativa em relação a sua
chegada, pois, sem a fita pendurada no chapéu, o individuo não pertencia ao
grupo. Sendo assim, estes torcedores, que não possuíam a identificação do
grupo, sentiam-se excluídos e até mesmo humilhados.
Todavia, Pimenta (1997) explicita que episódios como este não poderiam marcar o
início das torcidas organizadas, pois somente a vestimenta, o pertencimento e
identificação ao grupo, elementos presentes no caso supracitado, não são
suficientes para caracterizar uma torcida organizada. A caracterização de uma
torcida organizada perpassa diversos elementos, os quais serão abordados
adiante.
As Torcidas Organizadas, assim como se entende hoje contendo estatuto e
estrutura organizacional interna, começaram a existir no final da década de 60
e início de 70. O Grêmio Gaviões da Fiel, com fundação em 1969 é considerada a
primeira torcida organizada (TOLEDO , 1996; PIMENTA , 1997). Ambos os trabalhos
relatam a indignação da torcida com a falta de títulos que o clube enfrentava,
além do desejo de mudança do presidente do clube. Este fato revela o objetivo
principal de surgimento das torcidas: exercer pressão política em relação aos
clubes.
Toledo (1996) aborda a questão expondo que os torcedores organizados começaram
a buscar direitos, que lhes foram negados, enquanto "simples" torcedores
comuns. Cobravam melhores resultados e mudanças na estrutura dos clubes,
utilizando, posteriormente, inclusive comportamento agressivo para estas
reivindicações. Segundo Pimenta (1997) as torcidas necessitam de episódios de
auto-afirmação, do uso da violência como fator de afirmação e das
transgressões. A Mancha Verde é utilizada como exemplo pelo autor, pois surge
da união de diversas pequenas torcidas cansadas de sofrerem agressões das
torcidas rivais. Tais elementos de revolta ficam evidentes, inclusive, na
escolha do mascote da torcida, representado por um personagem com imagem ligada
à criminalidade.
Com o passar dos anos, as torcidas vão se firmando, inclusive por meio da
violência, e passam a ganhar notoriedade na mídia e na sociedade,
principalmente nos anos 90. Nesta década, o quadro de associados cresce de
maneira significativa e ocorrem diversos episódios violentos, culminando no
episódio da luta campal ocorrida no Pacaembu, no ano de 1995, conforme relatou
(TOLEDO , 1996; PIMENTA , 1997).
Após este fato, algumas das torcidas organizadas envolvidas em episódios
violentos foram banidas. O fenômeno das torcidas ganha atenção dos meios de
comunicação e é evidenciada a ressonância destes problemas relacionados à
violência dentro do campo de futebol. Assim, agora afetando diretamente o jogo,
passam a ser discutidas possíveis soluções para o problema.
Mediante esta pequena incursão histórica e a exposição dos problemas relativos
à violência constante no âmbito do futebol, seja em campo ou nas torcidas,
surgem outras inquietações. O comportamento das torcidas organizadas,
vivenciado no contexto do lazer, fenômeno cultural ampliado a partir da
organização social do trabalho, pode ser considerado dentro das premissas do
que se convencionou chamar de lazer desviante (STEBBINS , 1997; ROJEK , 1999a;
WILLIAMS ; WALKER, 2006)? Quais as ressonâncias deste fenômeno no tempo
destinado ao lazer da população em geral? Estas e outras inquietações advindas
da reflexão serão tratadas a seguir.
Torcidas Organizadas, Hooligans e Lazer Desviante
O lazer desviante é caracterizado por condutas transgressoras à lei e aos
princípios morais de uma sociedade, justificando tal comportamento pela
vivência intensa ou exacerbada do lazer (STEBBINS , 1997; ROJEK , 1999a;
WILLIAMS ; WALKER, 2006). Dentre as práticas realizadas no âmbito do lazer
desviante vivenciadas especificamente pelos torcedores de futebol, destacam-se:
depredação de transporte coletivo, trens, metrôs, patrimônio privado e público,
arrastões, brigas, saques e roubos. A partir deste cenário destrutivo,
começaram a existir diversas campanhas de conscientização para os torcedores,
como a que foi realizada pelo metrô de São Paulo (PIMENTA , 1997). Nesta ação,
foi criado um torcedor símbolo, Sampaio, o qual utilizava a linguagem do
futebol a fim de transmitir valores em relação à necessidade de se seguir as
regras, tanto esportivas, quanto sociais. Sendo assim, a criação deste torcedor
símbolo, visava a conservação do espaço do metrô.
Ao citar estes tipos de comportamentos fora do Brasil, pode-se encontrar as
ações dos hooligans. Inicialmente, o termo hooliganpode designar, tanto um
comportamento ligado a uma família que apresenta conduta anti-social, quanto a
um grupamento específico de torcedores. Dunning (1992) investigou o
hooliganismo e, a partir de seus estudos, se pode estabelecer importantes
diferenças entre este movimento e o movimento das torcidas organizadas.
Pimenta (1997, p. 66) caracteriza uma torcida organizada (T.O.) por tais
elementos: "[...] vestimenta, virilidade, cânticos de guerra, transgressões à
regra, coreografias, sentimento de pertencimento ao grupo.". O mesmo autor
ainda destaca as relações verticalizadas, a coesão grupal e o estilo de vida
(PIMENTA , 1997), como elementos que permeiam a caracterização das torcidas
organizadas.
Para a identificação dos hooligans,entretanto, algumas características os
diferem das T.O.. A primeira característica que difere os hooligans é que estes
possuem afinidade com movimentos políticos de extrema direita, com ideais
xenofóbicos e, constantemente, discutem questões políticas, defendendo posições
nacionalistas.
