Vai lá, tira a roupa... e... pronto...": o acesso a consultas ginecológicas em
Belo Horizonte, MG
Introdução
O Brasil é um país marcado por fortes desigualdades sociais. Uma das muitas
facetas dessa desigualdade está relacionada ao acesso aos serviços de saúde. A
própria organização dos serviços - do tipo misto - já reflete essa
desigualdade. De um lado, há um sistema público com orientação universal,
integral e equânime, o Serviço Único de Saúde (SUS); de outro, existe um
sistema privado, constituído pela oferta de seguros de saúde e pela assistência
contra-pagamento direto (RIBEIRO et al., 2002). Mesmo após duas décadas desde a
implantação do SUS, ainda é grande a população com dificuldade de acesso à
assistência médica, sobretudo quando se trata do segmento mais carente (SENNA,
2002).
A consulta médica, de maneira geral, tem grande importância na vida dos
pacientes. No caso das mulheres, a consulta ginecológica é fundamental para
prevenção do câncer, especialmente o cérvico-uterino e o de mama, sendo também
indispensável em programas de planejamento familiar, pré-natal, atendimento a
patologias obstétricas e controle de doenças sexualmente transmissíveis (SIMÃO
et al., 2004; CARVALHO; FUREGATO, 2001; BRASIL, 2002). A Secretaria Municipal
de Saúde de Belo Horizonte, por meio do programa de atenção integral à saúde da
mulher, recomenda que todas as mulheres passem por uma consulta ginecológica
anual (BELO HORIZONTE, 1997). Contudo, o acesso ao ginecologista está muito
aquém do desejado e longe de ser universal. Dados da pesquisa SRSR (Saúde
Reprodutiva, Sexualidade e Raça/Cor), de 2002, indicam que, no município de
Belo Horizonte, cerca de uma em cada quatro mulheres não realizou consulta
ginecológica nos 12 meses anteriores à pesquisa. Assim, dada a importância
deste tipode atendimento para a saúde da mulher, estudar aquelas que têm ou não
acesso a consultas ginecológicas auxilia a repensar e reformular políticas
públicas, para que se voltem ao público sem acesso a cuidados de saúde sexual e
reprodutiva.
Este trabalho objetiva descrever e analisar o acesso das mulheres de 18 a 59
anos às consultas ginecológicas em Belo Horizonte, no início deste século. Tal
finalidade é atingida por meio de duas análises distintas, mas que atuam
complementarmente: a qualitativa e a quantitativa.
Demografia e saúde: uma breve revisão
De acordo com dados censitários, a Taxa de Fecundidade Total - TFT, para o
Brasil, era de 6,2 filhos por mulher, em 1960, diminuindo para 2,3, em 2000
(BERQUÓ; CAVENAGHI, 2006; RIOS-NETO, 2005). Para Belo Horizonte, a TFT, em
2000, correspondia a 1,6 filho, ou seja, abaixo do nível de reposição e próximo
à taxa observada em alguns países desenvolvidos (PNUD, 2000).
Contudo, a redução dos níveis de fecundidade não foi uniforme no Brasil, já
que, apesar de generalizada, esta queda seguiu formas e ritmos diferentes, que
refletem as disparidades socioeconômicas e regionais do país (MARTINE;
CARVALHO, 1989; BERQUÓ; CAVENAGHI, 2004). Ainda hoje, há diferenciais
importantes nos vários segmentos socioeconômicos. As mulheres das camadas mais
pobres da população apresentaram, em 2000, uma fecundidade de 4,1 filhos por
mulher, número bem superior àquela encontrada para o país, de 2,3 (BERQUÓ;
CAVENAGHI, 2004). Mesmo com a queda da fecundidade, estas mulheres não têm tido
a informação necessária acerca das possibilidades de regulação da fecundidade,
bem como do acesso aos quase sempre deficientes serviços públicos de saúde
(CARVALHO; BRITO, 2005).
As razões que levam as pessoas a procurarem um médico resultam de uma complexa
interação de fatores demográficos, socioeconômicos e psicológicos, além do
perfil de morbidade do indivíduo e da sua avaliação do serviço de saúde
(MENDONZA SASSI et al., 2003), ou da conjugação de fatores sociais, individuais
e culturais (SAWYER et al., 2002). Além disso, características socioeconômicas
e demográficas podem influenciar a facilidade com que as pessoas obtêm os
serviços de saúde (TRAVASSOS; MARTINS, 2004). No caso da mulher, o acesso a
serviços de saúde também é influenciado pelas relações de poder, entendidas
como a habilidade que a mulher apresenta de exercer influência e controle no
nível interpessoal (SAFILIOS-ROTHSCHILD, 1982).
Neste estudo, são quatro as dimensões de acesso utilizadas: socioeconômica;
demográfica; de saúde; e de poder. No que se refere à dimensão socioeconômica,
há vários trabalhos que indicam a renda como um importante marcador do acesso à
saúde. Apesar de a população mais pobre precisar mais dos serviços de saúde, a
proporção de indivíduos que procuram o serviço tende a aumentar ao longo da
distribuição de renda (NERI; SOARES, 2002). No que tange a consulta
ginecológica, um estudo sobre os fatores associados à realização de exames
preventivos para cânceres femininos por mulheres brasileiras, em 2003, relata a
mesma tendência, ou seja, as mulheres com renda mais baixa realizaram menos o
exame preventivo do que aquelas numa faixa de renda mais alta (NOVAES et al.,
2006). Sclowitz (2005), em estudo com mulheres em Pelotas, em 2002, sugere que
a prevalência de consulta ginecológica no ano anterior apresentou aumento
progressivo nas classes sociais mais altas.
A escolaridade, outra variável da dimensão socioeconômica, é indicada como
tendo uma relação positiva com o acesso a serviços de saúde. Mendonza-Sassi et
al. (2003) relatam que, para o grupo com menor escolaridade, as chances de
procurar um médico diminuem em 56%. Num estudo feito com mulheres residentes em
Belo Horizonte, em 2002, foi constatado que as mais escolarizadas apresentaram
chance de terem tido uma consulta ginecológica, nos meses anteriores à
pesquisa, quase duas vezes superior à daquelas com escolaridade mais baixa
(SIMÃO et al., 2004).
Quanto à dimensão demográfica, aspectos como idade, raça/cor, estado conjugal,
parturição e religião merecem investigação. A idade das mulheres está
intrinsecamente ligada à busca por um serviço gineco ógico, pois, em cada fase
da vida, elas apresentam particularidades que exigem um acompanhamento
ginecológico regular - menarca, primeira relação sexual, gravidezes e partos,
contracepção, menopausa, climatério, além de doenças que passam a ser mais
presentes em algum momento da vida, exigindo, assim, um maior ou menor acesso à
consulta ginecológica ao longo do ciclo de vida (NÉRI; SOARES, 2002; SCLOWITZ
et al., 2005).
