A multirreferencialidade de saberes nos atos de mediação do conhecimento: o
aporte das ciências cognitivas à ação pedagógica das bibliotecas
1 Introdução
Novos tempos apontam para o desenvolvimento de um conjunto de competências e de
habilidades, a fim de que se possa, efetivamente, compreender e refletir sobre
a realidade, participar e agir no contexto de uma sociedade em que o
conhecimento é construído pelas interações contínuas realizadas individualmente
pelo cidadão e validados coletivamente por todos os cidadãos. Assim, os
conceitos, as idéias, as leis, as teorias, os fatos, as pessoas, a história, o
espaço geográfico, as manifestações artísticas, os meios de comunicação, a
ética, a política, os governos, os valores etc. - traduzidos nos conteúdos
formais das ciências, das artes e da filosofia - constituem-se em um conjunto
de condições essenciais à construção do conhecimento (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E
CULTURA (MEC); INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO
TEIXEIRA (INEP), 2007).
Na atualidade, tem-se chamado a atenção para a exclusão digital, no sentido de
que ela significa a exclusão do conhecimento e, deste modo, retira das pessoas
a possibilidade de mudar suas vidas e de participar democraticamente das
decisões importantes para o desenvolvimento pleno do país. De fato, as
tecnologias de informação e comunicação se transformaram em requisitos
fundamentais para a educação transformadora e inclusiva, passando a ser
preocupação dos governos e órgãos supranacionais, conforme expressa a
Declaração Ministerial do Conselho Econômico e Social da ONU, de 2000, que
assegura: "velar para que todos possam aproveitar os benefícios das novas
tecnologias, em particular das tecnologias da informação e das comunicações".
No entanto, a questão é mais complexa. O homem do século XXI está diante de
situações-problema, e enfrentá-las implica selecionar, organizar, relacionar e
interpretar dados para tomar decisões, fazendo-se necessário um recorte
significativo de uma realidade, que pode ser analisada sob várias óticas e que
pode conter fatores concorrentes, no sentido de que nem sempre é possível dar
prioridade a todos eles ao mesmo tempo (MEC; INEP, 2007).
Nesta perspectiva, pode-se inferir que, para se chegar ao conhecimento, não
basta o acesso físico às tecnologias, mas, sobretudo, é preciso estimular os
múltiplos processos cognitivos, a mediação e a contextualização que se
constituem pré-requisitos para apreender e compreender conteúdos formativos e
informativos. Compreender fenômenos significa ser competente para formular
hipóteses ou idéias sobre as relações causais que os determinam. Para isto, é
importante que se estabeleçam relações e inferências, produto de análises e
reflexões indispensáveis ao processo de aprendizagem.
Numa sociedade que está aberta para todas as possibilidades de conhecimento, os
países revisam seus modelos educacionais, discutem e implementam reformas
curriculares mais apropriadas, que privilegiam a noção de um processo dinâmico
de desenvolvimento cognitivo; encarando a inteligência, não como uma faculdade
mental ou como expressão de capacidades inatas, mas como uma estrutura de
possibilidades crescentes de construção de estratégias básicas de ações e
operações mentais, com as quais se constróem os conhecimentos. Para tanto,
entende-se que, não apenas a escola, mas a biblioteca, as tecnologias da
informação e muitos outros espaços e recursos educativos, devem mediar as
possibilidades de formação plena do indivíduo e de sua inserção na sociedade.
Propõe-se, aqui, analisar as exigências dos novos tempos para o acesso ao
conhecimento, em termos de cognição - competências e habilidades -; o
descompasso de uma camada da população brasileira à luz das pesquisas sobre
analfabetismo e alfabetismo; além de incentivar a reflexão sobre novas
perspectivas para a organização e a difusão do conhecimento, fundamentada em
estudos sobre cognição, mediação e multirreferencialidade, para entender a
complexidade dos fenômenos sociais e o fortalecimento da atividade científica.
As análises e reflexões apresentadas evidenciam a relevância da integração da
Biblioteconomia e da Ciência da Informação com as ciências cognitivas, tendo em
vista que, cada vez mais, os profissionais destas áreas precisam lidar
diretamente com as estratégias mentais de apreensão e compreensão da
informação, ou seja, com o processo de construção pelo qual transita o sujeito
aprendiz e transformador do mundo.
