Da rotatividade migratória à baixa migração: uma análise dos padrões da
mobilidade populacional no Brasil de 1995-2000
Introdução
Este trabalho tem como objetivo principal apresentar uma proposta de
classificação dos municípios brasileiros a partir dos padrões observáveis das
migrações internas. Tal esforço metodológico justifica-se diante das
reconfigurações pelas quais passa o fenômeno migratório, que acompanha a
reestruturação territorial do país. Eventos como a desconcentração produtiva, a
diversificação de mercados, a urbanização de áreas rurais, a metropolização e a
expansão da fronteira agrícola conformam um rol de novas e velhas
potencialidades para a realocação da mão de obra pelo país. Esse conjunto de
fatores associados sugere a formatação de novos padrões para a mobilidade
populacional no Brasil, constituídos pela sobreposição de condições presentes e
passadas, que imprimem um novo ritmo aos movimentos populacionais e inserem
novos significados para a integração territorial.
O Censo Demográfico de 2000 constitui uma rica fonte de dados sobre as
migrações internas intermunicipais, permitindo o cruzamento das informações
individuais dos migrantes com as características econômicas e sociais dos
municípios de origem e destino. Desta forma, procurou-se identificar um
conjunto de indicadores, estimados a partir das informações censitárias, que
permitissem visualizar os padrões de inserção dos municípios no conjunto das
trocas migratórias internas do país. Após a realização de uma análise de
classificação com esses indicadores, foi possível discutir a formação de
categorias de municípios, que se diferenciam, sobretudo, em função de dois
fatores: a tendência predominante de atrair ou expulsar determinados grupos
populacionais; e o grau de articulação destes municípios com a rede migratória
nacional, dado tanto pela extensão das conexões como pelo volume dos fluxos
envolvidos.
Na discussão sobre os novos padrões migratórios, podem ser diferenciadas duas
categorias de análise: as pessoas e os lugares. Pensar em novos padrões
migratórios sob a perspectiva das pessoas permite focalizar os estudos nas
transformações experimentadas pelos grupos sociais, ao longo do tempo, no que
se refere a escolarização, renda, qualificação e inserção profissional e
motivos da migração. Estudar as pessoas também possibilita avaliar as conexões
entre elas, quais sejam, as redes sociais que dão suporte aos movimentos e que
podem ter alterado seu conteúdo em meio às transformações no conjunto de
oportunidades abertas para a mobilidade populacional. Por outro lado, é
possível investigar o surgimento dos novos padrões migratórios a partir do
estudo dos lugares. Neste sentido, torna-se importante lançar luz sobre a
organização do território, entendido como espaço de construção das relações de
poder na sociedade. O território - mais do que simples receptáculo - constitui,
ele mesmo, uma identidade, manifestada pela interação entre os fatores físicos
e humanos que dão forma ao processo de desenvolvimento econômico e social.
Assim, é fundamental considerar como cada "lugar" tem contribuído no conjunto
das trocas populacionais, a fim de compreender as relações entre as
transformações no fenômeno migratório e a reordenação territorial. Este
trabalho se ocupará em investigar este último aspecto.
Para tanto, primeiramente, é feita uma breve discussão teórica sobre os
possíveis "novos padrões" da migração interna brasileira, seguida por uma
exposição da metodologia de análise aqui empregada, a apresentação dos
procedimentos de análise multivariada e, finalmente, a discussão dos resultados
encontrados.
Novos padrões e a categorização dos lugares da migração
O padrão recente da migração interna no Brasil tem se configurado como um
desafio teórico e empírico para os analistas do tema. A partir da década de
1980 percebe-se uma diminuição da intensidade dos movimentos internos
associados ao êxodo rural e à ocupação da fronteira agrícola. Esse novo
contexto tem conduzido os especialistas a indagarem sobre a emergência de novos
padrões migratórios, com características inovadoras em termos tanto das
direções como da intensidade dos fluxos (PACHECO; PATARRA, 1997). Portanto, é
de fundamental importância empreender esforços para uma descrição mais acurada
da mobilidade populacional no Brasil, o que pode resultar na identificação de
outras categorias que atendam à recente complexidade criada pelos novos
padrões.