Estudos mostram que a raça/cor também é importante no que se refere ao acesso à
consulta ginecológica. Ser branco possibilita um acesso maior aos serviços de
saúde, ou seja, uma pessoa branca tem suas chances de consumir serviços de
saúde aumentadas em 3% (NÉRI; SOARES, 2002). De acordo com dados da PNDS de
1996, cerca de 35% das entrevistadas negras1 nunca haviam feito um exame
ginecológico, enquanto para as brancas este percentual era de 22%. Indagadas
sobre a realização de exame ginecológico no último ano, este déficit persistia:
60% de negras e 46,5% das brancas não o haviam feito (PERPÉTUO, 2000).
O estado conjugal também deve ser considerado. Quanto ao exame papanicolau,
preventivo de câncer uterino, um estudo realizado em 2003 apontou que as
mulheres casadas apresentavam uma chance maior de realizarem o exame do que as
não-casadas (NOVAES et al., 2006).
A gravidez é, muitas vezes, o único momento em que as mulheres buscam o
ginecologista, além de ser a ocasião em que muitas mulheres têm um primeiro
contato com este médico. Segundo Novaes et al. (2006), entre as brasileiras que
tinham filhos, 77% fizeram o exame papanicolau; este percentual era de 65% para
aquelas sem filhos.
A religião também é importante no que diz respeito à consulta ginecológica,
podendo influenciar o comportamento das mulheres. Um estudo sobre adolescentes
do Rio de Janeiro indicou que o crescimento do protestantismo e a queda da
proporção de católicos causaram um impacto na fecundidade dessas mulheres
(MCKINNON et al., 2004). Nota-se, portanto, que a religião apresenta um
importante papel no comportamento reprodutivo das adolescentes, o qual pode ser
estendido para a consulta ginecológica.
A dimensão saúde engloba o tipo de serviço, o número de consultas, a posse de
plano de saúde, a contracepção, a idade na primeira relação e ter tido alguma
DST. No caso de Belo Horizonte, quando indagadas sobre onde ocorreu a última
consulta ginecológica, 30% das negras indicaram que realizaram este atendimento
na rede pública e 28% por meio de convênio; já para as brancas, estes
percentuais foram de 17% e 42%, respectivamente (SIMÃO et al., 2004).
No tocante ao tipo de serviço, há uma relação positiva esperada entre posse de
plano e acesso a serviços de saúde (NOVAES et al., 2006). No caso de Belo
Horizonte, as mulheres com plano de saúde apresentaram chance três vezes
superior à das usuárias do SUS de terem feito uma consulta com um ginecologista
nos 12 meses anteriores à pesquisa (SIMÃO et al., 2004).
O método anticoncepcional também é de fundamental importância, já que a escolha
por um método deveria ser feita junto ao ginecologista, com todo o suporte
necessário (COSTA et al., 1998). Em Belo Horizonte, em 2002, as usuárias de
preservativo apresentavam 1,3 vez a chance das não-usuárias de terem feito uma
consulta nos 12 meses anteriores à pesquisa. Percebe-se a mesma tendência no
caso das mulheres esterilizadas, com 1,5 vez a chance das não-esterilizadas de
terem buscado consulta. No caso das usuárias de métodos modernos, este número
subiu para 1,6 (SIMÃO et al., 2004). Nota-se, assim, que ser usuária de um
método contraceptivo e, sobretudo, moderno aumentou a chance da mulher de ter
ido ao ginecologista.
A idade na primeira relação sexual poderia ser considerada tanto uma variável
demográfica quanto de saúde. A partir da primeira relação sexual, a mulher
passa a estar exposta a DSTs e gravidez, fazendo com que ela busque com mais
freqüência um ginecologista. De fato, o ideal seria que toda mulher, antes de
ter sua primeira experiência sexual, procurasse um ginecologista e se
informasse não só sobre métodos, mas também a respeito dos diversos aspectos
que envolvem uma relação sexual.
Outro indicador importante é a própria informação sobre ter tido alguma DST ou
sintoma, pois, se uma mulher já teve alguma doença sexualmente transmissível ou
sintoma, ela provavelmente terá recorrido a um ginecologista. Em Belo
Horizonte, as mulheres que haviam tido alguma DST apresentaram quase duas vezes
a chance de ter ido ao ginecologista em relação àquelas que não tiveram
qualquer DST (SIMÃO et al., 2004).
A dimensão poder pode ser pensada do ponto de vista da autonomia, já que esta é
muito importante na procura por serviços de saúde. Autonomia possui diversos
significados relacionados a autodeterminação, direito à liberdade, privacidade,
escolha individual e livre vontade. Segundo Costa et al. (2006), autonomia é a
capacidade de pensar, decidir e agir, com base no pensamento livre e na decisão
independente. Pode ser entendida ainda como a habilidade para obter informação
e utilizá-la como ponto de partida para a tomada de decisão em relação a
preocupações particulares e de cunho íntimo. A informação é pressuposto
fundamental para a autonomia. Quanto maior a autonomia da mulher, maior deverá
ser o seu conhecimento e, conseqüentemente, maior será a sua busca por uma
consulta ginecológica. Ademais, mulheres com maior autonomia e conhecimento
sobre consulta ginecológica provavelmente mostrar-se-ão mais à vontade diante
desta.
Estudos que abordam a consulta ginecológica convergem ao indicarem o
desconforto das mulheres diante dos exames a que são submetidas durante a
consulta (CARVALHO; FUREGATO, 2001; MAGEE, 1988). A vergonha que as mulheres
têm de estarem nuas diante dos médicos, sendo observadas e manipuladas, o medo
do exame e do resultado, o atendimento rápido e impessoal, a relação
autoritária da equipe com as pacientes, o espaço inadequado, o tempo de espera
para o atendimento, a emissão de resultados e a marcação das consultas são
outros motivos apontados pela literatura que podem desencorajar uma consulta
ginecológica (COSTA et al., 1998). Entretanto, as motivações para a busca por
uma consulta ginecológica são várias e vão desde o medo do câncer, o desejo de
cuidar-se e a presença de algum incômodo até a obrigatoriedade de exames na
rotina do programa de saúde (CARVALHO; FUREGATO, 2001).
Dados e metodologia
Etapa quantitativa
Na etapa quantitativa, utilizaram-se os dados da pesquisa Saúde Reprodutiva,
Sexualidade e Raça/Cor (SRSR), realizada em Belo Horizonte e Recife. Este banco
de dados é oriundo do Programa Ensino e Pesquisa em Saúde Reprodutiva,
Sexualidade e Raça/Cor (MIRANDA-RIBEIRO; CAETANO, 2003). O questionário da
pesquisa incluía, além de questões sociodemográficas, temas como fecundidade,
casamento e atividade sexual, abordando questões como acesso a plano de saúde,
atendimento médico, gravidez, contracepção e DSTs (MIRANDA-RIBEIRO; CAETANO,
2003).
Das 1.302 mulheres entrevistadas em Belo Horizonte, foram excluídas aquelas de
15 a 17 anos, as que declararam nunca ter tido relação sexual, as que disseram
nunca ter ido ao ginecologista e as que se declararam MSM (mulheres que fazem
sexo com mulheres). As com menos de 18 anos foram excluídas porque, na etapa
qualitativa, só foram entrevistadas maiores de idade. Foram excluídas também
deste trabalho as mulheres amarelas e indígenas, por representarem pequena
parcela da população em estudo. Portanto, o banco de dados utilizado neste
trabalho foi composto por 983 mulheres entre 18 e 59 anos. As variáveis foram
agrupadas nas quatro dimensões mencionadas: demográfica, socioeconômica, saúde
e poder.