Os hooligans estão camuflados, ou seja, não possuem vestimenta diferenciada dos
demais torcedores. Desta forma, estão diretamente vinculados ao clube,
diferentemente das torcidas organizadas, em que os componentes vestem a camisa
da torcida e não a do clube. As táticas militares avançadas, utilizadas para os
confrontos com o intuito de driblar os órgãos públicos de segurança, também os
diferem das T.O. Em alguns confrontos entre hooligans também já se notou a
utilização de armas de fogo, fenômeno não tão constante no Brasil, mas que,
ultimamente, é uma prática crescente (TOLEDO , 1996; PIMENTA , 1997; REIS ,
2006).
Certamente, ambos os fenômenos convergem na utilização de violência como
estratégia de auto-afirmação, assim como, na existência de pequenos grupos
fanáticos, enfrentamento com a polícia e alto grau de rivalidade. Tais
elementos, combinados a outros como: má organização esportiva, declarações
vinculadas na mídia e questões físicas do estádio, são também capazes de
provocar manifestações agressivas e violentas por parte dos torcedores.
Efetivamente, as similaridades entre torcidas organizadas e hooligans são
maiores do que as diferenças, contudo deve-se compreender o contexto
sociohistórico do desenvolvimento de cada fenômeno. Assim, ambos são fenômenos
diferentes e necessitam de olhar especial, tendo em vista as peculiaridades de
realidades e contextos.
Independentemente de tais diferenças, uma das similaridades mais frequentes
entre as T.O. e hooliganismo é o envolvimento em brigas entre facções rivais ou
não e, até mesmo, com os policiais, além do prazer decorrente de tal prática,
as quais são frequentes. É justamente este prazer em burlar as regras e
ultrapassar os limites éticos que caracteriza o lazer desviante, um dos
desafios a serem ainda elucidados dentro da complexidade dos aspectos
psicológicos envolvendo o lazer (SCHWARTZ , 2004). Estes conflitos ocorrem em
locais públicos, onde existem órgãos de segurança para tentarem evitar os
mesmos. Estes elementos reforçam a satisfação na transgressão à lei por parte
dos envolvidos.
Pimenta (1997, p. 73) ao comparar a violência nos estádios brasileiros com os
conflitos ocorridos nos países da América Latina, destaca países como Colômbia,
Argentina e Uruguai, como aqueles onde a violência em torno do futebol também é
frequente. Nestes casos, para esses conflitos, se formariam "[...] verdadeiros
grupos de guerrilha urbana [...]", objetivando a busca do prazer proporcionado
pela violência.
Dunning (1992, p. 330) estabeleceu uma classificação em relação às diversas
formas de violência apresentadas no campo esportivo:
1) Se a violência é real ou simbólica, isto é, se apresenta a forma
de uma agressão física directa ou envolve simplesmente atitudes
verbais e/ou atitudes não verbais;
2) Se a violência apresenta a forma de um "jogo" ou "simulação", ou
se ela é "séria" ou "real". Esta dimensão pode também ser apreendida
através da distinção entre violência "ritual" ou "não ritual";
3) Se uma arma ou armas são utilizadas ou não;
4) No caso de armas serem utilizadas, se os atacantes chegam a
estabelecer contacto directo;
5) Se a violência é intencional ou a conseqüência acidental de uma
sequência de ações que, no inicio, não tinham a intenção de ser
violenta;
6) Se se considerar a violência iniciada sem provocação ou como sendo
uma resposta, sem retaliação a um acto intencionalmente violento, ou
sem a intenção de o ser;
7) Se a violência é legítima no sentido de estar de acordo com as
regras, normas e valores socialmente prescritos ou se não é normativa
ou ilegítima no sentido de envolver uma infracção dos padrões sociais
aceites;
8) Se a violência toma uma forma "racional" ou "afectiva", isto é, se
é escolhida de modo racional como um meio de assegurar a realização
de um objectivo dado, ou subordinada a "um fim em si mesmo"
emocionalmente satisfatório e agradável. Outra forma de
conceptualizar esta diferença seria distinguir entre violência nas
formas "instrumentais" e "expressivas".
Antes da análise das categorias propostas pelo autor, deve-se compreender um
conceito-chave elaborado em seu estudo. O autor relata a busca da excitação
agradável, presente nas atividades do contexto do lazer. Assim, as pessoas
procuram determinada atividade, em busca do prazer que a mesma pode
proporcionar.
Apropriando-se deste conceito, o autor entrevistou um hooligan,o qual disse ter
tanto prazer por lutas, assim como, por fugir da polícia, que este prazer
proporcionado pela violência pode ser comparado ao prazer sexual. Para este
hooligan, a briga faz parte do contexto de ir assistir a um jogo de futebol.
Neste exemplo, a assistência à partidas de futebol, aliada a práticas
desviantes no lazer, proporcionam a excitação agradável, ou seja, o prazer
ocorre por meio da violência, o que os estudos de Pimenta (1997) corroboram.
Considerando os itens elaborados por Dunning e anteriormente expostos, o
entrevistado apresenta violência real, intencional, transgressora da lei, além
de ser agradável para ele, proporcionando a vivência do prazer. Esta entrevista
evidencia efetivamente uma prática considerada no âmbito do lazer desviante,
por parte do entrevistado. Assim sendo, as torcidas organizadas, assim como os
hooligans, se apropriam do comportamento designado no âmbito do lazer desviante
em suas práticas urbanas. A entrevista aponta também para a constatação de que
esta problemática da violência esportiva não está centrada apenas na sociedade
brasileira, mas que perpassa outras culturas ao redor do mundo.
Contudo, como compreender este prazer proporcionado pela violência. Quais
seriam suas razões e motivações? Dunning (1992) aponta que os estudos
acadêmicos somente poderiam responder a esta questão, se fossem realizados
envolvendo diversas áreas do conhecimento. Na opinião do autor, existem causas
sociais, fisiológicas e psicológicas, que somente uma ciência não é capaz de
contemplar.
Em meio a este fenômeno de violência entre as torcidas, se as motivações para o
prazer decorrente da violência permanecem obscuras, já as conseqüências dos
atos violentos, por sua vez, são bem evidentes e este artigo pretendeu discutir
algumas destas conseqüências, com base na literatura especializada sobre o
assunto.