Como características principais destes novos padrões, podem-se citar:
diminuição das distâncias percorridas pelos migrantes; diversificação das rotas
migratórias; esgotamento do êxodo rural; predominância dos fluxos urbano-
urbano; aumento dos fluxos urbano-rurais; desconcentração demográfica; aumento
da migração de retorno; crescimento das migrações de curta duração; entre
outros (MATOS, 1995, 2002; BRITO, 2006). A complexidade destes novos processos
tem reduzido o potencial de explicação de antigas categorias espaciais do
fenômeno migratório. Polarizar os lugares apenas como de "atração" e "repulsão"
populacional parece não mais corretamente descrever as dinâmicas mais complexas
da mobilidade populacional.
Uma das primeiras contribuições para a identificação de categorias migratórias
é o texto de Lee (1980), que sintetiza o processo como um evento social
desencadeado pela existência de três grandes conjuntos de fatores. Os primeiros
são aqueles que determinam a expulsão do lugar de origem, sendo o fluxo
direcionado para os espaços nos quais se observassem os fatores de atração.
Entre os fatores de expulsão e os de atração atuariam os mecanismos
intervenientes, de natureza diversa, e com efeito diferenciado sobre a decisão
individual de migrar.1 É importante destacar que tal abordagem compreende o ato
migratório como um fenômeno pertencente ao campo da decisão individual, com
forte influência de características e predisposições no campo psicológico. De
qualquer sorte, é possível desprender desta abordagem uma feição espacial do
fenômeno, que define os lugares como de atração ou repulsão, concepção
recorrentemente observada nos trabalhos de inspiração neoclássica (HARRIS;
TODARO, 1980; BORJAS, 1996; SJAASTAD, 1980).
A abordagem histórico-estrutural, de inspiração marxista, se opõe às
explicações centradas nos sujeitos, argumentando que é a estrutura social,
organizada pelas relações de exploração entre as classes, que determinará a
intensidade e a direção dos fluxos populacionais. A dimensão geográfica desta
teoria é evidente, já que a migração seria um resultado da produção capitalista
do espaço, que realoca a mão de obra de acordo com os mecanismos de
diferenciação da mesma, necessários à manutenção da lógica de exploração. Essa
relação dialética no âmbito espacial também remete à noção de duas categorias
de lugares: aqueles marcados pela atração populacional, nos quais o
desenvolvimento das forças produtivas gera demanda por trabalhadores; e aqueles
marcados pela repulsão populacional, onde o baixo desenvolvimento das forças
produtivas pressiona o mercado de trabalho, estimulando a realocação da mão de
obra. Neste contexto, a decisão individual se circunscreve à possibilidade de
optar por qual será o lugar, entre os centros de atração, no qual se realizará
a venda da força de trabalho (SINGER, 1980; GAUDEMAR, 1977).
As abordagens neoclássica e histórico-estruturalista divergem quanto à escala
do fenômeno: enquanto a primeira focaliza suas interpretações nos indivíduos ou
famílias, a segunda trabalha com os determinantes da estrutura social sobre os
movimentos. Não obstante, o tratamento dado aos espaços da migração nas
formulações teóricas parece convergir para uma leitura dualista do papel
cumprido pela rede de lugares. Enquanto uma série de localidades é capaz de
atrair as pessoas em função do seu dinamismo econômico, resta a outros espaços
ceder população. Classificar os lugares como "de atração" ou "de repulsão" a
partir do saldo migratório é, assim, a forma mais básica de compreender os
determinantes espaciais do fenômeno. Contudo, a emergência de novos padrões
migratórios insere novas dificuldades aos estudos, tendo em conta que, com a
diversificação recente dos tipos de movimentos, também se multiplicam as formas
de participação dos lugares na rede migratória. Sem dúvida, a melhor
compreensão desse fenômeno representa um dos maiores desafios recentes para o
estudo das migrações internas brasileiras.
Considerando essas dificuldades no campo teórico, alguns autores já começam a
se valer de conceitos que expressam melhor tanto a condição de imigrante como
as características dos lugares que os recebem e enviam. A separação conceitual
entre mobilidade pendular e migração, cujos limites poderiam ser facilmente
demarcados em tempos de forte êxodo rural e ocupação de fronteira agrícola,
agora se dilui em ocorrências diversas de intensa movimentação de curta
duração, seguindo a fluidez espacial de atividades econômicas, como a
construção civil, a agricultura, o surgimento de tecnopolos, entre outros
(GOLGHER, 2006). Da mesma forma, torna-se insuficiente classificar os lugares
apenas como de atração ou repulsão, dada a forte circularidade observada na
rede migratória nacional, o que tem estimulado a menção de categorias como a
"rotatividade migratória" para compreensão da dinâmica de espaços que enviam e
recebem grande quantidade de migrantes simultaneamente (BAENINGER, 2008).