2 Descompasso no acesso ao conhecimento
A questão que se põe atualmente é se o acesso e a freqüência à escola são
suficientes para garantir a aquisição de habilidades necessárias à vida pessoal
e profissional, bem como o desenvolvimento de cidadãos conscientes de direitos
e deveres. Por outro lado, outra questão está relacionada à reparação da
exclusão educacional de milhões de cidadãos que já ultrapassaram a idade da
escolarização regular e que não concluíram a educação básica. Para refletir
sobre essa situação, apresentam-se e analisam-se os resultados do Indicador de
Alfabetismo Funcional (INSTITUTO PAULO MONTENEGRO, 2007).
O INAF, criado e implementado pelo Instituto Paulo Montenegro, disseminador de
práticas educacionais inovadoras, e pela ONG Ação Educativa, vem sendo
realizado desde 2001 e aplicado por amostragem a 2000 pessoas, entre 15 e 64
anos, residentes em zonas urbanas e rurais de todas as regiões do Brasil. O
INAF trabalha com o termo "letramento", correspondente ao termo em inglês
literacy, que diz respeito à condição de pessoas ou grupos sociais de fazer uso
da linguagem escrita. O termo Alfabetismo considera os dois domínios:
letramento (processamento de informação verbal em diversos formatos;
compreensão e expressão escrita) e numeramento, capacidade de compreender e
operar com noções e representações matemáticas envolvidas em situações
cotidianas.
Com base na análise das tarefas, O INAF definiu quatro níveis de alfabetismo
(INSTITUTO PAULO MONTENEGRO, 2007):
1. Analfabetismo: condição dos que não conseguem realizar tarefas
simples que envolvem a leitura de palavras e frases, ainda que uma
parcela destes consiga ler números familiares (números de telefone,
preços etc.);
2. Alfabetismo nível rudimentar: as pessoas apresentam capacidade de
localizar uma informação explícita em textos curtos e familiares
(como um anúncio ou pequena carta), ler e escrever números usuais e
realizar operações simples, bem como de manusear dinheiro para o
pagamento de pequenas quantias ou fazer medidas de comprimento usando
a fita métrica;
3. Alfabetismo nível básico: as pessoas podem ser consideradas
funcionalmente alfabetizadas, pois já lêem e compreendem textos de
média extensão, localizam informações mesmo que seja necessário
realizar pequenas inferências, lêem números na casa dos milhões,
resolvem problemas envolvendo uma seqüência simples de operações e
têm noção de proporcionalidade. Mostram, no entanto, limitações
quando as operações requeridas envolvem maior número de elementos,
etapas ou relações;
4. Alfabetismo nível pleno: as pessoas apresentam habilidades para
compreender e interpretar elementos usuais da sociedade letrada: lêem
textos mais longos, relacionando suas partes, comparam e interpretam
informações, distinguem fato de opinião, realizam inferências e
sínteses. Quanto à matemática, resolvem problemas que exigem maior
planejamento e controle, envolvendo percentuais, proporções e cálculo
de área, além de interpretar tabelas de dupla entrada, mapas e
gráficos.
Os resultados mostram que nem sempre o nível de escolaridade garante o nível de
habilidades que seriam esperadas, uma vez que: 64% dos brasileiros entre 15 e
64 anos que estudaram até a 4ª série atingem o grau rudimentar de alfabetismo;
12% dos 64% são considerados analfabetos absolutos em termos de habilidades de
leitura/escrita, não decodificam palavras e frases e apresentam dificuldades em
lidar com números em situações do cotidiano, apesar de terem cursado os quatro
anos do Ensino Fundamental; dos que cursaram da 5ª a 8ª série, apenas 20% podem
ser considerados plenamente alfabetizados, enquanto que a maioria se enquadra
no nível básico de alfabetismo.
Observe-se que 26% dos que completaram entre a 5ª a 8ª séries ainda permanecem
no nível rudimentar; enquanto 47% dos que cursaram ou estão cursando o Ensino
Médio atingem o nível Pleno de Alfabetismo (esperado para 100% deste grupo) e
praticamente 45% permanecem no nível básico; somente entre os que chegaram ou
completaram o Ensino Superior é que prevalecem (74%) os indivíduos com pleno
domínio das habilidades de leitura/escrita e das habilidades matemáticas.
O INAF retrata, também, a distribuição dos diferentes níveis de alfabetismo
pelo território brasileiro, evidenciando contrastes e diferenças regionais: a
população do Sul tem níveis mais altos de alfabetismo, com 71% funcionalmente
alfabetizados, sendo 1/3 de forma plena; a Região Nordeste apresenta maior
contingente de analfabetos funcionais, correspondente a 46% da população entre
15 e 64 anos; e há semelhança no perfil da população das regiões Sul e Sudeste
(maior concentração no nível básico, um número reduzido de analfabetos e
proporções equivalentes entre os níveis rudimentar e pleno).