Foram quatro as variáveis da dimensão demográfica trabalhadas: idade, raça/cor,
situação conjugal e parturição. A idade foi categorizada em nove níveis: 18 a
19, 20 a 24, 25 a 29, 30 a 34, 35 a 39, 40 a 44, 45 a 49, 50 a 54 e 55 a 59
anos. Quanto à raça/cor, os dados foram coletados por meio de pergunta baseada
no quesito cor do IBGE, com cinco categorias pré-codificadas, restando três
para análise neste banco de dados: branca, preta e parda. As mulheres pardas e
pretas apresentamse em categorias separadas, em vez de reunidas na categoria
"negra", já que se pretendia verificar possíveis diferenças entre estes dois
grupos. A situação conjugal foi dividida em cinco categorias: solteira, casada,
unida, divorciada/separada e viúva. Decidiu-se por manter casadas e unidas em
categorias separadas, uma vez que a união com casamento civil e/ou religioso
pode significar maior estabilidade do que a união consensual. No caso de
divorciada/separada, decidiu-se por unir as duas categorias, pois ambas
representam casos em que a mulher teve um companheiro, não mais o tem e esta
ruptura foi deliberada - seja por parte da mulher, do homem ou de ambos.
Finalmente, a parturiçãofoi dividida em quatro categorias: sem filhos, 1 filho,
2 filhos, 3 filhos ou mais. Devido ao declínio da fecundidade, julgou-se
adequado fazer a diferenciação quanto ao número de filhos.
Foram cinco as variáveis utilizadas para a dimensão socioeconômica: número de
bens duráveis, número de cômodos na casa, escolaridade, religião e plano de
saúde. As duas primeiras foram inseridas como uma proxyde renda, já que
diversos estudos indicam que renda é determinante no acesso aos serviços de
saúde, ou seja, quanto maior a renda do indivíduo, maior será seu acesso a
estes serviços. No caso da variável número de bens duráveis, a categorização
foi feita com base na atribuição de pontos para cada um dos bens duráveis
presentes no domicílio, conforme categorização da Associação Brasileira de
Empresas de Pesquisa2.
A variável escolaridade foi dividida em quatro categorias: 0 a 3 anos de estudo
(analfabetas funcionais), 4 a 7, 8 a 11 e 12 anos ou mais. No caso da variável
religião, foram três as categorias: católica, protestante/pentecostal e atéia/
outros. Optou-se por unir protestante e pentecostal porque ambas apresentam a
mesma origem e diferenciam-se da religião católica em sua base. A variável
plano de saúde, de acordo com a literatura pesquisada, está positivamente
associada ao acesso a serviços de saúde, incluindo a consulta ginecológica.
A dimensão saúde capta questões de acesso, vida sexual, contracepção e DSTs.
Variáveis tais como onde costuma procurar o ginecologista, onde procurou o
ginecologista nos últimos 12 meses e se tem ou já teve acompanhamento
ginecológico regular permitem indicar se essa mulher é usuária do serviço
público de saúde ou se busca a consulta por outros meios, além de caracterizar
se a entrevistada vai ao ginecologista regularmente. O método anticoncepcional
foi dividido em seis categorias: métodos hormonais, métodos de barreira, DIU,
métodos cirúrgicos, naturais/outros e não está usando/nunca usou. Optou-se por
deixar o DIU em uma categoria separada porque a opção por este método implica,
necessariamente, uma intervenção ginecológica; o mesmo vale para os métodos
cirúrgicos. A idade na primeira relação foi dividida em cinco categorias: menos
de 15 anos, 15 a 19, 20 a 24, 25 a 29 e 30 anos ou mais.
Por fim, a variável da dimensão poder - evitaria relação se o parceiro se
recusasse a usar camisinha - foi incluída no modelo como uma tentativa de
indicar o grau de autonomia da entrevistada. Assume-se que uma mulher com poder
é aquela que evitaria a relação caso o parceiro se recusasse a usar
preservativo. Apesar de instigante, sabe-se que a variável apresenta
limitações. Em primeiro lugar, nem toda mulher considera o uso de preservativo
algo importante, sobretudo entre as que têm relação estável e parceiro fixo.
Assim, mesmo que tenha poder, ela pode responder que não evitaria a relação
caso o parceiro se recusasse a usar camisinha. Portanto, nesse caso, a resposta
não seria uma proxyde poder. Uma outra razão para a mulher não tentar evitar a
relação sem camisinha pode estar ligada à contracepção. Caso ela utilize outro
método ou esteja no climatério, o fato dela não evitar relação sem preservativo
pode não ser um sinal de falta de poder na relação, mas um simples reflexo do
fato de este método ser fortemente relacionado apenas à prevenção da gravidez.
Ainda assim, e tendo ciência destas limitações, optou-se por manter a variável.
Nesta etapa, utilizou-se o método Grade of Membership (GoM), que possibilita
delinear perfis internamente homogêneos e, além disso, permite classificar os
indivíduos em relação à sua proximidade aos perfis. Esta propriedade do método
é bastante desejável e conveniente, uma vez que não é possível esperar que
todos os indivíduos tenham todas as características de um dado perfil
homogêneo, podendo partilhar características de múltiplos conjuntos. De fato, o
GoM lida com dois dos maiores problemas na determinação de uma classificação ou
tipologia: a identificação de grupos e a descrição de diferenças entre os
mesmos (CERQUEIRA, 2004).
Os perfis formados são chamados de perfis extremos e correspondem a conjuntos
bem definidos. Quanto maior o número de variáveis inseridas no modelo, mais bem
definido será o conjunto. Estas variáveis poderão ser internas, quando são
potencialmente importantes na conformação do perfil, ou externas, quando são
variáveis dependentes, de estratificação do perfil (MANTON et al., 1994).
Para cada elemento de um conjunto, há um escore de pertinência, gik, que indica
o grau de pertinência do i-ésimo elemento, ao k-ésimo conjunto ou perfil. A
determinação de escores de pertinência, gik, para cada unidade de estudo,
permite representar a heterogeneidade destas, sendo que este escore pode variar
entre zero e um. Um escore zero indica que a observação não pertence ao perfil
k; já o escore um indica que esta observação possui todas as características do
perfil k. Logo, quanto mais uma observação i se aproximar do perfil extremo k,
maior será seu grau de pertinência a este perfil e, conseqüentemente, menor
será o grau de pertinência em relação aos demais perfis (CERQUEIRA, 2004).
Assim, o valor gik representa a proporção de pertinência a cada perfil extremo,
com as seguintes restrições:
Além do parâmetro gik, o modelo também estima a probabilidade de uma categoria
l, de uma variável j, pertencer ao perfil extremo k, ou seja, a probabilidade
de resposta 1 para a j-ésima variável pela entrevistada com o k-ésimo perfil
extremo, λkjl. Assim, λkjl os medem a probabilidade de que exista, na
população, alguém com grau de pertinência total ao perfil k, dada a resposta à
categoria l na variável j (SAWYER et al., 2002).
