A teoria dos arquivos e a gestão de documentos
Introdução
A atividade denominada records management, originalmente cunhada em inglês e
posteriormente traduzida como gestão de documentos, não surgiu da prática ou
teoria dos arquivos, mas por uma necessidade da administração pública. Jardim
(1987) esclarece:
[..] as instituições arquivísticas públicas caracterizavam-se pela
sua função de órgão estritamente de apoio à pesquisa, comprometidos
com a conservação e acesso aos documentos considerados de valor
histórico. A tal concepção opunha-se, de forma dicotômica, a de
'documento administrativo', cujos problemas eram considerados da
alçada exclusiva dos órgãos da administração pública que os produziam
e utilizavam1 (p.36).
A partir da segunda metade do século passado, há uma reorientação da profissão
dos arquivistas diante do volume documental produzido: entra em pauta, mais
especificamente na América do Norte, de onde repercute para os demais países
ocidentais, a eliminação de documentos antes de serem recolhidos para guarda
permanente. É formulado o conceito de ciclo de vida2 dos documentos de arquivo.
Em 1956, o norte-americano Schellenberg publica o seu Arquivos modernos
princípios e técnicas no qual dedica toda a Parte II à Administração de
arquivos correntes onde se encontram os capítulos: Controle da produção de
documentos, Princípios de classificação, Sistemas de registro, Sistema
americano de arquivamentoeDestinação dos documentos. Com esta publicação abre-
se a discussão sobre os arquivos correntes e a sua gestão. Isso não significa
que, na prática, os arquivos correntes tenham passado a ser tratados com base
nos preceitos da arquivologia. As instituições arquivísticas continuaram a
tratar apenas os documentos do arquivo permanente e com o objetivo primeiro de
atender à pesquisa acadêmica. Essa tradição promoveria o distanciamento da
prática da gestão de documentos arquivísticos da teoria dos arquivos.
No Brasil, em 1991, a promulgação da Lei 8.159, que dispõe sobre a política
nacional de arquivos públicos e privados e estabelece as suas competências, vem
reforçar a necessidade de um maior envolvimento do arquivista com as questões
relacionadas à gestão dos arquivos correntes, pois ela estabelece que a gestão
dos documentos públicos correntes é de competência das instituições
arquivísticas.
Nessa perspectiva, pretende-se, aqui, identificar quais são os preceitos da
arquivologia e o seu significado nos processos de gestão de documentos
arquivísticos e as principais dificuldades para o acesso à informação
arquivística.
A arquivologia não é um corpo teórico consolidado. Existem abordagens distintas
tanto de um país para outro quanto de uma linha de pensamento para outra. Como
as dimensões desse artigo não permitem um aprofundamento da discussão sobre
essas tensões, tentar-se-á expor os principais conceitos privilegiando a
abordagem jenkinsoniana de Luciana Duranti.
O resgate de Jenkinson por Duranti vem opor-se à perspectiva schellenbergiana
de que os documentos correntes são distintos dos documentos de guarda
permanente (TSCHAN, 2002), o que leva Schellenberg a propor que o valor
secundário dos documentos, valor para a pesquisa acadêmica, deverá ser a
referência nos processos de eliminação de documentos, por parte dos
arquivistas, com vistas ao recolhimento para a guarda permanente.
Jenkinson considera o arquivo de guarda permanente uma continuidade do arquivo
corrente, condenando a eliminação de documentos por parte do arquivista, pois
esta atividade, segundo este autor, deve ficar a cargo exclusivamente do
próprio produtor dos documentos. Jenkinson se orienta pelo valor administrativo
e entende que os documentos nunca perdem o valor de informação e prova para o
seu criador. O valor secundário dos documentos é acidental, como o próprio
Schellenberg enxerga, e portanto ele não deve ser referência para eliminações.
Essa percepção conduz Jenkinson à formulação das qualidades dos archives de
Imparcialidade e Autenticidade.
Diferentemente de Jenkinson e Duranti, busca-se, aqui, considerar todo e
qualquer arquivo, incluindo o produzido por pessoa ou família, e não apenas os
administrativos e institucionais. Privilegiar a abordagem de Duranti significa,
acima de tudo, compreender o arquivo como evidência dos atos do seu criador,
sendo os documentos a prova desses atos, sejam eles de uma entidade coletiva,
pública ou privada, sejam de uma pessoa.
Além disso, adota-se a perspectiva de Terry Cook, chamada de pós-custodial, que
considera o arquivo além da sua materialidade, identificando a proveniência dos
documentos mais nas ações que os geraram do que no local onde eles foram
produzidos ou de onde foram recolhidos, conforme se pretende que ficará
explícito ao longo da exposição que se segue.