Confirmando os indicadores do INAF, o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) (2004-2005) declara que 11,4% das pessoas com mais de 15
anos são analfabetos e 23,5% são analfabetos funcionais, ou seja, são
considerados alfabetizados mas não têm capacidade de ler e interpretar
informações. Do total da população com mais de 10 anos de idade, 11,3% não
possuem instrução ou têm menos de um ano de estudo e apenas 26% possuem 11 ou
mais anos de estudo (IBGE, 2004-2005). Os números do IBGE mostram que, no
geral, a população brasileira não possui um alto grau de instrução e,
provavelmente, não domina as tecnologias da informação.
O INAF mostra ainda que a maioria dos alfabetizados no nível rudimentar e
básico não costuma ler livros (29% e 16%) ou só lêem um tipo (42%), geralmente
a bíblia ou livros religiosos. A leitura dos alfabetizados no nível pleno é
diversificada (33% lêem dois gêneros e 34% três ou mais). Buscando enriquecer
esses dados, nas edições de 2003 e 2005, o INAF perguntou aos entrevistados se
já estiveram numa biblioteca e onde. Os resultados mostram que houve uma
diminuição no número daqueles que já estiveram numa biblioteca pública (de 59%
para 49%), mas aumentou um pouco o número dos que já estiveram numa biblioteca
escolar (45% para 49%). A análise multivariada dos dados do INAF mostrou que a
freqüência a mais de um tipo de biblioteca é um diferencial importante nos
níveis de alfabetismo.
Os resultados apresentados pelo INAF, ao longo do período 2001-2007, mostram
que é preciso investir na qualidade de modo que a escolarização garanta, de
fato, as aprendizagens necessárias para que os cidadãos se insiram de forma
autônoma e responsável na sociedade contemporânea. É também de grande
importância analisar a função atribuída à biblioteca para subsidiar o processo
de alfabetismo/analfabetismo que vem ocorrendo na Educação Brasileira.
Uma nova qualidade precisa ser construída, considerando as demandas de uso da
leitura, escrita e matemática, não só para a continuidade dos estudos, mas para
se inserir de forma eficiente e autônoma no mundo do trabalho e do exercício da
cidadania. O que vem sendo exposto e analisado pode ser assim sintetizado:
Não é viável enfrentar a inclusão digital sem levar em conta o alto
índice de analfabetismo. Embora o combate ao analfabetismo no país
conte com a participação de vários segmentos da sociedade, os
recursos governamentais ainda são insuficientes, sem contar que os
recursos humanos ainda são escassos, pois os profissionais da área
não atuam diretamente na promoção da educação e do bem-estar social.
Por formação o bibliotecário é altamente qualificado para desempenhar
o papel social que promova a cidadania em comunidades carentes.
Porém, são poucos os que se interessam pela área, já que não há
retorno quanto à remuneração e a infra-estrutura oferecida é
desfavorável para uma atuação efetiva (BAPTISTA, 2006, p. 6).
3 Bibliotecas, cognição, mediação e privação cultural: reflexões
O cenário tecnológico põe em crise a tipologia convencional de bibliotecas -
nacionais, especializadas, universitárias, públicas e suas derivações -,
exaustiva e amplamente definida na literatura biblioteconômica (LEITE; MIRANDA;
SUAIDEN, 2008), pois, em virtude das mídias integradas e dos suportes
eletrônicos disponíveis, todos os tipos de biblioteca podem oferecer todos os
tipos de serviços, como concluem Garcez e Rados:
A biblioteca híbrida é designada para agregar diferentes tecnologias,
diferentes fontes, refletindo o estado que hoje não é completamente
digital, nem completamente impresso, utilizando tecnologias
disponíveis para unir, em uma só biblioteca, o melhor dos dois mundos
(o impresso e o digital) (GARCEZ; RADOS, 2002, p. 47).
Ao examinar estas novas tendências, toma-se conhecimento do patamar e de
parâmetros biblioteconômicos de ordem internacional avançados, que já subsidiam
o processo educacional a partir da educação básica, em consonância com o
exercício gradual de democracia e a formação de consciência de cidadania, que
habilitam os estudantes para discussões sociais locais, nacionais e
internacionais. Abre-se então uma questão: O que se está enunciando,
internacionalmente, pode ser aplicado igualmente em ambientes brasileiros,
principalmente nos pontos menos desenvolvidos do país?
