Humor na Internet: trabalhadores utilizam nova estratégia para protestar contra
demissões e terceirizações
1. INTRODUÇÃO
O objetivo neste artigo é analisar de que forma os trabalhadores de uma
indústria de transformação brasileira, daqui em diante tratada de empresa,
utilizaram o humor para manifestar-se contra demissões e terceirizações
ocorridas nos anos 2000. Este artigo é parte de uma pesquisa mais extensa sobre
essa empresa, em uma perspectiva histórica e de múltiplas vozes, narrada pelos
fundadores, empregados, gerentes, sindicato e imprensa.
As terceirizações não são uma novidade no contexto das relações de trabalho
mundiais ou brasileiras, sendo decorrentes do processo chamado de
reestruturação produtiva, que se estabeleceu a partir dos anos 1980 (Vidal,
& Medeiros, 2001; Yazbek Júnior, & Serio, 2001; Carvalho Neto, &
Fernandes, 2005; Mazzali, 2007). No entanto, nessa empresa especificamente, a
privatização, ocorrida na década de 1990, foi considerada menos traumática para
os trabalhadores diante da comparação com outras indústrias de transformação,
pois o corte de empregos ocorreu de forma mais gradativa, principalmente pelo
estímulo à aposentadoria e por programas de demissão incentivada (Câmara,
2007).
Em relação à prática de terceirização, até os anos 2000 a empresa mantinha como
empregados não só os trabalhadores considerados importantes no processo
produtivo, como os da área da manutenção, mas também aqueles de áreas de apoio,
como os motoristas. Entretanto, nessa época uma nova gestão assumiu a empresa e
propôs um amplo conjunto de mudanças. Os projetos foram reunidos sob um projeto
guarda-chuva, que propunha uma nova maneira de ser da empresa. Em decorrência
de medidas de racionalização e desburocratização, a empresa iniciou um processo
de demissões, primeiramente em sua sede. O processo foi ampliado quando da
crise mundial de 2008, atingindo também os trabalhadores das filiais, com mais
força no início de 2009 (Eponine, 2009).
Nesse cenário, os trabalhadores valeram-se de uma ferramenta gratuita e
acessível a qualquer pessoa que tenha um computador com acesso à Internet, o
site de vídeos YouTube, para desconstruir o discurso oficial que a nova gestão
da empresa estava veiculando naquele momento. Enquanto a empresa pregava, por
intermédio de seus meios de comunicação, a implantação de uma nova maneira de
ser da empresa, que seria mais moderna, transparente e participativa, os
empregados produziram dois vídeos caseiros (montagem de fotos e imagens
extraídas da Internet, musicada com paródias) para desconstruir e ridicularizar
esse discurso e protestar contra as demissões e terceirizações (Wronney1,
2009a, 2009b).
A utilização do humor pelos trabalhadores, como forma de denúncia e
manifestação de sua visão de mundo, fazendo frente aos discursos oficiais das
empresas já vem sendo estudada por outros autores (Rodrigues, & Collinson,
1995; Carrieri, 2001, 2004). Em alguns trabalhos foram analisados charges e
quadrinhos (Rodrigues, & Collinson, 1995; Carrieri, 2004). Ao combinar a
utilização do humor com a Internet, no entanto, os trabalhadores demonstram sua
capacidade de atualizar-se e de encontrar novas formas de manifestar-se diante
das situações vividas por eles. Com a utilização da Internet, as histórias
(Boje, 2001) dos trabalhadores, que se constituem em discursos (Maingueneau,
1998), ganham um poder de alcance e penetração na sociedade muito maior. Esses
vídeos podem ser vistos em qualquer lugar do mundo, ultrapassando o âmbito da
comunidade em que estão inseridos. Além disso, há um ganho relacionado com a
durabilidade dos protestos, pois os vídeos continuam disponíveis no YouTube, e
só podem ser retirados pelos próprios autores. Nesse sentido, os trabalhadores
adquirem maior poder de comunicação, ampliando sua voz e contrapondo sua visão
ao discurso oficial da empresa, o que pode ser considerado um "discurso de
reação" (Souza, 2003).
Os vídeos em estudo foram analisados a partir da técnica de análise de discurso
de base francesa (Pêcheux, 1990; Maingueneau, 1998), que considera textos orais
e escritos como discursos (as letras das músicas que acompanham as imagens
foram transcritas e analisadas), e com o suporte da semiótica (Peirce, 2000),
para a análise das imagens que acompanham as letras. As análises foram feitas
de forma conjunta, visto que as imagens e o discurso se complementam.
Considera-se que a análise dos vídeos constitui uma estratégia de pesquisa
interessante, na medida em que permite aos pesquisadores ter acesso a uma
manifestação espontânea de trabalhadores, dando voz aos indivíduos em uma
situação na qual eles não foram induzidos a posicionar-se. Além disso,
possibilita a análise de um fenômeno do ponto de vista dos próprios
trabalhadores e não apenas de seu representante formal, o sindicato.
