Dinâmica intraurbana e redes sociais na Baixada Santista
Introdução
O objetivo principal deste trabalho é destacar as principais características de
migração na Região Metropolitana da Baixada Santista (RMBS) e avaliar a
importância das redes sociais como mediadoras/condicionantes dos movimentos
migratórios, sejam estes intramunicipais (ou melhor, intraurbanos1),
intrametropolitanos ou externos à região metropolitana.
Não é de hoje que a migração é considerada um relevante fator transformador dos
processos de redistribuição populacional, consequentemente, dos processos de
expansão urbana, em especial os das regiões metropolitanas (RMs). Estudos como
o de Cunha (1994), sobre a mobilidade e o processo de expansão da Região
Metropolitana de São Paulo (RMSP), os de Matos (1994) e Rigotti e Rodrigues
(1994), sobre a RM de Belo Horizonte, e os de Jakob (2003) e Cunha et al.
(2006), sobre a região ora focada, atestam a importância da questão.
Todavia, mesmo sendo inequívoca a importância da migração para o completo
entendimento dos processos de expansão urbana das regiões metropolitanas, suas
motivações não são mais as mesmas de décadas anteriores. Baeninger (2000)
menciona que os processos por trás das transformações ocorridas nos movimentos
migratórios atuais têm suas raízes possivelmente nas últimas duas décadas do
século XX, visto que a perspectiva histórico-estrutural sobre os incentivos e
constrangimentos da migração, de acordo com os distintos desempenhos econômicos
entre áreas de origem e destino (SINGER, 1980), alcançaram seus limites
explicativos. Assim, outras questões e, consequentemente, outros elementos e
fatores assumem relevante papel, em especial naquelas migrações mais
localizadas espacialmente, prioritariamente entre áreas urbanas (U-U). O fato é
que a diversidade/heterogeneidade do padrão migratório pós-80 requer a
incorporação de outras e novas dimensões articuladas à realidade atual. Parece
que os movimentos internos às RMs podem dar os primeiros indícios da existência
e atuação desses outros mecanismos.
Nesse contexto, a noção de redes sociais pode ser central. Seria possível
considerar sua influência mais um possível motivo/condicionante da migração de
e para determinadas regiões? Além disso, em que medida as mesmas podem atuar
nos processos de integração do migrante à região? Dessa forma, as redes sociais
poderiam explicar a concentração de migrantes em determinadas áreas de destino
ou ao menos o direcionamento de determinados fluxos migratórios?
Para se avaliar a importância das redes sociais nos movimentos migratórios e na
estruturação dos espaços, dificilmente se pode contar com dados secundários,
tendo em vista que estes, como os censos demográficos, por exemplo, não possuem
informação direta a esse respeito.2 Assim, são poucos os trabalhos que tratam
deste tema, em especial na análise da dinâmica intraurbana recente.
No caso da Baixada Santista, em 2007, esse "porém" foi em parte superado por
meio de um levantamento domiciliar3 que serve a tal propósito, cujas
informações foram utilizadas no presente trabalho.
Assim, a possibilidade de se contar com uma pesquisa recente e com informações
específicas sobre o tema é uma oportunidade ímpar que contribui para o avanço
dos estudos demográficos sobre migração interna e redes sociais no Brasil.
Tomando o caso da Região Metropolitana da Baixada Santista, em 2007, o presente
estudo busca, portanto, retomar uma discussão que tem sido amplamente debatida
no âmbito da migração internacional. Neste sentido, como será possível notar, a
análise beneficiar-se-á muito das reflexões teóricas e empíricas já realizadas,
sem, no entanto, a pretensão de estabelecer uma forma acabada para enfocar a
questão para o caso de mobilidade espacial ao nível do país, ou mesmo, como é o
caso, de uma região metropolitana.
Trata-se, sim, de um primeiro passo que suscitará novas e mais profundas
incursões para que o tema migração interna e redes sociais volte à baila como
questão relevante para a melhor compreensão da mobilidade espacial da população
em nosso país.
Migração nas metrópoles e redes sociais: um campo a ser explorado
Pouco se tem falado a respeito das redes sociais em termos regionais. A maior
parte da literatura que demonstra sua relevância refere-se a movimentos de
longa distância, tais como os internacionais. Exemplos são os dekasseguis que
se destinam ao Japão (SAZAKI, 2000; HIRANO, 2008), ou ainda os fluxos
migratórios de brasileiros para os Estados Unidos (FUSCO, 2002 e 2007).
Dois outros importantes estudos (SOARES, 2002; FAZITO, 2005) também tomam as
migrações internacionais como objeto, proporcionando um notável ganho
analítico, uma vez que, "para além da concepção metafórica de redes sociais",4
partem efetivamente para o mapeamento de redes sociais egocentradas dos
migrantes. Neles, o trabalho de Hanneman e Riddle (2005) e as noções
desenvolvidas por estes se fazem sentir com maior intensidade.
Já em relação aos movimentos migratórios internos à nação, dois outros estudos
merecem especial atenção, pois, mesmo tratando de temas distintos do aqui
trabalhado, o fazem por meio do instrumental oriundo das chamadas "Análises de
Redes Sociais" (ARS). Além disso, tais estudos têm como preocupação central a
dinâmica migratória interna e o mapeamento dos seus fluxos na atualidade.
O primeiro, elaborado por Matos e Braga (2004), parte da "clássica" distinção
histórico--estrutural nos estudos migratórios entre áreas de destino e origem
de fluxos populacionais,5 a fim de melhor compreender o papel das localidades
(municípios) na rede urbana e na rede migratória nacional.
Dada a heterogeneidade do padrão migratório brasileiro, principalmente a partir
da década de 1980, os autores estão preocupados em indicar novas
territorialidades, ou, como os próprios mencionam, "territorialidades
emergentes" no contexto da rede de cidades/localidades. A pergunta central aqui
seria: os municípios "expulsores" (forças centrípetas) e "atratores" (forças
centrífugas) de população pré-80 se mantêm após esse período? Se não, quais são
estes novos polos? E, principalmente, quais são os motivos/mecanismos que estão
por trás dessas transformações?
As trocas populacionais entre estas localidades são tomadas como "proxys" de
interações espaciais, indicando potenciais áreas ou vetores de expansão, onde
fatores sociais (mercado de trabalho e inovações socioeconômicas) estariam
agindo com maior intensidade e dinamismo.