3.1 A ação educativa das bibliotecas
Historicamente, as bibliotecas, a exemplo da biblioteca de Alexandria e de
Nínive, reuniam e custodiavam valiosos acervos documentais para contar a saga
da humanidade. A biblioteca pública surge por volta de 1850 na Inglaterra, para
aculturar a classe operária da Revolução Industrial, melhorando a qualidade da
mão-de-obra operária. A biblioteca foi se ampliando e absorvendo papéis,
estando comprometida, nos dias atuais, com quatro funções básicas, a
educacional, a cultural, a de lazer ou recreacional, e a informacional; esta
última surgida no final da década de 60 do século passado, como reflexo do
papel que a informação ganhou na vida e na economia contemporâneas.
A UNESCO, a IFLA (Federação Internacional de Associações e Instituições
Bibliotecárias), o SNBP (Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas), bem como
movimentos políticos e sociais, atribuem à biblioteca pública o papel de
promotora da educação e da cultura, e difusora de informação e de conhecimento,
em sentido amplo. A biblioteca pública é, potencialmente, capaz de contribuir
para a ampliação e o fortalecimento educacional.
A biblioteca pública é o centro local de informação, disponibilizando
prontamente para os usuários todo tipo de conhecimento; os serviços
fornecidos por ela baseiam-se na igualdade de acesso para todos,
independentemente de idade, raça, sexo, religião, nacionalidade,
língua ou status social (BIBLIOTECA PÚBLICA, 2000, p. 21).
No Brasil, a biblioteca pública tem-se destacado pela prática da educação
continuada, valendo-se, principalmente, de programas de promoção da leitura,
buscando contribuir para erradicar o analfabetismo e consequentemente promover
a inserção do indivíduo na sociedade. As tecnologias da informação facilitam o
trabalho educativo da biblioteca pública e proporcionam o cumprimento integral
de sua missão de educar e disseminar o conhecimento.
Gomes (1999, p. 3) considera que educar é o objetivo primordial de qualquer
biblioteca. Ela afirma que "a biblioteca é um instrumento de ensino universal e
reúne e distribui livremente todos os instrumentos da educação e, com sua
ajuda, dissemina o conhecimento. Este é o espírito da biblioteca".
Este ato de educar se concretiza sempre que o bibliotecário, na interação com o
usuário, busca com ele encontrar a informação pertinente para atender à sua
necessidade de estudo, pesquisa ou solução de um problema complexo ou do
cotidiano. A missão educativa da biblioteca evidencia-se nos serviços de
referência, que, por meio dos programas de educação do usuário, passaram a
capacitar seu público no manuseio da biblioteca e de suas coleções. Estes
programas, usados intensamente em bibliotecas públicas e escolares,
fundamentaram-se em teorias pedagógicas, aproximando a biblioteca da escola, e
criaram as bases para a implantação do atual movimento da information
litteracy. Le Coadic (2004, p. 112) refere-se à "educação para a informação",
ponderando sobre a complexidade do universo informacional na atualidade, no
qual o sujeito precisa "aprender a se informar e aprender a informar", tarefas
educativas a serem assumidas pela biblioteca pública, no âmbito da educação
permanente, e pela biblioteca escolar, no apoio à formação do sujeito.
Nos últimos 25 anos, com a expansão das tecnologias de informação e
comunicação, os estudos de usuários têm focado com mais intensidade a
compreensão dos tipos de comportamento informacional humano, e remetem a
conceitos como: contextos informacionais, necessidades informacionais,
comportamentos de busca da informação, modelos de acesso à informação,
recuperação, disseminação, processamento e uso da informação. Tudo isso com a
crença de que a informação seja essencial ao funcionamento e à interação dos
indivíduos, grupos sociais, organizações e sociedades, além de ter o potencial
para transformar o conhecimento e subsidiar decisões e ações (TODD, 2003, apud
FIALHO; ANDRADE, 2007).
É crescente a literatura sobre o comportamento informacional em várias partes
do mundo. Pesquisas sobre biblioteca escolar revelam que ela tem aparecido como
agente fundamental no processo de aprendizado quando sua proposta está
integrada ao currículo escolar. Ela se apresenta como um elemento importante no
desenvolvimento da competência informacional que envolve diversas habilidades,
contribuindo diretamente para a formação crítica e reflexiva dos sujeitos.