Método
Este estudo qualitativo, de natureza bibliográfica, contou com a pesquisa de
informações em obras de referência, compostas por livros e teses, além da
consulta a bases de dados, com os descritores: lazer, torcidas organizadas,
agressividade e violência. A coleta foi realizada entre 21 de fevereiro de 2011
e 4 de março de 2011.
Resultados e Discussão
Primeiramente, cabe salientar, que é complexa a correlação entre os fatores que
aqui serão apresentados, não sendo possível determinar exatamente até onde um
fator contribui ou não para as manifestações violentas. Os resultados advindos
dos estudos pesquisados indicam que, independentemente da gênese do
comportamento violento e de suas causas, a mudança no comportamento individual
quando em presença de um grupo é um fator importante em relação à violência
futebolística, por conseguinte, possui ressonâncias no tempo destinado ao
lazer.
A mudança do comportamento seria composta por dois principais motivos: a
reunião de muitas pessoas e a comunhão de regras e valores das mesmas. Para
melhor compreensão deste aspecto recorre-se ao âmbito da Psicologia do Esporte,
em que Machado (1997) aponta que fatores econômicos, políticos ou
socioculturais podem influenciar o comportamento e a atitude dos torcedores.
Desta forma, um primeiro fator constituinte da mudança do comportamento é
decorrente da reunião de indivíduos, tal como ocorre nas torcidas. Toledo
(1996, p. 86) aponta que: "[...] este comportamento de massa tende a alterar
certos valores, expectativas, sentimentos e o sentido das ações individuais".
Desta forma, tal ambiente grupal pode representar uma válvula de escape para a
manifestação de condutas agressivas.
Pimenta (1997, p. 99) aponta as torcidas como um "[...] instrumento que
reproduz as relações desenvolvidas na sociedade, num viés contrário, refletindo
na formação de novos tipos de comportamentos, fundamentos no uso da força
física". Esta reunião de indivíduos pode estimular a expressão de
comportamentos socialmente reprimidos.
Um destes comportamentos reprimidos é a violência, pois, devido ao processo
civilizatório, inicia-se um repúdio a manifestações violentas. Desta forma, a
tendência deveria ser a de diminuição de ocorrência destes tipos de
manifestações agressivas. Neste processo, entendeu-se que, caso o comportamento
violento aparecesse, caberia ao Estado reprimi-lo. Esta exclusividade da
repressão, por parte do Estado, ocorreu devido ao monopólio do mesmo, no uso da
força contra manifestações violentas (DUNNING , 1992). Afinal, nem sempre as
condutas em grandes grupos são habituais do indivíduo em seu cotidiano (CAPEZ ,
1996). Pimenta (1997, p. 95), a esse respeito, aborda que os torcedores também
possuem outros papéis sociais, no entanto, quando estão presentes neste grupo
das torcidas organizadas, assumem a identidade coletiva de "[...] intimidação,
masculinidade, truculência, força física e tensões emocionais."
Talvez, a necessidade de serem diferenciados dos torcedores comuns, possa
contribuir também nesta mudança de comportamento. Esta necessidade fica
evidente na escolha de seus símbolos, bem como, nas próprias atitudes. Um
exemplo simples é que os torcedores organizados assistem às partidas em pé,
sentando-se somente nos intervalos. Esta postura é exatamente oposta à dos
torcedores comuns, que assistem ao jogo, sentados, levantando-se, somente,
durante os intervalos.
Dentro desta lógica, os torcedores organizados necessitam de distância real e
simbólica dos torcedores comuns. Querem ser reconhecidos como únicos (TOLEDO ,
1996). Esta postura diferenciada adotada pelas torcidas, possui relação com o
segundo fator contribuinte na mudança de comportamento, a comunhão de regras e
valores destes grupos.
Inicialmente, para pertencer ao grupo o indivíduo deve compactuar com suas
regras. As regras das torcidas versam sobre diversos elementos, todavia, neste
momento, somente será destacado o uso da vestimenta, principalmente a camiseta.
Usar a camiseta de uma torcida organizada "[...] reforça o compromisso com o
grupo." (TOLEDO , p. 57). Com isso, pode-se dizer também que a camiseta é um
símbolo de reforço do sentimento de pertencimento a esse grupo. O indivíduo, ao
utilizá-la, deve assumir determinadas posturas, assim como relata Toledo (1996,
p. 57), ao se referir que a camisa "[...] relaciona-se a uma certa conduta e
estética; assumir-se enquanto um membro de uma Torcida Organizada é, sobretudo,
assumir seus símbolos e marcas.".
Uma destas posturas também pode ser observada quando existe a mudança na rota,
ou seja, no trajeto do individuo até o estádio. A partir disto, os torcedores
organizados parecem possuir certa obrigação de realizarem em conjunto o
trajeto: casa - sede da torcida - estádio. Com isto, ocorre uma mudança
geográfica da distância entre casa e estádio, modificando-se a área a ser
percorrida por um torcedor. Subjacente a esta mudança, ocorre a valorização da
sede para estes torcedores. Tais elementos possuem relação com a comunhão dos
valores das torcidas e o significado de pertencimento ao grupo.
Outra postura que normalmente é assumida é a de rivalidade, pois o
pertencimento ao grupo reforça identidades, solidariedade e oposições, conforme
salienta Toledo (1996). A rivalidade, muitas vezes, pode gerar a violência de
uma forma extrema, sendo assim, há necessidade de separação espacial, o que já
se tornou uma praxe nos estádios.
Esta separação ocorre, não somente no campo de jogo entre os times e nas
arquibancadas entre as torcidas, mas chega a ultrapassar os limites do jogo,
delineando, até mesmo o percurso para a chegada ao estádio. (TOLEDO , 1996).
Toledo (1996, p. 76) denominou este fato como "[...] apropriação privada do
espaço público.". Este fato ocorre principalmente nas grandes cidades, quando,
nos dias de grandes jogos, devem ser conhecidos os trajetos, a fim de evitar os
confrontos, pois existe determinada rota a ser seguida para tal.