Cabe ressaltar que, sob o ponto de vista conceitual, os documentos
arquivísticos eletrônicos têm as mesmas características dos documentos
tradicionais.
O que é arquivo
Ao longo da história, a conceituação de arquivo mudou em conformidade com as
mudanças políticas e culturais que as sociedades ocidentais viveram; os
arquivos são um reflexo da sociedade que o produz e o modo de interpretá-lo
também acompanha as mudanças que ocorrem. Fatores tais como a finalidade dos
arquivos ou os suportes utilizados já foram considerados como definidores do
arquivo e, hoje, não o são mais. Menne-Haritz (1994), por exemplo, aponta o
surgimento dos documentos eletrônicos como o evento que permitiu ao arquivista
entender que o que o motiva a avaliar os documentos3 não são problemas de
espaço ou custo para o armazenamento, mas, segundo a autora, é a redundância de
informações (p. 530).
Assim, não há uma conceituação de arquivo que seja definitiva. Alguns autores,
como Rousseau e Couture (1994, p. 284), têm definido arquivo como um conjunto
de informações, e não como um conjunto de documentos. Mesmo que não haja
dúvidas de que arquivo é um conjunto de informações, entende-se que o termo
informação não é esclarecedor quando se deseja conceituar arquivo. Entende-se
que a informação arquivística não prescinde do seu suporte, mesmo que ele não
seja passível de leitura a olho nu. Dentre outras justificativas para isso,
tem-se que a Autenticidade da informação arquivística depende de um conjunto de
referências dentre as quais estaria o suporte que contém a informação.
Elege-se aqui a seguinte definição:
arquivo é um conjunto de documentos produzidos e recebidos no decurso das ações
necessárias para o cumprimento da missão predefinida de uma determinada
entidade coletiva, pessoa ou família.
Esquematicamente tem-se:
O que é ação, no processo de realização da missão, passa a ser o sujeito no
processo de criação do arquivo.
O arquivo é, então, o resultado de dois processos integrados. O processo de
produção e recepção de documentos resulta do processo de realização da missão4.
Na perspectiva jenkisoniana, essa concepção do que é arquivo, ancorada na
origem dos documentos, torna-se referência para o tratamento do arquivo em suas
três fases.
Os princípios arquivísticos
A história da teoria dos arquivos começa em 1841, meio século após a criação
dos Archives Nationales de Paris (Schellenberg, 1973, p. 4), com a publicação
de algumas instruções aos arquivistas, onde aparece pela primeira vez o respect
des fonds. Em Silva et al. (2002) encontra-se a transcrição de um trecho das
instructions pour la mise em ordre et le classement des archives
départementales et communales5:
1º Rassembler les différents documents par fonds, c'est-à-dire former
collection de tous titres qui proviennent d'un corps, d'un
établissement, d'une famille ou d'un individu, et disposer d'aprés un
certain ordre les différents fonds;[...]6.
E depois:
A l'égard des fonds, il importe de bien comprendre que ce mode de
classement consiste à réunir tous les titres qui étaient la propriété
d'un même établissement, d'un même corps ou d'une famille, et que les
actes qui y ont seulement rapport ne doivent pas être confondus avec
le fonds de cet établissement, de ce corps, de cette famille7. (p.
107).
Até a edição dessas instructions, o arranjo dos fundos de arquivo nos Archives
Nationales era estruturado em seções baseadas nos seguintes temas: Seção
Legislativa, Seção Administrativa, Seção Histórica, Seção de Propriedade, Seção
Judicial (SCHELLENBERG, 1973, p. 208). Isso significava mesclar documentações
provenientes de órgãos diversos em um mesmo conjunto chamado seção. A
introdução da noção de respeito aos fundos se propunha a possibilitar a
recuperação das informações originadas de um mesmo produtor de documentos, ou
seja, se propunha contextualizar as informações no universo da sua criação.
Duchein (1982, p.15) utiliza-se da imagem de sítio arqueológico para fazer uma
comparação didaticamente interessante para a compreensão da importância do
respeito aos fundos. Ele se apóia na evolução sofrida pelo tratamento dos
sítios arqueológicos: até uma determinada época, um sítio encontrado era
desfeito e suas peças retiradas e levadas para os museus. Era a época dos
grandes sistemas de classificação científica. Hoje, procura-se manter o sítio
tal qual ele foi encontrado de maneira a ser possível identificar como e porque
aquelas peças estão ali. A visualização da noção de sítio arqueológico ajuda a
perceber que, ao se retirar peças documentais do seu lugar original, pode-se
destruir a informação do significado das peças no seu contexto e, portanto,
destruir a possibilidade de plena compreensão dos documentos.
