População, recursos naturais e poder territorializado: uma perspectiva teórica
supratemporal
Introdução
Pensar em população e recursos naturais, hoje, é pensar na China. Com seus
9.561.000 km2, a República Popular da China possui mais de 1,35 bilhão de
habitantes, o que equivale a 1/5 da população mundial. Nesses números, há quase
770 milhões de pessoas ainda residindo em áreas rurais e algo em torno de 300
milhões de consumidores de bens e serviços modernos morando em cidades
relativamente próximas da franja litorânea, na porção nordeste-leste-sudeste do
país. A restrição de espaços adequados à ocupação humana é notável, já que
cerca de um terço do território é desértico e inóspito. Mas sua formidável
expansão econômica nos últimos 30 anos tem impressionado analistas do mundo
inteiro, vários deles descrentes da possibilidade de um país sustentar por
tanto tempo um crescimento do PIB a taxas próximas de 9% ao ano. Em 2009, o PIB
chinês situou-se em torno de cinco trilhões de dólares. Em 2010, ultrapassando
o Japão, galgou o posto de segunda economia do planeta, tornando-se um dos
motores do comércio mundial, inclusive recuperando-se rapidamente dos efeitos
da crise internacional de 2008, ainda não debelada nas economias centrais.
Tudo isso impressiona ao se levar em conta que até 20 anos atrás 80% da
população chinesa vivia da agricultura. A herança milenar de traços rurais
legou um sistema familiar baseado: em estruturas culturais de forte expressão
territorial que se assemelham a pequenos estados clânicos; em um patriarcado
autocrático sustentado por trabalho coletivo, disciplina, obediência e lealdade
dos filhos para com os pais; em casamentos arranjados, sujeição e subordinação
feminina à família do marido (camponesas mantidas no analfabetismo e sem acesso
à propriedade); na valorização excessiva do filho homem por herdar o nome da
família e ser responsável pela terra e pelos cuidados aos idosos; e na
utilização do infanticídio a fim de privilegiar a prevalência masculina. Daí, o
controle da fecundidade imposto pelo Estado (filho único por casal) funcionar
razoavelmente nas áreas urbanas, mas no meio rural permite-se um segundo filho
se o primeiro não for do sexo masculino.
A despeito do excepcional crescimento da economia chinesa, há interrogações e
dúvidas sobre o futuro, boa parte delas novamente referida aos recursos
naturais e ao comportamento da população chinesa atualmente em processo de
modernização e ocidentalização.1
De um lado, do ponto de vista econômico, surgem dúvidas e reações
internacionais que denunciam em seu capitalismo predatório: a existência de
subsídios internos inaceitáveis; o uso de poder econômico e militar em disputas
comerciais; e a especulação nos mercados imobiliários e de commodities, no
momento em que o valor do dólar se debilita e as taxas de juros internacionais
estão próximas de zero. As desconfianças em relação à China e aos países da
Ásia são muitas e envolvem direitos de propriedades, contratos, acordos e
normas do comércio mundial. O que dizer do barateamento de seus produtos
mediante desvalorização artificial do Yuan num mundo "supostamente" de câmbio
flutuante? Recente declaração do ministro brasileiro Guido Mântega, com
repercussão na mídia internacional, observou que o mundo vive hoje uma guerra
cambial não declarada.2
Como vem noticiando a mídia nacional e internacional, também Juan Chingo, ao
analisar o "grande salto para frente" da China pós Mao Tse-Tung, alerta para o
surgimento de enormes desigualdades sociais, corrupção, nepotismo, inflação,
novos impostos, ineficiências no funcionalismo e um pragmatismo econômico de
Estado que almeja tornar, a todo custo, o país uma liderança mundial. O autor
exagera, entretanto, ao desenhar o futuro chinês submetido aos imperativos do
lucro fácil das grandes corporações transnacionais, o que tenderia a empurrar a
China para o atraso tecnológico em direção à condição de semicolônia. Fatos
recentes amplamente noticiados derivados da crise internacional de 2008 indicam
recuperação do crescimento do PIB baseado no consumo interno e em avanços
científicos e tecnológicos. Essas evidências desmentem o prognóstico sombrio de
Juan Chingo.
De outro lado, questões mais básicas desafiam os analistas. Estas dizem
respeito novamente aos recursos naturais e à população. Por exemplo: uma série
de consequências derivadas da exacerbada exploração desses recursos, degradação
do meio ambiente, desperdício e efeitos nocivos sobre o equilíbrio homem-
natureza desperta dúvidas, inclusive na burocracia do Estado chinês. Apesar de
ser impressionante o atual gasto de água potável, as previsões parecem
catastróficas diante da duplicação da produção industrial, da expansão das
cidades e do aumento do consumo da população. Se é verdade que a China tornou-
se líder mundial na produção de alimentos e sua agricultura já mecanizada
responde pela maior produção internacional de arroz e milho, suas terras
agricultáveis beiram ao esgotamento e penalizam o campesinato.
O antigo sistema familiar volta a viver crise séria na atualidade,3 por força
da emigração de jovens para as cidades e pelos efeitos que a modernização e
urbanização têm provocado na vida rural (poluição do ar, degradação de
aquíferos, desmatamento, desertificação, erosão e perda de solo). As primeiras
reformas de Deng Xiaoping não conseguiram elevar a renda e a produtividade no
campo, o que provocou aprofundamento das reformas subsequentes com a
flexibilização da legislação fundiária, introdução de direitos de
comercialização e entrada na OMC. Tais medidas acarretaram a expulsão de
milhões de trabalhadores excedentes da agricultura em uma migração campo-cidade
sem precedentes. De outra parte, estimativas apontam que, nos últimos 20 anos,
em decorrência da desertificação e uso intensivo da terra, houve perda de 14
milhões de hectares de solo cultivável, o que tem afetado a oferta de arroz,
principal item da dieta alimentar do país, secularmente plantado nas amplas
planícies do Yang-tzé, onde sempre houve abundância de água e população.
Diante das metas de continuar crescendo a taxas próximas dos 9% ao ano nas
próximas três décadas, isso representaria um incremento da participação chinesa
no comércio mundial dos atuais 12% para algo em torno de 70%. Se hoje a China
detém cerca de 20% da população mundial e produz 12% do PIB mundial, as
projeções indicam que, em 2040, o país responderia por 17% da população e 70%
do PIB mundial, o que implicaria declínio econômico do resto do mundo. Mas as
evidências de aquecimento global e o comprometimento de recursos naturais como
água, solos férteis, minérios e combustíveis fósseis permitirão a realização de
cenários tão favoráveis ao país? Como saída das dificuldades que se anunciam,
um novo tipo de colonialismo estaria sendo incentivado pelos dirigentes
chineses, como sugerem alguns analistas?4
População e recursos: uma discussão que insiste em não desaparecer
É bastante antiga a reflexão e teorização sobre população e recursos,
notadamente a partir das teses pessimistas de Malthus (1983) em fins de do
século XVIII. A essência dessa teoria relativamente simples que impressionou o
mundo fundamenta-se em dois pilares bastante aceitáveis na Inglaterra à época:
o da imperiosidade das leis naturais e o da moral cristã. O primeiro rege a
reprodução humana e o segundo coíbe "vícios" e práticas condenáveis como o
aborto e o infanticídio. A natureza leva a natalidade ao máximo biológico,
tendência tida como inelutável. Mas, qual seria o limite da reprodução humana?
A partir do que se observava nos EUA, Malthus concluiu que o tempo de
duplicação da população estava se situando em torno de 25 anos. A moral cristã-
anglicana, por sua vez, consagrava o casamento, a família, o trabalho e a
previdência e condenava a interrupção artificial da gravidez.
Com base nesses fundamentos, o autor construiu sua teoria, a primeira teoria de
população dotada de lógica interna consistente, a despeito das críticas e
limitações. Seu modelo original contrapunha o crescimento da população com os
limites da produção de alimentos. A população se multiplicava em tempo curto,
como em uma progressão geométrica, e os alimentos evoluíam mais lentamente,
como em uma progressão aritmética. O alimento dependia da disponibilidade de
terra agricultável, um recurso escasso limitado. A população, em sua trajetória
de crescimento exponencial, acabaria sendo barrada pela impossibilidade
intrínseca de a terra responder continuamente pela produção de alimentos. Os
chamados checks positivos soariam como uma das formas de restaurar
"naturalmente" o equilíbrio, ou seja, a fome, as epidemias e as guerras seriam
uma resultante do crescimento excessivo da população, a operar como uma
armadilha sempre presente na história da população mundial. Já os checks
preventivos, pouco trabalhados na versão original da publicação de 1798, atuam
noutra direção: alteram o imperativo biológico, seja por meio da anticoncepção
e aborto, práticas pecaminosas inaceitáveis, seja pelo retardo da idade do
casamento ou celibato. Se contra as forças da natureza não se pode lutar, para
se contrapor à atração sexual e ao instinto de sobrevivência só restariam a
prudência e a virtude como ideário recomendável, já que a procriação fora do
casamento é condenada. Isso significava que mais racional e desejável para a
sociedade seria adiar a idade do casamento, já que o celibato se afigurava como
uma opção não generalizável.5
Malthus pautou suas convicções baseadas nesse arranjo teórico-conceitual. Suas
incursões na relação capital-trabalho são conhecidas e suscitaram reações
negativas de toda a esquerda mundial em face da associação evidente que fazia
entre os meios de subsistência e o equilíbrio dos salários dos trabalhadores.
Daí a conclusão de que salários acima do mínimo de subsistência estimulariam o
aumento da população, o que forçaria, mais tarde, a redução salarial dado o
excesso de mão de obra. Instalava-se uma espécie de circuito vicioso contra o
qual nada se poderia fazer diante das leis da natureza, da força da paixão
entre os sexos, da busca pelo prazer, entre outras realidades.