Muitas vezes, o percurso mais rápido ou mais simples entre a residência e o
estádio não pode ser utilizado, devido às ruas possuírem alto número de
torcedores de outra equipe, ou seja, se estaria cruzando uma área teoricamente
pertencente à outra torcida, invadindo um território inimigo. Entretanto,
existem pessoas que cruzam estes limites, tanto de forma equivocada, como de
modo deliberado e nestes encontros entre torcedores a tensão se faz evidente.
O encontro com um torcedor organizado, de qualquer torcida gera reações
diferentes daquelas ao se encontrar um torcedor comum. Tais emoções,
geralmente, não são positivas, dentre elas estão medo e ódio, por exemplo. Para
Toledo (1996), entretanto, esta divisão espacial acaba exacerbando ainda mais
as rivalidades.
Em decorrência da comunhão de valores e regras, que muitas vezes perpassam
ideologias bélicas (MURAD , 2007) ou estão pautadas na auto-afirmação por meio
da violência (PIMENTA , 1997), ao vestir a camiseta da torcida organizada,
delimita-se o espaço do indivíduo, no espaço da própria cidade. Já aparece aqui
uma primeira ressonância da violência das torcidas organizadas nas atividades
do contexto do lazer, evidenciada por meio da apropriação privada do espaço
publico. Muitas pessoas acabam sendo privadas de seu direito como cidadão, em
decorrência das diversas manifestações violentas que ocorrem durante os dias de
jogos.
Somado à comunhão de regras, existe ainda a alta subordinação dos componentes
da torcida em relação aos seus diretores, o que colabora com o estabelecimento
destes comportamentos. Toledo (1996) evidencia essa subordinação ao descrever,
durante uma viagem feita ao Rio de Janeiro para assistir a uma partida contra o
Vasco, que se pode perceber os componentes acatando de forma significativa as
ordens de um diretor de torcida.
O contexto sociohistórico de criação das torcidas organizadas também possui
relevância na expressão violenta e agressiva dos torcedores. Assim, desde o
início, se tornam nítidas as relações da história da organização das torcidas
com o cenário atual, sobre algumas das regras e valores deste grupo específico.
O início das manifestações de torcidas organizadas se deu na época
correspondente à ditadura militar brasileira, período de violência,
perseguições e repressão a manifestações sociais. As torcidas organizadas
surgem para reivindicar aspectos do clube e exercer participação política, que
os torcedores comuns não conseguiam (TOLEDO , 1996).
Os chefes das torcidas possuíam grande prestígio no ambiente das torcidas e
iniciaram a reivindicação de um espaço não obtido até aquele momento. Este
espaço que as T.O. conseguiram dentro dos clubes foi decisivo e revolucionário
em determinados momentos, principalmente nos desfavoráveis, culminando,
inclusive, na demissão de jogadores e treinadores. Porém, esta participação
política que a torcida buscava também no âmbito do Estado, lhe foi negada,
tendo em vista os ditames políticos da época, revigorando ainda mais a
efervescência interna como grupo social.
Mediante essa era de muita repressão e censura, a falta de participação
política pode ter migrado da esfera social, para a esfera esportiva. Assim, as
torcidas nasceram com um caráter revolucionário. Este fato pode ser evidenciado
em diversas bandeiras de torcidas com alusões a figuras revolucionárias, com
Che Guevara, por exemplo.
Todavia, apesar deste caráter revolucionário, estes grupos mantiveram e
reproduziram as mesmas relações de poder existentes na esfera da sociedade, uma
vez que somente um grupo pequeno controla a torcida organizada, assim como no
governo. Este grupo seleto é de difícil acesso e possui goza de grande respeito
por parte dos demais integrantes (PIMENTA , 1997).
A partir deste argumento de manutenção da ordem social, Pimenta (1997) discorda
de que as torcidas estejam substituindo a família, Estado e outras instituições
sociais, pois a separação e diferenciação social são mantidas neste grupo
também. Toledo (1996), ao descrever uma de suas viagens feitas a São Januário,
verificou alguns destes elementos que evidenciavam essa separação apontada
anteriormente por Pimenta, dentro da torcida. Nesta viagem, Toledo salienta que
cerca de 400 pessoas saíram de São Paulo e foram divididas conforme suas
características e/ou "status" na torcida.
Desta maneira, percebe-se a criação de grupos menores, dentro da própria
torcida, reproduzindo os padrões sociais, que são fundamentados nas diferenças.
O alto escalão daquele grupo social, a diretoria, viajou no mesmo ônibus. Em
meio àquele ambiente, devido ao prestígio conquistado, os componentes da
torcida se dirigiam à diretoria respeitosamente, com expressões como: "ô meu
presidente", conforme relatou Toledo (1996).
A criação de pequenos grupos dentro da torcida leva à aglutinação de sujeitos
semelhantes de diversas formas. Esta divisão, como relata Toledo (1996), pode
ser um fator estimulador de violência, pois os indivíduos mais agressivos
tenderiam a se agrupar, tendendo a fortalecer a expressão do comportamento
violento.
Os resultados deste estudo indicam a composição das torcidas, como um fator que
pode gerar manifestações violentas. Em torno deste fator, a variedade de
pessoas, com diferentes idades e de diversas classes sociais chama a atenção.
As torcidas, muitas delas, são formadas por jovens de faixa etária entre 15 e
17 anos, em sua maioria. Estes jovens necessitam de afirmação social, podendo
esta acontecer por meio da violência, no ambiente das torcidas organizadas. Em
relação à classe social, a predominância observada é entre as classes B e C
(TOLEDO , 1996).