Já o segundo estudo é aquele desenvolvido por Lima e Braga (2010). Numa espécie
de desdobramento da agenda de pesquisa anteriormente delineada por Matos e
Braga (2004), aqui os autores se atêm a uma categorização mais precisa entre
áreas que repelem e atraem população por meio de uma série de medidas,
instrumentos e noções ainda correlacionada às ARS.
Dessa forma, os autores propõem uma metodologia de classificação dos municípios
de acordo com "suas características migratórias", utilizando essencialmente:
índice de eficácia migratória; grau de centralidade médio; saldo migratório;
percentual de imigrantes; percentual de emigrantes; e população total. Tais
características dariam indícios do papel dos municípios, principalmente
daqueles de médio porte, na rede de cidades brasileiras a partir da
diversificação dos fluxos migratórios vivenciada no período pós-80.
Assim, os autores concluem que há diferentes níveis de articulação das
localidades brasileiras, onde a migração possui claro e inequívoco papel
condicionante. Ou seja, "os novos padrões da migração caracterizam-se pela
sobreposição de novas condições e novos lugares disponíveis para os movimentos,
bem como de padrões antigos que se sustentam como efeito da inércia provocada
pela estabilidade dos laços sociais entre os migrantes." (LIMA; BRAGA, 2010, p.
15, grifo nosso).
Por fim, o estudo proporciona interessantes inquietações. A imensa maioria das
regiões metropolitanas apresenta índices de eficácia migratória marcadamente
rotativos. Como ressaltado pelos próprios autores, estudos mais pormenorizados
sobre estes recortes espaciais se fazem necessários, dado que as
características dos municípios de uma mesma região metropolitana são deveras
distintas entre si.
Ainda que a perspectiva adotada em cada um dos estudos supracitados em muito
difira dos objetivos aqui traçados, são estes alguns exemplos de estudos
nacionais que se preocupam em discutir as possíveis relações entre a noção de
redes sociais e o processo migratório.
Recorrentemente, as explicações relativas ao processo migratório giram em torno
de motivações macro ou microestruturais. Partindo de uma visão macro, em que
fatores econômicos seriam elementos preponderantes na decisão sobre migrar ou
não migrar, Borjas (1990) introduz o conceito de "global migration market".
Segundo tal definição, o migrante, a partir de decisões individualizadas, sem,
contudo, deixar de ser influenciado socialmente, calcularia de modo racional as
vantagens entre migrar ou manter-se no local de origem. As vantagens, nesse
caso, seriam proporcionadas pelo máximo retorno financeiro possível.
Entretanto, o "cálculo" envolveria também outros elementos e fatores, tais como
probabilidade de encontrar um bom emprego, custos materiais da viagem e a
periculosidade da mesma, facilidade ou não de adaptação ao destino, fatores
psicológicos e, por fim, mas não menos importante, fatores sociais. Uma vez que
o saldo seja positivo, o migrante opta pela mudança.
Ainda assim, diversos autores, entre eles Sassen (1988), contradizem tal padrão
de fluxo migratório - caracterizado por ser proveniente de países em
desenvolvimento ou em estágios médios de desenvolvimento - que se direciona,
unicamente, para países e/ou regiões mais desenvolvidas, tendo o elemento
econômico (emprego) seu principal motivador. Como exemplo, a autora cita
diversos fluxos inversos.
Os fatores econômicos, desse modo, exercem grande influência sobre as teorias
de migração e, em certa medida, são elementos cruciais para sua compreensão.
São, inclusive, fatores de fácil mensuração, configurando-se como poderosas
ferramentas de análise das ações racionais, descritas anteriormente. No
entanto, explicações que levem em conta somente fatores econômicos não
completam o cabedal de questões que poderiam ser levantadas, tais como: por que
um indivíduo decide pela migração enquanto seu parente próximo, em condições
econômicas extremamente similares, nem a cogita como alternativa? Por que,
mesmo em situações econômicas adversas no destino, o fluxo continua
estruturado, podendo, inclusive, aumentar seu volume? É a partir de
questionamentos muito similares a estes que outras noções, entre elas a de
redes sociais, são incorporadas ao arcabouço teórico das migrações. Ademais,
talvez assim se demonstre, até certo ponto, a importância das redes na
estruturação e manutenção de determinados fluxos.
Desse modo, além de desconsiderar por completo a condição de classe do
indivíduo - o que reputamos de fundamental importância -, a ação racional dos
indivíduos, que agem em busca do maior benefício possível em proveito próprio,
deixa de fora uma parte substancial da análise sobre a migração, ou seja, a
própria análise da influência das relações sociais, uma vez que a decisão
motivada pelas vantagens ou desvantagens do ato de migrar ou não migrar
partiria de uma decisão individual. Fica claro, portanto, que não se
compartilha deste ponto de vista individualizante do processo, uma vez que a
decisão pessoal/individual também pode ser socialmente influenciada, ou melhor,
socialmente orientada. Aqui, o comportamento individual seria condicionado, em
grande medida, pelo comportamento social, ou da maioria, ou de seus
semelhantes, de seus parentes, etc. (FUSCO, 2002).
A partir da constatação das limitações nas "clássicas" bases teóricas, surge a
necessidade de sua reformulação, a partir de uma perspectiva sociológica que
ocorreria em dois níveis distintos: o macroestrutural, que, além da situação de
classe, consideraria as diferenças econômicas entre nações/regiões como
catalisadoras essenciais da migração; e o microestrutural, este mais articulado
a decisões individuais (PORTES, 1995; MARQUES, 2002).
Tal preocupação com esta escala intermédia de análise também pode ser
encontrada no trabalho elaborado por Fusco (2002), em que o autor se propõe a
desenvolver um estudo que objetiva discriminar a atuação das redes sociais no
fluxo migratório entre a cidade mineira de Governador Valadares e os Estados
Unidos.