Nesse estudo, uma categoria só entra como característica marcadora de um perfil
extremo se a razão entre seu λkjl e a freqüência marginal for igual ou superior
a 1,2, ou seja, se λkjl for pelo menos 20% superior à freqüência marginal. Este
parâmetro mínimo teve como fundamento outros trabalhos que aplicaram a mesma
técnica (SAWYER et al., 2002; CERQUEIRA, 2004).
Na versão do pacote estatístico aqui utilizada - DSIGoM version 1.0, Decision
Systems, INC, 1999 -, deve-se escolher uma variável indicadora, para definição
do número de perfis extremos a serem gerados (LACERDA et al., 2005). A
escolaridade foi escolhida como variável indicadora, o que fez com que o modelo
gerado apresentasse quatro perfis, já que era este o número de categorias da
variável em questão. Assim, cada perfil foi marcado pela probabilidade de 100%
de mulheres "tipos puros" pertencerem a uma dada categoria de escolaridade
(cada um dos quatro níveis da variável indicadora). Ou seja, existe no modelo
construído uma correlação muito elevada entre cada nível da variável indicadora
e o perfil formado. Esta propriedade é desejável e esperada para todas as
variáveis, mas, no caso da variável indicadora, isso é previamente
especificado. A escolha desta variável indicadora se deu pelo fato de a
literatura indicar ser a escolaridade um fator determinante no acesso a
serviços de saúde em geral e, conseqüentemente, à consulta ginecológica. Logo,
é esperado que cada perfil seja altamente correlacionado com a variável
escolaridade.
Cabe observar que a variávelfoi ao ginecologista nos últimos 12 mesesfoi tida
como a variável externa, ou seja, de estratificação dos perfis gerados, mas que
não é importante na determinação dos perfis em si.
Finalmente, a prevalência de cada perfil na população estudada pode ser
calculada por intermédio de uma média das pertinências das mulheres em cada
perfil, equivalendo a um escore médio para cada um dos perfis. Estes escores
médios representam a prevalência de cada um dos perfis na população total
pesquisada (DRUMOND et al., 2007) e foram calculados para o presente estudo.
Etapa qualitativa
A pesquisa qualitativa tenta interpretar os fenômenos sociais com base nos
sentidos que as pessoas lhes dão (POPE; MAYS, 2005). As informações obtidas por
métodos qualitativos garantem ao pesquisador maior flexibilidade e criatividade
no momento da coleta e na análise (GOLDENBERG, 1997). Isto ocorre porque as
pesquisas qualitativas têm como objetivo lidar com a subjetividade e a
singularidade dos fenômenos sociais, não tendo a pretensão de criar dados
generalizáveis. No campo da saúde, a pesquisa qualitativa tem sido empregada
para abordar questões sobre fenômenos sociais, variando desde comportamentos
humanos, como a anuência dos pacientes ao tratamento e a tomada de decisões por
profissionais da saúde, até a organização da clínica hospitalar (POPE; MAYS,
2005).
A técnica utilizada neste trabalho foi a entrevista em profundidade, que pode
ser definida como "um processo de interação social entre duas pessoas na qual
uma delas, o entrevistador, tem por objetivo a obtenção de informações por
parte do outro, o entrevistado" (HAGUETTE, 1997, p.86). A principal vantagem
desta técnica é possibilitar ao pesquisador obter informações não acessíveis
por meio de questionários estruturados e que ajudam a compreender o
comportamento do entrevistado e sua representação a respeito de sua experiência
de vida, a partir da identificação de situações e opiniões acerca do tema
pesquisado (WEISS, 1994).
Foram utilizadas neste estudo 33 das 60 entrevistas semi-estruturadas oriundas
do Projeto "Aspectos quantitativos e qualitativos acerca do acesso à
contracepção e ao tratamento e diagnóstico de câncer de colo uterino: uma
proposta de análise para o município de Belo Horizonte, MG",3 levado a campo
pelo Cedeplar. As entrevistas foram realizadas entre março e junho de 2006, em
Belo Horizonte, com mulheres de 18 a 59 anos.4 O critério de escolha das 33
entrevistas foi baseado em seis variáveis, de forma que as mulheres da etapa
quantitativa e qualitativa tivessem características comuns com relação a
escolaridade, idade, situação conjugal, raça/cor, plano de saúde e parturição.
As 33 mulheres entrevistadas distribuem-se pelos quatro perfis delineados na
etapa quantitativa (Quadro_1).
A análise das entrevistas qualitativas foi feita com base em um estudo temático
dos dados obtidos, categorizando-os a partir das questões de interesse. Foram
usadas transcrições literais das falas das entrevistadas, refletindo
pensamentos e opiniões das mesmas. Utilizou-se uma espécie de análise de
conteúdo, definida como "uma técnica de pesquisa para fazer inferências
replicáveis e válidas dos dados, a partir do seu contexto" (KRIPPENDORFF, 1980,
p.21).
Diferentemente dos dados quantitativos, as entrevistas qualitativas não poderão
ser generalizadas para a cidade de Belo Horizonte, mas permitirão investigar,
mais a fundo, aspectos sobre as consultas ginecológicas na perspectiva das
pacientes.
Perfis de acesso às consultas ginecológicas em Belo Horizonte
Das 983 mulheres analisadas neste trabalho, ou seja, aquelas de 18 a 59 anos,
que já tinham tido relação sexual e já haviam consultado ginecologista alguma
vez na vida, 75,2% (739) tiveram consulta ginecológica nos 12 meses anteriores
à entrevista, enquanto 24,8% (244) não consultaram um ginecologista neste mesmo
período.
A construção dos perfis extremos é feita a partir da estimação dos valores de
λkjl. Posteriormente, é calculada a razão entreesses valores e as freqüências
marginais de cada categoria contemplada no modelo, o que possibilitará definir
as características dominantes em cada perfil. As categorias em que a razão
entre probabilidade estimada e freqüência marginal é maior ou igual a 1,2 são
aquelas que delineiam os perfis (Tabela_1).
Perfil I: as mulheres mais desfavorecidas
As mulheres que correspondem aos tipos puros do perfil I apresentaram maior
probabilidade de serem as mais desprivilegiadas quanto às características
socioeconômicas. Isso se reflete claramente no número de bens duráveis e de
cômodos existentes em suas casas. Estas mulheres têm escolaridade de 0 a 3 anos
e apresentam maior probabilidade de não possuírem plano de saúde; já na
população total, 46% das mulheres tinham plano de saúde, para aquelas
pertencentes ao perfil I essa proporção era de 6,4%, ou seja, as mulheres deste
perfil têm cerca de 7 vezes menor probabilidade de ter acesso a um plano de
saúde. No que se refere às características demográficas, as mulheres deste
perfil apresentam maior probabilidade de serem mais velhas, já que suas idades
variam entre 45 e 59 anos, de serem pretas, unidas, divorciadas/separadas ou
viúvas. Essas mulheres possuem, também, maior probabilidade de terem três ou
mais filhos - do total, 29,9% estavam nesta faixa de parturição, enquanto para
o perfil I essa porcentagem era de 76,1%.