Os dois vídeos postados no YouTube (Wronney1, 2009a, 2009b) obtiveram,
respectivamente, 5.619 e 6.162 acessos até fevereiro de 2014. Embora a postagem
no YouTube tenha sido feita por meio de um pseudônimo, de forma anônima, o
sindicato local da categoria apoiou essa manifestação espontânea dos
trabalhadores, divulgando os vídeos em seu boletim quinzenal e informando a
maneira de localizá-los na Internet. Com isso, o sindicato ampliou a
divulgação, que já estaria ocorrendo a partir do chamado boca a boca.
A análise indica que os trabalhadores denunciam o rompimento de um contrato
psicológico estabelecido pela empresa, que estava baseado na estabilidade do
emprego. Os autores dos vídeos associam a empresa a uma figura feminina, ora
mãe, ora amante, e o trabalho nela como algo que estava predestinado em suas
vidas. Eles demonstram o sentimento de abandono e traição, condizente com esse
tipo de situação (Wetzel, 2000). A estratégia de utilização da Internet parece
ter ampliado o poder dos trabalhadores, pelo menos no que diz respeito à luta
simbólica (Bourdieu, 2005), pois eles tiveram sucesso na desconstrução do
discurso empresarial. Embora as demissões e as terceirizações não tenham sido
revertidas, a gestão que lançou o discurso da "nova maneira de ser" foi
substituída após dois anos de mandato pelos acionistas, os quais não
explicitaram os motivos; no entanto, considera-se que os diversos protestos
realizados pelos trabalhadores tenham contribuído para a decisão.
2. AS TERCEIRIZAÇÕES E O ROMPIMENTO DO CONTRATO PSICOLÓGICO DE TRABALHO
Desde o final dos anos 1980, o processo de globalização, a desregulamentação
dos mercados e a evolução tecnológica estão moldando um novo contexto mundial,
dentro de um ambiente caracterizado por crescente competitividade entre as
empresas. A competição acirrada faz com que empresas multinacionais de todo o
mundo se reestruturem para competir entre si. Além de fusões, aquisições e
alianças internacionais, muitas delas iniciam o processo de adequação de suas
estratégias, processos e métodos de gerenciamento para atender às novas
exigências do mercado. Esse movimento acaba provocando transformações nas
configurações organizacionais, com substituição dos modelos de gestão. Antes
eles eram caracterizados por controle, centralização e hierarquização, e agora
por modelos mais flexíveis (Vidal, & Medeiros, 2001; Yazbek Júnior, &
Serio, 2001; Carvalho Neto, & Fernandes, 2005; Dedecca, 2009; Piccinini,
& Oliveira, 2011).
Dentro desse contexto, a precarização do trabalho é um tema que vem sendo
debatido pelos pesquisadores na área de Relações de Trabalho desde os anos
1980, em função do fenômeno chamado reestruturação produtiva. A elevação da
incerteza, o risco, a fragilização e a ruptura dos vínculos tradicionais de
trabalho são algumas características advindas das transformações pelas quais
passaram o trabalho, as organizações e as sociedades industriais (Bendassolli,
2009). Além dessas características gerais, Silva e Wetzel (2004) fazem um
apanhado das mudanças ocorridas nas relações de trabalho: maior mobilidade;
questões relacionadas à identidade organizacional tornaram-se mais complexas e
fluidas; elevação dos conflitos de interesse; e alteração nos parâmetros de
avaliação do sucesso na carreira que passaram a ter uma perspectiva de curto
prazo. Para Silva e Wetzel (2004, p. 14), "as organizações passam por mudanças
ao longo de sua existência e a ênfase dada pelos empregados a essas mudanças
parece estar ligada ao impacto direto sobre suas vidas profissionais e
pessoais".
A terceirização surge no âmbito das estratégias voltadas para a flexibilização
por meio da redução dos custos. Do ponto de vista estritamente econômico, as
empresas consideram a terceirização vantajosa. Ela pode ocorrer de duas formas:
terceirizar somente os serviços que demandarem maior especialização ou forem
menos frequentes ou terceirizar a maioria dos serviços. Nos ramos de atividade
em que a produção não pode parar, como hospitais, hotéis e indústrias de
transformação, é importante que o fornecedor se localize próximo à empresa
(Mazzali, 2007). Não é incomum que empresas de manutenção, por exemplo, iniciem
suas atividades com um único cliente, pois o conhecimento técnico impõe limites
à capacidade de ampliação dos segmentos de atuação e a tendência é a
especialização no atendimento a algum segmento específico (Mazzali, 2007).
Além da precarização do trabalho em si, a terceirização tem criado uma
subclasse de trabalhadores dentro das empresas, pois é possível observar que
trabalhadores terceirizados desenvolvem as mesmas tarefas que empregados
próprios da empresa contratante, mas têm salários e benefícios inferiores
(Vidal, & Medeiros, 2001; Saraiva, & Moura, 2009). Essas políticas de
gestão discriminatórias acabam por fazer com que os terceirizados se sintam e
também sejam vistos pelos trabalhadores da contratante de forma inferiorizada
(Saraiva & Moura, 2009). Outra consequência percebida em função das
demissões e terceirizações é o sentimento de rompimento ou violação do contrato
psicológico. Wetzel (2000, p. 1) define contrato psicológico como "o contrato
implícito, não formal, que ocorre segundo a percepção do empregado entre a
organização e o funcionário, referente às promessas de direitos e obrigações de
cada uma das partes". Dessa forma, um contrato psicológico violado pode
produzir sentimentos de injustiça e traição (Wetzel, 2000).