Aferrado a essa lógica, Malthus acabou assumindo postura conservadora ao
defender o fim da ajuda aos pobres e a não concessão de créditos para
construção de casas populares para os trabalhadores. Tais posições foram
assumidas publicamente, pois ele acreditava que essas ajudas levariam ao
aumento da reprodução, o que redundaria em miséria mais à frente. Curiosamente,
sem que soubesse, Malthus estava inaugurando uma das bases do pensamento
liberal, vivo até hoje e ainda contrário à ideia de concessões de recursos
financeiros aos pobres.
Na maturidade, Malhtus reconheceu a importância e pertinácia dos checks
preventivos em relação aos checks positivos como freio ao crescimento
demográfico, provavelmente porque associavam-se ao controle moral e adequavam-
se ao estilo de desenvolvimento econômico que se anunciava à época. Mas a velha
pergunta o atormentava: restrições morais são capazes de conter a libido,
obstar a imensa paixão entre os sexos e o excessivo crescimento demográfico?
De lá para cá foram muitos os estudos e achados sobre o tema, como os de
Hajnal, Laslett, Macfarlane, Caldwell, Boserup, Coale, entre outros. Hajnal e
Laslett examinaram as particularidades do padrão europeu do casamento e o papel
exercido pela instituição dos servants (própria da Europa dos séc. XVI e XVII)
como mecanismo de autorregulação populacional. Os jovens tinham que aguardar a
aquisição de condições econômicas necessárias à constituição de uma família.
Demonstrou-se a excepcionalidade do casamento precoce à época: a família média
era relativamente pequena, 4,75 pessoas por domicílio na Inglaterra desde final
do séc. XVI. Outros autores mostraram restrições ao casamento precoce,
apontando itens como dote, herança, renda e propriedade, subjacentes à formação
de um novo domicílio.6
Alan Macfarlane, rediscutindo a questão, via a natalidade como uma chave da
questão, ao perceber que um aumento no valor econômico dos filhos e menores
restrições ao casamento dos servants poderiam ter feito baixar a idade média de
casamento. O autor conclui, após revisar diversas contribuições, que o padrão
de casamento inglês, baseado na escolha individual, compunha-se de uma série de
fatores interligados, sendo o mais importante a idade flutuante ao casar.
Assim, em momento de restrições econômicas derivadas do crescimento
populacional, essa idade aumentava, enquanto em outros períodos em que se
impunha a necessidade de mão de obra a idade diminuía (MACFARLANE, 1989).
Tamanho da família em varias sociedades, na ausência de fortes transformações
econômicas, não seria uma mera decorrência de leis naturais e mecanismos de
equilíbrio homoestático, como acreditava Malthus. Há razões pessoais, sociais e
fisiológicas, inclusive não-econômicas, que regulam a reprodução e isso difere
em cada sociedade, como nos diz Caldwell ao assinalar que em sociedades, sob
diferentes estágios de desenvolvimento, o comportamento reprodutivo é
absolutamente racional e a fecundidade pode ser alta ou baixa como resultado de
benefícios sociais e econômicos, associados ao que chama de fluxo
intergeracional de riqueza. A ideia de que alta fecundidade tipifica sociedades
atrasadas, movidas pelo "máximo biológico", é contestada por Caldwell,
porquanto todas as sociedades são economicamente racionais, dentro de sua
estrutura de finalidades sociais. Assim, podem ser apontados dois tipos de
regimes de fecundidade: um em que os indivíduos não têm ganhos econômicos em
restringir a fecundidade; e outro em que ocorre o oposto.7
Ester Boserup (1987), ao estudar a evolução agrária e pressão demográfica,
aprofundou várias questões deixadas em aberto pelo catastrofismo malthusiano,
especialmente nos capítulos em que se debruçou sobre a dinâmica do uso da
terra, a interdependência entre uso e mudança técnica, crescimento populacional
e oferta de trabalho. A autora observa que no início de um processo de
desenvolvimento econômico o crescimento demográfico é uma pré-condição, o que
deixa os povos de população pequena e esparsa agrilhoados pela agricultura de
subsistência, sem chances de alcançar níveis elevados de desenvolvimento
técnico e cultural. Isso porque os aumentos da densidade populacional
viabilizam incrementos de produtividade na agricultura, em razão de uma divisão
de trabalho mais sofisticada, melhor educação, administração e gestão pública.
Assim, uma população agrícola numerosa pode sustentar uma população também
numerosa que não pratica agricultura.8
A relação homem-natureza é primordial na dinâmica demográfica, sobretudo em
sociedades pré-industriais. População e recursos naturais guardam vínculos
associativos decisivos para o entendimento das trajetórias da mortalidade,
natalidade e migrações, e isso afeta o crescimento demográfico, mas não como
formulados na proposição teórica malthusiana. Populações humanas não se
reproduzem em direção ao máximo biológico exaurindo recursos de subsistência
como pensavam Malthus e os neomalthusianos.
Os dois pressupostos malthusianos, o da natureza e o da religião, são
insustentáveis cientificamente. O primeiro, a despeito da força da libido entre
jovens na puberdade, ignora a racionalidade e a cultura como atributos da
natureza humana. O segundo, o da moral cristã anglicana (que proíbe "vícios",
aborto e infanticídio), não se sustenta teoricamente como queria o jovem e
ingênuo Malthus em 1798. Teorias que se pretendam científicas geralmente
dispensam a mediação da religião, como demonstraram os gregos na invenção da
filosofia e da ciência. Assim, trata-se de um pressuposto eurocêntrico e
tendencioso ao menosprezar a existência de sociedades distantes da influência
dos três monoteísmos da Ásia Menor (judaísmo, cristianismo e islamismo).
Mesmo maduro, quando Malthus passara a defender o casamento tardio, o
pessimismo, o naturalismo fatalista e o moralismo religioso impediam-no de ver
que seus checks preventivos podiam ser praticados em vários tipos de sociedade.
Na verdade, o fundamento da racionalidade sempre esteve presente na vida dos
grupos humanos mais primitivos, daí a pertinácia das afirmações de Caldwell
quando demonstrou a racionalidade pró-natalista das sociedades primitivas e
tradicionais de famílias estendidas: um filho a mais era bem-vindo, pois
geralmente representava um benefício e não um custo como nas sociedades urbano-
industriais.9
Coale (1980) é enfático ao afirmar que não há um único exemplo histórico, em
qualquer região moderna ou tradicional, cuja fecundidade se aproxime do máximo
biológico. De outra parte, há suficientes evidências a demonstrar que a maioria
das sociedades, sempre que necessário, controlou a fecundidade, por meio dos
mais diferentes métodos. O autor rechaça as formulações teóricas que apregoam
um caminho único e inexorável para a humanidade e discorda das teses de
controle da natalidade de países de renda baixa, conforme propunham os
neomalthusianos na segunda metade do século XX.
Os neomalthusianos ganharam evidência nos anos 1960, re-elaborando a teoria de
Malthus sob nova roupagem. Um dos expoentes dessa corrente é o biólogo Paul
Ehrlich, que publicou, em 1968, seu famoso The population bomb. Suas
preocupações já não eram com a mera falta de alimentos, mas sim com o
desmatamento, redução da biodiversidade nas áreas tropicais, efeito estufa,
destruição da camada de ozônio. Com isso ele reuniu inúmeros adeptos no mundo
inteiro, encorajou governos e organizações não governamentais a atuarem na
promoção da contracepção em países pobres, tidos como os principais
responsáveis pelo aumento demográfico, porque estariam acrescentando ao planeta
um bilhão de habitantes a cada 11/12 anos. O catastrofismo ganhava o mundo. Se
o crescimento não fosse contido, a natureza incumbir-se-ia de fazê-lo por meio
da escassez de terras, insuficiência de alimentos, fome, enfermidades, mortes e
guerras.
Ehrlich, embora não traga estatísticas confiáveis em suas previsões, insiste em
argumentar, ainda hoje, a favor de suas teses, arrolando novos argumentos
associados à fragilização imunológica, sobretudo em grandes cidades precárias
de países pobres, onde proliferam velhas e novas patologias em contextos de
poluição de mananciais e crise mundial de alimentos. Nesse cenário, convulsões
sociais, epidemias, violência e colapso dos serviços públicos são o que se
espera nas áreas de "explosão demográfica".
Assim, um vasto programa internacional de controle da natalidade seria a
solução preconizada, quiçá para reduzir a população mundial de sete para dois
bilhões de indivíduos, número ideal para o biólogo. Em suas últimas asserções,
Ehrlich estabeleceu uma equação em que o impacto ambiental (I), depende
diretamente de P(população), C(consumo per capita) e T(tecnologia disponível).
Ao trazer o caso chinês como exemplo, o biólogo conclui que nesse país o termo
P está sobre controle porque a fecundidade declinou para algo em torno de 1,2%
ao ano desde 1970, T vem progredindo, mas o consumo C é ameaçador por causa do
enorme dispêndio de água que o crescimento econômico promove. Obstinado, o
autor parece impermeável a críticas e não percebe o "simplismo" de sua equação
ao ignorar completamente as estruturas de poder existentes na geopolítica
mundial.
Não há dúvidas de que a celeuma provocada por Ehrlich despertou a atenção de
governos e organismos internacionais. Na época, a Divisão de População da ONU
chegou a prever que a população mundial chegaria hoje a mais de 12 bilhões de
habitantes, em vez dos atuais sete bilhões. Após sucessivas revisões e depois
de constatar que a fecundidade declinou em todas as regiões do mundo (em torno
de 2,6 filhos por mulher nas regiões pobres e menos de 1,5 filho por mulher nas
regiões desenvolvidas), estimativas da ONU sugerem que, em 2050, talvez sejamos
nove bilhões de pessoas no planeta. Essa diferença chega a impressionar e
suscita a questão: se a bomba populacional não foi deflagrada, para onde foram
os bilhões de seres humanos sobrestimados?