Assim, para compreender a migração interna brasileira, torna-se indispensável
considerar que este fenômeno constitui apenas mais um dos fluxos que compõem as
redes territoriais em mutação no território brasileiro. Desta maneira, as
categorizações precisam ir além das simples divisões entre espaços de atração e
repulsão, buscando captar a maior diversidade das formas de inserção das
localidades nas redes migratórias. Considerando a importância destas questões,
a proposta metodológica apresentada a seguir consiste em um esforço
introdutório para o reconhecimento mais preciso dos lugares da migração no
Brasil.
Metodologia
A proposta aqui apresentada de classificação dos municípios brasileiros quanto
à tendência migratória apoia-se em dois pressupostos básicos:
os municípios são considerados a melhor aproximação do conceito de
"lugar", que é entendido aqui como o recorte espacial que delimita os
espaços de vida, nos quais se desenvolvem as atividades que compõem a
prática da cidadania e onde primeiro podem ser percebidos os efeitos
positivos e negativos da migração. Os lugares, assim, constituem os
vértices das redes de fluxos migratórios;
os fluxos migratórios, por sua vez, sintetizam parte significativa
das conexões estabelecidas entre os lugares, já que, geralmente, a
decisão de para onde migrar apoia-se na preexistência de laços
econômicos, culturais, afetivos, solidários, etc., entre os lugares.
Neste sentido, o reconhecimento dos novos padrões migratórios sob a
ótica da participação dos lugares pode revelar aspectos mais amplos
do que aqueles relacionados à temática da migração interna.
Assim, os 5.507 municípios brasileiros existentes em 2000 constituíram a
unidade básica de análise deste estudo. Contudo, tendo em conta que a abordagem
aqui proposta trata de todo o espaço nacional, preferiu-se considerar que as
Regiões Metropolitanas (RMs) representam apenas uma localidade, dado que os
migrantes residentes em qualquer município das RMs provavelmente participam dos
mercados de trabalho e consumo de toda a região. Assim, para efeito das
análises, foram agregados os municípios de nove Regiões Metropolitanas: Belém,
Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo,
Curitiba e Porto Alegre. Desta maneira, na proposta de classificação,
trabalhou-se com 5.311 localidades2 em todo o país.
As informações sobre fluxos migratórios entre as localidades foram coletadas a
partir dos microdados da amostra do Censo Demográfico de 2000, realizado pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com as
definições da pesquisa (IBGE, 2002), são considerados migrantes todos os
indivíduos que realizaram mudança permanente de residência entre municípios no
período de 1995 a 2000. A variável que permite controlar a procedência dos
migrantes no Censo de 2000 possibilita captar os migrantes de data-fixa, que
reúnem os indivíduos que declararam o local de residência anterior no dia 31/
07/1995.3
Quanto às técnicas utilizadas para criação da tipologia migratória em 2000,
foram realizados dois procedimentos. No primeiro momento empregou-se uma
análise fatorial por meio do método de componentes principais. Os componentes
principais estimados foram, então, utilizados no segundo procedimento para uma
análise de cluster, que deu origem à classificação aqui proposta. Selecionou-se
um conjunto de informações que sintetizassem os aspectos mais importantes da
inserção das localidades na rede migratória, quais sejam:
saldo migratório - estimado pela diferença entre imigrantes e
emigrantes em cada localidade. Este indicador permite uma fácil
interpretação do padrão migratório, já que polariza os lugares entre
atrativos (saldo positivo) e repulsivos (saldo negativo);
percentual de imigrantes - calculado a partir da razão entre o
total de migrantes que declararam residir na localidade na data de
referência do Censo e a população total da localidade. Esse indicador
mostra a força da atratividade exercida pela localidade relativamente
ao tamanho demográfico da mesma;
percentual de emigrantes - obtido a partir da razão entre o total
de migrantes que declararam residir na localidade em 31/07/1995 e a
população total das localidades em 2000. A interpretação deste
indicador tem sentido inverso do anterior, representando a força
relativa da repulsão;
população total - total de pessoas residentes na localidade na data
de referência do Censo. Essa informação é importante para a
classificação, tendo em vista que a população brasileira se distribui
de forma assimétrica pelo território, fato que interfere na escolha
dos migrantes e, consequentemente, nas rotas dos fluxos;
índice de eficácia migratória - resulta da razão entre o saldo
migratório e o total de imigrantes e emigrantes (I-E/I+E). Este
indicador, assim como o saldo migratório, fornece uma noção da
capacidade de absorver ou repelir população em relação ao total de
pessoas cujos movimentos envolveram a localidade;
grau de centralidade médio - essa medida apresenta a média entre
dois valores: a quantidade de municípios para os quais a localidade
enviou migrantes e a quantidade de municípios dos quais a localidade
recebeu migrantes. Esse indicador traz informações sobre a
centralidade das localidades na rede migratória, considerando que a
centralidade é tão maior quanto maior for a quantidade de vínculos
que a localidade estabelece.