Apesar de não possuir um quadro similar de conceitos para abordar as
questões microestruturais, nas quais as diferenças intranacionais da
propensão da migração entre indivíduos e comunidades devam ser
analisadas, o conceito de redes sociais, ou social networks, tem sido
cada vez mais enriquecido e utilizado. (FUSCO, 2002, p. 14)
Além disso, a partir dessa nova abordagem, outros fatores começam a ter maior
destaque comparativamente ao fator econômico. Um desses fatores que ganham
relevância significativa, se não a principal, é a própria família. Informações
sobre mercado de trabalho, condições de vida no local de destino e aspectos
jurídicos seriam fornecidas por fontes de confiança, ou ainda os denominados
"laços fortes" (GRANOVETTER, 1973).
Assim, a unidade doméstica configura-se como uma relevante unidade de
sustentação (provimento de recursos, ajudas e suportes), segundo termo cunhado
por Boyd (1989), condicionando, em certa medida, tanto o ato de migrar ou não
como o processo de integração do recém-migrante ao destino.
Também poder-se-iam elencar outras questões acerca da família e sua articulação
com a migração: o status socioeconômico da família e seu ciclo vital (HARBISON,
1981; SCHMINK, 1984); a menor propensão em migrar de famílias compostas por
muitos dependentes (HARBISON, 1981; ROOT; DE JONG, 1986); etc.
Já com relação a recursos, trabalhos demonstram que os lares em situações
intermédias (financeiramente) são os que possuem maior probabilidade de migrar,
haja vista que almejam melhores condições de vida e maiores recursos, ao mesmo
tempo em que conseguem acumular o mínimo de capital necessário para efetuar a
viagem (DINERMAN, 1978; PESSAR, 1982).
Todavia, há outros tipos de laços e vinculações não unicamente embasados em
relações de familiaridade e parentesco que são fundamentais para a completa
compreensão da circulação dos recursos e informações no interior da rede, logo,
para a compreensão da própria composição da rede. Se até o momento discorremos
sobre os ditos "laços fortes" ("strong ties" - tomados como representação dos
laços de familiaridade/parentesco), a sua "cara-metade", ou seja, os laços
fracos ("weak ties") são tão importantes quanto os primeiros (GRANOVETTER,
1973).
Nos estudos migratórios essa diferenciação entre os tipos de vinculação é
também recorrente. Laços de amizade e origem comum já são mencionados no estudo
de Massey et al. (1987). Eles seriam responsáveis pela diminuição dos riscos
inerentes à migração, mas essencialmente por meio da disponibilização de
recursos imateriais (por exemplo, informações sobre o destino ou sobre
possíveis oportunidades de trabalho aí relacionadas).
Outra questão que merece ser considerada neste estudo refere-se ao efeito do
tempo de residência sobre o impacto ou importância das redes sociais no
processo de assimilação dos migrantes nos locais de origem. De fato, se é
verdade que a relação entre migração e redes, como mostramos até agora, é
relevante e reconhecida por muitos autores, também deve-se considerar que tal
relação não é linear no tempo e nem no espaço.
Como dito, ao menos em nossas buscas bibliográficas, encontramos pouquíssima
literatura a respeito da importância das redes sociais sobre os processos
migratórios internos, especialmente no caso brasileiro. Obviamente que a
incursão em uma bibliografia que trata da migração internacional, fenômeno
certamente com outras especificidades, deu-se como forma de buscar elementos
que ajudassem a revelar caminhos a partir dos quais a análise das redes poderia
contribuir para a melhor compreensão do fenômeno. Assim, se todas as questões
consideradas para os fluxos internacionais não se aplicariam à mobilidade
residencial interna da população, em particular a intraurbana, não há como
negar que várias questões são passíveis de serem incorporadas.
É importante deixar claro que este estudo não tem a pretensão de desenvolver um
novo marco teórico que estabeleça uma mediação entre os fatores estruturais que
certamente incidem sobre os movimentos migratórios internos e intraurbanos e os
motivos destes deslocamentos. Contudo, não há como desconsiderar que os
resultados dos estudos para os movimentos internacionais abrem vários caminhos
para uma melhor interpretação dos dados. Neste sentido, reconhecer o papel das
relações de parentesco, amizade e origem comum, das instituições, etc., para
facilitar não apenas o desencadeamento da mobilidade espacial, mas também a
fixação e grau de sucesso dos indivíduos e/ou famílias nos locais de destinos,
é uma lição aprendida a partir daqueles estudos, sobretudo considerando que,
como se poderá mostrar, muitas destas questões também aparecem como relevantes
no caso da dinâmica inter e intraurbana.
Assim, tomados os devidos cuidados, paralelos podem ser estabelecidos com
movimentos mais locais, tais como os intraurbanos. Por certo, as motivações e
os processos que estão por trás das migrações internacionais são muito
diferentes daqueles referentes aos movimentos mais regionalmente circunscritos,
contudo, as relações sociais estabelecidas ou preexistentes cumprem papel
importante em ambos os casos. Basta lembrar o que diziam Duarte et al. (1981)
em um dos poucos estudos que tratam da questão: "a grande maioria dos migrantes
só se aventura a vir para a metrópole na esteira da experiência de parentes e
amigos e que estes são os que resolvem os problemas iniciais de habitação".
Assim como a existência de comunidades ou grupos constituídos nos locais de
origem ou a existência de parentes e amigos interferem decisivamente no
processo migratório entre países, é possível dizer que efeitos similares podem
ser observados no contexto interno de um país ou de uma região.
Estes "ativos" que podem ser obtidos por meio das redes sociais são também
elementos importantes para se avaliar o grau de vulnerabilidade social das
pessoas e, especialmente, das famílias nas quais estas se inserem.
Em um texto bastante elucidativo, Kaztman (2000, p. 7, tradução nossa)
considera que a vulnerabilidade pode ser entendida como "a incapacidade de uma
pessoa ou de um domicílio para aproveitar-se das oportunidades, disponíveis em
distintos âmbitos socioeconômicos, para melhorar sua situação de bem-estar ou
impedir sua deterioração". Portanto, o autor considera que esta condição seria
resultante de uma "defasagem ou falta de sincronia entre os requerimentos de
acesso às estruturas de oportunidades oferecidos pelo mercado, Estado e
sociedade e os ativos dos domicílios que permitiriam aproveitar estas
oportunidades" (KAZTMAN, 2000, p. 2, tradução nossa).