Nos debates vinculados na mídia, conforme salienta Pimenta (1997), a formação
das torcidas com muitos jovens é apontada como capaz de ocasionar, com maior
freqüência, episódios violentos. Apesar de os jovens não serem, exclusivamente,
os únicos responsáveis pela violência, é inegável a participação destes em
diversos episódios. Isto fica evidente, nas mortes noticiadas envolvendo
menores de 18 anos (PIMENTA , 1997). Estes fatos constantemente chamam a
atenção em relação ao fenômeno da violência futebolística.
A concepção de que os jovens contribuem com a violência é decorrente da
necessidade de afirmação social que esta fase do desenvolvimento geralmente
apresenta. O universo das torcidas organizadas, que possui elementos como:
coesão grupal, comunhão de regras e valores, lealdade, companheirismo, pode ser
um atrativo para a adesão destes jovens às torcidas. Novamente, é importante
ressaltar os diversos papéis sociais exercidos pelos indivíduos, além do papel
de torcedor. Além dos jovens, há grande diversidade de pessoas que compõem as
torcidas organizadas, sendo elas de diferentes idades, crenças e classes
sociais. É constantemente veiculada pela mídia que esta composição das torcidas
com muitos jovens proporcionaria um ambiente para escamotear marginais,
desocupados, vândalos, pessoas sem família e vagabundos.
Reis (2011), no I Seminário de Hooliganismo, demonstra os seguintes dados sobre
as torcidas organizadas. Tendo como base a composição familiar, 87, 5% moram
com família original. Já em relação à escolaridade, 32% possuem Ensino Médio
completo, 31,5% possuem Ensino Médio Incompleto, 8% possuem Ensino Superior
completo e 10, 5% pós-graduação. PIMENTA (1997) contribuiu com mais dados para
esta discussão, em estudo anterior, evidenciando que, em relação à atividade
profissional dos torcedores tem-se que:
![](/img/revistas/motriz/v18n1/a19tab01.jpg)
Em relação à faixa de 25% apontados como desempregados ou subsidiados, cabe uma
ressalva. Nesta faixa estariam os adolescentes e jovens, os quais participam
das torcidas organizadas. O mesmo autor apresenta os dados com relação à
escolaridade:
[/img/revistas/motriz/v18n1/a19tab02.jpg]
[/img/revistas/motriz/v18n1/a19tab03.jpg]
Desta forma, ambos os estudos apresentados contrariam o mito de que as torcidas
abrigam indivíduos à margem da sociedade e vagabundos. No entanto, restam ainda
alguns desafios, entre eles, como compreender a grande atração dos jovens para
este fenômeno?
Reis (2005) aponta a crise moral como um fator contribuinte para a grande
quantidade de jovens nas torcidas, pois os jovens conseguiriam aceitação e
sucesso que não obtiveram na família e no trabalho, escola, etc. Pimenta (1997)
aponta o esvaziamento do Estado no tecido social, gerando a formação de novos
indivíduos, com novos padrões de comportamento. Sendo assim, os novos
indivíduos possuem um novo estilo de vida e novas características, sendo uma
delas a violência.
Já em relação ao segundo fator, a classe social, para Dunning (1992)
adolescentes e jovens das classes trabalhadoras mais rudes parecem ter maior
participação nos episódios de comportamento hooliganno contexto inglês. Com
relação às torcidas organizadas, Pimenta (1997) destaca a diversidade de
pessoas presente dentro de uma torcida. Desta forma, não é possível classificar
a origem da violência conforme a classe social.
Reis (2005) relata a dificuldade de se abordar esta temática, pela falta de
estudos com dados consistentes e a falta de informação nos registros das
torcidas organizadas. A autora destaca somente os estudos de Cardia (1996),
Capez (1996) e Telles (1996) como estudos abordando tal temática.
Se a composição das torcidas é capaz de estimular ou coibir a violência, a
partir de agora serão estabelecidas algumas relações com a violência
futebolística propriamente dita. Os resultados da presente pesquisa apontam que
a violência e a agressividade fazem parte do contexto de vida dos torcedores,
ou seja, são elementos que permeiam suas vidas. Estas podem possuir diversas
motivações e serem demonstradas de diferentes formas, como por exemplo: na
mídia, pelo número exacerbado de desenhos, filmes e noticiários que contenham
violência; nas relações de poder, por meio da conduta autoritária de diversas
instituições; na linguagem, entre outras.
Reis (2006, p. 14) explicita que o futebol contém uma carga de violência na
própria dinâmica do jogo. A origem do futebol possui "[...] valores
masculinidade, valores exacerbados de virilidade, força e sobrepujança [...] ".
O futebol foi um ambiente fértil para o surgimento de grupos masculinos que
fazem normas de masculinidade e a luta é uma destas normas (DUNNING 1992).
Aqui, desponta a relação da violência intrínseca ao futebol com a comunhão de
regras das torcidas.
Todavia, cabe salientar que a violência não é somente proveniente do próprio
futebol. Há relação da violência com fatores sociais, bem como, há relação com
a própria formação moral do indivíduo (REIS , 2006). Desta forma, a violência
faz parte do próprio contexto do futebol, assim como, do contexto social,
podendo ter graves e sérias consequências.
Em relação a este contexto social, as torcidas surgem nos ambientes urbanos,
como conseqüências, por exemplo, de uma mudança do campo para a cidade, do
estabelecimento e da superpopulação de indivíduos em bairros periféricos, ou
seja, como resultado da crescente e desenfreada urbanização (PIMENTA , 1997). A
violência, como parte deste contexto, pode ser expressa de diversas formas e
pode ter causas variadas.
No que tange à violência das T.O., Reis (2006) e Toledo (1996) apresentam
diversos fatores que contribuem para tal. A centralidade do futebol na vida do
torcedor, principalmente do organizado, que chega a dedicar-se exclusivamente à
torcida, como retrata Toledo (1996) na excursão de corintianos à Bahia, para
ver um jogo de futebol, parece ser uma delas.