Os adeptos de Ehrlich insistem em dizer que isso se explica pelas imensas
perdas por mortalidade infantil, Aids, malária, sarampo, diarreia na África e
América Latina e abortos de bebês do sexo feminino na China e Índia. Dessa
forma, eles tendem a minimizar ou duvidar dos impactos da redução voluntária do
número de filhos pelas famílias, dos efeitos da urbanização na relação custo-
benefício dos filhos, dos novos papéis da mulher escolarizada e do uso de
diversos métodos contraceptivos modernos.
Cinco países da Ásia e um da África, boa parte deles muçulmanos, respondem por
metade do crescimento mundial em termos absolutos: Índia, China, Indonésia,
Paquistão, Bangladesh e Nigéria. Mas esse quadro pode estar se alterando mais
rápido do que preveem os mais céticos. Mesmo com taxas superiores ao nível de
reposição, começa a desabar o mito da sobrenatalidade muçulmana, especialmente
nos países onde os efeitos da modernização e ocidentalização alcançam as
mulheres, tais como Egito, Jordânia, Tunísia, Irã, entre outros.
Aportes conceituais para uma nova formulação teórica
Diante das múltiplas questões associadas aos processos atuais derivados da
globalização econômico-financeira e do comércio internacional, coexistem
práticas novas e antigas, algumas delas suscitando correlações simples e
complexas entre demografia e economia. Discernir alguns pontos que dizem
respeito à dinâmica demográfica é sempre uma tarefa desafiadora, porque envolve
um antigo debate que há muito tempo se interpõe nas ciências sociais.
Inicialmente, cumpre salientar que as reflexões que se seguem não se ocupam em
discutir teses liberais e neoliberais que exponenciam o livre mercado, arranjos
institucionais da alta finança, capacidade de autor-replicação de processos
virtuosos de produção de inovações tecnológicas. Tampouco nos propomos a
discutir teses marxistas que sobre-elevam as determinações exógenas dadas pela
dinâmica multiescalar do grande capital, acirramento da luta de classes,
disputas entre frações do capital internacional. Sem ignorar as teses que
procuram explicar a realidade socioeconômica mundial ou regional pelas novas
formas impostas pelo capital financeiro internacional e grandes corporações
transnacionais, pretende-se aqui realçar fatores tratados lateralmente, quais
sejam, recursos naturais, população e poder estatal, dimensões causais com alto
poder explicativo de realidades atuais como a da China continental.
A tese aqui proposta é que valores histórico-culturais profundos se amalgamaram
de modo complexo e indissociável, em uma espécie de combinação em tríade das
estruturas de poder, recursos naturais e população. Os problemas
epistemológicos existentes nessa tarefa demandam campos de conhecimento como os
da economia, geografia, sociologia e cultura. Atualizá-los é tarefa de muitos
estudiosos e anos de trabalho transdisciplinar. Contudo, algumas intercessões
resultantes da observação e do exame da literatura podem trazer ganhos teóricos
pouco explorados. Para isso convém iniciar estabelecendo um conjunto de
significados básicos para os termos população, espaço e poder.
Conceitualmente, população aqui refere-se a tamanho, composição por sexo e
idade, balanço entre mortes e nascimentos, padrão de reprodução e migração.
Outros estudiosos das Ciências Sociais raramente conhecem os significados que
as estruturas demográficas escondem, algumas delas só perceptíveis no longo
prazo, a exemplo do crescimento zero, bônus demográfico e envelhecimento da
população em países que já completaram a transição demográfica. Assim, as
componentes que informam a dinâmica demográfica podem, em alguns momentos,
explicar por si mesmas certas configurações sociais porque internalizam alguma
autonomia em relação às imposições da natureza, da cultura e da economia.
Afinal, homens e mulheres, famílias e clãs construíram racionalidades
relativamente sólidas, fundamentais à sobrevivência do grupo, a exemplo do
controle do número de filhos em ambientes de restrição alimentar, ou atitudes
pró-natalista em vários momentos como efeito-compensação em face das antigas
crises de mortalidade.10
A noção de recursos naturais agrega as dimensões natural e social, mas se
restringe nesse estudo aos espaços que dispõem de recursos naturais de dois
tipos, os de subsistência e os de proeminência. O primeiro reúne os recursos
necessários à sobrevivência de grandes grupos humanos: água, clima ameno, solos
férteis, fauna (inclusive animais domesticáveis de grande porte) e flora
(inclusive grãos, gramíneas e florestas utilizáveis como lenha e madeira na
construção). O segundo refere-se à natureza transformada, mediante manipulação,
extração ou transformação de recursos "in natura" que permitem fortalecer e
ampliar as condições de sobrevivência. Neles estão incluídos desde sítios
geográficos bem localizados, até metais como cobre, estanho, ferro, ouro,
prata, mercúrio, ou substâncias como carvão mineral, chumbo, petróleo,
potássio, urânio, entre outros.
Poder, por seu turno, implica consentimento e coerção em suas modalidades
política, econômica, simbólica ou religiosa, separadas ou imbricadas, mas quase
sempre ancoradas na presença do Estado.11 O conceito implica mais investimento
teórico do que fazemos aqui, já que vem sendo discutido desde Hobbes (1988)
(meios de que a pessoa dispõe para a obtenção de futuros benefícios), Weber
(imposição da vontade de alguém sobre outrem em uma dada sociedade), Foucault
(relações assimétricas entre pessoas e grupos humanos), ou mesmo Galbraith
(1986), com seus três tipos de poder, o condigno, o compensatório e o
condicionado. O condigno associa-se a determinadas personalidades, o
compensatório resulta da posse e propriedade e o condicionado origina-se da
organização. O Estado acumulou essas três fontes de poder por meio da detenção
de propriedades e ativos diversos e pela intrincada estrutura organizacional
que estabeleceu.
Convém sublinhar que as relações entre recursos naturais e população são
evidentes. Certamente tão antiga quanto essa associação é a que se refere aos
aparatos de poder capazes de estruturar sociedades simples ou complexas em suas
múltiplas e conflituosas clivagens territoriais. É nessas circunstâncias que
são instituídas regras de convivência e meios de defesa do território contra
ataques externos.
As três dimensões de análise supracitadas, mesmo em um estudo expedito, passam
por uma breve revisão histórica que estabeleça mediações entre escalas
territoriais que se superpõem: local versus global; forças do particularismo; e
forças do universalismo.
Uma proposição complementar é que determinadas atitudes de pessoas, grupos
sociais e instituições obedecem a uma espécie de inconsciente coletivo12
recôndido, cuja origem foi inculcada há muito tempo pelos mitos e história,
língua e cultura. Trata-se de uma espécie de memória grandiloquente que as
elites manipulam em determinados momentos, ao incorporar ideais elevados de
força, guerras heroicas, pompa, discursos eloquentes que perenizam antigas
narrativas e traços identitários.
Na base dessa tensão cultural persiste o fato de que é muito antiga a
consciência dos povos sobre sua fragilidade. Quando as populações começaram a
crescer e se expandir geograficamente, logo se tomou conhecimento de que alguns
lugares sucumbiram depois de ter vivido tempos de apogeu. Sabia-se que doenças
e pragas podiam se abater sobre um povo e dizimar milhares de pessoas. Diante
da possibilidade das tragédias, era comum a ideia de que o crescimento
demográfico era uma espécie de dádiva dos deuses ou um valor dos bem-sucedidos,
porque viabilizava a expansão territorial mediante conquistas e colonização.
Crescimento soava não apenas como uma necessidade, mas também um mecanismo de
compensação diante de catástrofes provocadas por crises de mortalidades mais ou
menos cíclicas. A ideia de que o crescimento demográfico fosse naturalmente
desejável era, portanto, suportada pelos rudimentos da ciência inventada pelos
gregos ou pela regra de ouro das sagradas escrituras ("crescei e multiplicai-
vos").
Em sequência, expõem-se de forma resumida quatro grandes momentos histórico-
culturais, cujas consequências estão profundamente vivas até os dias de hoje,
nos quais a questão população, recursos naturais e poder alçou níveis
explicativos decisivos na trajetória subsequente dos povos que protagonizaram
mudanças estruturais de longa duração.
Tempo 1: Expansão territorial na passagem da caça-coleta à agricultura
Pesquisas baseadas no DNA mitocondrial revelam que o homem anatomicamente
moderno, a espécie que colonizou o planeta, originou-se da África subsaariana
há cerca de 200 mil anos, embora os vestígios arqueológicos mais precisos
indiquem a marca dos 150 mil anos. Sua expansão mundial foi inexorável, mas
difícil e arriscada em face de sua convivência no pleistoceno com glaciações e
catástrofes sísmicas e ambientais de grande magnitude. Ademais, as áreas
superficiais do planeta suscetíveis de serem habitadas eram menores que os 100
milhões de km2 da atualidade. Antes, nos períodos glaciares, essas áreas
encolhiam-se por causa da ampliação das calotas polares, o que tornava a
sobrevivência humana muito penosa em certas latitudes. As grandes migrações de
grupos de caçadores-coletores na incessante busca por alimentos faziam parte
desse ambiente, já que, com as glaciações, o nível dos oceanos chegava a baixar
até 200 metros, o que propiciava o surgimento de inúmeras passagens terrestres,
como as que permitiram a ligação da Ásia com a América, do Japão com a
Indonésia, Nova Guiné e Austrália. Grande parte do processo de difusão do homo
sapiens pelo planeta se fez por meio dessas pontes naturais que se desfaziam ao
final de cada glaciação. Ao que tudo indica, desde mais ou menos 50 mil anos
atrás ocorreu um vigoroso processo de crescimento demográfico e difusão
espacial da espécie sapiens, o que tornou possível resistir ao clima da última
Era Glacial, iniciada em torno de 30 mil anos atrás, cujo esgotamento só se
daria mais de 15 mil anos depois, quando a população, a duras penas, teria
alcançado a casa de alguns milhões de indivíduos.13
O advento da agricultura coincide com o Holoceno, período inusitadamente quente
e de extraordinária estabilidade climática que cobre os últimos 10 mil anos,
cujas condições bioclimáticas fizeram a agricultura prosperar. Mesmo em nichos
ricos em biodiversidade da Ásia do Paleolítico Superior, eram limitadas as
condições de vida dos caçadores de renas e mamutes. De fato, só com o Holoceno
foi possível a chamada Revolução Neolítica, com o advento da agricultura e o
surgimento de um conjunto de mudanças que redefiniram a trajetória humana no
planeta.