Embora ainda estejam em estudo critérios de medição e avaliação dos reais
efeitos dos programas de biblioteca escolar sobre o aprendizado de estudantes,
existem avaliações, em outros países, que comprovam os efeitos positivos destes
programas, como, por exemplo:
1. O estudo de Baughman (2000, apud FIALHO; ANDRADE, 2007) aponta
que, em Massachusetts, 92% das escolas públicas possuem bibliotecas
escolares. Os itens avaliados foram staff, acervo e infra-estrutura
tecnológica das bibliotecas. Ficou comprovado que as notas dos
estudantes são mais elevadas onde há escolas com programas de
bibliotecas que apresentam um bom número de livros por estudante e
com uso intenso, além de horários flexíveis e programas
instrucionais. Bibliotecas onde há maior investimento de materiais
por estudante, onde eles são atendidos por um bibliotecário em tempo
integral juntamente com o auxílio do staff, onde há coleções
automatizadas e quando a biblioteca está ajustada com a estrutura
curricular da escola, subsidiam, certamente, o fortalecimento do
processo ensino-aprendizagem;
2. Na Austrália, Lonsdale (2003, apud FIALHO; ANDRADE, 2007) sugere
que as bibliotecas escolares, para ter impactos positivos sobre as
atividades estudantis, devem apresentar as seguintes características:
programa de biblioteca potente, adequadamente assistido, planejado e
fundamentado para conduzir a melhoria da atividade estudantil,
independentemente dos níveis socioeconômicos ou educacionais dos
adultos na comunidade; rede de computador potente conectando recursos
da biblioteca à sala de aula e laboratórios; qualidade da coleção;
incentivo para o uso da biblioteca escolar; relacionamentos
colaborativos entre professores e bibliotecários escolares,
particularmente em relação ao planejamento de unidades instrucionais,
desenvolvimento de coleções e subsídio para o desenvolvimento
profissional de professores.
Registra-se que: a) quanto mais rica a coleção de impressos, mais incentivo
existe para a leitura, o que culmina com o desenvolvimento da compreensão,
crescimento do vocabulário, habilidades ortográficas, gramaticais e estilo de
escrita; b) a integração das habilidades informacionais ao currículo escolar
pode proporcionar aos estudantes domínio de conteúdo e das habilidades de busca
da informação; c) as bibliotecas podem fazer uma diferença positiva na auto-
estima dos estudantes, no sentimento de confiança, na independência e no senso
de responsabilidade em relação ao seu próprio aprendizado.
De acordo com Todd (2003, apud FIALHO; ANDRADE, 2007), um aspecto consistente
que emerge de todos esses estudos é a necessidade de desenvolver competências
informacionais e críticas nos aprendizes, desenvolvendo as bases intelectuais
para que possam usar apropriadamente a informação, questioná-la, criticá-la e
acessá-la.
Neste contexto, as bibliotecas vêm se constituindo imprescindíveis ao
desenvolvimento de uma sociedade letrada e se impõem como instituição chave de
uma sociedade igualitária, ao garantir o exercício de um direito cidadão
básico.
O atual sistema educativo necessita passar por mudanças - principalmente no
Brasil, onde, em termos concretos, não existem bibliotecas escolares atuantes e
articuladas com as necessidades pedagógicas - para adaptar-se à realidade do
século XXI, de igual maneira que outros setores estratégicos da sociedade,
replanejando procedimentos de ensino-aprendizagem. O centro dessa mudança
poderia dar-se por meio da biblioteca escolar, que, mediante modelo funcional e
organizativo, se transformaria em um recurso estratégico dinamizador do
currículo, com uma participação ativa no processo pedagógico, assumindo o
processo de alfabetização informacional, fundamentando-se em princípios de
cognição e mediação.
3.2 Cognição e mediação: visões teóricas
Com base nos dados apresentados pelo INSTITUTO PAULO MONTENEGRO (2007) e na
análise sobre o papel da escola - oferecer aos alunos habilidades e
competências necessárias para o desenvolvimento pessoal, social e profissional
- e da biblioteca escolar - espaço em que os alunos encontram material para
complementar sua aprendizagem e desenvolver sua criatividade, imaginação e
senso crítico -, faz-se necessário ressaltar a importância dos estudos teóricos
sobre a área da aprendizagem com foco na cognição humana, para subsidiar a
formação de professores e bibliotecários.
O estágio de desenvolvimento cognitivo, correspondente à etapa da Educação
Básica (composta pela Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio) no
Brasil, caracteriza-se pelo período das operações formais, marcado pelo advento
do raciocínio hipotético-dedutivo. Para Piaget (1987), ao atingir esse período,
os jovens podem considerar o real como uma ocorrência entre múltiplas e
exaustivas possibilidades. A estrutura mental e o conhecimento são construídos
em uma relação dialética entre a maturação biológica e o ambiente.
Vigótski (1991) concede importância fundamental ao desenvolvimento da
linguagem, sendo a palavra um rico instrumento para transmitir a experiência
histórica da humanidade. O conhecimento constitui-se numa produção cultural,
diretamente relacionada com a linguagem e com a interação social. No que se
refere à mediação, Vigótski (1991) ressalta as relações culturais de mediação
das estruturas psicológicas. O fator decisivo no desenvolvimento não recai
sobre o indivíduo, sujeito dos processos de construção intelectual, mas sobre
os processos de mediação das estruturas cognitivas e lingüísticas. A mediação é
a ação que se interpõe entre sujeito e objeto de aprendizagem, sendo a palavra
de fundamental importância.