Mas o respeito aos fundos, editado nas instruções francesas, não foi
devidamente entendido e cumprido naquele momento. Mais tarde, os alemães
definiram dois outros princípios que refletem o respect des fonds: o princípio
de proveniência, que costuma ser tratado como sinônimo do princípio de respeito
aos fundos, e o de manutenção da ordem original. Mais recentemente é definido
como o princípio de integridade ou indivisibilidade.
As bases teóricas para se trabalhar os arquivos têm como eixo os três
princípios mencionados cujas definições podem ser consideradas como se segue.
Segundo o Dicionário de Terminologia Arquivística da Associação dos Arquivistas
Brasileiros (1996), o princípio de proveniência é o "Princípio segundo o qual
os arquivos originários de uma instituição ou de uma pessoa devem manter sua
individualidade, não sendo misturados aos de origem diversa" (p. 61).
Este princípio é o primeiro que define um conjunto de documentos como arquivo.
Enquanto os demais conjuntos documentais são coleções de itens selecionados,
escolhidos previamente, o conjunto de documentos que forma o arquivo se faz num
processo natural de acumulação, a partir do fluxo da sua produção/recepção por
um único sujeito, seja uma entidade coletiva ou uma pessoa. Os documentos são
acumulados à medida que são produzidos em decorrência de atividades que são
necessárias para a realização da missão do seu produtor.
Quanto ao princípio de manutenção da ordem original
8
, Duranti (1994b) o considera como um princípio de proveniência sob o ponto de
vista interno do arquivo (p. 57). A ordem original seria aquela em que os
documentos de um mesmo produtor estão agrupados conforme o fluxo das ações que
os produziram ou receberam. Se o documento é a corporificação de ações que
ocorrem em um fluxo temporal, a ordem original, ou melhor, a ordem dos
documentos em correspondência com o fluxo das ações torna-se indispensável para
a compreensão dessas ações e, conseqüentemente, para a compreensão do
significado do documento.
Sousa (2003) discute o papel dos princípios de proveniência e de manutenção da
ordem original na classificação de arquivos de uso corrente:
Podemos [...] entender os princípios de respeito aos fundos e o da
ordem original como princípios de divisão ou de classificação
naturais, pois são atributos essenciais e permanentes ao conjunto
(arquivo) a ser dividido. [...] a origem [do] conjunto de documentos
é sua marca indelével, inseparável, é o que lhe dá inteligibilidade e
identidade. (p .251).
E mais adiante:
O outro princípio que fundamenta as ações de classificação de
informações arquivísticas é o princípio da ordem original. Para
Rousseau e Couture (1998, p .83), essa vinculação é representada,
inclusive, na denominação adotada para os princípios: primeiro grau
do princípio da proveniência e segundo grau do princípio da
proveniência. Este último visa o respeito ou a reconstituição da
ordem interna do fundo. (p. 257).
Sendo assim, o princípio de manutenção ou reconstituição da ordem original está
no princípio de proveniência de segundo grau, ou seja, a proveniência do item
documental, que é a ação que o gerou, oferecerá sua identidade.
O princípio de indivisibilidade ou integridade sempre esteve implícito ao
princípio de respeito aos fundos, mas é em uma das publicações recentes da
brasileira Heloisa L. Bellotto (2002) que encontramos sua definição moldada:
"os fundos de arquivo devem ser preservados sem dispersão, mutilação,
alienação, destruição não autorizada ou adição indevida ...". (p. 21).
Considerando-se o respeito à proveniência do conjunto documental e à ordem
original (proveniência de cada documento) como imprescindíveis para o
tratamento dos arquivos, fica evidente que a dispersão de documentos pode
comprometer a inteligibilidade do arquivo.
As características intrínsecas ao arquivo
Os princípios arquivísticos estabelecem três características intrínsecas ao
arquivo que podem ser assim designadas: a singularidade do produtor do arquivo,
a filiação dos documentos às ações que promovem a missão definida9 e a
dependência dos documentos dos seus pares.
A singularidade do produtor do arquivo dá-se em função do respeito à
proveniência. Tem-se que um conjunto de documentos que foram produzidos e
recebidos por sujeitos distintos não se constitui em um arquivo. A relação
entre o produtor - entidade, pessoa ou família - e o arquivo fornece a
identidade do conjunto de documentos e sua singularidade é indispensável.
A singularidade do produtor determina, também, a singularidade do próprio
arquivo. Mesmo que hajam duas entidades com a mesma missão e cujas funções
atividades tarefas sejam definidas da mesma forma, elas não gerarão arquivos
idênticos. O manual publicado pela Associação dos Arquivistas Holandeses
fornece um postulado que corrobora essa perspectiva: "Cada arquivo possui, por
assim dizer, personalidade própria, individualidade peculiar, com a qual é
mister se familiarizar o arquivista antes de proceder à sua ordenação" (1960,
p.13).