Mas onde isso se deu? Se agricultura significa cultivo de vegetais e criação de
animais, existiram vários lugares onde havia uma flora que alimentasse
herbívoros e seres humanos? Com o gradativo recuo das geleiras, o planeta
tornava-se mais quente e isso propiciou o surgimento de amplas florestas, novos
tipos de arbustos e extensas áreas de gramíneas mais ricas em nutrientes.
Determinados tipos de herbívoros povoavam uma grande extensão da Eurásia e em
alguns vales especiais havia abundância de capins adequados à sua alimentação.
Os vales dos rios Tigre, Eufrates e Jordão, o chamado Crescente Fértil,
formaram uma dessas regiões privilegiadas, onde a Revolução Agrícola iniciou-
se.14 Progressivamente, mas de forma independente,15 sociedades agrícolas
surgiram no México e áreas vizinhas da Mesoamérica; no Altiplano dos Andes e
bacia amazônica.
Com a progressão do degelo e o aumento da umidade e calor, as gramíneas
selvagens dispersaram-se por áreas bem maiores e tornaram-se cereais: gramíneas
selecionadas para cultivo humano.16 É inegável que as alterações climáticas
foram um fator decisivo para o crescimento demográfico. Mesmo que ainda haja
alguma controvérsia, fica difícil sustentar a tese de que a população
anteriormente expandida possa ter sido a causa da revolução agrícola. Se as
populações vinham aumentando ao final da última Era Glacial, pesquisas mais
recentes têm deixado evidente que o novo ritmo de crescimento demográfico foi
resultado do uso sistemático da agricultura. Antes, sob o regime da caça-
coleta, os obstáculos ao crescimento demográfico eram muito evidentes.
[...] os caçadores-coletores nômades são extremamente limitados
quanto ao que podem carregar consigo e isto se aplica às crianças
tanto quanto aos bens. Além disso, as mulheres nessas sociedades não
podem participar de uma expedição de coleta carregando mais de um
filho, e assim os nascimentos tendem a ser espaçados para cada quatro
anos, como vimos no caso dos Kung [população de caçadores-coletores
da África meridional estudada pelo autor]. O controle da natalidade
através de vários métodos, como a prolongada amamentação, as ervas
medicinais e o infanticídio, é uma prática comum entre os grupos
nômades e, como resultado, as populações permanecem relativamente
constantes. Quando os caçadores-coletores se tornam sedentários, a
restrição em relação aos nascimentos é suspensa e a população pode
crescer (LEAKEY, 1982, p. 203).
Diversas publicações internacionais reafirmam essa evidência. A adaptação em
português da edição inglesa e francesa do The times history of the word, por
exemplo, é bem explícita quando afirma que os significados da sedentarização
foram extraordinários e a garantia de sobrevivência ao longo do ano fez com que
os "deslocamentos necessários ao sustento [se tornassem] mínimos, as limitações
postas à fecundidade devido ao modo de vida dependente das estações diminuíram
e a população aumentou" (ATLAS DE HISTÓRIA MUNDIAL, 2001, p. 36).
As regiões que adotaram a agricultura tornaram-se bastante populosas no
Neolítico e ainda o são até hoje: a Mesopotâmia; as regiões da planície
noroeste da China; o delta do Nilo; a Índia; e, independente dessas
experiências, a Mesoamérica.
Três inferências analíticas podem ser relacionadas:
* o recuo das geleiras permitiu o cultivo independente de cereais de alto
poder nutritivo, como trigo, arroz e milho no Oriente Próximo, Noroeste
Chinês, Mesoamérica e Andes. A difusão da agricultura alcançou outras
regiões, como o delta do Nilo, o Sael, a Índia, a Nova Guiné. Isso veio
favorecer a superação do velho regime socioespacial de sobrevivência
precária dos grupos nômades que dependiam da caça-coleta e eram forçados
a conviver com baixa expectativa de vida e reduzido crescimento
demográfico;
* a agricultura reúne um pacote de práticas associadas à domesticação de
vegetais, criação de animais, uso e manejo do solo, o que inclui a
semeadura, a seleção de espécies e a irrigação. O trato de grandes
herbívoros domesticados e a necessidade de defesa do curral, das áreas
cultivadas e das construções de armazenamento alteraram a divisão de
trabalho e novos papéis sexuais emergiram com a proliferação de aldeias
rurais e o surgimento do patriarcado. Esse novo ambiente social favoreceu
a produção de excedentes populacionais, a revalorização do espaço-
natureza como riqueza, a inovação técnica nos fornos de alta temperatura,
o domínio dos metais, a produção de armamentos e de instalações
hidráulicas e de defesa;
* a expansão e apropriação de novos territórios, o comércio e a emergência
dos primeiros assentamentos urbanos foram alguns dos resultados desses
processos que favoreceram os povos politicamente mais estruturados. A
terra e os recursos de proeminência passam a ser o balizador da
organização econômica e provocam o surgimento de formas duráveis de poder
monárquico que dariam o sustentáculo aos futuros grandes impérios,
prenúncio de um longo período de guerras de conquistas e anexações.
Biólogos e outros estudiosos estimam que a população mundial teria alcançado
entre cinco e dez milhões no início do Holoceno. Oito mil anos depois, à época
do nascimento de Cristo, este número teria se multiplicado muitas vezes,
atingindo entre 150 e 300 milhões, um terço dessa população em torno do
Mediterrâneo e outro terço na China.17
Tempo 2: Espaço, população e legados culturais na época dos gregos
Os gregos, a partir de 700 a.C., influenciados pelos fenícios, persas, minoicos
e egípcios, construíram uma civilização de grande alcance histórico desde o
Peloponeso e ilhas do Mar Egeu. Mesmo não possuindo uma agricultura apoiada em
grandes vales fluviais, eles dominaram a tecnologia dos metais e a navegação,
conheceram vários povos e terras da orla do Mediterrâneo, estabeleceram
feitorias comerciais, tornaram-se hábeis na guerra e estruturaram uma forma
jurisdicional de poder baseado na Cidade-estado. Tanto quantos os fenícios,
também trilharam a senda da colonização.
Na época em que os Estados mais poderosos estavam instalados no Oriente e
Oriente Próximo, os gregos inventaram a cidade dos magistrados e a ágora,
lugares onde direitos civis e poder político coletivo eram exercidos com base
no pensamento racional, escrita pública, direito à palavra nas assembleias, lei
para todos e subordinação da religião, mas paralelamente tornaram-se
extremamente equipados para a guerra e defesa de seus territórios. Criaram uma
forma inédita de Estado que aplica penas em conformidade com a lei humana.
Disseminaram a escola laica e a ciência a partir de Tales e Anaximandro.
Fizeram avançar a matemática, a física, a astronomia, a biologia, a medicina,
as ciências sociais, enquanto Platão e Aristóteles criavam a filosofia e a
ciência política no período helenístico.18 Alguns estudiosos concluem que os
gregos não foram mais longe, talvez porque a ciência e as técnicas que adotavam
tinham um caráter amador, e, juntamente com a prática arraigada da escravidão,
faltava-lhes o impulso para mudar o mundo. Com isso, acabaram se esfacelando
territorialmente após o curto expansionismo de Alexandre e subsequente sujeição
aos romanos.
Em A voz da aldeia, Lewis Munford, a partir de sua leitura da obra de Hesíodo,
defende a ideia de que a cidade egeia e suas colônias ergueram-se a partir da
cultura da vida em aldeias. Nas fortalezas naturais dos vales fechados das
terras do Mar Egeu, havia cereais nas planícies da Tessália e da Beócia
suficientes para alimentar as antigas populações em crescimento, as quais
também contavam com o pescado, disponível nas cidades próximas do mar, como
Atenas e Corinto. Fortalezas naturais rodeadas de aldeias, fáceis de defender,
eram sítios comuns na Ásia Menor, Sicília e Eritreia. Diante de ameaças, a
população mobilizava-se rapidamente, se encarapitava nas íngremes encostas e os
inimigos tinham enormes dificuldades de vencer aldeões bem organizados,
favorecidos pelo quadro natural. Isso durou séculos e aí, segundo o autor,
reside a origem mais remota da democracia grega. Nesse período de formação, o
pequeno tamanho populacional era uma constante nas cidades e aldeias e teria
favorecido a gestão democrática e o exercício da cidadania. Munford é incisivo:
As práticas democráticas da aldeia, sem fortes clivagens de classe ou
vocação, incentivavam o hábito de se aconselhar em conjunto [...] Nem
mesmo o crescimento do imperialismo, no quinto século, embora
transformasse Atenas numa impiedosa exploradora das cidades gregas
menores, trouxe a restauração da realeza, nem mesmo aumentou o
domínio dos deuses olímpicos [...] Cidades com apenas alguns milhares
de habitantes criavam colônias muito antes de se tornarem
interiormente congestionadas. Mesmo que a cidade tivesse procurado
uma população maior, os limites das terras aráveis e de um suficiente
suprimento de água teriam ainda vencido o seu crescimento. Atenas,
embora rodeada por um solo aluvial relativamente rico, provavelmente
não abrigava mais que cem mil habitantes, inclusive escravos, no
quinto século; e é duvidoso que Mileto ou Corinto, para mencionar
duas prosperas capitais, pudessem ter possuído muito mais. (MUNFORD,
1965, p. 171-173).