Análise multivariada
Análise de componentes principais
O propósito da análise fatorial é descobrir um padrão resumo das relações entre
um conjunto de variáveis. Em particular, procura-se descobrir se as variáveis
observadas podem ser em grande parte, ou inteiramente, explicadas em termos de
um número menor de variáveis ou fatores (MINGOTI, 2007). Assim, o objetivo da
análise fatorial é a parcimônia, procurando definir o relacionamento entre as
variáveis de modo simples e usando um número de fatores menor que a quantidade
original de variáveis. Uma variante da análise fatorial, aqui utilizada, é a
análise de componentes principais (ACP).
O conceito inicial de ACP é intimamente ligado à representação ou criação de
medidas-resumo, dado um conjunto de informações iniciais. Em termos práticos, a
intenção é reduzir um grande número de variáveis p por meio de um pequeno
número de funções lineares m, que melhor resume o grande grupo inicial de
covariáveis. Isto ocorre pela construção de combinações lineares das variáveis
originais (MINGOTI, 2007). Segundo Darlington (2010), existem inúmeras soluções
matemáticas para esse problema. No entanto, o estabelecimento de três condições
fornece uma única solução matemática para qualquer banco de dados, quais sejam:
as funções lineares derivadas não devem ser correlacionadas; os grupos de
funções lineares m devem incluir funções para agrupamentos menores; e os pesos
quadrados que definem cada função linear devem somar em 1. Cumpridas estas três
condições, os componentes principais estimados, representados em m funções
lineares, declinam em importância com o aumento da variância (Tabela_1).
![](/img/revistas/rbepop/v30n1/a04tab01.jpg)
Para esse estudo, a importância da utilização das técnicas de análise fatorial
(neste caso, componentes principais) deve-se ao fato de que muitos dos vetores
de informação das análises são redundantes, característica que causaria
problemas na posterior análise de cluster. Portanto, a APC permite transformar
um conjunto de variáveis originais e intercorrelacionadas num novo conjunto de
variáveis ortogonais não correlacionadas entre si, ou componentes principais
(RODRIGUES; BRANCO, 2006). Deste modo, optou-se por reduzir o conjunto de
informações das seis variáveis originais em medidas-resumo. Os resultados da
análise de componentes principais são descritos por uma matriz de componentes
rotacionados (Tabela_2).
[/img/revistas/rbepop/v30n1/a04tab02.jpg]
Foi empregado o método de rotação Varimax que minimiza as variáveis em cada
componente. O objetivo da rotação consiste em delinear os fatores por meio do
recurso de transformação ortogonal das variáveis originais,4 de tal modo que
eles correspondam a agrupamentos de variáveis inter-relacionadas, ou seja, os
fatores são rodados até que correspondam a uma estrutura mais simples do
construto investigado (MINGOTI, 2007). A quantidade de componentes foi definida
a partir dos autovalores, segundo a regra empírica de Henry Kaiser. Ele sugere
que o número de componentes, para a reconstrução das informações dos itens
iniciais, deve possuir um autovalor maior que 1 (MINGOTI, 2007; DARLINGTON,
2010).