O Conselho Internacional de Arquivos, ao editar a norma para descrição de
arquivos - ISAD(G), indica procedimentos baseados nos princípios arquivísticos
sem determinar uma estrutura fixa de organização ou estabelecer códigos e
títulos. Cada arquivo merecerá sempre uma análise, planejamento e tratamento
próprios à sua conformação.
A filiação do documento à ação que o produziu ou recebeu dá-se em função do
respeito à manutenção da ordem original ou o respeito à proveniência interna.
Tem-se que um documento adquirido ou produzido recebido por motivos alheios às
funções atividades tarefas do sujeito que o acumula, não se define como
documento de arquivo. Essa filiação do documento à atividade que o gerou
fornece identidade a ele individualmente e em pequenos grupos. O documento
corporifica a ação e, portanto, o que o identifica é a ação que o gerou.
A dependência do documento dos demais criados em prol da mesma missão que o
gerou baseia-se no princípio de integridade ou indivisibilidade. Tem-se que a
realização da missão de uma entidade, pessoa ou família é um processo
constituído por diversas ações que geram documentos. Caso se mantivesse apenas
um ou outro documento e se eliminassem os demais, esse documento seria apenas
um documento que pertenceu ao arquivo daquele produtor, não se poderia
considerá-lo o arquivo do seu produtor.
Mas não seria a multiplicidade de documentos o fator determinante para que o
arquivo forneça o seu significado. Exemplificando, caso uma entidade iniciasse
a realização de uma missão e se interrompesse com a produção/recepção de apenas
um documento, este documento poderia ser dito que o arquivo da entidade
encerrou suas atividades. Assim, o que permite que um documento isolado seja
considerado um arquivo é o fato de não terem sido eliminadas informações
relacionadas a ele contidas em outros documentos, é o fato do arquivo não ter
sido mutilado, é o fato de o documento não ter sido separado dos demais
originados da realização de uma mesma missão.
Consideram-se essas três características como condição para se definir um
conjunto de documentos como arquivo e para definir um documento isoladamente
como sendo arquivístico.
As qualidades do arquivo e seus documentos
As chamadas qualidades do arquivo assumem o papel de orientadoras no tratamento
dos arquivos. São qualidades desejadas em um arquivo, mas não determinantes,
como o são as três características intrínsecas, para se definir um conjunto de
documentos como arquivo. Luciana Duranti (1994b) define cinco qualidades do
arquivo ou dos seus documentos. São elas: unicidade, cumulatividade,
organicidade, imparcialidade e autenticidade. Verifica-se a seguir, através
também de outros autores, como essas qualidades são definidas e sua
justificativa.
Unicidade - "não obstante forma, gênero, tipo ou suporte, os documentos de
arquivo conservam seu caráter único, em função do contexto em que foram
produzidos". (BELLOTTO, 2002, p. 21). Ou seja, documentos duplicados não são
necessariamente o mesmo.
A Unicidade refere-se à relação de cada documento com a ação que o gerou. Sua
especificidade seria o enfoque em documentos duplicados (cópias) encontrados
dentro de um mesmo arquivo, mas em subconjuntos documentais distintos porque
produzidos ou recebidos no exercício de ações distintas. Se a filiação dos
documentos às ações indica que é a ação que dá identidade ao documento, tem-se
que o conteúdo do documento não deve ser levado em consideração para a sua
identificação dentro de um conjunto documental, e sim o contexto da sua
produção.
Cumulatividade10 - Bellotto (2002) assim define a Cumulatividade que ela chama
de qualidade de Naturalidade na acumulação: "os documentos não são colecionados
e sim acumulados, naturalmente, no curso das ações, de maneira contínua e
progressiva". (p. 25).
Os itens documentais de um arquivo não são escolhidos previamente para serem
acumulados, eles se acumulam à medida que são produzidos. Mas uma boa
Cumulatividade, aquela que promove a perfeita organicidade do arquivo, se
realiza quando os documentos são organizados de acordo com o desenvolvimento
das ações; quando o fluxo de acumulação acompanha o fluxo das ações que criam
os documentos. Isso dificilmente se realiza perfeitamente sem que haja uma ação
orientada para esse fim. O que orientará essa ação será o chamado Plano de
Classificação que se constitui na principal atividade da gestão de documentos
de uso corrente.
Organicidade - Se um arquivo é formado por um conjunto de documentos que se
originam de ações articuladas em prol da missão de uma entidade, tem-se que ele
resulta em um todo orgânico cujas partes são inter-relacionadas de modo a
fornecer o sentido do conjunto.