Quanto à dimensão saúde, as mulheres deste perfil apresentam maior
probabilidade de não estarem usando/nunca terem usado algum tipo de método
anticoncepcional ou de fazerem uso de métodos cirúrgicos, tendo iniciado sua
vida sexual com menos de 15 anos ou mais de 30. No que diz respeito à consulta
ginecológica, essas mulheres apresentam maior probabilidade de não terem
acompanhamento regular e de não terem visitado o ginecologista nos 12 meses
anteriores à pesquisa. As mulheres pertencentes aos tipos puros deste perfil
apresentam 100% de probabilidade de terem ido ao serviço público procurar um
ginecologista; já para o total da amostra, este percentual correspondia a
47,51%.
No que tange a variável da dimensão poder, as mulheres deste perfil não
tentariam evitar uma relação sexual caso o companheiro se recusasse a usar
preservativo. Há duas possíveis explicações: ou elas não se sentiram com poder
para exigir isso, ou não consideram relevante o uso de preservativo.
Perfil II: as mulheres desfavorecidas
As mulheres contempladas pelo perfil II apresentam escolaridade um pouco mais
alta (4 a 7 anos de estudo) quando comparadas àquelas do perfil I. Percebe-se a
mesma tendência de ligeira melhora em relação ao perfil I nas demais variáveis
da dimensão socioeconômica. No tocante ao plano de saúde, estas mulheres
registram trinta pontos percentuais a mais de probabilidade de não terem plano
de saúde relativamente ao total da amostra (88,2% e 54%, respectivamente).
Estas entrevistadas possuem, também, maior probabilidade de terem poucos bens
duráveis e cômodos em suas casas. Quanto às variáveis da dimensão demográfica,
estas mulheres têm maior probabilidade de serem um pouco mais jovens (40 a 49
anos) quando comparadas às do perfil I e de terem uma parturição de dois ou
mais filhos. As mulheres deste perfil apresentam, ainda, maior probabilidade de
serem pardas, protestantes ou pentecostais e de serem casadas, unidas ou
divorciadas/separadas.
Na dimensão saúde, as mulheres pertencentes a este perfil têm maior
probabilidade de fazerem uso de DIU ou de algum método cirúrgico, bem como de
não terem um acompanhamento ginecológico regular e de não terem ido ao
ginecologista nos 12 meses anteriores à pesquisa. A probabilidade de terem
procurado o serviço público para consulta com ginecologista é superior nesse
perfil (95,9%) relativamente ao total (47,5%).
Na variável da dimensão poder, percebe-se a mesma tendência do perfil anterior,
já que estas mulheres apresentam maior probabilidade de afirmarem que não
evitariam a relação sexual se o parceiro se recusar a usar preservativo.
Perfil III: as mulheres favorecidas
As mulheres pertencentes ao perfil III tinham entre 8 e 11 anos de estudo. No
que concerne às demais variáveis da dimensão socioeconômica, apresentam maior
probabilidade de terem 7 a 8 cômodos em suas casas e maior número de bens
duráveis comparativamente aos dois perfis anteriores. Já no que se refere à
dimensão demográfica, essas mulheres apresentam maior probabilidade de serem
mais jovens, com idades de 18 a 34 anos, de serem solteiras e sem filhos ou com
apenas um filho.
Nas variáveis da dimensão saúde, essas mulheres têm maior probabilidade de
usarem métodos hormonais ou naturais/outros, bem como de procurarem o serviço
particular para uma consulta ginecológica. As mulheres deste perfil também
apresentam maior probabilidade de ocorrência da primeira relação sexual mais
jovens (idades de 25 a 29 anos).
Diferentemente dos dois perfis anteriores, não há um padrão bem delineado no
que diz respeito à dimensão poder.
Perfil IV: as mulheres mais favorecidas
O perfil IV reúne as mulheres de alta escolaridade (12 anos ou mais de estudo).
Comparadas àquelas pertencentes aos demais perfis, essas mulheres apresentam
maior probabilidade de terem maior número de bens duráveis e de cômodos em suas
residências. Enquanto no total apenas 23,2% das entrevistadas dispõem de nove
cômodos ou mais, neste perfil tal proporção é de 62,6%. Ainda verifica-se maior
probabilidade de serem atéias ou professarem outras religiões e de terem plano
de saúde, proporção esta que atinge 98,3% das mulheres deste perfil, enquanto
apenas 46% do total tinham acesso a um plano. Nota-se, portanto, que, nas
variáveis socioeconômicas, estas mulheres apresentam situação bastante
favorável.
Observando as variáveis da dimensão demográfica, estas mulheres possuem maior
probabilidade de terem de 35 a 39, 45 a 49 ou 55 a 59 anos, de serem solteiras,
brancas e de não terem filhos (cerca de 2 vezes mais do que no total).
Nas variáveis da dimensão saúde, as mulheres deste perfil apresentam maior
probabilidade de fazerem uso de método de barreira ou de não estarem usando ou
de nunca terem usado algum método anticoncepcional, com maior probabilidade de
terem iniciado suas vidas sexuais com idade entre 20 e 29 anos. Elas
apresentam, ainda, maior probabilidade de terem um acompanhamento ginecológico
regular e de procurarem este serviço por intermédio de plano de saúde ou
consulta particular.
Na dimensão poder, se o parceiro se recusasse a usar preservativo numa relação,
as mulheres deste perfil tentariam evitar tal relação com alguma certeza.
Prevalência dos perfis
Verificou-se que o perfil com maior prevalência foi o perfil III, que
corresponde às mulheres favorecidas, cujo escore médio é de 0,389,
representando 38,9% do total da amostra. Nos demais, os valores corresponderam
a 29,3% no perfil II (mulheres desfavorecidas), 19,9% no IV (mais favorecidas)
e 11,9% no I (mais desfavorecidas). Ressaltese que 41,2% do segmento pesquisado
classifica-se nos perfis I e II, que representam camadas populares. Portanto,
ainda é muito grande a proporção de mulheres com baixa escolaridade e maior
probabilidade de viverem em piores condições, incluindo um pior acesso à
consulta ginecológica.
Percepções acerca da consulta ginecológica em Belo Horizonte
O acesso à consulta ginecológica vai além do número de consultas, da sua
periodicidade ou dos fatores investigados até o momento. É preciso, ainda,
entender, na perspectiva das mulheres, as motivações para procurar (ou não) o
ginecologista e o que acontece "dentro das quatro paredes do consultório".
A primeira consulta ginecológica
É razoável esperar que a primeira consulta ginecológica seja importante na vida
da mulher. É ela que "apresentará" a paciente a esta consulta. Uma boa primeira
experiência é fundamental para que a mulher volte outras vezes e faça da
consulta ginecológica um instrumento de prevenção e conhecimento. O momento de
sua realização também é aspecto primordial, já que esta consulta tem importante
papel informativo, além de ser de grande relevância para que a mulher tenha uma
vida sexual saudável. Temas como o próprio corpo, sexualidade e métodos
anticoncepcionais devem ser discutidos com o ginecologista. As entrevistadas
entendem a importância desse momento e é consenso que a primeira consulta deve
ocorrer ainda durante a adolescência.