De acordo com os autovalores, considerando-se os valores acima de 1, tem-se que
as seis variáveis iniciais foram reduzidas para três componentes ortogonais e
independentes entre si. Os três componentes combinados explicam algo em torno
de 82% da variabilidade do conjunto original. Isto quer dizer que mais de 4/
5 da informação inicial pôde ser comprimida em três componentes ortogonais e
independentes. Tais componentes agora não mais possuem informações relativas ou
absolutas contidas nos itens iniciais. Na verdade, por meio da análise
multivariada de componentes principais, as covariáveis são transformadas em
componentes padronizados com valores numéricos, ou escores, que vão de -∞ a +∞,
média centrada em zero e desvio-padrão igual a 1 (MINGOTI, 2007). O próximo
passo é discernir cada um dos itens do construto investigado, de acordo com a
matriz de correlações. A partir da análise das correlações entre os três
componentes estimados e as variáveis originais da Tabela_2, podem-se descrever
os fatores da seguinte forma:
o primeiro componente principal é definido por localidades muito
populosas (0,948) com alto grau de centralidade (0,923), tendo o
saldo migratório como uma variável de pequena importância na sua
definição (-0,269). Por possuir muitos vínculos com outras
localidades, tanto no envio como na recepção de migrantes, definiu-se
que este componente sintetiza a emergência dos novos padrões, dado
que não polariza as localidades entre atração ou repulsão. Assim,
tendo em conta que tais localidades realizam múltiplas conexões tanto
na entrada como na saída de migrantes, optou-se por denominar este
componente como rotativo;
o segundo componente principal possui alta associação com
indicadores sintomáticos do poder atrativo: percentual de imigrantes
(0,935), índice de eficácia migratória (0,713) e saldo migratório
(0,523), ambos positivamente correlacionados. Isto significa que um
alto escore nesta componente principal é condizente com áreas
compostas por um grande percentual de imigrantes em sua população.
Portanto, considerou-se este componente indicador da dimensão
migratória da atração;
o terceiro componente principal indica uma dimensão do construto
oposta ao segundo, possuindo alta correlação com elementos que
descrevem áreas de repulsão: alta correlação com o percentual de
emigrantes (0,986) e correlações negativas com o índice de eficácia
migratória (-0,617) e saldo migratório (-0,198). Em outras palavras,
quanto maior for o valor da proporção de emigrantes na população da
área considerada, maior será o valor numérico deste componente. Do
mesmo modo que, quanto menor for o saldo migratório e eficácia
migratória da localidade, maior será o escore deste fator.
Uma vez descrito cada componente, o próximo passo foi efetuar uma análise de
cluster com base nos três componentes padronizados.
Análise de cluster
Para a análise de cluster foi aplicado um algoritmo de partição, comumente
utilizado para análises classificatórias de grandes bancos de dados, denominado
two-step cluster.5 Este algoritmo é uma extensão dos modelos de agrupamento
baseado em distâncias usadas por Banfield e Raftery (1993), com aplicações para
atributos categóricos e contínuos ao mesmo tempo.
Tal algoritmo utiliza um princípio similar ao Birch (ZHANG et al., 1996), o
qual afirma que um grande banco de dados pode ser efetivamente agrupado caso
este possa ser reduzido em bancos menores. Uma grande vantagem do two-step é a
possibilidade automática de encontrar o valor ótimo de agrupamentos, caso este
seja desconhecido. Isto se dá por meio das informações estatísticas providas
pelo critério de informação bayesiano (BIC ou CIB) proposto por Fraley e
Raftery (1998), como descrito na Tabela_3.
[/img/revistas/rbepop/v30n1/a04tab03.jpg]
O algoritmo estima, primeiramente, o BIC para cada número de clusters dentro de
um alcance específico, e usa isto como estimador inicial para definir a
quantidade ótima de agrupamentos (SPSS, 2001). Numa segunda etapa ele refina o
primeiro estimador encontrando a maior mudança em distâncias entre dois
agrupamentos próximos (SPSS, 2001). A distância entre dois clusters é definida,
então, pela redução em log-verossimilhança (estimado por meio de uma
distribuição normal para dados contínuos e multinomial para dados categóricos),
após combiná-los num único agrupamento. Mais adiante, o two-stepassume que
tanto as variáveis dentro dos clusters como cada agrupamento são independentes
entre si (SPSS, 2001). Tal condição foi garantida pela análise prévia de
componentes principais.
O critério de informação bayesiano é computado para cada potencial número de
clusters. Os menores valores de BIC indicam uma melhor solução numérica de
agrupamentos. Contudo, há casos em que o BIC se reduz ao passo que a quantidade
de agrupamentos aumenta, porém, sem melhorias na solução do número de clusters
(medida pelas variações em BIC) que se tornam cada vez mais complexas. Nestes
casos, uma alternativa é observar as variações em BIC e nas medidas de
distância. Uma boa solução apresentará uma razão razoavelmente grande de
variação em BIC e uma grande razão de medidas de distância. Assim, os
resultados apontam para uma melhor solução de cinco agrupamentos, com valores,
respectivamente, de 0,25 e 2,03 para as razões de variação em BIC e razões de
medidas de distância (SPSS, 2001).