A Organicidade do arquivo realiza-se através da acumulação dos documentos. Um
arquivo sempre tem alguma Organicidade, as próprias atividades acabam por impor
alguma ordem aos documentos gerados. Mas a acumulação com base em um Plano de
Classificação, de modo correspondente ao fluxo do desenvolvimento das ações, de
modo que as inter-relações existentes entre as funções atividades tarefas
reflitam-se nos documentos, essa acumulação faz com que o arquivo reflita, no
seu todo, a missão realizada.
Imparcialidade - Jenkinson foi quem a definiu. Sua perspectiva é dos arquivos
produzidos por entidades da administração pública ou privada O conceito de
Imparcialidade sugere que o documento nasce por uma imposição da natureza das
atividades de uma instituição, e não porque houve uma escolha de ter-se um
documento para essa ou aquela finalidade. A imparcialidade dos documentos
refere-se à capacidade dos documentos de refletirem fielmente as ações do seu
produtor. O autor enfatiza a verdade administrativa do documento e não a
verdade do seu conteúdo. O motivo da criação de um documento, independentemente
do seu conteúdo ser ou não, suponhamos, uma fraude, seria legítimo no que se
refere à sua relação com as atividades da entidade que o criou.
Conclui-se que a Imparcialidade dos documentos está intrinsecamente relacionada
à Organicidade do arquivo. A boa Oganicidade promove os seus subconjuntos de
documentos a espelhos fieis às atividades e promove, o arquivo como um todo, a
espelho da missão realizada pelo produtor do arquivo.
Autenticidade - Num primeiro momento, o termo Autenticidade leva a pensar que
ele refere-se à veracidade do conteúdo de um documento de arquivo como prova
perante a lei. Contudo, ao analisar melhor esse conceito, entende-se que se
trata, antes de tudo, de uma questão arquivística, pois nela está implícita a
manutenção da integridade do fundo de arquivo.
Jenkinson foi quem formulou a proposição da Autenticidade também na perspectiva
das administrações públicas e privadas e tendo em vista, como todo arquivista
do seu tempo, os arquivos de guarda permanente.
Desde que se entenda que a Imparcialidade diz respeito à verdade administrativa
dos documentos, ou seja, ao fato de os documentos constituírem-se num reflexo
fiel das atividades desenvolvidas, vê-se que a Autenticidade depende da
manutenção dessa Imparcialidade. Jenkinson identifica a possibilidade dessa
garantia no continuum da criação, manutenção e guarda pelo seu produtor.
Já em meados do século passado, Schellenberg afirma que não é possível manter a
custódia ininterrupta dos arquivos modernos. Contudo, importa entender que os
arquivos estão sujeitos a perder sua Organicidade, Imparcialidade e
Autenticidade se tratados e preservados de maneira pouco rigorosa.
Camargo (2003) assim aponta o perigo da perda das inter-relações dos
documentos:
Se os documentos de arquivo são desprovidos de autonomia, isto é,
retiram sua autenticidade das relações que mantêm com as demais
unidades que integram o conjunto, dentro do princípio de consignação
que o rege, qualquer intervenção no sentido de romper seu equilíbrio
originário acaba por 'implodir' o próprio arquivo.
A falta de autonomia do documento, a qual a autora se refere, diz respeito à
dependência do documento de arquivo dos demais que estão relacionados a ele e
da sua filiação às atividades que o gerou. Cada documento encontrará seu
significado dentro do conjunto ao qual pertence desde que mantida a
Organicidade do arquivo.
A gestão de documentos arquivísticos
Na perspectiva da arquivologia, gestão de documentos é "um conjunto de medidas
e rotinas visando à racionalização e eficiência na criação, tramitação,
classificação, uso primário e avaliação de arquivos" (DICIONÁRIO de
terminologia arquivística, 1996).
Sousa (2003, p. 240) entende a classificação como a medida crucial dentro da
gestão dos arquivos. A classificação do documentos determina e é determinada
pelas demais atividades que compõem a Gestão de Documentos. Convencionou-se,
entre os autores da arquivologia, que a classificação dos documentos de caráter
permanente denomina-se Arranjo. Quando se o utiliza o termo classificação, ele
se refere aos arquivos correntes.
Seguindo esta orientação, para melhor delimitar a discussão que se segue,
discutir-se-á a gestão de documentos arquivísticos com enfoque na sua
classificação. Segundo o Dicionário... (1996), classificação é a "Seqüência de
operações que, de acordo com as diferentes estruturas, funções e atividades da
entidade produtora, visam distribuir os documentos de um arquivo" (p.16).