Nesse sentido, o conceito de vulnerabilidade aqui utilizado remete à debilidade
ou à força dos ativos que indivíduos ou famílias dispõem para enfrentar os
riscos existentes no entorno que implicam a perda de bem-estar (BUSSO, 2001). A
ideia, portanto, diria respeito "a um estado dos domicílios que varia em uma
relação inversa à sua capacidade para controlar as forças que modelam o seu
próprio destino, ou para combater seus efeitos sobre o bem-estar" (KAZTMAN,
2000, p. 2, tradução nossa).
A partir da classificação de ativos proposto por Kaztman (2000), que os divide
em termos de três tipos de capitais ("físico/financeiro", "humano" e "social"),
percebe-se que os resultados decorrentes das relações sociais podem, em muitos
sentidos, se materializar em termos de algum tipo de capital social (ajuda
mútua, trocas de favores, ganhos comunitários, informações de várias naturezas,
etc.) útil para o enfrentamento de riscos impostos na grande metrópole, sendo o
mais geral e indesejado o da pobreza.
É neste sentido que a discussão das redes sociais e migração mais nos interessa
neste momento, razão pela qual a identificação de sua ocorrência nas
trajetórias das pessoas já nos daria importantes pistas para avaliar seus
impactos e consequências sobre suas vidas.
Migração e sua heterogeneidade no espaço metropolitano
Como dito anteriormente, este trabalho utiliza como fonte de dados uma pesquisa
domiciliar amostral realizada em 2007 na Baixada Santista.6 Este levantamento
permite conhecer, entre outras coisas, as características dos movimentos
migratórios, tanto na chegada à região metropolitana quanto nos movimentos
realizados em nível inter e intramunicipal. Entre os elementos enfatizados,
destacam-se a composição sociodemográfica destes migrantes, os motivos da
migração, a importância das redes sociais e a aquisição ou perda de capital
social.
Para a realização desta pesquisa, foram aplicados perto de 1.600 questionários
em uma amostra estratificada de domicílios da região, envolvendo cerca de 4.800
pessoas da Baixada. Os estratos utilizados, aqui chamados de zonas de
vulnerabilidade (ZVs), foram obtidos a partir de técnicas estatísticas,7
utilizando para tanto o Censo Demográfico de 2000 em nível de áreas de
ponderação (APs).
Ademais, as ZVs (Figura_1) representam grupos homogêneos de APs não apenas do
ponto de vista sociodemográfico, mas também quanto ao grau de acesso aos
serviços públicos e infraestrutura urbana.
![](/img/revistas/rbepop/v30n1/a02fig01.jpg)
As zonas de vulnerabilidade podem ser descritas da seguinte forma em termos de
suas principais características:
zona de vulnerabilidade do tipo 1 (ZV1) - zona mais periférica,
tanto geográfica como socialmente. Do ponto de vista urbano, trata-se
de áreas menos consolidadas, além de apresentarem infraestrutura mais
deficitária. Sua população possui carências significativas tanto em
termos econômicos quanto educacionais, bem como elevado grau de
desproteção social;
zona de vulnerabilidade do tipo 2 (ZV2) - corresponde a uma área
intermédia, entre a periferia mais distante e menos valorizada e a
orla marítima. É uma zona mais consolidada urbanisticamente em
comparação com aquela do tipo 1. Em contraposição, ainda concentra
grande parte de seu contingente populacional caracterizado como baixa
renda, mas, em relação à zona anteriormente citada, apresenta
melhores índices de proteção social;
zona de vulnerabilidade do tipo 3 (ZV3) - zona mais central,
localizada principalmente dentro dos limites municipais de Santos e
São Vicente, mais consolidada e, consequentemente, mais valorizada.
Esta área abriga população de mais alta renda, além de outras
particularidades - domicílios menores, unipessoais e mais
envelhecidos.
Antes de prosseguir, é importante frisar que toda a análise aqui realizada não
focará a totalidade dos residentes nos domicílios, mas somente o seu
responsável para o qual foi levantado um rico conjunto de informações na
pesquisa domiciliar que serviu de base empírica.
Tal opção metodológica decorre de um pressuposto básico adotado pela pesquisa e
com o qual estamos alinhados: para estudos como os migratórios, a família8
deveria ser a unidade básica de análise. Ou seja, parte-se da hipótese de que
boa parte das decisões, em particular aquelas envolvendo os deslocamentos
residenciais, seria tomada no interior da família.
Em favor de tal opção recorremos às contribuições de alguns autores,9 como é o
caso de Wood (1982), para quem existe, de certo modo, uma descontinuidade
conceitual entre a unidade de análise que deveria ser utilizada para a
compreensão do fenômeno (no caso a família) e o movimento migratório
propriamente dito (este individual). Da mesma forma, Bilac (1997, p. 177)
recupera a importância da família ao considerar que essas são "condicionantes
importantes ao longo de todas as etapas do processo migratório: da decisão de
morar, dos arranjos econômicos necessários à implementação desta decisão, à
integração do migrante à sociedade urbana"; a mesma autora reconhece na família
uma importante "esfera da produção e reprodução" dos impactos sofridos por toda
e qualquer intempérie socioeconômica (BILAC, 2006, p. 58). Ou seja, não estamos
sozinhos ao considerar que as várias características da condição social só
podem ser apreendidas com a observação e análise da unidade familiar (PEREIRA,
1999).
Desta forma, mesmo conscientes de que corremos alguns riscos metodológicos,
acreditamos que o uso do responsável do domicílio como uma "proxy" do processo
migratório experimentado pela unidade doméstica não representaria grandes
perdas em relação ao processo mais geral que se quer estudar. Ao contrário,
acreditamos que assim procedendo poderíamos até mesmo evitar certos vieses de
interpretação, como fica claro quando a variável "motivo da migração" é
analisada e se percebe que a categoria "acompanhar a família" atinge, via de
regra, um percentual elevado de respostas.
Talvez um dado contribua para sustentar que o fato de considerarmos apenas os
responsáveis não implicaria um viés importante para os resultados: para a
Região Metropolitana de Campinas, a mediana da participação dos chefes na renda
domiciliar era, em 2007, superior a 65%, sendo que mais de 45% destes
respondiam por mais de 70% da renda total. Não negamos que a trajetória
migratória familiar tende a ser mais complexa do que a do responsável, mas
sustentamos que esta última é central para se compreender parte significativa
dessa história. Além disso, o propósito do presente estudo não era quantificar
os movimentos migratórios envolvendo a RMBS, o que necessariamente nos
obrigaria a tomar toda a população residente, até porque este tipo de objetivo
seria temeroso considerando-se o tamanho da amostra recolhida pela pesquisa
domiciliar e sua respectiva expansão baseada em projeções demográficas.