Muitas mulheres acreditam que a primeira consulta deve estar vinculada à
primeira menstruação, já que este é um momento em que o corpo da mulher passa
por grandes transformações. O início da vida sexual também foi apontado por
muitas entrevistadas como um momento adequado para que a primeira consulta
ginecológica aconteça, quando a informação é de extrema importância. A consulta
ginecológica, nesta ocasião, foi mencionada como um instrumento relevante para
que uma gravidez precoce seja evitada.
E:5 Quando você acha que uma mulher deve ir ao ginecologista pela
primeira vez?
Célia: Ai, eu acho que assim que ela começa a ter as primeiras
relações sexuais, né.
E: Você acha que deve ir?
Célia: É. Pra prevenir, né?
(4 a 7 anos de estudo, 49 anos)
Os depoimentos sugerem que teoria e prática estão bem distantes no caso das
mulheres de camadas populares. Apesar de serem favoráveis à prevenção, para
estas mulheres a primeira consulta esteve intimamente relacionada à gravidez.
Elas procuraram uma consulta ginecológica, pela primeira vez, quando estavam
grávidas ou por desconfiarem de estar nesta condição.
E: Agora, quando que a senhora casou?
Sara: Ah, eu casei tava com 20 anos.
E: 20 anos?
Sara: É.
E: E nessa época a senhora ia ao ginecologista?
Sara: Não.
E: E quando engravidou?
Sara: Ah, quando engravidei eu fui. Eu fiz pré-natal, até trabalhava
ainda. Eu fiz pré-natal quase na véspera de eu ganhar.
(0 a 3 anos de estudo, 55 anos)
Já para as mulheres com oito ou mais anos de estudo, a primeira consulta se deu
em outro momento da vida, em função da vontade de receber orientação sobre sexo
e um método anticoncepcional ou, ainda, após a menarca.
E: Você lembra a primeira vez que você foi ao ginecologista?
Cíntia: A primeira vez que eu fui, deixa eu ver... Foi antes de ter a
primeira relação que eu fui na primeira vez. Que eu fui procurar
saber, né? Do remédio. Como acontecia, e tal.
E: E você lembra como que foi essa consulta?
Cíntia: (...) Eu fui pra conversar com ele, que eu queria ter relação
e tal. Ele conversou normal, explicou, né? As coisas, o jeito de como
engravidar e tal, também.
(8 a 11 anos de estudo, 23 anos)
Portanto, as entrevistas sugerem que a primeira consulta ginecológica se deu em
momentos bem diferentes para estes dois grupos de mulheres. De fato, as
mulheres de camadas populares, que mais precisam de informação sobre aspectos
ligados à sexualidade e à saúde reprodutiva, são exatamente aquelas que não
utilizaram a consulta ginecológica para esta finalidade. É importante ressaltar
que a consulta ginecológica foi considerada, por muitas entrevistadas, o
momento em que acontece o aprendizado sobre questões relacionadas ao sexo.
Como, em geral, as famílias não discutem esses assuntos e as escolas, muitas
vezes, deixam a desejar, este papel é atribuído ao ginecologista. Esta idéia
foi mais recorrente no caso das mulheres mais velhas. Isto pode ter acontecido
porque as mais jovens, por viverem numa época em que o conhecimento é mais
acessível (Internet, televisão), não vêem o ginecologista como a única fonte de
informação.
Como estas mulheres se sentiram na primeira consulta ginecológica? Segundo as
entrevistas, elas ficaram envergonhadas e constrangidas neste primeiro contato,
independentemente da idade e do nível de escolaridade, já que mesmo as mulheres
de maior escolaridade afirmaram que se sentiram desconfortáveis na primeira
consulta.
E: É... E você lembra quando foi a primeira vez que você foi ao
ginecologista?
Mariana: Foi em 2001...
E: E você lembra como foi a sua primeira consulta?
Mariana: Ah... Eu fiquei morrendo de vergonha...
E: (risos) Me conta um pouquinho como foi...
Mariana: Ué... Eu fiquei com vergonha né!? Ah... Esse negócio de
ficar tirando a roupa perto dos outros é horrível.
(8 a 11 anos de estudo, 29 anos)
É curioso perceber, ainda, como a vergonha e a timidez podem ser dificultador
para que as mulheres busquem esta consulta. Carmem acredita, num primeiro
momento, que a mulher não deve ir nunca ao ginecologista, tamanho é o
constrangimento que ela sente no momento do exame. Quando indagada sobre os
riscos que corre não indo a esta consulta, ela revê sua postura. No entanto,
fica clara a barreira existente entre a paciente e a consulta, sendo que a
maneira como o médico a trata é responsável por este obstáculo - a forma de
tratamento contribui para o aumento da vergonha.
E: Quando a senhora acha que as mulheres devem começar a ir ao
ginecologista?
Carmem: Ah, eu acho que não deve ir nunca (...)
E: É mesmo?
Carmem:Só da gente ter que ficar pelada (...)
E: Mas igual a senhora falou, se ficar doente? Mesmo assim?
Carmem:Ah, ce sabe que que é? Ah, mas mesmo assim (...) não, eu acho
que deve ir se atender, mas eu acho que se tiver um posto, um médico
que trata a gente ia, mas acontece que eu acho que tem médico muito
sem educação, a gente pega e fica com vergonha né? Falando as coisa
assim, gritando com a gente, a primeira não, a primeira (...) e aí a
gente pega e não vai.
(0 a 3 anos de estudo, 50 anos)
No decorrer das entrevistas, percebese que as mulheres atribuem grande
importância à primeira consulta ginecológica, considerando-a uma valiosa fonte
de informação, seja sobre métodos contraceptivos e funcionamento do corpo, seja
a respeito de gravidez. Independente da escolaridade da mulher ou do momento
indicado para que esta consulta aconteça, ela está sempre associada a esta
busca pela informação e prevenção.
As mulheres de camadas populares, apesar de terem ido ao ginecologista pela
primeira vez por estarem (ou pensarem estar) grávidas, acham que este não é o
momento oportuno para a primeira consulta e acreditam que o ideal é ir antes da
primeira gravidez. É possível que haja uma mudança de conduta e elas transmitam
às suas filhas a importância de irem ao ginecologista antes de engravidarem, ou
pode ser que, para elas, a teoria continue muito distante da realidade. Deve-se
considerar, nesta discussão, a questão do acesso, já que, conforme mencionado,
as mulheres com menor renda e menos escolaridade apresentam menor acesso à
consulta ginecológica se comparadas àquelas com uma condição socioeconômica
mais favorável.