No conjunto da obra de Paulo Freire, são destacados elementos ontológicos/
epistemológicos, entre eles o conceito de educação dialógica versuseducação
bancária. Na educação bancária, duas estruturas se confrontam: a do educador
que sabe e comunica e a do educando que não sabe e aprende. E na educação
dialógica, dois processos de estruturação gnosiológica interagem, um ensinando
/ aprendendo com o outro e ambos construindo o conhecimento do mundo. Para
Paulo Freire (1979), mediação é a ação por meio da qual o homem chega a ser
sujeito por uma reflexão sobre sua situação, sobre seu ambiente concreto.
"Quanto mais o homem reflete, mais ele emerge e compromete-se para intervir na
realidade".
Feuerstein, ao desenvolver a Teoria da Modificabilidade Cognitiva Estrutural
(TMCE) e da Experiência de Aprendizagem Mediada (EAM), explica a aprendizagem
humana emergindo de uma relação indivíduo-meio, mediatizada por outro indivíduo
mais experiente, cujas práticas e crenças culturais são transmitidas,
promovendo zonas mais amplas de desenvolvimento crítico e criativo, rumo à
autonomia cognitiva, decorrente de uma aprendizagem mediada (FEUERSTEIN, 1980).
Quando o mediador é o professor, ele põe em prática estratégias de mediação na
apresentação das várias tarefas inerentes ao processo ensino-aprendizagem,
visando à generalização e à abstração conceitual. No entanto, o processo de
mediação transcende à sala de aula, alcançando a biblioteca e outros ambientes
de aprendizagem.
Segundo Morin (2000), um conhecimento pertinente deve enfrentar a complexidade
que se dá quando elementos diferentes, constitutivos do todo, são inseparáveis;
e aponta que a capacidade de aprender está ligada ao desenvolvimento das
competências inatas do indivíduo de adquirir conhecimentos e, ainda, assinala
que a mediação é o diálogo/interação de ordem e desordem do mundo, tecendo as
partes e o todo, o todo e as partes e as partes entre si.
O que se apreende a partir desta revisão sobre aprendizagem e mediação,
portanto, é que os estudos sobre a cognição humana se caracterizam como um
fenômeno multirreferencial, de alta complexidade, que envolvem várias
atividades mentais. Com estas considerações, uma grande preocupação recai nos
riscos da sociedade em trazer, como conseqüências, a partilha desigual de
conhecimentos e competências, ampliando-se a exclusão social, acentuando-se as
desigualdades já existentes entre setores e regiões de maior e menor renda.
Vale destacar que o princípio de igualdade de oportunidade, registrado nos
manifestos da UNESCO para as bibliotecas pública e escolar, base igualitária de
cidadania, ampara as discussões sobre a ação das bibliotecas na formação de uma
sociedade com lastro educativo e cultural mais abrangente e sólido. Assim, o
conhecimento tornar-se-ia um dos principais fatores de superação de
desigualdades e a universalização das bibliotecas ajudaria a viabilizar o
acesso equitativo à informação, ressaltando-se a responsabilidade dos
profissionais bibliotecários na aquisição, atualização e utilização dos
conhecimentos, que correspondem às três funções do processo educativo, ao lado
do desenvolvimento de aptidões intelectuais e cognitivas para pessoas a serem
formadas para a inovação, para o mundo plural e em constantes transformações.
3.3 Cognição e inteligência no processo de leitura
Wittrock afirma que "para compreender um texto, nós não apenas o lemos, no
sentido literal da palavra: nós construímos um significado para ele". Assim
procedendo, os leitores "criam imagens e transformações verbais para
representar seu significado. E o que é mais impressionante: eles geram
significado à medida que lêem, construindo relações entre seu conhecimento, sua
memória da experiência, e as frases, parágrafos e trechos escritos" (WITTROCK,
1991, apud MANGUEL, 1997, p. 54).