As cidades procuravam autonomia e a colonização grega não discrepa dessa
assertiva, pois foram muitas as colônias implantadas da orla do Mediterrâneo
até a Ásia Menor relativamente autônomas. Marselha, Náucratis, Rodes e Mileto
tornaram-se exemplos de grandes centros comerciais. É evidente que o
colonialismo iria ganhar outras características e muito maior extensão
territorial no período romano, embora no tempo dos gregos só Mileto teria
criado 70 colônias urbanas. Atenas, outro polo colonizador, estruturou-se com
base em seu vasto comércio marítimo que abarcava azeite, cerâmica, tecidos,
madeira, ametista, marfim, prata, ouro e âmbar, o que exigiu a formação de uma
grande força militar para assegurar suas conquistas e não interromper o fluxo
de recursos e tributos provenientes de suas possessões.
Para Munford, embora a participação no comércio fosse proibida em Egina e
Quios, foi nas cidades comerciais da Jônia que "todo um mundo de ideias
apareceu", mas que desapareceria com a expansão imperial dos reis divinizados.
As "superstições do poder voltaram com o exercício do próprio poder militar
ultra-centralizado". Apoiado em Hesíodo, o autor conclui que, em decorrência da
intensificação da urbanização e da circulação econômica, houve um momento em
que a guerra prevaleceu sobre a paz (supostamente resultante dos debates e das
soluções democráticas). Daí sua afirmativa de que o "aldeão odiava e denunciava
a guerra, ao passo que era Platão, o filósofo urbano, que a elogiava como
essencial para o desenvolvimento das virtudes humanas"(MUNFORD, 1965, p. 176-
177).
Platão e Aristóteles, grandes filósofos de seu tempo e ícones do pensamento
mundial, deixaram profundas influências sobre as civilizações cristã, judaica e
árabe. Viveram em Atenas no século III a.C., estiveram juntos por 20 anos como
mestre e discípulo e conheceram a história dos principais povos da época, mas
inovaram ao erigir os pilares da filosofia e ciência moderna, particularmente
Aristóteles com seus princípios metodológicos consagrados em vários livros.
Política, a obra-prima de Aristóteles, escrita durante muitos anos, foi e
continua sendo uma referência obrigatória no mundo inteiro. O que o autor nos
diz sobre espaço, poder e população a partir de sua observação dos
assentamentos humanos mais densos da época, as Cidades-estados do Mediterrâneo?
Em seu receituário da forma ideal de vida em uma cidade independente, feliz,
guiada pela moderação, pelo princípio racional e pelo bom governo, Aristóteles
assevera que o território deveria ser suficientemente grande para suprir os
cidadãos. Como a cidade ideal requer engenho, planejamento e governança, no
livro VII, o autor deixa evidente a sua preocupação com a administração
política:
primeiramente, o estadista deve considerar a multidão de homens: ele
deve refletir sobre o número ideal de cidadãos e as características
do território. Muitas pessoas acreditam que para que uma Cidade seja
próspera, é necessário que tenha um território extenso; mas mesmo que
isso seja correto [...] deveriam considerar [antes] o poder de seus
habitantes. [Adverte que] a experiência demonstra que uma Cidade
populosa em demasia raramente pode ser bem governada (ARISTÓTELES,
2006, p. 248-259).
É provável que nessa assertiva esteja uma das chaves do esforço colonizador dos
gregos, já que se a cidade crescer muito demograficamente, a solução que
pareceria "natural" seria a criação de uma nova Cidade-estado. Preocupado com
uma espécie de caos urbano, o autor observa que "quando a população é muito
grande, ela se estabelece territorialmente ao acaso, o que, obviamente é
inapropriado [...] Então, o melhor limite populacional para uma Cidade é o
encontro do número necessário para a sua autossuficiência" (ARISTÓTELES, 2006,
p. 248-259).19 Esse espaço não pode ser facilmente penetrado por inimigos, mas
deve ter fácil acessibilidade aos habitantes, à entrada de gêneros agrícolas e
outros produtos de abastecimento. A cidade deve estar bem situada "tanto em
relação ao mar quanto a terra" e beneficiar-se de posição central "para poder
comunicar-se com todo o seu território, protegendo-o" (ARISTÓTELES, 2006, p.
210, 241-243).
É evidente que Aristóteles via a cidade grega como o ápice da civilização
mundial. Embora discordasse das pretensões "imperialistas" de Alexandre, o
Grande, de quem foi preceptor, aceitava de bom grado a profusão de cidades no
Mediterrâneo irmanadas pela mesma língua e cultura, pelos predicados de
inteligência, bravura, inventividade e liberdade da "raça helênica".
Recomendava que uma cidade deve possuir uma força naval, de modo que passe a
representar "uma fortaleza não apenas para os seus cidadãos, mas também ser
temível e prestar socorro aos habitantes de Cidades vizinhas [prováveis
colônias], e se necessário estar pronta para ajudá-los por mar e por terra"
(ARISTÓTELES, 2006, p. 243-244).
Sobre o excedente populacional indesejado
No livro VII, ao examinar o sistema educacional ideal, Aristóteles trata da
questão demográfica rapidamente, mas o suficiente para mostrar como se fazia o
controle do crescimento da natalidade em seu tempo. Para isso, muito antes de
Malthus, ele recomendava ao legislador uma forma de casamento tardio, ao tecer
considerações sobre as idades e critérios de escolha dos nubentes. Observa que
a lei da Cidade, ao se fundamentar nas idades da população, capacidade de
procriação, proibição do adultério entre casados e na expectativa de vida de
homens e mulheres, deve incentivar casamentos em que não haja infertilidade
associada à idade dos cônjuges. A diferença de idade entre os casais não deve
ser pequena, pois o casamento de pessoas muito jovens repercute negativamente
na educação dos filhos: filhos de pais muito jovens tendem a perder o respeito
aos pais por se sentirem companheiros da mesma idade, o que gera muitas
disputas no cotidiano. Já filhos de homens idosos tendem a ser frágeis e de
alma defeituosa.
O filósofo sugere aos legisladores que promovam casamentos considerando certos
cálculos, respeitada a tradição. Observa que:
desde que a longevidade média do homem é de setenta anos e a da
mulher cinqüenta, o início da união conjugal deve ser proporcional a
esses períodos. A união de um casal muito jovem é prejudicial para a
procriação de crianças; no caso de todos os outros animais, as
ninhadas de animais muito jovens são pequenas e mal desenvolvidas, e
com uma tendência acentuada para o nascimento de fêmeas, e o mesmo se
dá com os casais humanos, conforme já está provado [...] nas Cidades
em que homens e mulheres estão acostumados a se casar jovens, as
pessoas são franzinas e frágeis; mulheres muito jovens sofrem mais
durante o parto, e um número maior de parturientes jovens falecem.
(ARISTÓTELES, 2006, p. 262)
A par dessas evidências e feitas as contas, o filósofo conclui que as "mulheres
deveriam casar por volta dos dezoito anos de idade, e os homens aos trinta
sete; então estarão na flor da idade, e o declínio das forças sexuais de ambos
irá coincidir. Ademais, se as crianças nascerem logo, como se pode esperar que
aconteça, herdarão os bens de seu pai", momento em que o pai já estaria com
cerca de 70 anos de idade (ARISTÓTELES, 2006, p. 262).
Mas se ainda assim a população começar a exceder aos limites da Cidade ideal, o
que fazer? Livre das interdições do monoteísmo religioso que lhe sucederia,
Aristóteles inadvertidamente estabeleceu uma série de orientações que foram
objeto de discussão por milhares de anos e estão vivas até hoje. Atento
observador da natureza e dos diferentes costumes das cidades gregas e de outros
países, o filósofos diz que:
quanto à aceitação ou rejeição das crianças, terá de haver leis
segundo as quais as crianças com deformidades não devem viver,
todavia, quanto a um eventual excesso de nascimentos, caso os
costumes da Cidade proíbam o abandono de recém-nascidos, o costume
deve ser respeitado, mas quando os casais têm excesso de filhos o
aborto deve ser facultado, desde que ocorra na fase de gestação em
que a criança ainda não desenvolveu os sentidos e a vida. A
legalidade do aborto será determinada pelo critério de haver ou não a
sensação e vida. (ARISTÓTELES, 2006, p. 263-264).
Ao que tudo indica, práticas de infanticídio eram comuns nas cidades gregas,
como aponta Munford (1965, p. 173) ao descrever as precariedades das periferias
urbanas, onde "há muitas provas a mostrar que imundícies de toda qualidade se
acumulavam nas bordas da cidade; era em tais monturos municipais que os bebês
indesejáveis de Atenas eram expostos e deixados à morte".
Tempo 3: Europeus em busca de um novo mundo
O terceiro tempo histórico aqui destacado refere-se à reestruturação econômica
e cultural que a Europa viveu no século XVI, com o renascimento, as grandes
navegações, a reforma e contrarreforma no cristianismo e o lançamento dos
pilares de uma economia de mercado mundializada. A arrancada europeia em
direção à incorporação de novas terras não é fruto apenas da tomada de
Constantinopla pelos turcos otomanos em 1453, mas associa-se a uma série de
fatores entre os quais cabe mencionar a nova geopolítica que potencializa
regiões dinâmicas e aguerridas, como Gênova, Veneza, Portugal, Espanha e países
baixos. Sem esses novos protagonismos fica difícil explicar a passagem da
Europa da condição periférica do mundo civilizado eurasiano à de área
hegemônica nos séculos seguintes.
Na época, a China já possuía mais de 100 milhões de habitantes, explorava seus
recursos naturais e possuía um vigoroso comércio, enquanto Constantinopla, a
maior cidade do mundo, sediava o poderoso Império Otomano que se expandia no
norte da África. O que afinal ocorreu com a Europa a ponto de torná-la uma
grande força mundial? Dentre tantos fatores explicativos, pode-se
sinteticamente mencionar pelo menos três.