A centralidade do futebol gera um sentimento coletivo em torno do clube. Este
sentimento pode fazer com que o torcedor não estabeleça claramente os limites
entre a sua identidade e a do outro (REIS , 2006). Por este motivo, existem
casos de torcedores, que passam a interferir em questões pessoais de jogadores,
causando situações desagradáveis como perseguições e cobranças excessivas. Aqui
fica evidente mais uma conseqüência da violência das torcidas no tempo
destinado ao lazer. Desta vez, os jogadores de futebol são as vítimas da
violência. Tais condutas são características de torcedores fanáticos.
O fanatismo possui relação com a falta de oportunidades em relação à prática do
futebol. A falta da vivência crítica do futebol pode gerar concepção reduzida
sobre o fenômeno do esporte. Assim, o individuo não seria capaz de aceitar
claramente os diversos interesses que giram em torno do futebol, como por
exemplo, a manipulação de resultados (PIMENTA , 1997).
O fanatismo, por sua vez, pode gerar agressividade, que é manifesta na relação
do torcedor com seus rivais. Assim, a rivalidade é expressa nas ofensas contra
os outros torcedores, tema que será abordado adiante, nos cantos das torcidas.
Os próprios resultados da equipe podem desencadear a violência, por exemplo,
quando se tem um longo período sem títulos. Outros fatores que podem
desencadear a violência são as declarações de personagens envolvidos, sendo
eles: dirigentes, jogadores, treinadores, entre outros, o clima de guerra
criado pela mídia, a ação da polícia, consumo de bebidas e a falta de infra-
estrutura (PIMENTA , 1997).
As declarações dos personagens do jogo e o clima de guerra são informações
veiculadas por repetidas vezes pela mídia. Diversos estudos (PIMENTA , 1997;
REIS , 2006; MURAD , 2007) consideram que a violência pode ser estimulada pela
mídia. Sintetizando estas informações Murad (2007) critica a mídia devido ao
sensacionalismo exacerbado, por generalizar os torcedores como violentos e,
inclusive, por pensar somente na audiência em detrimento da verdade.
A partir destas críticas o olhar é dirigido para se analisar os meios de
comunicação, especialmente, televisão e rádio. Em ambos existem programas
exclusivos de futebol. Cabe ressaltar, o grande acesso da população,
principalmente a urbana, aos meios de comunicação de massa, sendo esta a mesma
população que possui acesso às torcidas organizadas como atividade do âmbito do
lazer. Nestes programas, geralmente, há discussão das partidas, além da
repetição constante de lances polêmicos, conforme constata Murad (2007). Tais
medidas visam atrair audiência significativa, pois, conforme salienta Reis
(2005) o futebol, como fruto do sistema capitalista, deve ser rentável, um
produto a ser consumido.
Desta forma, Reis (2005) corrobora o pensamento de Betti (1997), em relação ao
esporte espetáculo, em que o futebol é considerado como uma mercadoria que deve
ser consumida por toda a sociedade. A autora ainda retrata a irresponsabilidade
com que alguns dos envolvidos com a mídia esportiva tratam a questão da
violência, o que também é evidenciado por Murad (2007). Estes programas
esportivos, agindo de maneira sensacionalista, são capazes de modificar
opiniões facilmente. Na opinião dos próprios torcedores organizados, a mídia é
algo que perseguiria as torcidas (PIMENTA , 1997).
A capacidade da mídia em modificar opiniões conta, algumas vezes, com
estratégias como a generalização simplista e disseminação do terror, por meio
de opiniões e campanhas contendo slogans como: "Não vá aos estádios". Afinal,
na opinião de muitos cronistas esportivos os estádios estão repletos de
vagabundos. Nestas campanhas transparece a capacidade da mídia em gerar
violência, utilizando como argumento a composição denegrida destas torcidas.
Porém, os dados aqui apresentados ajudam a desvendar alguns mitos em torno do
assunto, com o intuito de apontar outra situação. Da mesma forma que a mídia
prejudica a imagem das torcidas, também a enaltece, estabelecendo, assim como
apontam Reis (1998) e Silva (2001), uma posição ambígua em relação a elas. Nos
veículos de comunicação de massa, as torcidas são criminalizadas e tomadas como
as responsáveis pelos episódios de violência nos estádios, porém, quando se
fala da festa e do elemento estético das arquibancadas, se utilizam imagens
destas mesmas torcidas.
Esta relação ambígua, ainda perpassa os benefícios que a mídia proporciona ao
futebol e, por conseguinte, às torcidas. Como já foi apontado na introdução, a
mídia contribui para a expansão e profissionalização do futebol.
Por fim, pode-se dizer que o papel ambíguo da mídia pode interferir
negativamente, inclusive nas atividades do contexto do lazer, por meio das
campanhas e da perseguição das torcidas.
Entretanto, pode também estimular a presença aos estádios, com as imagens
veiculadas na televisão.
A ação da polícia, conforme já citado, é outro fator que pode gerar violência.
Reis (2006) aponta que, mediante a violência por parte dos órgãos públicos, os
torcedores respondem também com violência, seja física ou simbólica,
expressando-se, principalmente, por meio de músicas. Pimenta (1997, p.126) ao
descrever a ação dos policiais relata que a intervenção "[...] se resume em
socos, chutes, cassetetes entre outros [...]", ou seja, com o uso da força,
força restrita ao Estado, como descrito por Dunning (1992). Desta forma, o
papel destas autoridades pode diminuir ou aumentar a violência (TOLEDO , 1996;
PIMENTA , 1997; REIS , 2006), sendo necessário maior empenho de gestores de
políticas públicas em ampliar o apoio aos estudos que promovam novas
estratégias para minimizar esse quadro.
Em decorrência desta relação conturbada entre T.O. e policiais, as torcidas,
por vezes, demonstram algum tipo de antipatia para com a polícia. Os torcedores
respondem de maneira violenta à intervenção da polícia, não somente violência
física, mas também a verbal, configurando-se como uma violência por meio da
linguagem.