Por meio de exercícios constantes de leitura, de análise e de compreensão do
texto, pode-se ambicionar o incremento de uma atitude "decifradora" em relação
à inteira realidade; ou de uma atitude criadora, estimulando nos leitores uma
espécie de impulso exegético que se estenda ao universo extratextual e se
transforme em desejo de sentido. Assim, talvez, se possa incentivar a
habilidade de captar e compreender as interdependências, a multiplicidade e a
complexidade do real. Porque, definitivamente
É sempre o leitor que lê o sentido; é o leitor que confere a um
objeto, lugar ou acontecimento, uma certa legibilidade possível, ou
que a reconhece neles; é o leitor que deve atribuir significado a um
sistema de signos e depois decifrá-lo. Todos nós lemos a nós e o
mundo à nossa volta para vislumbrar o que somos e onde estamos. Lemos
para compreender, ou para começar a compreender. Não podemos deixar
de ler. Ler, quase como respirar, é nossa função essencial (MANGUEL,
1997, p.19-20).
Com base nas pesquisas da teoria literária, da lingüística, da antropologia
simbólica, da psicologia cognitiva e da psicologia evolutiva, Bruner (1997)
examina os atos mentais que se inscrevem na criação imaginativa de mundos
possíveis, e demonstra que a atividade do imaginário permeia, ao mesmo tempo,
as ciências humanas, a literatura e a filosofia, alcançando inclusive a
percepção do eu.
Para Bruner (1997), o pensamento narrativo é aquele pensamento que constrói
infinitos mundos possíveis com a linguagem, imagens, invenções e, sobretudo,
com a memória autobiográfica; é a essência de nossa própria natureza. Em Atos
de Significação, o autor sustenta que a revolução cognitiva, como havia sido
originalmente concebida, comportava a possibilidade de que a psicologia
cooperasse com a antropologia, a lingüística, a filosofia e a história, e
"inclusive com as disciplinas jurídicas" (BRUNER, 1997, p. 16-17).
Em síntese, para que se possa entender o fenômeno da vida, que em si mesmo se
constitui na base que fundamenta a incessante, permanente e mutável busca da
ciência, é importante que se reconheça a total interdependência entre o
indivíduo, o outro e a natureza, pois são mutuamente inclusivos. Nessa
perspectiva, D'Ambrosio (2000) mostra que, por meio de instrumentos e
tecnologia, a espécie humana estabelece diferentes vínculos entre o sujeito e a
natureza. Em decorrência de sua produção e trabalho, cria intermediações entre
a natureza e os outros e, por meio da comunicação e de suas emoções, as pessoas
se integram, o que resulta no encontro entre o sujeito e conhecimento, dando-se
a consciência.
Quando se busca explicar o comportamento humano, identificam-se duas grandes
forças que impulsionam a vida: sobrevivência e transcendência. A primeira é
comum a todas as espécies e a segunda impulsiona a elaboração de sentido à
própria existência. Elas dão origem ao conhecimento e definem o comportamento,
pois, na busca de sobrevivência e de transcendência, desenvolve-se a
comunicação (D'AMBROSIO, 2000).
3.4 Alfabetismo / analfabetismo e privação cultural
O fenômeno alfabetismo / analfabetismo, focado na perspectiva do
desenvolvimento cultural do sujeito, pode ser analisado à luz dos estudos sobre
Privação Cultural desenvolvidos por Reuven Feuerstein (1980). O conceito de
Privação Cultural fundamenta-se na ausência de um tipo específico de
transmissão cultural. Ela impede o desenvolvimento cognitivo e afetivo adequado
e reduz o grau de modificabilidade e flexibilidade mental. A falta de um
mediador ou de mediadores que se coloquem entre o sujeito e o mundo, que
selecionem e organizem as informações contextualizando-as culturalmente,
provoca a denominada síndrome cultural.
O baixo funcionamento cognitivo, o fraco rendimento informacional ou a
desqualificação de alguns segmentos populacionais da sociedade, como, por
exemplo, grupos étnicos ou grupos potencialmente excluídos, não são, segundo
Feuerstein (1980), sinônimos de uma cultura inferior. É possível que a cultura
de um povo seja muito rica economicamente, e sua capacidade informacional,
contudo, seja muito baixa, com altas percentagens de insucesso e múltiplas
dificuldades de aprendizagem, provocando problemas de inadaptação social.
Feuerstein (1980) observa que muitas pessoas estão "alienadas" em relação à
própria cultura, em conseqüência de fatores sociais, psicofísicos, escolares e
ambientais, o que constitui uma ruptura na transmissão cultural. Não basta
falar de diferenças culturais definidas como comportamento deficiente, em razão
da falta de familiaridade com as tarefas de aprendizagem, com estilos
cognitivos, ou com conteúdos e modalidades de apresentação.
Vale ressaltar, portanto, o antagonismo que caracteriza o conflito educacional
na atualidade: a necessidade de dependência para sobreviver e a de
independência para a realização pessoal e existencial. Um indivíduo socializado
numa cultura minoritária será culturalmente diferente dos membros da cultura
predominante ou majoritária e poderá diferir dos outros em muitos traços
culturais.