Se a segunda hipótese for verdadeira, deve-se considerar, ainda, que a idade
média na primeira relação sexual diminuiu e, ao mesmo tempo, que a idade média
na primeira gravidez aumentou nos últimos anos, o que faz com que as mulheres
que procuram o ginecologista apenas na primeira gravidez façam mais
tardiamente. Elas estariam, assim, mais expostas e sem o devido cuidado com
relação às DSTs. Outro ponto importante refere-se à queda da fecundidade. Se as
mulheres menos favorecidas procurarem o ginecologista apenas quando estiverem
grávidas, as consultas acontecerão cada vez com menor freqüência, já que houve
uma redução brusca na fecundidade das mulheres brasileiras, inclusive daquelas
menos escolarizadas, as quais, apesar de ainda terem mais filhos do que as
mulheres de maior escolaridade, não mais chegam a atingir os níveis de
fecundidade observados há 30 anos.
No que concerne a dimensão socioeconômica, percebe-se um abismo entre as
mulheres de maior e de menor escolaridade. O acesso das primeiras à consulta
ginecológica se deu num momento bem diferente daquele em que aconteceu a
primeira consulta das mulheres com baixa escolaridade. O mesmo abismo pode ser
notado em relação às variáveis da dimensão demográfica. O acesso à primeira
consulta das mulheres mais velhas e com parturição mais alta ocorreu por
ocasião da primeira gravidez, enquanto para as mais jovens e com parturição
baixa ou nula se deu quando estas eram mais jovens e buscavam informação.
Depois da primeira consulta ginecológica
Com base nas entrevistas, pode-se dizer que a maioria das mulheres percebe a
importância de se ir ao ginecologista regularmente. No entanto, mais uma vez, a
teoria está muito distante da prática. Conforme visto, muitas mulheres,
principalmente as menos escolarizadas, não tiveram uma consulta ginecológica
nos 12 meses anteriores à pesquisa. Como revelam os depoimentos a seguir, são
muitos os motivos para isso.
Algumas entrevistadas indicaram que depender do serviço público para a
realização da consulta é uma barreira, já que o atendimento é demorado e há uma
grande dificuldade em marcar a consulta no horário desejado pela paciente. O
fato de muitas mulheres terem uma atividade profissional dificulta o acesso,
pois o posto de saúde costuma funcionar em horário comercial. Assim, é comum a
mulher só procurar atendimento ginecológico quando está doente ou, ainda,
durante campanhas, que atraem as pacientes para a consulta porque atendimento é
mais ágil e acessível, com horário diferenciado e, na maioria das vezes, nos
finais de semana.
E: E por que você não vai? Normamente?
Luana: Eu vou te falar a verdade, eu num tenho assim nem muito tempo.
Igual a gente trabalha fora, o atendimento público, ele é assim, é o
horário que eles marcarem. Igual esse prédio aqui, é muita
dificuldade pra trabalhar nele (...). Se eu me deslocar na parte da
manhã aqui, um dia, duas horas que eu me deslocar daqui já (...)
(4 a 7 anos de estudo, 44 anos)
Outras entrevistadas indicaram que não realizaram consulta ginecológica no
último ano porque não gostam ou sentem vergonha. É interessante perceber que
isto ocorreu independente da idade ou da escolaridade. Uma mulher jovem
declarou que a dependência da mãe para marcar a consulta é um dificultador, já
que a mãe faria muitas perguntas. Neste caso, não apenas a vergonha referente à
consulta, mas também a relação com a mãe aparece como barreira na busca pelo
atendimento ginecológico. Logo, a família - e a forma com que lida com a
sexualidade das filhas - pode dificultar o acesso à consulta.
Como revela Taís, novamente a gravidez está muito relacionada à busca pela
consulta ginecológica de uma maneira geral, já que a entrevistada só procurou
novamente o atendimento quando se encontrava nesta situação. Durante a
gravidez, a consulta ginecológica é vista como uma obrigação.
E: E aí como você foi voltar depois? (...) ficou com vergonha e não
voltou de novo?
Taís:Só quando eu fiquei grávida (risos) que eu voltei de novo. Tive
que ir, né?
E: É.
Taís: Aí eu fui.
(4 a 7 anos de estudo, 44 anos)
As mulheres que realizaram consulta ginecológica nos 12 meses anteriores à
pesquisa indicaram que o principal motivo foi a busca pela prevenção. Vale
ressaltar que estas são, em sua maioria, mulheres de alta escolaridade.
E: E por que razão você costuma ir ao ginecologista?
Silvia:Ah, eu acho que é mais pela questão da prevenção mesmo. Que
ainda mais no caso da mulher, né? Que é tudo interno, você não
consegue ver, você só percebe quando a coisa já tá grave. A minha mãe
sempre me educou assim também, com essa consciência, tanto a mim
quanto a minha irmã. Então é preventivo mesmo. (...). É isso ai.
(12 anos ou mais de estudo, 35 anos)
Independente da escolaridade da mulher e de sua idade, as entrevistas sugerem
que, assim como a primeira, as consultas ginecológicas subseqüentes estão muito
associadas a situações de desconforto. A vergonha é o sentimento predominante
nestes momentos, sendo que, para as mulheres menos escolarizadas, lembrar do
momento da consulta e, principalmente, do exame ginecológico em si já causa
nelas constrangimento. Vale ressaltar que este desconforto para as mulheres com
12 anos ou mais de estudo é menos freqüente.
E: E como você se sente indo ao ginecologista? Qual que é sua
sensação?
Camila: Mal [risos]
E: Mal?
Camila: Mal... vergonha, chegar lá, abrir as pernas... [risos] Nossa,
horrível.
(8 a 11 anos de estudo, 29 anos)
Outros sentimentos também muito presentes no momento da consulta são o medo e o
nervosismo. A situação em si e o fato de as pacientes terem que ficar nuas
fazem com que as impressões criadas em relação a este momento sejam, de alguma
maneira, negativas.
E: Como é que? O que a senhora sentiu quando foi ao ginecologista?
Como é que a senhora se sentiu?
Carmem: Saí de lá com raiva. Só isso.
E: É? A senhora sentiu raiva na hora que saiu? E na hora que a
senhora chegou lá? Como é que foi?
Carmem: Ah, fiquei com medo.
E: Ficou com medo?
Carmem: Fiquei morrendo de medo.
E: Por que a senhora ficou com medo?
Carmem:Ah, porque este negócio de toque na gente, num gosto não.
(0 a 3 anos de estudo, 50 anos)
Quando indagadas sobre como se sentem na consulta ginecológica, as mulheres com
escolaridade mais alta (12 anos ou mais de estudo) indicaram não ser a consulta
ginecológica um momento totalmente confortável. No entanto, isso não se
apresenta como uma barreira para a busca pela consulta.
Fica claro, ao longo das entrevistas, o desconforto que a mulher sente no
momento da consulta ginecológica. Entretanto, nota-se que este desconforto vai
se atenuando com o aumento da escolaridade das entrevistadas. Enquanto mulheres
com baixa escolaridade não gostam nem de falar sobre o assunto, as mais
escolarizadas mostramse mais tolerantes a esta consulta, mesmo admitindo que
ela ainda gera um certo constrangimento. Nota-se que o conhecimento da
importância da consulta ginecológica na vida da mulher pode estar atuando como
um atenuante da vergonha que a mulher sente. Observa-se, também, que não há uma
tendência bem definida por idade. Neste caso, a escolaridade acaba sendo mais
determinante do que a idade.