Schellenberg, em 1956, definiu ostrêselementos da classificação dos documentos
públicos: "a) a ação a que os documentos se referem; b) a estrutura do órgão
que os produz; e c) o assunto dos documentos"(2004, p. 84).
O autor explica cada uma delas: "Uma ação pode ser tratada em termos de
funções, atividades e atos (transactions)"(p. 84). E "O segundo elemento a ser
observado na classificação de documentos é a organização da entidade criadora.
[...]A estrutura que se imprime a um órgão[...]" (p. 86).
Schellenberg trata separadamente da classificação por assunto pois ela refere-
se a documentos não arquivísticos identificáveis dentro de arquivos de órgãos
públicos. Considera-se que as recomendações do autor podem ser aplicadas também
aos arquivos de entidades privadas ou de uma pessoa:
Conquanto os documentos públicos, geralmente, devam ser agrupados
segundo a organização e função, far-se-á exceção a essa regra para
certos tipos de documentos, tais como os que não provêm da ação
governamental positiva ou não estão a ela vinculados. Incluem-se
nesses documentos as pastas de referência e informações. [...] só em
casos excepcionais os documentos públicos devem ser classificados em
relação aos assuntos que se originam da análise de determinado campo
de conhecimento. Esses casos excepcionais referem-se a materiais de
pesquisa, de referência e similares. (p. 92).
A interpretação de que o significado do documento se encontra no contexto da
sua criação é reforçado por A. C. Rodrigues (2005), ao discutir o tratamento de
documentos arquivísticos:
[...] Os arquivos conservam registros de ações e de fatos como prova
da gestão que os produziu, dos quais são produtos naturais. [...] o
arquivo se forma por um processo de acumulação natural, o que
significa dizer que tem o atributo especial de ser um conjunto
orgânico e estruturado, onde seu conteúdo e significado só podem ser
compreendidos na medida em que se possa ligar o documento ao seu
contexto mais amplo de produção, às origens funcionais (p. 5).
Sousa (2003) aponta muitos problemas nos arquivos correntes da administração
pública brasileira derivados da falta de uma metodologia bem delineada para a
classificação. Citam-se alguns trechos do seu trabalho, buscando identificar os
princípios arquivísticos que estão implícitos às observações do autor:
Os arquivos montados nos setores de trabalho são acervos
arquivísticos constituídos de documentos ativos, semi-ativos e
inativos, misturados a outros passíveis de eliminação e a documentos
não orgânicos, que não são considerados de arquivo e que são
produzidos ou recebidos fora do quadro das missões de uma organização
(p. 258).
A referência inicial à ausência de transferência e recolhimento de documentos é
relacionada ao conceito de ciclo de vida dos documentos que, na verdade, não
encontra respaldo nos princípios arquivísticos apesar de ser amplamente aceito
pelos autores de manuais de tratamento de arquivo. Em seguida, o autor faz
referência à presença de documentos não orgânicos misturados aos demais. Esta
situação contraria o próprio conceito de arquivo e o princípio de manutenção da
ordem original ou de procedência interna. Ou seja, o documento que não resultou
de atividades que compõem a missão do seu produtor não tem relação orgânica com
os demais e, portanto, não é um documento arquivístico. Ele não possui a
característica de filiação às ações.
E mais adiante:
A organização, quando existe, fundamenta-se no empirismo e na
improvisação. Os métodos oscilam entre a fragmentação dos dossiês de
assunto, o arquivamento por espécie documental11, por ato de
recebimento e expedição, pela numeração etc. [...]
Há casos em que esse trabalho é feito por bibliotecários. Eles criam
códigos de classificação baseados na lógica e na metodologia da sua
profissão. Em geral dispõem os documentos por assuntos ou pelo nome
pelos quais são conhecidos e aplicam a codificação decimal extraída
do método de Mevil Dewey. Uma das principais características desses
instrumentos é a fragmentação das unidades documentais. Dessa forma,
tratam os documentos individualmente, como se fossem livros ou
periódicos. (p. 259).
O autor identifica a implosão do arquivo, como diz Camargo citada nas linhas
anteriores. A Organicidade é perdida com a fragmentação das unidades
documentais. Identifica-se neste relato o desrespeito ao princípio de
integridade e também à qualidade de cumulatividade, pois a organização por
espécie documental ou por ato de recebimento e expedição, fatalmente, tira os
documentos da sua ordem natural. Perde-se a referência que explicita a inter-
relação dos documentos, descontextualiza-se o documento ignorando-se a sua
dependência dos demais para oferecer significado.
Sousa prossegue:
Nos últimos anos, com o avanço e a banalização da microinformática,
tem aumentado sensivelmente o número de documentos em suportes
informáticos. [...] Normalmente, eles não são considerados documentos
de arquivo, apesar de terem sido produzidos ou recebidos no quadro
das funções e das atividades dos órgãos. Permanecem, geralmente, nos
setores que os acumularam. Em alguns casos, recebem a denominação de
técnicos e são enviados a bibliotecas e a centros de documentação (p.