Em primeiro lugar, cabe sublinhar o grupo de cidades dinâmicas, que iriam
sediar as economias-mundo, como propõe Fernand Braudel. Em pouco tempo são
forjados os fundamentos da supremacia mundial europeia.20 As Grandes
Navegações, desde o pioneirismo português munido de suas caravelas e armadas,
impactaram a Europa Ocidental porque introduziram um formidável processo de
redistribuição dos ganhos econômicos decorrente da difusão de novas
mercadorias, metais, gêneros agrícolas, escravos, armamentos e navios, além de
inaugurar um processo de exploração colonial, sobretudo na América, sem
precedentes na história mundial. Se a população vinha se expandindo, como na
Espanha e Portugal do século XV,21 a conjunção de todas as mudanças postas em
marcha explica a continuidade do crescimento demográfico subsequente entre 1500
e 1800. Novas culturas e inovações na agricultura repercutiram econômica e
demograficamente no continente apoiadas em produtos como arroz, batata, frutas,
pescado, açúcar, algodão, além das especiarias.
Um segundo ponto a destacar diz respeito ao dinamismo do noroeste europeu. De
fato, o poder econômico dos ibéricos não durou muito tempo. Os portugueses
encontravam dificuldades em sustentar a Carreira das Índias. E os espanhóis
foram inaptos no uso da prata americana, que não alterou estruturalmente sua
economia: em meio ao aumento da capacidade de compra, disseminaram-se o
fundamentalismo clerical improdutivo, o parasitismo, a especulação, inflação e
guerras. Simultaneamente, no noroeste europeu surgia uma nova economia na
Holanda, sob Felipe o Bom, e na Inglaterra, com Henrique VII.22 Nesses países a
atividade comercial e industrial superava a agricultura e políticas
protecionistas eram assumidas por um novo tipo de Estado que priorizava o
interesse mercantil apoiado pelas armas e pela reorganização do poder estatal.
Antuérpia e Amsterdã tornaram-se centros econômicos financeiros e centralizaram
a extraordinária expansão mundial da Holanda, enquanto a Inglaterra promovia
reformas que pavimentariam o caminho de sua arrancada econômica subsequente.
A reforma anglicana, elemento formador do capitalismo inglês, é objeto de
discussão desde Max Weber, por seu conteúdo econômico evidente em face da
expropriação e redistribuição das terras da Igreja, juntamente com a difusão de
uma nova cultura que valorizava o lucro e conforto material obtidos pelo
trabalhador ou comerciante ordeiro, sóbrio, merecedor da graça divina. Sob
Calvino, Lutero e Henrique VIII, todo o noroeste europeu é sacudido pelas novas
ideias, o que iria consolidar o poder da burguesia emergente e do Estado
nacionalista.
A despeito dos esforços do papa na contrarreforma a partir do Concílio de
Trento (1545-63), no momento em que os conflitos religiosos fraturavam o
continente, a Europa enriquecia. Uma série de novos produtos circulava no
continente, inovações técnicas atingiam a metalurgia, a navegação e a
fabricação de armas, enquanto expandiam-se o crédito, as bolsas, os seguros, a
organização bancária e financeira. Cresciam as cidades, as populações e os
mercados. Alterava-se a fisionomia rural com os "cercamentos" e o forte
incremento da agricultura comercial. Os pobres se amontoavam nas cidades
inglesas e a ordem feudal cambaleava.23
Um terceiro aspecto não menos importante refere-se às mudanças culturais. Novas
mentalidades gradativamente alteraram a forma de pensar e agir até alcançar,
com o tempo, boa parte da população europeia. Essas mudanças enfeixavam o ideal
neoplatônico, o universo de Copérnico, as teses racionalistas, o renascimento
italiano, as novas expressões artísticas, o individualismo, além da crítica ao
despudor da Igreja. A disseminação do cisma religioso foi capaz de romper as
bases do catolicismo e fazer emergir o protestantismo.
Nesse ambiente surgem novas teorias e correntes artísticas e filosóficas que
marcaram profundamente o futuro do Ocidente. Nomes como Galileu, Newton,
Giordano Bruno, Descartes, Espinosa, Francis Bacon, Leonardo da Vinci,
Michelangelo, Maquiavel e Tomas Morus deixaram um legado de ideias e
realizações.
Maquiavel e Morus: uma atualização do pensamento de Aristóteles e Platão
O italiano Nicolau Maquiavel (1469-1527) e o inglês Tomás Morus (1478-1535)
viveram na mesma época, embora provavelmente não tivessem se comunicado. Ambos
desempenharam funções importantes em seus países, estavam impregnados do
humanismo e do ambiente de mudanças que varriam a Europa. A influência de seus
livros foi muito mais longe no tempo do que podiam imaginar. Tomás Morus, um
dos maiores pensadores de seu tempo, foi lido e cultuado no mundo inteiro,
venerado na Rússia soviética. Em vida lutou pelos ideais do catolicismo, embora
tenha se inspirado em ideias e princípios filosóficos pré-cristãos contidos em
seu livro de preferência, A República, de Platão.
Já Maquiavel, ao escrever O príncipe, desejava uma Itália unida e poderosa,
liderada por um monarca de pulso firme. Como renascentista, prezava muito as
ideias de Aristóteles e enaltecia a arte de governar sem hesitações: "sou de
parecer de que é melhor ser ousado do que prudente". Era pragmático e
priorizava as razões de um Estado laico. Ao assistir a formação de Estados na
Europa renascentista, Maquiavel enxergava os jogos de astúcia, virtude e
ambição entre os que detêm poder. No capítulo 3 o autor é bem explicito ao
abordar os principados novos, recomendando que "um dos maiores e mais
eficientes remédios seria aquele do conquistador [de um território] ir habitá-
los. Isto tornaria mais segura e mais duradoura a posse adquirida", porque
reprimira as desordens em seu nascedouro. Instalar colônias era "outro remédio
eficaz".
Nas conquistas de Estados mais consolidados, Maquiavel diz (no capítulo 5) que,
se não for possível arruiná-los, pode-se"deixá-los viver com suas leis,
arrecadando um tributo e criando em seu interior um governo de poucos, que se
conservam amigos". Afinal, o conquistador "de uma cidade acostumada a viver
livre" se não a destruir pode "ser destruído por ela, porque [nas rebeliões], o
nome da liberdade e o de suas antigas instituições" nunca são esquecidos. No
capítulo 8, ele constrói um verdadeiro princípio de poder político, utilizado
até hoje por governos autoritários: convém no início do governo "exercer todas
aquelas ofensas que se lhe tornem necessárias, fazendo-as todas a um tempo só
para não precisar renová-las a cada dia e poder, assim, dar segurança aos
homens e conquistá-los com benefícios".
Observador atento de seu tempo, Maquiavel percebia as diferenças entre as
monarquias e sabia dos riscos subjacentes em determinadas guerras de conquista.
Era essencial estar preparado para a guerra, o que requeria uma organização
militar disciplinada, treinada e conhecedora da geografia e história dos
territórios em disputa. No capítulo 14, o autor anota que a guerra é "a única
arte que compete a quem comanda [...] quando os príncipes pensam mais nas
delicadezas do que nas armas, perdem o seu Estado". O príncipe deve:
manter bem organizadas e exercitadas as suas tropas, deve estar
sempre em caçadas para acostumar o corpo às fadigas e, em parte, para
conhecer a natureza dos lugares e saber como surgem os montes, como
embocam os vales, como se estendem as planícies, e aprender a
natureza dos rios e dos pântanos, pondo muita atenção em tudo isso.
Tomas Mórus, por sua vez, no seu tratado sobre a melhor forma de governo, no
mundo ideal da ilha de Utopia, pontua uma série de princípios e normas que
regulariam de forma racional e organizada a vida no campo e nas cidades. A ilha
estruturada por uma rede de 54 cidades "idênticas pela língua, os costumes, as
instituições e as leis" (MORUS, 1997, p. 71) tinha seu fundamento econômico na
agricultura, a atividade comum a todos habitantes. Assim, também as famílias
que residiam nas cidades deviam dedicar anualmente parte de seu trabalho à
lavoura, a despeito de cada família agrícola contar ainda com até "dois servos
ligados à gleba". Tal como na Europa feudal, as cidades eram monárquicas,
muradas, protegidas contra ameaças externas. O príncipe de Utopia possui
mandato vitalício, desde que não se torne um tirano.
Os costumes e hábitos familiares são rígidos e obedecem a um planejamento
prévio que controla o tamanho das cidades, bairros e das famílias. Cultivavam-
se a natureza, virtude, arte, festas e cultos religiosos, mas havia formas
patriarcais de controle social, tal qual nas antigas comunidades agrícolas
europeias de famílias estendidas, porquanto as mulheres, "quando núbeis, são
dadas em casamento e vão viver na família de seu marido, enquanto os filhos e
os netos permanecem na família e obedecem ao mais idoso dos chefes" (MORUS,
1997, p. 86). Além disso, uma moça não se casa antes dos 22 anos e um rapaz
antes dos 26 e amores clandestinos eram severamente punidos. Na construção
teórica moralista-religiosa de Malthus também se combatem "vícios" e estimulam-
se as "virtudes" supostamente existentes no casamento responsável realizado em
idade "ideal", como meio de reduzir a natalidade.
Como os filósofos gregos, o ideal era equilibrar população e recursos naturais
circundantes. As cidades de Mórus deviam ter um número mínimo de habitantes,
incluindo os escravos, e não poderiam ser superpovoadas, embora o número de
filhos não pudesse ser limitado. A solução implicava expansão territorial e
colonização. Diante da necessidade de mais espaços em Utopia, os cidadãos
buscavam ocupar terras deixadas "incultas pelos indígenas". Se os nativos se
recusassem a integrar ao sistema social de Utopia, os utopianos "os expulsam do
território que escolheram e lutam de armas na mão contra os que resistirem.
Pois [a] guerra se justifica eminentemente quando um povo recusa o uso e a
posse de um solo a pessoas que, em virtude do direito resultante da natureza,
deveriam ter do que se alimentar" (MORUS, 1997, p. 87).