Nessa seção, ao menos dois aspectos distintos serão enfatizados como forma de
apresentar um pano de fundo para a questão da relação entre a migração e as
redes sociais e seus impactos sobre a vida das pessoas: a importância da
mobilidade espacial da população na região, vista não só em termos de sua forma
mais clássica, ou seja, as mudanças residenciais de caráter inter-regional ou
intermunicipal (normalmente considerada migração), mas também em termos de uma
modalidade muito menos enfocada nos estudos demográficos, a mobilidade
residencial intraurbana. Da mesma forma, serão enfatizadas algumas diferenças
entre os migrantes segundo o tempo de residência nos municípios, uma vez que
tal variável, como já se fez notar, pode jogar um papel importante nos
processos aqui analisados.
Segundo as estimativas populacionais do IBGE, a Região Metropolitana da Baixada
Santista possuía, em meados de 2007, cerca de 1.676 mil pessoas vivendo em suas
áreas urbanas. Deste volume, os dados da pesquisa mostram que 57,4% não eram
naturais do município de residência. Destes "não naturais", 66,7% nasceram em
outras cidades fora da RMBS, ou seja, o forte peso dos migrantes acumulados (de
toda a vida) mostra que se trata de uma região onde a migração historicamente
tem tido claro e inequívoco impacto, especialmente nos últimos 30 anos.
As análises aqui apresentadas partem das possíveis diferenças entre dois tipos
de migrante. Um dos grupos é delimitado a partir do tempo de residência na
região (migrantes de longa data, com mais de dez anos de residência, ou
migrantes recentes, com menos de dez anos de residência). Nesse caso, o efeito
de "sobrevivência dos mais fortes" (MARTINE, 1980) merece ser levado em
consideração. Maya Jariego (2006), em seu estudo sobre as redes sociais de
imigrantes, menciona que este fator é central para o desenvolvimento de
efetivos laços provedores de ajuda e suporte, logo, para a maior ou menor
participação/integração social do imigrante à área de destino. Tanto é assim
que o percentual de migrantes antigos que não contavam ou não recorriam a
ninguém como possível fonte de ajuda financeira é sensivelmente menor em
comparação aos migrantes mais recentes. Complementarmente, migrantes antigos
tendem a recorrer de forma mais intensa a parentes, possivelmente por terem
tido tempo suficiente de tecer redes com esse tipo de vinculação ao longo de
sua permanência na metrópole (Tabela_1).
[/img/revistas/rbepop/v30n1/a02tab01.jpg]
Já em outro artigo (JARIEGO; HOLGADO, 2005), o mesmo autor aponta para outro
elemento tão importante quanto o tempo de residência: a própria modalidade
migratória. Ou seja, migrantes que se moviam dentro da região possuíam redes
sociais mais dispersas neste mesmo território do que aqueles que não se moviam.
Uma primeira hipótese é a de que os migrantes intraurbanos, por sua própria
experiência migratória pregressa, estão mais fortemente integrados à região do
que os migrantes externos, podendo ser menos vulneráveis do que estes
justamente por esse motivo. Se tomarmos as relações com vizinhos e amigos como
um indicador da heterogeneidade da rede, parece, pelo menos no primeiro
momento, que de fato as redes sociais de migrantes intrametropolitanos são mais
diversificadas do que aquelas dos migrantes externos (Tabela_2). Parecem,
portanto, ser estas interessantes dimensões a serem incluídas no presente
estudo.
[/img/revistas/rbepop/v30n1/a02tab02.jpg]
Considerando apenas a última origem dos responsáveis por domicílios, ou seja,
de todos os indivíduos que residiram em outro município antes daquele onde
foram entrevistados, percebe-se que na RMBS 41,4% dos responsáveis pelos
domicílios apresentaram uma residência prévia em outros municípios, contra
22,7% daqueles que nunca trocaram de município.10
Para os migrantes, ou seja, aqueles que declararam município de residência
anterior, verifica-se que cerca de dois terços dos responsáveis11 pelos
domicílios urbanos vieram de fora da Baixada Santista (Gráfico_1). É
interessante notar ainda que existem diferenças significativas entre as zonas
de vulnerabilidade. De fato, enquanto na ZV3, a mais central e com melhores
condições socioeconômicas, é muito maior a importância daqueles provenientes do
Estado de São Paulo, o mesmo não se observa na periferia mais distante, onde o
peso da migração de última origem dentro da própria região é bem mais elevado.
Este resultado reflete, por exemplo, o impacto das transferências de população
de mais alta renda da RM de São Paulo para a região, o que acaba gerando
intenso fluxo de mobilidade pendular entre as duas áreas (SANTOS, 2008; SILVA,
2009), que são contíguas e, embora separadas pela Serra do Mar, se conectam por
um excelente e moderno sistema viário.
[/img/revistas/rbepop/v30n1/a02gra01.jpg]
Este quadro tende a sofrer alguma alteração quando se consideram apenas os
migrantes mais recentes, ou seja, aqueles com menos de dez anos de residência.
Nesse caso, de maneira geral, existe um peso relativo maior dos responsáveis
provenientes de mais curta distância, com 15,7% oriundos da sede metropolitana,
20,4% da própria RM, 13,3% do Estado de São Paulo e 50,6% de outros locais. A
mudança mais expressiva foi verificada na ZV2, onde houve um aumento
substantivo da participação de responsáveis provenientes da sede metropolitana
(25,6%) em detrimento dos locais mais afastados (16,8%). Como mencionado por
outros autores (CUNHA et al., 2006; JAKOB, 2003), isto indica a dinâmica de
expansão urbana ainda em curso, com uma migração oriunda da sede e com destino
aos seus arredores, ou seja, da ZV3 em direção à ZV2.
Com relação ao número de municípios pelos quais passaram os migrantes antes de
chegar ao local de residência no momento da pesquisa, os dados mostram que
54,2% dos responsáveis vieram diretamente para o município onde residem
atualmente. De qualquer maneira, é muito relevante o percentual daqueles com
mais de uma etapa migratória (45,8%).