261-262).
Vê-se aqui também a não observância dos princípios de proveniência interna e de
integridade ou indivisibilidade. Mesmo que o armazenamento físico de alguns
documentos seja feito em local separado, por exemplo, por questões de
conservação, a dependência desses documentos dos demais que foram produzidos e
recebidos no curso das atividades em prol da missão deverá ficar explicitada em
um instrumento de pesquisa de modo a não se perder a organicidade do arquivo.
Quando se retiram documentos do conjunto ao qual eles pertencem, altera-se o
significado desses documentos e dos demais produzidos conjuntamente a eles.
E ainda:
[...] A disposição da documentação existente nos setores de trabalho
dos órgãos é invariavelmente abandonada nesses depósitos de massas
documentais acumuladas. [...] As soluções encontradas resumem-se, em
muitos casos, na microfilmagem sem critérios predefinidos. Transfere-
se para outros suportes a desorganização existente nos suportes
originais. Observa-se, hoje, a substituição desse processo pelo de
digitalização (p. 264).
Essa questão aponta para um equívoco freqüente: providenciar meios de preservar
a documentação supondo que o problema arquivístico seja assim resolvido.
Documentos cujas informações contidas e relacionadas a eles não estão
representadas em um instrumento de pesquisa podem ser considerados
inexistentes, pois não é possível examinar item por item.
Vê-se que muitos problemas podem ser evitados caso os princípios arquivísticos
sejam observados na organização dos arquivos. Apresenta-se como urgente definir
claramente uma metodologia consistente que possa organizar qualquer arquivo
corrente, independentemente das peculiaridades de cada um, seja ele público ou
privado.
Ao lado da demanda por uma metodologia mais consistente para a gestão de
documentos em entidades coletivas, os teóricos da arquivologia são solicitados
a repensar seus desenvolvimentos de modo a dar respostas às questões que surgem
com o advento da chamada era da informação.
Acredita-se que a partir da definição de arquivo pode-se chegar à definição de
informação arquivística: informação arquivística é aquela passível de ser
extraída de um conjunto de documentos desde que estes tenham sido produzidos ou
recebidos no decurso das ações necessárias para a realização da missão
predefinida de uma determinada entidade coletiva, pessoa ou família.
Sendo assim, identificam-se dois níveis de informação no arquivo que, conforme
Jardim e Fonseca (1998) afirmam, seriam:
a informação contida no documento de arquivo, isoladamente;
e a informação contida no arquivo em si, naquilo que o conjunto, em
sua forma, em sua estrutura, revela sobre a instituição ou sobre a
pessoa que o criou (p. 371).
Reconhecer dois níveis de informação arquivística significa que, para a
elaboração de um Plano de Classificação de documentos, é necessário priorizar
uma delas: ou o conteúdo ou a proveniência dos documentos. Respeitando-se os
princípios arquivísticos, a viabilização do acesso às informações contidas nos
documentos arquivísticos não deverá prejudicar o acesso à informação sobre a
origem do documento.
A partir de Schellenberg, os manuais têm orientado a organização dos documentos
de uso corrente em uma estrutura que espelhe o desenvolvimento das funções,
atividades e tarefas que geram documentos. Em entidades coletivas, identifica-
se, de maneira geral, uma série de funções que são realizadas através de certo
número de atividades as quais se concretizam na execução de um conjunto de
tarefas. Sendo assim, o plano de classificação dos documentos é estruturado em
uma cadeia hierárquica de modo que os níveis superiores reflitam as funções
desenvolvidas para o cumprimento da missão da entidade; os segundos níveis, as
atividades necessárias para a realização de cada função do primeiro nível; e os
terceiros níveis, as tarefas relativas a cada uma das atividades. Dentro destes
terceiros níveis são ordenados os documentos sob o critério mais adequado
àquele tipo12 de documento. Essa classificação é chamada funcional.
E a orientação para a organização com vistas ao acesso aos documentos de guarda
permanente é estruturada também em uma cadeia hierárquica cujo primeiro nível
identifica o produtor do arquivo; o nível ou níveis seguintes correspondem à
estrutura organizacional, quando ela existe; e os níveis subseqüentes
reproduzem a classificação recebida na fase de uso corrente. Essa organização
recebe o nome de Arranjo e sua classificação é chamada organizacional/
funcional.