O eurocentrismo de Mórus e o desconhecimento da dinâmica territorial mais
profunda dos povos ditos primitivos eram enormes e se repetiriam nos escritos
de vários outros pensadores, como em Rousseau, mais de 200 anos depois.
Mórus não aprofunda os fundamentos democráticos das cidades gregas. Prefere uma
monarquia representativa, próxima da lógica maquiavélico-ratzeliana,24 ou seja,
integração territorial, comunidade fundada na língua, costumes, história,
submissão de estrangeiros se necessário.
Em síntese, o continente europeu viveu nos séculos XV/XVI uma profunda
reestruturação econômica e cultural que moldou sua vertiginosa expansão
econômica e territorial apoiada em projetos de colonização para além do
mediterrâneo. O crescimento demográfico associou-se à mobilização de milhões de
trabalhadores negros e não europeus a serviço de um novo sistema econômico de
feição internacional, alicerçado no enriquecimento da burguesia e no
estabelecimento de Estados que se tornariam absolutos. Estava a Europa
ensinando ao resto do mundo como equacionar a produção de riqueza com base em
princípios racionais defendidos por um Estado laico, interventor, organizador
do imaginário social, voltado para a exploração de recursos humanos e
materiais?
Tempo 4: Europeus dominam o mundo
O quarto tempo histórico é o da imposição da supremacia europeia sobre o resto
do mundo no século XIX. O impressionante dinamismo econômico pôs em marcha
processos de grande magnitude: industrialização massiva, crescimento
demográfico, emigração europeia, revoluções políticas, nacionalismo, afirmação
do Estado-nação, neocolonialismo e disputas por recursos naturais.
De fato, o avanço industrial na Inglaterra mostrou-se rápido, tanto quanto seus
efeitos dispersores pelo continente a partir de 1820. A explosão das taxas de
crescimento industrial da Inglaterra a partir de 1800 representou um efeito-
demonstração irresistível. As novas máquinas de fiação e tecelagem, a produção
de ferro fundido e a máquina a vapor impactaram toda a economia e trouxeram,
após 1830,25 a grande indústria e o boom ferroviário, que fizeram do Reino
Unido a principal área industrial do mundo.
Na chamada "2ª Revolução Industrial", que se desenrola a partir de 1870 até a I
Guerra Mundial, a indústria da maioria dos países europeus avançou muito na
Rússia, Itália, Suécia, entre outros. No último quartel do século, a corrida
industrial constituía o pano de fundo do neocolonialismo. O desenvolvimento
tecnológico e os desdobramentos das inovações na produção de aço e energia
(eletricidade e petróleo) promoveram a revolução dos transportes e a queda de
preços dos alimentos, estimulando as potências na busca de possessões dotadas
de recursos minerais valiosos. Nesse momento a Alemanha, unificada desde 1871,
passava a determinar o ritmo da corrida pela supremacia industrial, sobretudo
na química e eletricidade. Surgiam novos hábitos de consumo que exponenciaram a
circulação de ideias, mercadorias e pessoas. A emigração europeia e o translado
forçado de milhões de africanos escravos para o Novo Mundo foram poderosos
instrumentos de expansão e dominação econômico-cultural.
As violentas transformações políticas que deram forma definitiva aos atuais
Estados nacionais, o forte crescimento demográfico da Europa à época e a
emigração internacional26 contribuíram decisivamente para a ocidentalização do
mundo com base na matriz europeia. Sem esses fatores fica difícil entender a
geopolítica do mundo contemporâneo.
O século XIX trouxe o impressionante incremento demográfico mundial de cerca de
900 milhões de pessoas para pouco mais de 1,6 bilhão. Algumas estimativas
indicam que, em um século, a população europeia evoluiu de 190 milhões para 423
milhões. Nos 100 anos anteriores a 1914, Reino Unido, Alemanha e EUA, os três
principais países industrializados, quase quintuplicaram suas populações. Entre
1810 e 1910, os europeus e seus descendentes aumentaram de 5,7 milhões para 200
milhões nas Américas, África do Sul, Austrália, Nova Zelândia e Sibéria. No
início do século XX, estima-se que a população mundial distribuía-se assim (em
milhões): Europa (423), Ásia (937), África (120), América do Norte e do Sul
(144) e Austrália (6). Por volta de 1900, quando o crescimento populacional da
Europa atingiu seu auge, a emigração para os Estados Unidos alcançou a incrível
marca de um milhão de pessoas por ano.27
Muitos fatores explicam a grande expansão demográfica do período: avanços na
produção industrial e agrícola associados à revolução dos transportes; extração
mineral e agrícola ultramarina abastecendo a Europa de matérias-primas e
alimentos; desaparecimento das grandes crises de mortalidade na Europa;
progresso da medicina; e adoção de padrões de higiene pessoal e consequente
redução da mortalidade por cólera, tifo, varíola e tuberculose.
Durante o Oitocentos os líderes da emigração foram Reino Unido, Alemanha,
Itália, Polônia, Rússia, além dos países escandinavos, Bélgica e Espanha. Com
isso a população branca expandiu-se de 22% em 1800 para 35% em 1930. O aspecto
mais importante nesse processo foi a chegada de milhões de pessoas às Américas,
África do Sul, Austrália e Nova Zelândia. O expansionismo europeu alcançou as
mais diferentes regiões do mundo e mobilizou os recentes Estados nacionais na
busca por recursos minerais estratégicos.
Os britânicos, além das antigas possessões, anexaram novas terras ao seu vasto
império, chegando a controlar 20% dos territórios e 25% da população mundial.
Já a França ostentava um império de 10,4 milhões de km2 e 47 milhões de
pessoas, enquanto a Alemanha, que chegara atrasada na corrida neocolonial,
abocanhou 2,6 milhões de km2 e conquistou 14 milhões de súditos. Além dessas
potências, participaram do mesmo processo Itália, Portugal, Rússia, Japão e até
os EUA, com a ocupação do oeste californiano, Novo México e Porto Rico.
Mas o século XX não teria posto fim no expansionismo territorial dos europeus,
inclusive pelas duras consequências resultantes da corrida imperialista? De
fato, o novo século, além de introduzir o protagonismo americano não atrelado
ao territorialismo, como mostra Giovanini Arrigui (1996), trouxe grandes
mudanças econômicas atreladas a três eventos que dilaceraram o Velho Mundo:
duas guerras mundiais; e a longa depressão resultante da crise de 1929. As
guerras depauperaram as principais nações beligerantes, liquidaram com velhas
pretensões expansionistas, trouxeram cenários de crise e desolação, em meio a
saídas massivas de europeus para a América e o drama dos refugiados de guerra.
Essas catástrofes fizeram expandir a indústria nos setores químico, automotivo
e na aviação, deram origem à grande indústria bélica americana, provocaram
enormes perdas populacionais, o fim dos impérios austro-húngaro, otomano e
russo-czarista e iniciaram um longo período de sangrentos conflitos nas guerras
de independência na África.
De volta ao caso chinês
Após o que foi até aqui retratado, caberia indagar se o expansionismo de corte
territorial foi liquidado ou permanece oculto sobre novas roupagens. Estaria
dissociado dos recursos naturais e dos estoques populacionais como fonte de
poder? Como vincular tudo isso com o atual crescimento da China? Ela se
apropriou do exemplo histórico europeu?
Certamente a República da China Popular é um bom exemplo para discutir as
questões supracitadas, porque é um grande território que se vale de seus
recursos naturais, de sua grande população e de sua cultura milenar não
ocidental, que também percorreu a trajetória de afirmação dos povos de
civilização densa. Uma síntese de resposta para o entendimento do chamado
"milagre" chinês deve levantar fatores indissociáveis, tais como: geopolítica e
comércio internacional em um Estado interventor; recursos naturais utilizados
na produção de infraestruturas, energia e insumos básicos; e recursos
populacionais como força de trabalho barata. Detalhando um pouco mais:
* Geopolítica estadunidense e comércio internacional. Visando isolar a
URSS, os americanos contaram com o apoio da China nas reformas de Deng
Xiaping. Os estímulos à instalação de empresas americanas significaram
ingresso do país no mercado internacional mediante inéditas parcerias
empresariais. Isso iria favorecer a apropriação de tecnologia industrial,
sem abalar o aparato estatal do regime de partido único. Mais tarde, uma
vez deslanchado o processo de expansão econômica e a China já integrante
do clube atômico, triunfam seus interesses em negociações econômicas com
a União Europeia, Japão, países da bacia do Pacífico, África e América do
Sul. Na bacia do Pacífico, a China mobilizou países como Taiwan, Coreia
do Sul e Japão, tornando-os dependentes de seu dinamismo. A abertura
econômica disseminou nas zonas de desenvolvimento preferencial: joint
ventures e outras formas de associação de empresas locais e estrangeiras;
concessão de incentivos fiscais e acesso a infraestrutura de transportes,
água e eletricidade; favorecimento às empresas que transferissem
tecnologia em setores avançados; redução de restrições legais na
aquisição de ativos e participação majoritária de empresas chinesas. Com
isso, entre 1990 e 2003, entraram no país quase 500 bilhões de dólares em
investimento direto e surgiram parcerias com multinacionais do setor
mineral, a fim de cobrir a demanda de ferro, cobre, aço, alumínio e
petróleo.
* Investimentos em infraestrutura e mão de obra abundante e barata. Pesados
recursos financeiros manipulados pelo Estado foram investidos em obras de
infraestrutura (estradas, portos, aeroportos e novas cidades), na
produção de ferro, aço, cimento, carvão e petróleo. Nesse ambiente foi
construída a maior hidrelétrica do mundo, a controvertida Três Gargantas.
No tocante à mão de obra, o país usufrui da enorme vantagem comparativa
em termos de força de trabalho numerosa, disciplinada, mal remunerada e
ainda disposta a se submeter a duras condições de trabalho nas milhares
de fábricas que se multiplicam no país, especialmente no delta do Rio
Pearl, que congrega milhões de trabalhadores nas cidades de Shunde,
Shennzhen, Dongguan, Zhongshan e Zhuhai, especializadas em produtos de
consumo moderno.