Resultados das análises
Os resultados da análise de cluster são apresentados na Tabela_4, contendo as
médias ou centroides6 dos clusters. A variação de tonalidade nas colunas indica
a hierarquia de valores em cada uma, permitindo verificar as principais
características de cada cluster. Os tons mais escuros significam valores mais
altos, assim como tons claros expressam valores mais baixos. Com base nos
valores dos centroides de cada agrupamento, procurou-se identificar quais
padrões migratórios definem melhor os grupos de localidades.
[/img/revistas/rbepop/v30n1/a04tab04.jpg]
O primeiro cluster apresenta a média mais elevada no componente de atração
(1,853), assim como o segundo maior valor no componente de rotatividade
(0,402), enquanto no componente de repulsão esse cluster tem o quarto maior
valor (-0,211). Desta maneira, pode-se inferir que esse conjunto de localidades
agrega-se em torno do seu maior potencial atrativo, participando ativamente da
rede migratória nacional no recebimento de migrantes. Em função desta
característica, denominou-se esse grupo como localidades de atração. No caso do
segundo agrupamento, percebe-se uma tendência oposta ao anterior. Esse é o
cluster que apresenta o maior valor médio do componente de repulsão (1,290),
além do terceiro maior valor nos componentes de atração e rotatividade (0,123 e
-0,014, respectivamente). Assim, tem-se um grupo de localidades que também
participam ativamente da rede migratória, contudo com tendência predominante a
expulsar a população. Em função disto, denominou-se esse grupo delocalidades de
repulsão.
É interessante notar que a aplicação da metodologia resultou no reconhecimento
destes dois grupos, que concentram 1.791 das 5.311 localidades (cerca de
33,72%), nos quais o papel da migração parece ser importante para a composição
demográfica dos municípios, e nos quais seria aplicável a ideia corrente de
dicotomizar os lugares em atrativos e repulsivos. Contudo, há aproximadamente
66% das localidades brasileiras que não se enquadraram exatamente neste padrão
e para as quais as interpretações necessitarão de maior esforço de junção entre
os apontamentos teóricos e as observações empíricas.
Para proceder à interpretação dos três clusters restantes, é importante
focalizar os mesmos de forma comparativa. Os clusters 3 e 5 dividem quase
igualmente 3.493 localidades (65,7% do total), enquanto o cluster 4 apresenta
apenas 27 lugares. Essa subdivisão é curiosa e sugere que nos grupos 3 e 5
serão observados padrões já recorrentes, devido à amplitude de alcance das
características observadas. Já no grupo 4 é possível que se observe algum
padrão bem específico das poucas localidades que o mesmo agrega. De fato, uma
leitura da distribuição dos valores centrais de cada cluster da Tabela_4 mostra
que os agrupamentos 3 e 5, assim como os clusters 1 e 2, apresentam tendências
opostas entre si. O grupo 3 tem o 4º maior valor no componente de atração e
rotatividade (0,102 e -0,077, respectivamente), assim como a menor média no
componente da repulsão (-0,798). O cluster 5, por sua vez, registra o 3º maior
valor no componente de repulsão (-0,018) e o menor valor nos componentes de
atração e rotatividade (-0,853 e -0,163).
O fato de estes dois clusters concentrarem os menores valores médios nas
distribuições indica que a migração provavelmente cumpre papel menos importante
nestes lugares, se comparados aos grupos da atração e repulsão. Tendo em conta
a extensão do território nacional e as transformações no conjunto de
oportunidades abertas pela migração, é razoável pensar que, assim como os
municípios brasileiros, em sua maioria, são pequenos e mal conectados na rede
urbana nacional em função das distâncias e da carência em infraestrutura, os
mesmos também se conectam de forma deficiente nas redes migratórias. Neste
caso, propõe-se a identificação de uma nova categoria na descrição da
articulação dos lugares na rede migratória: as localidades de baixa migração.
Esse conjunto de lugares provavelmente concentra os municípios de porte pequeno
nos quais a migração tem papel menor na composição demográfica. A falta de
conexões provavelmente associa-se ao baixo dinamismo econômico, contudo, as
análises aqui realizadas não permitem muitas conclusões neste sentido.
Como o cluster 3 apresenta maiores valores no componente da atração, definiu-se
denominá-lo como localidades de baixa migração com tendência a atração (BM-
atração). No caso do cluster 5, por apresentar maiores valores na repulsão, foi
denominado de localidades de baixa migração com tendência a repulsão (BM-
repulsão). Estas leves tendências de atração e repulsão podem revelar ainda que
tais localidades guardam a inércia de processos que, no passado, tiveram
importância na rede migratória nacional, mas que vêm sendo suprimidos com a
emergência dos novos padrões.