Uma informação interessante para se entender melhor o processo de ocupação do
espaço metropolitano, em geral, e dos municípios, em particular, diz respeito à
mobilidade intramunicipal. Esse novo dado levantado pela pesquisa domiciliar
(Tabela_3) mostra que, na RM da Baixada Santista, a maior parte dos migrantes
responsáveis pelos domicílios realizou três ou mais mudanças dentro do
município de residência atual (32,6%), fato que revela a intensidade da
mobilidade intraurbana. Seguem, em importância, aqueles chefes que nunca se
moveram (28,3%) e os que realizaram duas mudanças (23,6%).
[/img/revistas/rbepop/v30n1/a02tab03.jpg]
Este dado torna-se ainda mais interessante se observado a partir das zonas de
vulnerabilidade. Assim, enquanto as ZVs 1 e 2 apresentam um perfil parecido com
o do total da região, a ZV3 registra uma participação muito maior dos
responsáveis com três mudanças ou mais (44%). Este dado sugere que a população
menos vulnerável e em melhores condições socioeconômicas, embora apresente
menor mobilidade intrametropolitana, tem maior tendência a mudanças dentro do
próprio município, fato que se mostra coerente com as maiores possibilidades de
escolha em comparação com os estratos mais baixos.
Por que migram as pessoas?
Como se pode observar a partir das informações coletadas, os motivos12
externados pelas pessoas para migrarem variam significativamente segundo a
modalidade do movimento realizado: inter ou intra-regional. Da análise destes
dados pode-se inferir sobre os condicionantes mais profundos que levam as
pessoas ou grupos de pessoas a decidirem pela migração. Cunha (1994) discute
dois principais motivos associados à migração intrametropolitana da RMSP: o
mercado de trabalho e o habitacional. Jakob (2003), ao abordar especificamente
a RMBS, descreve o processo de expansão urbana por meio do extravasamento
populacional do seu município-sede (já saturado devido aos seus condicionantes
físico-territoriais). Assim, embora não seja o objeto central do presente
texto, é interessante notar que as questões relativas ao mercado de trabalho e
mercado de terra seriam essenciais para se compreender em sua plenitude parte
significativa dos movimentos migratórios envolvendo a RMBS.
De maneira geral, as motivações predominantes para escolher tanto a RMBS quanto
um município metropolitano em particular são as mesmas (Gráfico_2). No entanto,
é facilmente observado que, no primeiro caso, o fator trabalho mostra-se muito
mais importante, sendo o motivo externado por cerca de 32% do responsáveis por
domicílios. Já no segundo caso, ou seja, na escolha do município, parecem pesar
outros elementos em particular - o que seria de se esperar -, como a busca por
moradia. Ou seja, como mencionado anteriormente, percebe-se que os
condicionantes dos processos migratórios variam significativamente de acordo
com a modalidade dos movimentos.
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De fato, como assinalado, o significativo volume da migração intrametropolitana
por motivação habitacional, em geral influenciado pelas dificuldades dos
estratos mais pobres de permanecer nas áreas mais valorizadas, acaba
prevalecendo, ou, como é aqui o caso, se equiparando com o motivo trabalho. De
qualquer maneira, tendo em vista que a migração direta para os locais de
residência atual é também importante na região, a questão de busca por trabalho
não deixa de se constituir na de maior percentual, inclusive no caso da
migração para o município.
Vale lembrar ainda que o importante percentual alcançado pelo motivo
"acompanhar a família" está em boa medida ligado ao fato de estes responsáveis
terem migrado ainda muito jovens com sua família original. De fato os dados da
pesquisa mostram que, entre os responsáveis que declararam tal motivo, 95%
possuíam no momento de pesquisa um tempo de residência superior a dez anos e
78,6% residiam há mais de 20 anos na localidade, fato que permite inferir que,
no momento da migração, estas pessoas eram ainda crianças ou adolescentes, uma
vez que a idade mediana dos migrantes responsáveis por domicílios na pesquisa
era de 51 anos.
Em termos das zonas de vulnerabilidade, observa-se que o motivo "trabalho" é
muito mais significativo na ZV1, onde vivem as pessoas de mais baixa renda,
sendo que nas zonas com menor grau de vulnerabilidade outros motivos afloram
como importantes, como é o caso da busca por "serviços", que motivou a mudança
para a ZV3 de quase um quinto dos migrantes responsáveis por domicílio ali
residentes. Esse fato também se mostra coerente com as características da
região e, particularmente, com áreas onde se localizam estas pessoas, ou seja,
locais próximos à orla, com óbvias amenidades e com um importante complexo de
serviços a oferecer (por exemplo, para as pessoas mais idosas).
O quadro de motivações da migração fica ainda mais claro quando se observam os
motivos que levaram os migrantes a deixarem seus municípios de residência
anterior. Nesse caso, três motivações cercam a maior parte daqueles que
migraram: as ligadas ao trabalho (34,2%); os problemas de moradia (32,2%); e a
necessidade de acompanhar a família (17,4%) (Gráfico_3). Nesse último caso,
como assinalado anteriormente, há que se relativizar o resultado, uma vez que
grande parte é composta por pessoas que migraram com seus pais ou familiares
quando ainda jovens. Já no que se refere às duas primeiras motivações, os dados
dão conta de que aquelas relacionadas ao trabalho são bem mais frequentes para
os migrantes que chegam diretamente de áreas externas à RM (cerca de 44%),
enquanto as ligadas à habitação são externadas por 50% do migrantes que fizeram
um movimento intrametropolitano. Salienta-se que esse padrão de motivações foi
também identificado no caso das motivações que levaram à escolha da região e do
município de residência no momento da entrevista.
[/img/revistas/rbepop/v30n1/a02gra03.jpg]
Segundo as zonas de vulnerabilidade, novamente percebe-se que a questão do
trabalho é muito mais importante na ZV1 do que na ZV3, mostrando que este é,
sem dúvida, um elemento central para diferenciar a migração dos distintos
grupos sociais. Por outro lado, a insatisfação com a moradia e o trabalho
parece afetar a decisão migratória com maior intensidade para aqueles que
residem nas zonas de menor vulnerabilidade, fato que reforça conclusões de
outros estudos que sugerem que a RMBS tem papel importante no processo
migratório das classes mais abastadas, particularmente aquelas provenientes da
Região Metropolitana de São Paulo, que buscam lugares mais tranquilos e
aprazíveis para morar (SANTOS, 2008; YOUNG; SANTOS, 2008).