Outro ponto importante refere-se ao poder da mulher. As entrevistadas com menor
escolaridade e menos poder possuem uma relação extremamente desfavorável com o
médico. Isto se dá não apenas pela escolaridade, mas também pelo tipo de
atendimento, o qual, para essas mulheres, na maioria das vezes, acontece via
SUS. No outro extremo, as mais escolarizadas têm atendimento via plano de
saúde, o que lhes confere mais poder em relação ao médico e a possibilidade de
escolher seu ginecologista, além do fato de a própria escolaridade possibilitar
maior conhecimento e acesso à informação.
A qualidade da consulta foi trazida à tona por todas as entrevistadas. A
importância do diálogo durante a consulta é afirmada por mulheres tanto de
baixa como de alta escolaridade. As entrevistadas pontuam que, muitas vezes, o
médico pensa que a paciente já sabe de tudo e não explica certos aspectos com o
devido cuidado. Neste sentido, além da conversa, os depoimentos sugerem que o
ginecologista deve olhar para a paciente e ser receptivo quanto à troca de
idéias, e não apenas proceder como se a paciente não tivesse opinião e
sentimentos. Percebe-se, ainda, que a consulta ginecológica, principalmente no
caso das mulheres mais escolarizadas, torna-se um evento mais natural quando a
mulher é mais velha.
No que tange a busca pela consulta ginecológica, fica claro que há uma
diferença entre as mulheres com alta escolaridade e as demais. As primeiras
indicam saber a importância da consulta ginecológica e a fazem sem apresentar
qualquer tipo de problema, mas a realizam somente em busca de prevenção. Para
estas mulheres existe uma cultura da prevenção, ou seja, ir ao ginecologista
regularmente faz parte de seu cotidiano.
No outro extremo, as mulheres de camadas populares não fazem esta consulta
regularmente, sendo três os maiores obstáculos para que isso não ocorra: a
vergonha; a falta de eficiência do SUS, que se apresenta como uma barreira
prática na busca pela consulta ginecológica; e a falta de diálogo e carinho do
ginecologista com relação à paciente, sobretudo a usuária do SUS, que não tem a
opção de escolher seu médico.
E: A médica lhe atendeu bem?
Taís:Hum, tipo assim... dela eu ainda num... assim, porque igual eu
tô te falando... só cheguei, né, ela começou e pronto. Então, num
teve assim... ela num conversa, nem nada não.
E: Mas você gostou dela?
Taís:Ó, gostar eu não gostei não. Mas é a única, né, que tem lá...
então a gente tem que... num tem, né, opção...?
E: E por que você não gostou dela?
Taís:Ó, te falar a verdade, ela nem olha pra cara da gente.
E: É?
Taís:Não. Só fala assim: vai lá, tira a roupa... e... pronto... E...
olha, nem olha não. Só tira mesmo o líquido e marca o dia de buscar.
Só assim.
(4 a 7 anos de estudo, 44 anos)
Considerações finais
Este trabalho teve como objetivo investigar o acesso das mulheres à consulta
ginecológica em Belo Horizonte, dada a importância ímpar que representa para a
saúde da mulher.
As mulheres de 18 a 59 anos que serviram de base para este estudo foram
divididas em quatro perfis. Os perfis I e II reuniram as mulheres mais
desfavorecidas e as desfavorecidas, respectivamente, aqui chamadas de mulheres
de camadas populares. Além da baixa escolaridade (até sete anos de estudo), as
mulheres que tipicamente representaram este perfil tinham maior probabilidade
de serem mais velhas, apresentando idade entre 40 e 59 anos, terem dois filhos
ou mais, serem negras (pretas ou pardas) e alguma vez unidas. Estas mulheres
apresentaram grande probabilidade de não possuírem plano de saúde, de não terem
acompanhamento ginecológico regular, de não terem ido ao ginecologista nos
últimos 12 meses e buscarem esta consulta por meio do SUS. Estas mulheres ainda
apresentaram maior probabilidade de fazerem uso de métodos de contracepção
cirúrgicos e, aparentemente, não possuem poder, já que registraram maior
probabilidade de não se recusarem a ter uma relação sexual se o parceiro se
recusasse a usar o preservativo. A prevalência destes dois perfis na população
estudada foi de cerca de 42%.
O fato de o perfil em que se encontram as mulheres mais desfavorecidas ser o
menos prevalente na população é um elemento positivo. Contudo, deve-se
considerar que quase 12% da amostra estudada, em média, possui alguma
característica deste perfil, proporção esta não desprezível.
Outro ponto importante é o fato de o perfil IV, com as melhores
características, ser o terceiro em prevalência, o que indica que muito ainda
deve ser trabalhado para que as mulheres alcancem uma situação mais favorável
quanto ao acesso às consultas ginecológicas e às condições de vida de modo
geral.
Sobre as percepções destas mulheres a respeito da consulta ginecológica,
percebese que, independente da idade, escolaridade, raça/cor e de qualquer
outra característica, é atribuída grande importância a ela. No entanto, as
mulheres de camadas populares são as que se sentem mais envergonhadas durante a
consulta. Com relação à primeira consulta, as mulheres com escolaridade mais
alta foram pela primeira vez ao ginecologista buscando informação e prevenção;
já as menos favorecidas buscaram o ginecologista por estarem grávidas.
As entrevistadas atendidas via SUS apresentaram algumas demandas no que diz
respeito à consulta ginecológica. Até o momento, o diálogo não tem sido
suficiente para que as pacientes se sintam confortáveis diante do médico.
Assim, elas não se sentem à vontade para perguntar ao médico tudo o que
gostariam e, muitas vezes, saem da consulta sem entender os procedimentos a que
foram submetidas. O tempo de duração da consulta também foi indicado como
umponto que tem deixado a desejar. Elas afirmaram que, devido à falta de
médicos nos postos de saúde, estes ficam sobrecarregados e, por isso, o
atendimento às pacientes é muito rápido.
Um ponto importante levantado por algumas entrevistadas refere-se ao
funcionamento dos postos de saúde apenas em horário comercial, o que dificulta
o acesso, pois elas trabalham neste horário. Ademais, o fato de terem que
chegar cedo nos postos para conseguir a consulta também é um dificultador,
principalmente quando trabalham e possuem horários rígidos.
Ainda são muitos os investimentos que devem ser feitos para que as mulheres
tenham uma vida mais saudável. São necessárias políticas de conscientização com
enfoque, principalmente, nas mulheres mais desfavorecidas e menos
escolarizadas, já que são estas as que apresentaram maior probabilidade de não
terem feito consulta ginecológica nos 12 meses anteriores à pesquisa. Postos de
saúde com horários mais flexíveis e abrangentes também são de grande
importância. É necessário, ainda, capacitar e conscientizar os médicos para
atender este público, pois as mulheres de camadas populares sentem falta de um
atendimento mais humano, com diálogo e espaço para que se sintam à vontade -
não basta "tirar a roupa e pronto".