3. HUMOR COMO MANIFESTAÇÃO DE DISCORDÂNCIA E RESISTÊNCIA
Ainda não se tem uma definição única e precisa do humor, já que ele pode ser
estudado sob diversas perspectivas. Entretanto, o humor pode ser entendido como
"uma forma de expressar ou perceber o que é divertido, engraçado, irônico,
satírico" (Carrieri, 2004, p. 30). Já Wood Júnior e Caldas (2005, p. 85)
afirmam que "o uso cotidiano da palavra humor, em português, refere-se à graça
e à disposição de perceber, apreciar ou expressar o que é cômico ou divertido".
Dessa forma, a partir de uma estrutura de referência existente, o elemento
básico do humor seria a violação dessa estrutura e o reconhecimento da
incongruência causada por tal violação.
O humor pode ser visto como foco identitário dos trabalhadores nas
representações sociais de categoria profissional, em organizações públicas,
como elemento de sucesso em palestras empresariais, como sentimentos difíceis
de explicitar em interações sérias ou, ainda, como efeitos sociais
depreciativos contra minorias (Carrieri, 2004; Duarte, & Paula, 2007;
Irigaray, Saraiva, & Carrieri, 2010).
Segundo Carrieri (2004), existem duas fortes linhas de pesquisas sobre humor na
Administração: a primeira, funcionalista, estuda o humor como mais uma
ferramenta de controle gerencial, que teria o propósito de comunicar seus
valores de uma forma sutil e divertida; a segunda aborda o humor como uma
estratégia de resistência dos trabalhadores, justamente em relação ao controle
imposto pela organização. Rodrigues e Collinson (1995) argumentam que, embora
humor e resistência não sejam sinônimos, há indícios de que eles estejam
relacionados, pois são práticas organizacionais que se apresentam de uma forma
muito mais difícil de controlar. Neste artigo, utiliza-se a segunda vertente.
Por meio do humor, os atores sociais, como os trabalhadores de nível
hierárquico mais baixo, tentam denunciar e subverter as estruturas de dominação
organizacional (Carrieri, 2004), por meio de uma diversidade de manifestações,
entre elas os vídeos publicados na Internet, objeto de estudo no presente
trabalho. Rodrigues e Collinson (1995) também chamam a atenção para o fato de
que, embora as formas satíricas e irônicas como oposição aos valores dominantes
sejam muito comuns nas organizações contemporâneas, são geralmente
negligenciadas nas pesquisas da área.
Cavedon e Stefanowski (2008, p. 142) percebem que "há várias significações e
funcionalidades imersas no ato de rir". Portanto, é importante observar do que
se ri, onde se ri e por que se ri para entender-se determinado contexto
cultural. Os autores também chamam a atenção para o fato de que o humor, como
fenômeno cultural, varia sua forma e conteúdo de acordo com o espaço e o tempo,
tendo um sentido compartilhado que pode ser incompreensível em outras épocas e
sociedades. Wood Júnior e Caldas (2005) utilizam a seguinte classificação de
funções do humor: convívio, na tentativa de afastar-se psicologicamente de
situações desagradáveis; reenquadramento, vendo uma situação sob outra
perspectiva para encontrar mais facilmente soluções; celebração, para chamar a
atenção para aspectos positivos de uma situação; comunicar com ambiguidade,
para suavizar mensagens e evitar reações defensivas; expressar hostilidade, de
forma disfarçada, para reduzir a possibilidade de confronto.
Rodrigues e Collinson (1995) afirmam que os trabalhadores frequentemente tentam
camuflar e expressar seu descontentamento por meio do humor. Carrieri (2004)
também salienta o poder do humor para revelar contradições, absurdos e
ambiguidades. Utilizando-se do humor, os atores assumem sua postura de
resistência, ao mesmo tempo em que se protegem de eventuais represálias
(Rodrigues, & Collinson, 1995; Carrieri, 2001, 2004). Além disso, o uso de
humor como estratégia discursiva acaba por interpenetrar os diversos discursos
organizacionais, produzindo fissuras no discurso dominante. Cria-se, portanto,
um modo de resistência simbólica como forma de tentar difundir e inculcar nos
participantes organizacionais os valores alternativos à alta administração
(Carrieri, 2001, 2004).
O reconhecimento das contradições organizacionais pode ser evidenciado nos
discursos que envolvem o humor. Nesse sentido, Carrieri (2004) considera que a
análise do humor como estratégia de resistência e de controle permite observar
aspectos das relações de poder e dos relacionamentos no contexto dos espaços
organizacionais que não são usualmente percebidos nas narrativas tradicionais,
como entrevistas. Desse modo, o humor nas organizações pode ser uma ferramenta
teórica interessante para se compreender melhor como as ambiguidades e os
paradoxos estruturam a realidade das empresas e dos atores sociais que as
constroem (Carrieri, 2004).