Tomando-se por foco a linguagem, percebe-se que diversas letras de músicas
cantadas pelas torcidas estimulam a violência e possuem alta conotação e
denotação violenta e/ou agressiva (REIS , 1998). Diversos estudos (DUNNING ,
1992; TOLEDO , 1996; PIMENTA , 1997; REIS , 1998) demonstram diferentes canções
que são entoadas pelas torcidas, nos estádios ou fora deles, contendo um
caráter agressivo em suas letras.
Estas músicas servem também como ameaça, além de demonstrarem vanglórias por
vitórias passadas contra os rivais. Constituídas de palavras extremamente
violentas como: luta, morte, pontapé, rendição, as músicas podem possuir um
viés sexual, pois, destacam um papel sexual submisso e com conotação
homossexual para ampliar a chacota, sendo estas características dirigidas para
os rivais (DUNNING , 1992).
Reis (1998, p. 104) observou a predominância de agressões simbólicas no
ambiente do estádio, gestos, xingamentos e cantos em determinados momentos. A
predominância deste tipo de violência acontece por esta ser "[...] legitima,
está de acordo com regras normas e valores socialmente prescritos e aceitos.".
No estádio de futebol existiria a instauração de uma ordem diferente da
cotidiana, onde, por exemplo, falar palavrões é aceitável e desculpável (TOLEDO
, 1996; REIS , 1998).
Com isso, a violência simbólica expressa nas manifestações da torcida,
principalmente nos cantos, variam de acordo com o momento do jogo. No início
das partidas, estes cantos visam exaltar a equipe. No intervalo, variam de
acordo com os acontecimentos da primeira etapa, podendo, até, serem
direcionadas ofensas, não somente à torcida rival, mas a outros componentes do
jogo, como policiais, árbitro, técnicos e jogadores adversários, ou até mesmo,
da equipe do torcedor.
As músicas acabam desempenhando uma função de diálogo entre diferentes grupos
do estádio. Esta forma de manifestação é bastante recorrente em meio às T.O.,
entretanto, os torcedores comuns também as utilizam (REIS , 1998). Toledo
(1996) classificou os palavrões e cantos em quatro tipos: auto-afirmação,
incentivo, intimidadores e de protesto.
Como Dunning (1992) já evidenciou, nota-se que a sexualidade permeia estes
cantos. Mediante um ambiente diferenciado do cotidiano, as palavras de baixo
calão, acompanham estes gritos. Assim sendo, os palavrões destacam determinadas
características, por exemplo, nos gritos de intimidação, as características
masculinas de virilidade e truculência são exaltadas. A partir destas
características é possível relacionar as músicas com a rivalidade. Toledo
(1996) expõe esta problemática ao citar os diversos "apelidos" que as torcidas
costumam receber.
O problema central da linguagem como forma de violência é que a alta quantidade
de violência simbólica presente nos cantos das torcidas, bem como, nos
estádios, pode gerar violência real. A violência real pode ser estimulada pelo
consumo de drogas licitas e ilícitas, como, por exemplo, o álcool. Sob o efeito
destas substâncias, há maior adesão a comportamentos não comuns, como os
violentos (REIS , 2005).
Desta forma, os resultados desta pesquisa apontam outro fator que contribui
para o aparecimento de manifestações violentas, referente ao uso de álcool.
Dunning (1992) evidencia que o álcool faz com que o individuo perca a
inibições, sendo mais difícil distinguir comportamentos desejáveis de
indesejáveis.
Na Inglaterra, a ingestão de bebida alcoólica, é uma das razões mais aceitas
para explicar o comportamento hooligan. Contudo, as discussões devem ser
aprofundadas, pois nem todos os hooligans bebem. Além do mais, esta conduta de
ingestão de bebidas alcoólicas prejudicaria ohooligan no ato da busca da
excitação agradável, mais especificamente para este caso, na luta (DUNNING ,
1992).
A violência pode ser gerada também por questões ligadas à organização
esportiva, assim como, a falta de medidas punitivas. Reis (1998; 2006), em seus
estudos, evidenciou diversos problemas na estrutura atual do futebol nacional,
que condicionariam à violência. Inicialmente, destaca-se a existência de
dirigentes, principalmente dos grandes clubes, que não se preocupam com o time,
sendo estes, um dos grandes culpados pela atual situação do futebol brasileiro.
Tais dirigentes podem ser os mesmos responsáveis pela pouca organização
esportiva.
Estes fatores, não são evidentes nos dias de jogos para os torcedores,
entretanto, inúmeras outras condições são bem visíveis e constantes nos
estádios brasileiros. Primeiramente, o sistema de venda de ingressos contendo
desorganização, filas gigantescas, ação de cambistas e falsificações podem ser
agravantes para incentivar condutas de revolta e violência. A falta de
condições de acesso aos estádios, incluindo falta de transporte público e
estacionamentos, são fatores primordiais, sendo bastante considerados pela
Federação Internacional de Futebol (FIFA) na realização de uma Copa do Mundo
(REIS , 2006).
Outra condição perceptível para o torcedor são as questões físicas do estádio.
A ausência de assentos em todos os setores, condições de limpeza e higiene
inadequadas, principalmente em banheiros, pouca variedade na alimentação, falta
de câmeras de segurança, são apenas alguns dos problemas dos estádios
brasileiros. A utilização de câmeras de segurança é importante e ajudou a
responsabilizar os participantes da torcida "Império Verde" em 2009, por suas
ações, quando invadiram o campo e agrediram árbitro, policiais e jogadores,
após o término da partida entre Coritiba e Fluminense, que culminou no
rebaixamento da equipe curitibana.
O não cumprimento total do Estatuto do Torcedor (BRASIL , 2003), também
demonstra o descaso e desrespeito com o torcedor. Esse estatuto foi elaborado
em forma de Lei n. 10.671/03, e visa defender o torcedor como um consumidor.
Desta forma, a organização do futebol deve prezar pelo respeito e pela
transparência, inclusive, com relação ao torcedor. Este problema toma
proporções ainda mais preocupantes, visto que o Brasil será a próxima sede da
Copa do Mundo de futebol e as mudanças relativas a adequações necessárias ainda
não foram efetuadas nos estádios brasileiros.