A China incrementou sua posição estratégica na região, o que teria facultado o
estabelecimento de pequenas colônias na Ásia (Cazaquistão, Laos e extremo
oriente russo), a fim de suprir sua demanda por alimentos e compensar a
declinante produção de grãos, além de fixar parte de sua população campesina
excedente. Fora da região, Brasil e países sul-americanos também participam
dessa reconfiguração geopolítica no comércio mundial.28
Resta indagar se esse expansionismo continuará nas próximas décadas. Diante da
alta taxa de exploração da força de trabalho, da ausência de direitos
trabalhistas e dos requerimentos de produtividade que a competitividade
internacional exige, surgem indagações sobre as consequências do atual
incremento da escolarização e da formação técnica de milhões de chineses. Essa
nova mão de obra qualificada irá suportar baixos salários e acomodar-se à
submissão e precarização das atuais condições de trabalho?
Conclusões e considerações finais
Rupturas históricas e grandes mudanças em regiões que ingressaram na
modernidade podem fazer crer que os constrangimentos do passado que cerceavam a
vida humana e limitavam a produção de riquezas desapareceram. Daí certa crença
de que fatores decisivos para a sobrevivência das sociedades pré-industriais,
como dotação de recursos naturais e estoques populacionais tornaram-se
ultrapassados diante da chamada sociedade do conhecimento, que resolveriam as
carências de países com déficits de recursos humanos ou materiais.
No mundo da financeirização do capitalismo internacional, foi moda nos anos
1980/90 a ideia da sobredeterminação da globalização financeira e industrial,
do fim dos Estados nacionais e, para alguns neoliberais, a aposta de que ganhos
especulativos excepcionais poderiam sustentar a prosperidade de países, sem a
necessidade de mobilização de capitais produtivos, mão de obra, planejamento e
regulação do Estado.
As reflexões aqui expostas divergem dessas ideias e procuraram por em destaque
a importância histórica e atual do poder organizado no interior dos Estados,
dos recursos naturais na subsistência, produção energética e de riquezas, ao
lado da disponibilidade de estoques populacionais capazes de viabilizar a
reprodução econômica. Dessa forma, estamos longe da perspectiva malthusiana ou
neomalthusiana que ignora o alcance de estruturas de poder amalgamadas a
heranças culturais de povos expansionistas que utilizaram os recursos de
subsistência e preeminência em projetos de conquista ou de defesa de
territórios.
Espaços ocupados, populações em crescimento, recursos naturais disponíveis e
formas de poder instituídas são instâncias primordiais indissociáveis que
sempre influíram na dinâmica econômica e na geopolítica mundial. O crescimento
demográfico por si só atestava a robustez de determinado povo e era geralmente
bem-vindo se os governantes vislumbrassem a possibilidade de sua acomodação nos
territórios disponíveis. Em caso contrário, o controle da natalidade era
praticado sob diversas formas, como faziam os "civilizados" gregos e demais
povos da antiguidade. Com o avanço das três grandes religiões monoteístas, as
restrições morais e a suspeição que se abateu sobre as mulheres, ficaram
interditadas uma série de práticas abortivas e o crescimento demográfico
amalgamou-se aos projetos de evangelização dos povos "bárbaros".
A conjunção do poder eclesiástico com o poder temporal da realeza viabilizou em
largas porções do planeta a conquista de territórios e "almas", novos mercados
e súditos. Os europeus foram os mais bem-sucedidos nessa empreitada,
particularmente entre os séculos XVI e XIX, período em que disseminam
internacionalmente leis, acordos, arranjos jurídicos, empresas sob a égide da
expansão mundial do capitalismo industrial.
Na proposta aqui apresentada quatro tempos históricos foram destacados. No
tempo 1, recursos naturais essenciais à sobrevivência e aumento dos estoques
populacionais introduziram complexidade histórica crescente nas sociedades que
galgaram o neolítico e se estabeleceram com base no domínio da agricultura e do
comércio. A sedentarização fez reduzir os deslocamentos em busca de comida,
diminuiu as restrições à fecundidade e permitiu o aumento da população em
regiões que ainda hoje são populosas. Nesse processo, a expansão territorial
ganhou novo ímpeto, o comércio, a vida urbana e a organização sociopolítica
deram origem a vários impérios, onde os recursos de proeminência passaram a
balizar a vida econômica. Um longo período de guerras de conquistas e anexações
se iniciou, mas acompanhado de derrocadas associadas com o esgotamento de
recursos naturais e crises cíclicas de mortalidade.
No tempo 2, continuaram imbricados a tríade poder, recursos naturais e
população, particularmente nas redes comerciais do Mediterrâneo, sob a
influência grega e romana. As Cidades-estado participavam da expansão
territorial e comercial como pilares da economia política descrita por Platão e
Aristóteles. Novas concepções de mundo a partir da observação da natureza, do
advento da ciência, democracia e direitos marcariam a história do Ocidente. O
crescimento demográfico além do considerado ideal poderia comprometer a
"governabilidade" e exigir a fundação de novas colônias na periferia. Com isso,
incrementam-se os aparatos militares, os equipamentos, armas e adestramento,
para defender terras e mares conquistados.
No tempo 3, o conjunto de mudanças deixa mais enfáticas as grandes
transformações econômicas na Europa, desde as navegações transoceânicas e
reestruturações comerciais e territoriais. Surgem as economias-mundo no
Mediterrâneo e Mar do Norte e, com a expansão marítima, o continente absorve
formidáveis recursos de subsistência e proeminência oriundos do Novo Mundo, da
África e Índia. O crescimento demográfico incrementou-se e a política
reorienta-se na prática e na teoria. Tomas Morus e Nicolau Maquiavel atuam na
formação de novas consciências, prescrevem a racionalidade do Estado laico,
normas regulatórias associadas à expansão territorial, colonização, guerras de
conquista, disciplina e treinamento militar. O conhecimento da história e
geografia dos territórios em disputa é conveniente ao eurocentrismo em
expansão.
O tempo 4 é o da supremacia europeia sobre o resto do mundo no século XIX. O
impressionante dinamismo econômico, industrialização massiva e economias de
mercados internacionalizadas geraram uma nova corrida colonialista rumo aos
recursos naturais que se tornaram estratégicos em fins do século XIX. As
disputas territoriais, o inusitado crescimento demográfico e a emigração
europeia permitiram a consolidação de revoluções políticas e econômicas e a
afirmação dos Estados nacionais.
A despeito da complexidade do mundo sob o domínio inglês, os três fatores aqui
discutidos assumiram pronunciada relevância na tessitura dos projetos de
expansão protagonizados por países europeus que marchavam rapidamente em
direção à industrialização. O crescimento demográfico não teve paralelo na
história europeia, especialmente após o fim das grandes crises de mortalidade,
o que permitiu a exportação de súditos para o resto do mundo e o aumento de
possessões territoriais que ajudaram a firmar a hegemonia mundial do continente
por décadas. Uma esfera mundial de interesses geopolíticos foi estruturada a
partir do século XIX que, em essência, está vigente até hoje.
O que foi aqui apresentado suscita reflexões sobre novas roupagens que o
ideário expansionista poderia estar assumindo, ainda que não exclusivamente de
cunho territorialista. Todavia, é duvidoso minimizar a combinação em tríade
poder, recursos e população. Vimos como a China vem se inserindo no capitalismo
mundial, sua postura desenvolvimentista, as ameaças aos blocos hegemônicos
atualmente em crise. Estaria ela se apropriando do exemplo Ocidental? Nos jogos
olímpicos de 2008, não teria procurado demonstrar ao mundo sua força, majestade
e grandeza histórico-cultural em um espetáculo similar a tantos outros de pompa
e magnificência que o Ocidente expõe ao mundo há tanto tempo?
Certas questões continuam recorrentes. Os exemplos atuais insistem em deixar
presentes os fatores aqui arrolados. Senão, como compreender o Egito e o norte
da África hoje, peças-chave da geopolítica mundial? Como entender a comoção
social, as grandes rebeliões e sede de mudanças no Egito, sem considerar o
contingente de jovens escolarizados de classe média que a dinâmica demográfica
trouxe à vida adulta, mas sem perspectivas de emprego e inserção política,
ignorados pela plutocracia, que há décadas amealhava os dividendos do petróleo,
dos ganhos do Canal de Suez, dos crescentes aumentos do PIB da segunda maior
economia do continente, sem erradicar a pobreza e exclusão?
Do ponto de vista das heranças que persistem no imaginário social, há fortes
indícios de que uma memória coletiva grandiloquente realimenta antigas crenças,
mitos fundadores, imagens heroicas que valorizam a força do povo ou nação,
inculcados por formadores de opinião e por segmentos remanescentes das elites
fundadoras da cultura nacional. Nesse ambiente, subjetividades pouco racionais
sobrevivem e nunca se contentam com a não expansão, nunca dispensam a ideia da
maximização das oportunidades, dos lucros e vantagens. A cultura histórico-
econômica faz crer que o único caminho é o do contínuo progresso e crescimento.
A perspectiva do não crescimento ou apenas manutenção do que foi conquistado
soa como regressista ou conservadora. Com isso fica subjacente o primado da
força e expansão a todo custo, não raro a custa de populações tradicionais, que
não desenvolveram sistemas de defesa e ataque sofisticados como os dos países
ricos. Ainda hoje, quando as grandes conflagrações mundiais tornam-se
distantes, investimentos em armas e mecanismos de defesa parecem uma imposição
inelutável em todos os países. Nesse ambiente ideológico, ideários que chamam
atenção para os desequilíbrios ecológicos, novas matrizes energéticas e
tecnológicas, direitos humanos, democracia participativa e empoderamento
feminino soam marginais e prosperam com muita dificuldade.