Migração e redes sociais: evidências empíricas sobre sua importância para a
mobilidade territorial
Mesmo considerando que, como mostrado anteriormente, os motivos de migração
estejam sempre ligados a questões econômicas ou mesmo à habitacional, com
variações significativas segundo as modalidades de movimentos, é necessário
levar em conta que as redes sociais podem ter papel importante no entendimento
do processo migratório, pois, a partir delas, é possível que os fluxos, uma vez
desencadeados, ganhem força, redirecionem-se ou mesmo se interrompam.
Efetivamente, não apenas o suporte material que pode ser prestado por parentes,
amigos ou conterrâneos, mas também as informações decorrentes destas relações
podem ser relevantes elementos, se não para explicar os movimentos migratórios,
cujos condicionantes são na verdade muito mais complexos, ao menos para ajudar
a compreender certas características, ou mesmo consequências do processo
migratório.
No que diz respeito à migração interna, especialmente aquela observada nas
maiores aglomerações urbanas, o reconhecimento da ação (ou não) das redes pode
ajudar a compreender alguns fluxos estabelecidos e também as consequências da
mobilidade espacial sobre as condições de vida e vulnerabilidade de certas
famílias ou pessoas. De fato, como sustentam Kaztman et al. (1999), a
mobilidade ou a possibilidade desta pode ser entendida como um ativo que
permitiria, ao menos em algumas dimensões da vida - por exemplo, a habitação -,
a redução do grau de vulnerabilidade de indivíduos. No entanto, os mesmos
autores reconhecem que a migração pode também afetar a disponibilidade de
capital social e informações quando esta se dá de um local conhecido para outro
parcialmente desconhecido.
Ou seja, apesar de bastante variável em termos do seu impacto, a ação das redes
sociais pode ter influência decisiva sobre a vida das pessoas, particularmente
dos migrantes recentes, que provavelmente seriam mais vulneráveis em nossas
grandes cidades, tanto por sua condição econômica normalmente desfavorável,
quanto pela menor informação e conhecimento sobre as oportunidades aí
existentes em termos de mercado de trabalho e de terras.
Embora não seja intenção desse estudo realizar uma análise exaustiva destas
consequências, pretende-se ao menos mostrar a realidade e importância desse
fenômeno no contexto de uma das três RMs do Estado de São Paulo.
Um dos primeiros aspectos que podem revelar a ação das redes sociais diz
respeito à forma de inserção residencial do indivíduo na sua chegada a uma
região. As redes, nesse sentido, poderiam funcionar como pontes, principalmente
quando há contatos preexistentes nas áreas de destino. Com isso, o processo de
integração do migrante à região seria facilitado, haja vista que pelo menos um
dos riscos (e também custos) inerentes à migração - no caso, oportunidades de
moradia/habitação no momento de chegada à região - seria minimizado.
A Tabela_4 fornece esse tipo de informação, ao trazer o local de moradia dos
responsáveis por domicílio quando chegaram à Baixada Santista. Assim, percebe-
se que, muito embora a maioria destes migrantes tenha vindo para morar em
domicílios alugados (38,8%) ou próprios (27,3%), é muito significativa a
parcela dos responsáveis que chegaram à região para morar em casa de parentes
(perto de 20%) e também não é desprezível o percentual de chefes que se
instalaram em casas cedidas (5,5%). O interessante a notar é que a importância
destas duas práticas é ainda maior na ZV1 (cerca de 26% e 8%, respectivamente).
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Neste caso fica muito claro que o apoio de parentes é um expediente bem mais
comum, especialmente nas áreas mais carentes da região, aqui representadas pela
ZV1. Mesmo em situações de "áreas de ocupação", que para a ZV1 representa quase
dez vezes o observado nas demais zonas, é muito provável que esta prática seja,
em boa medida, favorecida pela ação das redes sociais.
São dignos de nota também os percentuais obtidos pelas opções "casa própria",
no caso dos migrantes que residem na ZV3, e "casa alugada", para os moradores
na ZV2, estratégias que se mostram condizentes com os maiores níveis
socioeconômicos e grau de consolidação urbana destas áreas. Embora não se possa
afirmar que para os estratos mais altos a ação das redes não tenha sido
importante, não é difícil imaginar que estas terão bem menos impacto do que
para os mais necessitados. Na verdade, tal afirmação, mesmo não sendo
confirmada em absoluto por meio dos dados aqui utilizados, encontra certo
respaldo no trabalho de Marques (2010). O autor descreve que os indivíduos em
situação de pobreza são mais dependentes de suas redes sociais do que aqueles
provenientes de estratos mais abastados, afinal estes últimos, por sua própria
condição econômico-financeira, conseguem apelar para outras esferas, tais como
o próprio mercado. Evidencia-se com estes dados, portanto, a maior importância
de elementos de capital social no processo migratório das pessoas que se
dirigem para áreas mais vulneráveis da região.
Outra maneira de aquilatar o papel das redes sociais no processo migratório
regional é conhecer a forma como os migrantes obtiveram informações sobre a
área (Tabela_5). Assim, percebe-se que quase 60% dos migrantes responsáveis por
domicílio inteiraram-se sobre a região por meio de parentes e amigos, o que
demonstra a importância dessas relações, se não para o desencadeamento dos
fluxos migratórios nas origens, ao menos para o seu direcionamento. Sobre o
comportamento desta variável nas zonas de vulnerabilidade, verifica-se que, na
ZV3, ou seja, a menos vulnerável, a importância de informações de parentes e
amigos é bem menos relevante, sendo o conhecimento prévio da região bem mais
presente nos residentes destas áreas.
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Parentes e amigos também constituem importantes fontes de informações sobre o
bairro onde residiam os migrantes responsáveis por domicílio no momento de
pesquisa. De fato, quase 64% deles declararam haver consultado estes contatos a
respeito do local onde residiam (Gráfico_4), o que reforça o peso das redes
sociais também para a mobilidade intramunicipal. Vale ressaltar que a
importância deste tipo de mobilidade é expressa pela baixa proporção (22%) de
responsáveis pelo domicílio que nasceram no bairro onde foram entrevistados.