Reis (1998), ao entrevistar os torcedores do Palmeiras, evidencia a falta de
instalações adequadas, as quais, por sua vez, inibiam a participação feminina
nos estádios. Na opinião da autora, a presença de mulheres poderia também
contribuir para a diminuição da violência. Os entrevistados de sua pesquisa
ressaltaram também que esta desorganização representa a própria violência.
Esta é outra ressonância da violência no âmbito do lazer. As mulheres, em meio
ao ambiente violento, procuram se esquivar de comparecer nos estádios ou, não
raro, são excluídas do ambiente futebolístico. A violência promove, então,
ressonâncias negativas no que se refere a estas atividades do contexto do lazer
das mulheres.
A falta de medidas punitivas pode também pode reforçar a violência, pois os
praticantes de agressão se sentem mais à vontade para cometerem delitos. A
proibição da entrada de sujeitos com histórico violento, fazendo com que os
mesmos compareçam às delegacias nos horários dos jogos, seria uma medida
preventiva, a fim de impedir a participação deste sujeito no estádio novamente.
Esta medida preventiva, dentre outras, seria um contribuinte importante para
acabar com a impunidade ainda vigente (REIS , 2006).
Considerações Finais
No processo de desenvolvimento do futebol, em meio aos grandes centros urbanos,
este passa a possuir muitos adeptos e ser uma atividade de grande relevância
social. Concomitantemente a isto, diversos conflitos são constituintes do
espaço urbano de criação das grandes cidades. Este processo gerou a formação de
novos indivíduos, que se expressam pela negação do outro e pelo confronto entre
grupos. A noção do coletivo é praticamente nula. Neste contexto já
emocionalmente exacerbado, surge o torcedor organizado, que se sente parte do
jogo (PIMENTA , 1997), um jogo que, nem sempre, traz consigo as características
de uma atividade lúdica por si só, mas, evidencia-se, inclusive, como um campo
de disputas políticas, mercadológicas e de afirmação de status.
Estas evidências ressaltam a violência e a agressividade envolvidas, tanto na
prática como na assistência a esses jogos como torcedor. Estes aspectos,
conforme a literatura pesquisada, podem acabar delimitando o tempo, o espaço e
as atividades do contexto do lazer, especialmente para as mulheres. Em relação
ao tempo e espaço, esses elementos podem provocar a mudança de roteiros e
hábitos, bem como, o esvaziamento dos estádios. Já com referência às
atividades, estas podem interferir ampliando a perspectiva de exclusão de
determinado público nos estádios de futebol, especialmente mulheres e crianças,
como vítimas mais freqüentes. Incluem-se nesta categoria também os idosos, que
já não são tão assíduos freqüentadores dos estádios, devido à falta de
estrutura para a recepção e acomodação, bem como, pelo fato de também acabarem
sendo vítimas da violência.
Tanto a violência como a agressividade podem acarretar graves conseqüências
físicas e/ou psicológicas aos envolvidos, tendo, inclusive, a possibilidade de
gerar vítimas fatais. Uma família que perdeu um parente em um jogo de futebol,
certamente reconsiderará seus conceitos acerca desta atividade no âmbito do
lazer, assim como, as diversas pessoas que sofreram agressões ou até perderam a
vida, enquanto buscavam a excitação agradável, por meio do futebol.
Reis (2006) aponta que a violência no futebol possui razões sociais e que estas
vão além da dependência da existência de Torcidas Organizadas, principalmente,
quando o argumento utilizado, de forma subjacente, é a classe socioeconômica.
As péssimas condições dos estádios, mídia, má organização esportiva e a ação
policial também contribuem para a configuração da violência no futebol.
Torna-se importante proceder-se a análises aprofundadas dessas inúmeras
variáveis que aparecem ao se analisar o esvaziamento dos estádios, não somente
pelo viés da violência, mas também, por outros fatores que contribuem para
isto, como por exemplo, o preço envolvido no processo de participação e
assistência a uma partida, a precariedade do transporte, a descabida
distribuição de ingressos. Soma-se a estes agravantes, inclusive, o baixo nível
técnico e de desempenho das equipes. Todos esses fatores interferem
sensivelmente na configuração do lazer contemporâneo.
O lazer, na atual sociedade é a única esfera pública em que as decisões podem
ser tomadas buscando, antes de tudo, a satisfação pessoal (DUNNING , 1992). No
entanto, nas atuais condições, como buscar esta satisfação em meio a um cenário
de violência extrema? Esta violência pode interferir não somente no lazer, mas
também, em outras esferas da vida humana, como o trabalho, nas depredações que
ocorrem nos trens, metros e ônibus coletivos das cidades, tornando-se um
problema a ser gerido, tanto política quanto economicamente.
Em meio a estes dados preocupantes está a confirmação do país como cidade sede
de megaeventos, entre eles, a Copa do Mundo de futebol. Para que esta tarefa
ocorra de forma razoável em termos de segurança, infraestrutura e público,
tornam-se prementes que novas políticas públicas de esporte e lazer sejam
configuradas no país, contemplando, inclusive, a educação para o lazer, no
sentido de apreender o lazer como um espaço para ressignificação e mudança de
atitudes e crenças, visando também a formação de cidadãos aptos para um
convívio com qualidade.
Torna-se vital, inclusive, a sistematização de novas políticas públicas
específicas para os megaeventos, principalmente pensando-se na Copa de 2014, no
sentido de prevenir condutas violentas, uma vez que este evento contará com a
presença de torcidas com histórico violento, como Ultras, Barra Bravas e
Hinchas, além das torcidas organizadas. Sugere-se, também, que novos estudos
sejam efetivados em âmbito acadêmico, para que se consiga ampliar as
possibilidades de configuração de novas estratégias, capazes de subsidiar a
implementação de políticas públicas eficientes, na perspectiva de contribuir
interdisciplinarmente com outras reflexões acerca desta relevante temática.