Finalmente, a análise da distribuição dos valores médios para o cluster 4
mostra a emergência de um padrão bem diferenciado dos anteriores. As 27
localidades integrantes deste grupo mostraram uma média muito alta no
componente da rotatividade (7,829) se comparadas às médias dos outros clusters,
que ficaram todas abaixo de 1. O cluster ainda apresentou o segundo maior valor
no componente de atração (1,304) e no de repulsão (0,049). Dessa forma, pode-se
considerar que este grupo é composto de localidades de grande porte
populacional, nos quais a migração decisivamente tem importância para a
dinâmica demográfica. Contudo, não é possível afirmar que tais localidades
tendem a atrair ou a repelir os migrantes; na verdade, parece que os dois
fenômenos acontecem simultaneamente e com a mesma intensidade. Tal padrão
migratório certamente configura um desafio no campo teórico, pois caracteriza
ambientes de forte circularidade para os migrantes. Assim, esse cluster foi
denominado de localidades de rotatividade.
Com a finalidade de descrever melhor as características de cada cluster, o
Gráfico_1 apresenta a dispersão das seis variáveis originais, utilizadas para
estimar os componentes principais, segundo os clusters. Na comparação com o
saldo migratório, é possível notar maior variabilidade apenas entre as
localidades rotativas, fato esperado, já que a rotatividade caracteriza-se pelo
alto número de entradas e saídas.
[/img/revistas/rbepop/v30n1/a04gra01.jpg]
O conjunto de lugares com tendências de atração e repulsão seguiram o padrão
esperado, com exceção de algumas localidades consideradas atrativas, que
apresentaram saldo migratório negativo no período. Como o método converge os
padrões com base na interação entre as seis variáveis, pode-se considerar que
esses lugares reúnem as características necessárias para se tornarem centros de
atração populacional, mas não são capazes de fazê-lo por alguma razão. A
análise mais acurada destes espaços certamente configura uma instigante questão
de pesquisa.
Nas outras comparações merece destaque o fato de que as localidades com
tendências rotativas apresentam maior variabilidade em torno da população total
e do grau de centralidade. De fato, esses espaços mostram ser diferenciados do
restante das localidades quanto ao porte demográfico e à capacidade de
estabelecer conexões. Tendo em conta a eficácia migratória, essas localidades
confirmam o padrão de circularidade, concentrando-se em torno do valor zero. Em
todos os casos, as localidades de baixa migração dispuseram de uma dispersão
menor ou igual que aquelas classificadas como de atração ou repulsão. Tal fato
confirma que esses grupos de lugares estão identificando conjuntos distintos de
padrões migratórios, em função das diferenças de intensidade com que as
variáveis se distribuem em cada cluster.
Além desta verificação descritiva, é possível confirmar a coerência da análise
de cluster a partir da espacialização dos grupos. A Figura_1 apresenta dois
mapas temáticos, confrontando uma visão do território nacional na qual os
municípios se subdividem entre atração e repulsão, ou seja, saldo migratório
positivo e negativo, e a divisão aqui proposta de cinco tendências migratórias.
Um primeiro importante fator a se considerar na análise dos mapas é que existe
um óbvio diálogo entre as representações. Tomando a distribuição das
localidades no Centro-Oeste e sul da Região Norte, os mapas são praticamente
idênticos. Ademais, ao se tomar a baixa migração com suas tendências e transpor
isso para o primeiro mapa, é possível notar que a análise de cluster apenas
qualificou dois níveis distintos de atração e repulsão, tendo em conta a
importância da migração para as localidades.
[/img/revistas/rbepop/v30n1/a04fig01.jpg]
Essa mera separação entre níveis de atração ou repulsão, contudo, ganha forte
significado ao ser georreferenciada. O mapa mostra claramente que a porção
oeste do Brasil define os contornos dos novos padrões de atração e repulsão
populacional, padrões estes que se diferenciam dos fenômenos observáveis nas
Regiões Sudeste e Nordeste, por exemplo.
Quanto à rotatividade migratória, já é possível perceber que ela não se
concentra em nenhum espaço, sendo observada nas nove regiões metropolitanas e
em outros municípios de maior porte que parecem exercer papel central na
redistribuição populacional nos contextos regional e nacional. A Figura_2
apresenta os mesmos cinco clusters representados em cinco mapas de pontos,
georreferenciados na coordenada geográfica da sede dos municípios e dos centros
das regiões metropolitanas. Essa forma de representação permite uma
visualização melhor de cada padrão pelo território.