Rodrigues, baseando-se na proposta de Luciana Duranti, tende a considerar como
mais adequado partir-se da identificação das tipologias documentais para se
proceder a classificação. Diz a autora:
A correta delimitação da tipologia documental, considerada em função
do seu contexto de produção, é de fundamental importância para
definir sua classificação, valor para preservação ou eliminação e
utilização.
Na perspectiva tradicional da arquivística, para o conhecimento da
gênese do documento, devemos partir da análise do geral para o
particular, do órgão para o resíduo material do exercício de suas
competências, que é o documento que circula e é acumulado no arquivo.
Este é um axioma arquivístico para um segmento de teóricos na área,
mas que vem se tornando objeto de reflexão entre os profissionais que
estudam as questões de naturezas teóricas metodológicas propostas
pela diplomática contemporânea, também chamada de tipologia
documental. (2002, p. 47).
Essa metodologia parte do exame de cada documento ou conjunto de documentos já
produzidos para, então, examinar-lhe a gênese. Aponta-se como possível
conseqüência da aplicação dessa metodologia, o risco da não observância da
qualidade de Unicidade dos documentos. Uma cópia de um documento produzido por
um certo departamento de uma entidade que seja recebida por um outro
departamento, pode assumir novo significado e receber uma classificação
diferente do documento original.
Proceder ao exame das funções, atividades e tarefas para elaborar-se a
classificação dos documentos por elas produzidos, pode ser a postura mais
segura para garantir a representação de todas as ações do produtor dos
documentos.
Nos arquivos de guarda permanente, nas instituições arquivísticas públicas, a
demanda por conteúdos de documentos descontextualizados, ou seja, por
informações contidas em documentos independentemente da ação que os gerou, é
comum e freqüente. A prática tem sido, por exemplo, no Arquivo Público da
Cidade de Belo Horizonte, uma seleção baseada no Arranjo organizacional, feita
com o auxílio do atendente da sala de consultas, e a busca pela informação,
documento a documento.
Promover o fácil acesso aos conteúdos descontextualizados tem se mostrado como
uma meta inatingível. Os manuais para organização de arquivos tratam dos
índices, por exemplo, como um recurso para o acesso aos conteúdos dos
documentos. Contudo, o volume documental dos arquivos permanentes é sempre de
dimensões gigantescas. Promover o seu acesso através do Arranjo, que é a
prioridade, é tarefa que tem demandado muito tempo e recursos humanos, pois,
normalmente, a documentação que é recolhida às instituições arquivísticas não
recebeu, na origem, uma classificação funcional.
Nos arquivos de uso corrente, de uma maneira geral, os documentos são buscados
pelo seu caráter de evidência dos atos. Pode-se dizer que apenas potencialmente
há demanda por conteúdos descontextualizados. Isso não significa que a busca
por recursos que promovam o acesso a informações descontextualizadas seja uma
preocupação menor entre os arquivistas.
Vê-se o diálogo com a ciência da informação como o caminho para a arquivologia
desenvolver estes recursos. Fonseca (2005) se manifesta em relação a essa
questão:
A falta de percepção das relações interdisciplinares entre essas duas
áreas do conhecimento é instigante, na medida em que tais relações
parecem bastante óbvias, quando se identifica a informação como
elemento central do conjunto de objetos de que ambas se ocupam.
(p.10).
Buscando-se entender essa dificuldade, aponta-se, inicialmente, que cada uma
delas tem questões próprias, de fundo, a serem resolvidas. Por exemplo, o seu
objeto. Mas isso não tem impedido que elas se desenvolvam enquanto áreas de
conhecimento. Vale, então, verificar a principal diferença de enfoque para a
gestão. Tal como foi exposto, a arquivologia parte do motivo da criação do
documento para elaborar os instrumentos de acesso à informação. Já para ciência
da informação, como se encontra em Marchiori (2002), o ponto de partida para a
gestão da informação é a demanda (p. 75). Avaliar como essas duas perspectivas
podem se integrar parece crucial para se promover a cooperação desejada.
Dentro do exposto, identifica-se que a arquivologia tem recursos teóricos que
podem servir de base para a elaboração de uma metodologia de classificação de
documentos arquivísticos que possibilite o fácil acesso à informação
arquivística contida no arquivo em si, naquilo que o conjunto, em sua forma, em
sua estrutura, revela sobre a instituição ou sobre a pessoa que o criou. Essa
classificação permite também o acesso à informação contida no documento a
partir de uma seleção com base no contexto de produção do arquivo.
Por outro lado, os princípios, características e qualidades dos arquivos não se
prestam como base para a construção de um sistema de pesquisa que permita a
seleção de documentos por conteúdos descontextualizados, embora esses
construtos devam ser neste caso considerados, a fim de que os sistemas de
pesquisa por conteúdos não promovam a perda da referência à origem dos
documentos.