4. O CASO DA EMPRESA EM FOCO
A empresa em foco, fundada nos anos 1950, é atualmente um conglomerado de
empresas e possui duas filiais. A empresa foi privatizada dentro do Programa
Nacional de Desestatização promovido pelo governo Collor, no início da década
de 1990, e também passou por demissões e terceirizações. Ao longo dos primeiros
anos pós-privatização, houve diminuição de cerca de 30% nos postos de trabalho.
Contudo, o desligamento de aproximadamente 80% do efetivo de pessoal (pós-
privatização) da empresa foi feito por meio de aposentadoria, com
complementação salarial pela caixa dos empregados, benefício incorporado à
remuneração. Além disso, vários benefícios foram incorporados na remuneração
total dos trabalhadores. Nesse sentido, de acordo com os entrevistados em outra
pesquisa recente realizada por um dos autores deste artigo, o chamado contrato
psicológico foi mantido inalterado.
No final dos anos 2000, os acionistas substituíram o então presidente da
empresa, que ocupava o cargo havia mais de 20 anos. A troca foi amplamente
noticiada com conotação positiva pela imprensa especializada em negócios. De
acordo com a Revista Exame, por exemplo, o "novo" presidente tinha a missão de
"mudar radicalmente" a cultura da empresa, marcada pelo paternalismo do ex-
presidente (Revista Exame, 2008).
A nova gestão propôs e implementou diversas mudanças, reunidas em um grande
projeto, que lançou uma nova marca e um novo slogan para a empresa. Dessa
forma, todas as peças de comunicação interna, os discursos do presidente e os
comunicados escritos reforçavam esse slogan.
Contudo, a maior parte das mudanças foi vista de forma negativa pelos
entrevistados para a pesquisa mais ampla, sobretudo em função das demissões. A
nova direção de Recursos Humanos começou um processo de demissões, inicialmente
justificado por uma falta de perfil, representado pelo não compartilhamento dos
novos valores. Vários trabalhadores também foram demitidos por terem mais de 60
anos, apesar de ativos profissionalmente. Por fim, a crise mundial foi usada
pela empresa como justificativa para as demissões e terceirizações. Em menos de
um ano, a empresa cortou 2.168 postos de trabalho (Eponine, 2009).
No ano seguinte à troca da presidência, o sindicato iniciou (ou amplificou a
voz dos trabalhadores?) o discurso de reação em seus boletins. Este artigo, no
entanto, está voltado para a compreensão de uma manifestação espontânea dos
trabalhadores, na mesma linha do sindicato, mas muito mais hostil e agressiva
com a nova gestão.
5. METODOLOGIA
Maingueneau (1998, p. 43-44) aponta que o discurso pode ser definido como um
"sistema compartilhado pelos membros de uma comunidade linguística", dividindo-
se em função de seu "posicionamento num campo discursivo" (por exemplo,
discurso comunista, discurso surrealista); tipo de discurso (por exemplo,
discurso jornalístico, discurso administrativo, discurso do professor na sala
de aula); de produções de uma categoria de locutores (por exemplo, discurso das
enfermeiras, discurso das mães de família); de uma função de linguagem (por
exemplo, discurso polêmico, discurso prescritivo). Os discursos estão em
permanente contato e em disputa uns com os outros (Maingueneau, 1998). Essa
visão aproxima-se da concepção de luta simbólica por discursos (Bourdieu,
2005), já utilizada por Donadone (2002).
Boje (1995) considera que o discurso oficial organizacional estabelece um
"regime de verdades". É a partir do discurso oficial que os demais grupos e
pessoas são chamados a posicionar-se, aceitando ou confrontando esses
discursos. Nesse sentido, os trabalhadores que produziram os vídeos para a
Internet podem ser considerados como narradores, ou seja, aqueles que têm o
direito de contar uma história, de seu ponto de vista, sobre o que viveram
(Boje, 2000). Além disso, mais do que contar algo, eles buscam instaurar um
"discurso de reação" ("cara do discurso negro"), em contraposição ao discurso
que estava sendo veiculado pela empresa (a nova maneira de ser da empresa).
Partindo dessas considerações, os dois vídeos divulgados na Internet foram
analisados a partir da técnica da análise do discurso de base francesa
(Pêcheux, 1990; Maingueneau, 1998), com suporte de elementos da semiótica
(Peirce, 2000).
Considera-se que a utilização da análise de discurso contribui para aprofundar
a pesquisa no campo da Administração, como propõem Rodrigues e Leopardi (1999),
Carrieri, Leite-da-Silva, Souza e Pimentel (2006), Godoi (2006). A análise de
discurso auxilia o pesquisador a identificar aspectos explícitos, implícitos e
silenciados (Fiorin, 2004). Faria e Linhares (1993) apontam quatro elementos-
chave em uma análise de discurso: identificação de personagens; seleção lexical
(escolha dos vocábulos pelo enunciador, ou seja, aquele que profere o
discurso); relação entre conteúdos explícitos e implícitos; e aspectos
silenciados, isto é, o não dito. Também é importante perceber que o mesmo
elemento semântico pode ser considerado positivo ou negativo, dependendo de
quem fala (Fiorin, 2004). Elementos semânticos indicam coisas que em si não
existem no mundo natural, como escolha, liberdade (Fiorin, 2004).