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Ao se contrastarem as localidades de atração com as de BM-atração e as de
repulsão com as de BM-repulsão, nota-se claramente uma separação espacial do
fenômeno. Como já explicitado anteriormente, as Regiões Centro-Oeste e Norte
concentram as localidades caracterizadas pela ação das forças atrativas e
repulsivas. Ao longo das conexões dadas pelos eixos rodoviários, especialmente
o eixo Brasília-Belém, há tanto localidades de atração como de repulsão, o que
indica forte redistribuição das populações no contexto regional. No caso da
baixa migração, nota-se maior concentração de localidades no Nordeste, Sudeste
e Sul. Mesmo que haja espaços onde, a exemplo das outras duas categorias, se
justaponham a atração e a repulsão, podem-se notar espaços de ação de uma única
tendência.
A BM-repulsão se estende por toda a Região Nordeste, conectando-se ao Sudeste
especialmente por toda porção leste do Estado de Minas Gerais e Espírito Santo,
além do norte do Rio Grande do Sul. A BM-atração concentra-se na faixa
litorânea da Região Nordeste e, em contraposição à sua categoria oposta, se
estende por todo o Estado de São Paulo, Rio de Janeiro e sul de Minas Gerais,
além da faixa litorânea da Região Sul.
Quanto à rotatividade, considerando-se que esta categoria concentra as nove
regiões metropolitanas e outros municípios de grande porte,7 destaca-se o papel
da centralidade destes espaços. É possível que os lugares caracterizados pela
rotatividade dos migrantes sejam importantes centros da redistribuição
populacional nas suas regiões e que já foram centros de atração no passado.
Contudo, as novas características das áreas urbanas, com mercados de trabalho
altamente seletivos, provavelmente vêm criando e eliminando oportunidades de
forma simultânea. Estudar as características dos imigrantes e emigrantes destas
localidades certamente pode lançar mais luz sobre os contornos deste processo.
Considerações finais
O estudo das migrações internas brasileiras tem lançado uma série de desafios
aos especialistas do tema em função das profundas transformações no cenário
econômico, social e demográfico do país nas últimas décadas do século XX. A
mobilidade populacional, sem dúvida, é um dos fenômenos mais sensíveis a estas
mudanças, tendo em conta que os fluxos migratórios seguem, em boa medida, as
direções determinadas pela abertura de novas oportunidades de incrementar as
condições de sobrevivência.
A proposta metodológica aqui presente buscou contribuir para a discussão sobre
a existência de novos padrões na migração interna brasileira, utilizando
recursos da estatística multivariada. Focalizando os estudos nas formas de
participação dos lugares na rede migratória nacional, a análise de cluster
permitiu visualizar categorias de lugares que sugerem compreensões que vão além
da simples divisão dos espaços entre atrativos e repulsivos.
O estudo da rede migratória nacional mostrou que há diferentes níveis de
articulação dos lugares no sistema de localidades articulado pelos fluxos
migratórios. Isso se expressa na existência de espaços caracteristicamente
atrativos e repulsivos, relacionando-se com outros municípios nos quais a
migração tem pequena participação na estrutura demográfica das populações. A
identificação de lugares mais ou menos articulados com a rede migratória apenas
confirma o fato de que os novos padrões da migração caracterizam-se pela
sobreposição de novas condições (aumento da circularidade, pulverização da
migração no território, etc.) e novos lugares (as grandes cidades, no caso da
rotatividade, e as áreas urbanas de porte médio no Centro-sul e Norte, no caso
da atração migratória) disponíveis para os movimentos, bem como de padrões
antigos que ainda se sustentam como efeito da inércia provocada pela
estabilidade dos laços sociais entre os migrantes.
Além disso, destacam-se os grandes aglomerados urbanos, cuja característica
principal é a rotatividade migratória e cuja participação no conjunto das
trocas populacionais merece investigações mais acuradas, já que lançam
perguntas ainda sem resposta: será a rotatividade migratória a característica
das migrações no Brasil pós-moderno? Os grandes aglomerados populacionais
tenderão a ser todos rotativos? Como se diferenciam os migrantes envolvidos com
os lugares rotativos diante daqueles que migram para as outras categorias de
lugares? Na ausência destas respostas, resta apenas continuar indagando o
fenômeno através dos desafios teóricos e empíricos revelados por estudos desta
natureza.