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Percebe-se ainda que, no caso da escolha e obtenção das informações sobre o
bairro, o leque de alternativas é um pouco maior, pois cerca de 15% dos
migrantes responsáveis por domicílio declararam outra forma de obtenção de
informações, como experiência prévia no bairro ou por meio de propagandas e
organizações sindicais. Aqui as diferenças entre as ZVs são muito menos
aparentes, embora a ZV3 continue apresentando um perfil de resposta um pouco
distinto em relação às demais.
A migração, além de ser uma estratégia adotada para solucionar ou remediar
possíveis carências em oportunidades de emprego ou moradia, pode também ter
papel significativo na alteração das relações sociais e da rede de apoio
daqueles que migram, provocando impactos sobre a vulnerabilidade destas
pessoas. A migração, nesse sentido, poderia funcionar como "uma faca de dois
gumes": ao mesmo tempo em que possibilitaria a construção de novos contatos
(talvez mais diversificados entre si), poderia também romper contatos
preexistentes. Ou seja, determinados recursos poderiam momentaneamente deixar
de fluir no interior da rede social do migrante, empurrando-o para situações
mais vulneráveis quando comparado àqueles que não migraram.
Ao que tudo indica, a migração parece reforçar as relações e rede de
parentesco, pois mais de 41% dos migrantes responsáveis por domicílios urbanos
afirmaram que suas possibilidades de contar com a ajuda de parentes aumentaram
a partir da mudança de residência (Gráfico_5). O mesmo não pode ser dito sobre
as relações com amigos e vizinhos, uma vez que, nos dois casos, para a maioria
dos respondentes, estas permaneceram inalteradas (68,3% e 75,8%,
respectivamente). Mas é possível observar que, mesmo nessa situação, a migração
não teria efeitos deletérios sobre as relações sociais das pessoas. De qualquer
maneira, é significativa a proporção de migrantes que declararam ter
incrementado suas possibilidades de contar com a ajuda de amigos e vizinhos a
partir do movimento.
[/img/revistas/rbepop/v30n1/a02gra05.jpg]
Destaca-se, ainda, a baixa proporção de respostas na categoria " diminuíram",
demonstrando que, ao menos para os migrantes da RMBS, a migração acabou sendo
um mecanismo de aquisição de capital social. Do ponto de vista das zonas de
vulnerabilidade, percebe-se que os migrantes residentes nas áreas mais
vulneráveis da região (ZV1) aparentam ter obtido maiores ganhos em suas
relações sociais (principalmente aquelas embasadas em laços de parentesco),
especialmente porque, para quase 60% deles, houve aumento na possibilidade de
contar com a ajuda de parentes. De fato, é nessa zona onde se encontra a menor
proporção de respostas "permaneceram inalteradas".
Na verdade deve-se considerar que, tendo em vista a maior precariedade das
condições médias de vida e de habitação da ZV1, é no mínimo alvissareiro o fato
de as pessoas declararem ter melhorado sua rede de apoio, pois isto pode
constituir-se em potencial ativo para a redução de suas vulnerabilidades, ainda
que em regiões com infraestrutura e serviços em condições mais adversas.
Considerações finais
Este trabalho procurou abordar a migração como elemento central no processo de
expansão urbana de uma importante aglomeração urbana, no caso a RM da Baixada
Santista, e a sua relação com as redes sociais estabelecidas pelos atores
envolvidos, no sentido de perceber como estas últimas trabalham não apenas
enquanto elemento de estruturação dos fluxos migratórios, mas, sobretudo, como
forma de aquisição de capital social, visando a redução da vulnerabilidade das
pessoas e famílias.
Para tanto, lançou-se mão de um levantamento domiciliar inédito realizado na
Baixada Santista, cujas informações recolhidas possibilitaram, por suas
especificidades, uma análise diferenciada da questão.
Como discutido ao longo deste trabalho, a migração, em suas várias modalidades,
mesmo sendo reflexo de processos estruturais mais amplos e motivada por busca
de soluções para problemas de emprego, condições habitacionais, etc., também
pode ser, por um lado, considerada elemento fundamental na modificação das
relações sociais e, por outro, facilitada ou constrangida por estas.
Na verdade, os dados apresentados neste estudo, além de fornecerem uma visão
geral sobre a mobilidade residencial em suas diferentes escalas espaciais, bem
como motivações, sugerem algumas das relações possíveis estabelecidas entre o
fenômeno migratório e as redes sociais estabelecidas ou dissolvidas neste
processo.
Os resultados sugerem que a migração parece reforçar, sobretudo, as relações e
a rede de parentesco, quando mostram que mais de 41% dos migrantes responsáveis
por domicílios urbanos perceberam incremento nas suas possibilidades de contar
com a ajuda de parentes a partir da mudança de residência e pouquíssimos
declararam que estas tenham se deteriorado.
Outra conclusão permitida pelo estudo diz respeito ao fato de que, em termos do
local de moradia da população, representadas aqui pelas zonas de
vulnerabilidade, os migrantes residentes em áreas mais periféricas e mais
vulneráveis, como a ZV1, parecem ter conseguido maiores ganhos em suas relações
sociais, uma vez que, para 60% deles, a possibilidade de contar com a ajuda de
parentes aumentou com a migração. Esta constatação é de fundamental
importância, pois sugere que, mesmo residindo em áreas mais carentes de
infraestrutura e serviços, os migrantes podem ver esta adversidade em parte
compensada por outros tipos de ativos (não tangíveis), contribuindo para a
redução de suas vulnerabilidades.
Mesmo reconhecendo que a questão da vulnerabilidade social das famílias e
indivíduos somente poderá ser completamente solucionada com a inserção real,
definitiva e, mais que isso, não precária destas pessoas no mercado de trabalho
e consumo, bem como com o seu acesso aos serviços e infraestrutura básicos, é
relevante constatar que o papel do capital social não deve ser negligenciado.
Assim, além de contribuir nesta direção, espera-se que este estudo também tenha
podido motivar outras incursões analíticas que relacionem redes sociais com
movimentos migratórios, considerando a carência deste tipo de enfoque,
principalmente, para as escalas mais regionais ou locais, fato que tem limitado
a análise dos processos de expansão urbana dos municípios e regiões
metropolitanas do país.