A análise de discurso que vem sendo utilizada mais recentemente na
Administração considera discurso como um conjunto de textos, não só escritos,
mas também orais e, em alguns casos, visuais. Rodrigues e Collinson (1995) e
Carrieri (2004) utilizaram análise de discurso para analisar também charges
publicadas por um sindicato de trabalhadores. Já Saraiva (2009) utilizou a
análise de discurso combinada com a semiótica para analisar imagens. A
semiótica pode ser entendida como um campo de conhecimento que se volta para o
estudo dos signos (Peirce, 2000). Bauer e Gaskel (2002) também consideram que a
análise das imagens pode revelar mais do que o que está explícito de forma
consciente, contribuindo para aumentar a compreensão do pesquisador.
Para a análise dos vídeos produzidos pelos trabalhadores da empresa, as letras
das músicas foram transcritas e analisadas como narrativas, a partir da técnica
da análise de discurso. As imagens utilizadas foram capturadas e selecionadas
pelos pesquisadores. Em função do limite de espaço, apenas algumas imagens,
consideradas mais ricas do ponto de vista de elementos semânticos, foram
analisadas. Assim como Saraiva (2009), não se procurou fazer uma análise
exaustiva de cada imagem, mas procurou-se identificar seus principais
elementos, aspectos plásticos (forma pela qual os elementos são visualmente
apresentados), aspectos semânticos (relação e interpretação das imagens com
aquilo a que se referem).
6. ANÁLISE DOS DADOS
Os dois vídeos analisados seguem o mesmo padrão e foram postados no YouTube com
o mesmo pseudônimo (Wronney1) e o mesmo login (endereço virtual). Eles iniciam
com uma tela de fundo azul e as mesmas fontes brancas com os títulos. Para
acompanhar a imagem, uma voz masculina canta paródias de músicas conhecidas e,
no final de um dos vídeos, percebem-se risadas de pessoas que estavam
acompanhando a gravação, talvez até do próprio cantor. A música é ilustrada por
uma sequência de imagens estáticas, muito provavelmente extraídas da Internet.
Em seguida, apresenta-se a análise do primeiro vídeo (Wronney1, 2009a). As
letras das músicas são consideradas como as narrativas dos trabalhadores. Na
transcrição, tentou-se manter o ritmo da música. Os nomes das empresas citadas
foram omitidos. Foram acrescentados sinais de pontuação, mas preservou-se a
grafia correspondente ao áudio, mesmo com erros de concordância e ortografia.
Os grifos foram feitos pelos pesquisadores, para facilitar a análise do
discurso. O texto obtido é o seguinte:
Não era para você me abandonar, era só para reformular. Eu magoei,
indústria, eu magoei. Eu não pensava que ia ser assim. De repente,
você ia esquecer de mim. Eu revoltei. Agora eu revoltei. Por que
tratou mal assim nós da Manutenção?. Se quando o bicho pegava, era
nós que botava a mão. Você me largou para lá. De qualquer maneira.
Não adianta insistir. Porqueagora eu fico é na empreiteira. Chora,
[...], implora que eu volte de novo! Você fez eu de bobo. Eu não
quero mais você. Chora, [...]. Você teve eu de moleque. Vou ficar na
[...] porque ela paga bem melhor que você (Wronney1, 2009a).
Nessa narrativa, os autores abordam o tema da terceirização. Embora eles se
mantenham anônimos como indivíduos, a narrativa conta a história de
trabalhadores da Manutenção. O título do vídeo é mais do que explícito. Os
autores usam exatamente o mesmo discurso da empresa "a nova maneira de ser",
com sentido oposto: "ferrar com todo mundo". O verbo ferrar, nessa acepção, não
só remete a "deixar sem saída" ou "em má situação" (Houaiss, 2011), mas também
se apropria do discurso expresso pelo sindicato quando a nova marca da empresa
foi lançada, pois, segundo o sindicato local, a marca assemelhar-se-ia a uma
ferradura. Em outras palavras, nessa terceira acepção, ferrar é usado no
sentido de "colocar ferradura em", tratar o empregado como um animal (Houaiss,
2011).
A terceirização da Manutenção é chamada, pelos trabalhadores, de abandono. A
imagem escolhida para ilustrar a fala sobre o abandono é a de uma criança
dormindo na rua (Figura_1), o que remete à imagem metafórica de criança
abandonada.
![](/img/revistas/rausp/v49n1/a04fig01.jpg)
Essa imagem, no sentido literal e metafórico, evidencia que os trabalhadores,
adultos, estão se comparando a uma criança. Eles associam a relação entre pais
e filhos à relação empresa-trabalhador, comparando a empresa aos pais e eles
próprios aos filhos. A utilização de uma criança também pode ser vista como uma
metáfora de fragilidade, enquanto a rua, onde a criança dorme, aponta para uma
redundância, visto que o ato de demitir é chamado coloquialmente de "mandar
para a rua".