Desse modo, a multiplicidade de facetas do fenômeno alfabetismo, a variedade e
a heterogeneidade de dimensões, a diversidade de relações com a sociedade e a
com cultura levam a concluir não só que é impossível formular um conceito
genérico e universal desse fenômeno, como também que são inúmeras as
perspectivas teóricas e metodológicas de acordo com as quais se pode analisar
essa questão. As perspectivas ora privilegiam a dimensão social, ora a dimensão
individual, ora uma faceta, ora outra, a exemplo das perspectivas histórica,
antropológica, sociológica, psicológica, sociolingüística, lingüística,
discursiva, textual, literária, educacional e política; ou seja, a
multirreferencialidade entendida como uma pluralidade de olhares dirigidos a
uma realidade, uma pluralidade de linguagens para traduzir esta mesma
realidade, e os olhares dirigidos a ela.
Sob a perspectiva do paradigma da complexidade, defendido por Morin (1994), a
educação é entendida, no âmbito da abordagem multirreferencial:
[...] como uma função global, que atravessa o conjunto dos campos das
ciências do homem e da sociedade, interessando tanto ao psicólogo
como ao psicólogo social, ao economista, ao sociólogo, ao filósofo ou
ao historiador etc. (ARDOINO, 1995, p.7).
À medida que os fenômenos educativos são apreendidos na sua complexidade,
torna-se necessária uma abordagem que atente para essas várias perspectivas,
reconhecendo suas recorrências e contradições, de tal forma que elas não se
reduzam umas às outras.
4 Considerações finais
O progresso trazido pelo desenvolvimento científico e tecnológico impôs o
surgimento de uma sociedade detentora de bom nível de escolaridade e cultura,
preparada para usar os sofisticados produtos tecnológicos postos à sua
disposição e, também, para continuar gerando inovações tecnológicas para
atender à demanda da sociedade, bem como manter aquecida a economia.
A integração entre áreas do conhecimento, com vistas a compreender e intervir
nos contextos sociais, coexistem na comunidade científica contemporânea. As
revolucionárias condições de busca e disseminação da informação através de
infovias, em especial a Internet, provocaram o surgimento de novas formas de
conhecimento. A rapidez, a velocidade, a aceleração da pesquisa, geraram uma
nova ordem na ciência em que se permite a participação cada vez maior do
sujeito na compreensão do fenômeno que está investigando.
Depreende-se deste consenso que o profissional da informação, aquele cuja
função é facilitar ao usuário o acesso à informação, precisa ser preparado para
fazer a leitura da complexidade dos fenômenos sociais, o que pressupõe a
compreensão e a conjugação de uma série de abordagens que integram diferentes
áreas do conhecimento - a multirreferencialidade. Para tanto, o profissional da
informação deve ser formado numa perspectiva plural, de modo a que possa
entender o ambiente social e tecnológico em mudança e, assim, venha a
desenvolver serviços informacionais que impulsionem o desenvolvimento dos seus
usuários.
Isto porque, como apoiadores do processo de transferência e usabilidade da
informação, a qual vai subsidiar a construção e desconstrução do conhecimento,
estes profissionais, na função de mediadores, precisam levar seus usuários a
desenvolverem as habilidades do observar, do analisar e do transcender; criando
"pontes" e conexões com o mundo exterior, vivenciando a interdisciplinaridade e
a contextualização, imprescindíveis ao desenvolvimento, e a internalização de
uma atitude científica, o que reafirma a necessidade destes profissionais, de
modo específico, de conhecer as teorias cognitivas.
Quanto às bibliotecas públicas e escolares brasileiras, cabe-lhes assumir, de
modo planejado e efetivo, um compromisso com a educação, no sentido de ampliar
a base intelectual da população, levando-a a desenvolver competências
cognitivas complexas, necessárias ao domínio do conhecimento científico. Se,
por um lado, este é um desafio a ser enfrentado pelos profissionais de
informação, por outro, fica evidente a necessidade de qualificar estes
profissionais, sendo requisito indispensável a sua iniciação nos estudos de
cognição e mediação.
Por fim, vale ressaltar que é preciso investir na rede de bibliotecas, criando,
para elas, políticas estruturantes e modelos funcionais atrelados à proposta de
educação em vigor; definindo o papel e a ação da biblioteca na concepção e no
desenvolvimento do currículo, tendo este, como essência, a aprendizagem
permanente e colaborativa, incluindo o domínio de competências leitoras e
informacionais, subsídios desencadeadores de criatividade e de inovação, e
promotores de conhecimento.