Ao dizer que "era só para reformular", os trabalhadores demonstram que conhecem
o discurso oficial da empresa de reorganizar, "recriar" e estão fazendo uma
crítica, uma vez que a reformulação, na prática, não fez pequenos ajustes e sim
modificou profundamente a relação de trabalho estabelecida. A utilização desse
só mostra como eles acharam que as mudanças foram além do que esperavam,
deixando-os magoados e revoltados.
Em seguida, os trabalhadores-narradores dizem que "eu magoei, indústria, eu
magoei". A repetição do verbo magoar reforça o sentimento de traição, de perda.
A imagem que acompanha essa frase no vídeo é a de uma pessoa em situação de
muita tristeza e dor (Figura_2).
[/img/revistas/rausp/v49n1/a04fig02.jpg]
Essa imagem denota muito sofrimento. O uso da primeira pessoa ("eu") e do
vocábulo "indústria" no lugar de empresa explicita a relação de intimidade
entre o espaço de trabalho e o trabalhador, que existiria antes da
terceirização. A relação com a "indústria" é personificada e tratada como uma
relação afetiva, configurando-se a "indústria", substantivo feminino, como uma
mulher.
A frase "eu não pensava que ia ser assim" aponta para o rompimento do contrato
psicológico de trabalho. As mudanças pegaram os trabalhadores de surpresa, o
que também pode ser visto a partir da escolha do vocábulo "de repente". Os
trabalhadores sentem-se esquecidos, "você ia esquecer de mim", reforçando o
sentimento já apontado de abandono. Ao dizer "eu revoltei", os trabalhadores
mostram que mudaram sua postura com a empresa também, assumindo uma posição de
discordância e resistência. A produção do vídeo e sua postagem na Internet é,
do ponto de vista concreto e simbólico, uma manifestação dessa "revolta". A
possibilidade de que essa "revolta" tenha se manifestado de outras formas, no
local de trabalho, é silenciada.
Quando os trabalhadores "perguntam" à empresa ("indústria"), com a qual eles
estabelecem este diálogo fictício, "Por que tratou mal assim?", a imagem
utilizada como ilustração é uma famosa reprodução da obra de Jean-Baptiste
Debret, "Castigo no Pelourinho" (Figura_3). A imagem de um escravo negro
apanhando no tronco é símbolo da exploração do trabalhador que, além de toda a
espoliação, sofre castigos físicos. Os pesquisadores perceberam que ela é uma
das primeiras que aparece no Google Imagens quando se digita a palavra
escravidão. Nesse sentido, é razoável supor que as imagens tenham sido buscadas
na Internet a partir de palavras escolhidas propositadamente, demonstrando a
seleção lexical utilizada. O "tratar mal" é comparado a um castigo físico dos
mais aviltantes, enquanto os próprios trabalhadores se comparam a escravos.
Fica implícito que este "assim", que os trabalhadores repetem (a primeira vez
quando dizem que não pensavam que "ia ser assim"), está sendo associado a um
estado de coisas muito ruim e penoso.
[/img/revistas/rausp/v49n1/a04fig03.jpg]
Na sequência, surge um novo personagem. Os narradores abandonam,
temporariamente, o uso do "eu" para mostrar que essa história está sendo
vivenciada por um grupo de empregados específico dentro da empresa "nós da
Manutenção". Nesse ponto os trabalhadores também recorrem ao discurso do
compromisso com a empresa, geralmente utilizado pela própria empresa. Em outras
palavras, eles afirmam que nas horas mais necessárias ("quando o bicho pegava")
eram eles que resolviam o problema ("nós é que botava a mão").
Logo em seguida, eles reassumem a primeira pessoa ("você me largou para lá"). O
diálogo é novamente tornado mais íntimo e, nesse ponto, a empresa/indústria
passa a ser referenciada não mais como mãe, mas como amante. Isso pode ser
percebido não só pela letra, como pela melodia, já que a música original
parodiada trata do tema do abandono/traição, envolvendo um personagem masculino
abandonado pela mulher/amante. É interessante notar que a personagem indústria,
embora ressignificada, continua uma personagem feminina, e a relação continua
sendo referenciada com base no afeto e não na racionalidade.
As frases posteriores seguem a estrutura tradicional de textos amorosos
baseados na temática da traição/abandono, em que o narrador passa a desdenhar o
objeto de desejo ("Chora, [...], implora que eu volte de novo! Você fez eu de
bobo. Eu não quero mais você"). Em outras palavras, o trabalhador empodera-se,
ainda que simbolicamente, e passa ele próprio a dizer que não vai mais fazer
"papel de bobo" e que agora é ele que não quer mais a empresa. Essa estratégia
pode ser vista como a utilização de humor como uma "válvula de escape"
(Carrieri, 2004). O trabalhador deixa implícito que ele sabe que a situação não
será revertida e sua única alternativa de manter a dignidade é dizer que também
não está mais interessado na empresa, aceitando e valorizando a outra empresa
do grupo ("ela paga bem mais do que você").
O segundo vídeo (Wronney1, 2009b) tem o seguinte escrito na primeira imagem:
"Uma nova maneira de ser [...]. Todo mundo vai virar empreiteira". A letra,
transcrita da mesma forma que no primeiro vídeo, é:
No dia em que eu nasci. Já tava escrito a minha sina. Mudá pra [...],
e trabalhá na [...]. Aí veio a confusão. [nome do presidente da
empresa] deixou nós na mão. Fez uma grande doidera. Passou nós tudo
pra empreiteira. [...], não, mamãe! [...], não, mamãe! [...], não,
mamãe! [...], não. Zoiudo foi embora, e deixou nós sem espaço. Nem
despediu de mim. Nem falou tchau, nem deu abraço. Fui recramá com
ele. Ele me disse: Sabe o que eu acho? Trabaiá na [...] ainda é meió
do que na [...].[...], não, mamãe! [...], não, mamãe! [...], não,
mamãe, [...], não, mamãe! [...], não. [risos] (Wronney1, 2009b).
Nessa narrativa, a imagem utilizada para referir-se ao nascimento do
trabalhador e sua sina, isto é, seu destino, é a de um bebê saindo de dentro de
um ovo (Figura_4). Obviamente uma montagem, essa imagem remete também à
fragilidade em que o trabalhador se encontra (comparado a um bebê) quando está
só, no meio "natural", antes de ser acolhido por um grupo humano. Também é
possível analisar o que está implícito. Como os seres humanos não nascem de
ovos, considera-se que está implícita uma associação do trabalhador com um
animal, como aparece no vídeo anterior. Ao mesmo tempo, a imagem desse
nascimento reforça a concepção de "natureza" em contraposição a cultura/
civilização. Em outras palavras, ao representar o ser humano como uma ave, um
animal "menos" racional, "mais natural", o narrador reforça a concepção de
natureza, destino, curso "natural" das coisas em oposição à opção, à escolha.
Essa imagem é seguida de uma foto da indústria localizada na cidade
interiorana. Fica implícito que o trabalhador vê a empresa, na figura da
indústria, como muito maior do que o indivíduo. O indivíduo não teve escolha,
seu destino, predefinido desde seu nascimento, foi trabalhar na empresa, como
se a empresa o atraísse para ela, uma fatalidade da "natureza".
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Em seguida, os narradores dizem que "aí veio a confusão". A utilização do
advérbio de lugar "aí" com sentido temporal indica que a mudança não era
esperada, foi repentina. Em outras palavras, as mudanças implantadas pela nova
gestão são consideradas contraditórias, ambíguas e rompem com uma ordem
"natural", já estabelecida, como as imagens anteriores deixaram explícito. É
interessante que essa "confusão" é ilustrada com uma foto de policiais (Figura
5) de cassetete na mão, na arquibancada de um estádio de futebol, dispersando
torcedores. Além de a imagem ilustrar uma confusão que se instaura, aparece
também a imagem da repressão policial, do poder. Confusão, portanto, tem
sentido duplo, algo caótico, em relação ao qual não se tem controle, e algo
temível, assustador. De fato, os trabalhadores não tinham nem controle sobre as
decisões tomadas pela alta gestão, nem poder para reagir, do ponto de vista
concreto. Simbolicamente, no entanto, a manifestação em forma de humor na
Internet é uma reação ao (abuso de?) poder demonstrado pela nova gestão.
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Os narradores introduzem o personagem do presidente da empresa à época,
nomeando-o na letra e ilustrando o discurso com a imagem de um castelo (Figura
6). Ao dizerem que "[nome do presidente da empresa] deixou nós na mão", eles
referem-se novamente ao tema de abandono/traição já referido na análise do
primeiro vídeo. A utilização da imagem de um castelo remete a um dos sobrenomes
do presidente e também, imediatamente, aos conceitos de autoridade, poder,
hierarquia, riqueza. Além da conotação explícita, pode-se pensar que um castelo
é, originalmente, não um ambiente de luxo, mas um local fortificado,
impenetrável. Esse significado, que estaria implícito, aponta para a visão
sobre o presidente, distante da realidade dos trabalhadores, intocável. Essa
percepção contrasta com a relação de proximidade estabelecida com a "indústria"
no vídeo anterior, demonstrando que a relação de afeto estava mais ligada ao
espaço de trabalho e aos colegas do que à gestão da empresa.
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O ato atribuído especificamente ao presidente é ter "passado" todos os
trabalhadores para a empreiteira. A terceirização, vista pelos trabalhadores
como um "deixar na mão", isto é, novamente, romper com o combinado, não cumprir
o prometido, é considerada também uma "grande doidera". Para falar sobre essa
situação "doida", os trabalhadores valem-se de uma imagem de futebol (aliás, ao
longo dos vídeos são utilizadas várias imagens de campos de futebol) e ela
mostra um homem caracterizado como um galo (mascote do time Atlético Mineiro)
com uma grande bandeira do time Cruzeiro ao fundo (Figura_7). Ela é uma imagem
que explicita uma situação ambígua, confusa, esquizofrênica, pois os dois times
de futebol são rivais.
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No refrão "[...], não" eles demonstram sua insatisfação em serem contratados
pela [...]. Em seguida, referem-se a um personagem, "Zoiudo", de um filme da
Disney, enquanto aparece a Figura_8.
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Esse animal, da família dos lêmures, parece ser uma referência também ao
presidente, pois "Zoiudo" é um apelido dado a pessoas que têm os olhos grandes,
uma característica física do então presidente. Esse "Zoiudo" teria ido embora e
deixado "nós sem espaço". Em seguida, o narrador deixa de usar o "nós" para
estabelecer um diálogo direto com "Zoiudo", que não se despediu dele, "nem com
um abraço". A história termina com outro refrão: "[...], não". O final da
narrativa, embora não tenha muita lógica, parece apontar para a situação dos
trabalhadores que não tinham escolha e consideravam as duas empresas possíveis
piores do que a empresa em estudo. O pedido "não, mamãe" torna a associar a
empresa com a figura materna e a representar os trabalhadores como filhos, em
posição de inferioridade. O tom utilizado é, no entanto, entre risos, ambíguo e
indica a utilização do humor como "válvula de escape", que permite lidar
psicologicamente com uma situação difícil (Wood Júnior, & Caldas, 2005).
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Wood Júnior e Caldas (2005) consideram que o humor pode ser utilizado de cinco
formas diferentes. Dentre elas, pode-se dizer que as duas que mais se
aplicariam ao caso analisado são: tentativa de afastar-se psicologicamente de
situações desagradáveis; expressar hostilidade, de forma disfarçada, para
reduzir a possibilidade de confronto. No entanto, a análise dos vídeos mostra
que os trabalhadores explicitaram sua hostilidade. Provavelmente isso se deve
ao fato de eles terem se sentido protegidos porque postaram os vídeos
anonimamente.
A análise dos dois vídeos postados indica que seus autores perceberam e foram
capazes de ressignificar o discurso da empresa, utilizando, para ridicularizá-
lo, as mesmas expressões veiculadas nos canais de comunicação oficiais. Dessa
forma, a nova maneira de ser da empresa ganhou uma conotação negativa, e oposta
à do discurso dominante. Nesse sentido, a manifestação cultural humorística
realizada pelos trabalhadores constitui um discurso de reação.
Foi possível perceber que os trabalhadores autores dos vídeos consideraram que
o antigo contrato psicológico estabelecido pela empresa, que se baseava,
sobretudo, na estabilidade do emprego, foi violado. A análise indica que o
rompimento foi considerado abrupto e contrário ao que seria, para eles, "a
ordem natural das coisas". Essa situação levou os trabalhadores a representarem
sua situação com imagens relacionadas com a metáfora de crianças frágeis e
expostas ao perigo, remetendo a uma representação de fragilidade. Várias
palavras e expressões utilizadas, assim como as imagens que ilustram os vídeos,
apontam para os sentimentos de abandono, traição e injustiça. Essa percepção
dos trabalhadores é consistente com as consequências da violação do contrato
psicológico de trabalho indicadas por Wetzel (2000).
Constatou-se, também, que os autores dos vídeos associam a empresa em que
trabalham/trabalhavam com uma figura feminina. A figura da mãe (que abandona) é
a mais importante, presente nos dois vídeos, mas aparece também a figura da
parceira amorosa/amante. No primeiro vídeo analisado, os narradores utilizam o
recurso de desdenharem o empregador, como se a volta deles estivesse sendo
solicitada pela empresa. Essa estratégia, que remete à situação amorosa em que
um parceiro se arrepende do término da relação, parece ter sido utilizada para,
simbolicamente, valorizar os trabalhadores. No segundo vídeo, no entanto, eles
terminam pedindo à empresa, insistentemente, com o refrão, que não os mande
para nenhuma das duas empresas que prestam serviço à empresa estudada. Apesar
do discurso de súplica, ele é feito entre risadas, o que funciona como a
"válvula de escape" sugerida por Carrieri (2004).
Considera-se que a análise dos vídeos foi interessante para a compreensão da
percepção de trabalhadores em função de um quadro de demissões e
terceirizações. Acredita-se que a utilização da análise de discurso do humor
pode ser uma nova opção metodológica para os pesquisadores interessados em dar
voz aos indivíduos e compreender fenômenos mais espontâneos.
A pesquisa tem várias limitações. Uma delas é que, pelo fato de os vídeos terem
sido postados anonimamente, não se sabe quantos trabalhadores participaram de
sua produção. O trabalho ficaria mais rico se fosse possível incluir a análise
de trabalhadores sobre os vídeos. Considera-se, no entanto, que o número de
acessos foi significativo, mostrando que os vídeos tiveram grande repercussão.
Pretende-se, futuramente, ouvir os trabalhadores da empresa sobre os vídeos,
para comparar suas percepções com a análise realizada.
Espera-se, ainda, que este artigo contribua para estimular outros pesquisadores
a utilizar metodologia semelhante. A Internet é um novo grande mundo, no qual
há muito material disponível que pode ser analisado. Acredita-se que o estudo
de manifestações espontâneas possa contribuir para ampliar a percepção dos
pesquisadores sobre a forma como os trabalhadores vivenciam suas experiências e
interagem com a realidade social que os cerca.