Rosalie nação Poulard: liberdade, direito e dignidade na era da Revolução
Haitiana
Para Marie-Louise (Loulou) Van Velsen
Em 4 de dezembro de 1867, nono dia da Assembleia Constituinte para elaboração
da nova constituição do estado da Louisiana, após o fim da Guerra Civil
Americana (1861-1865), o delegado Edouard Tinchant apresentou um projeto de
lei. De acordo com os decretos de 1867 do período da Reconstrução, no pós-
guerra, os eleitores da Louisiana elegeram 94 delegados metade deles homens de
cor para a constituinte, com a função de elaborar o documento pelo qual a
Louisiana voltaria a fazer parte dos Estados Unidos da América. Edouard
Tinchant, um imigrante de 26 anos residente na cidade de Nova Orleans,
trabalhava como diretor de uma escola para crianças libertas na avenida St.
Claude. Tendo construído uma reputação como veterano do exército da União, que
vencera o Sul escravista, e como defensor ardoroso dos direitos civis, ele
disputou e ganhou a eleição para representante do multirracial 6º distrito de
Nova Orleans.1
No discurso que proferiu no Mechanics' Hall, Tinchant propôs que a convenção
garantisse "proteção legal para todas as mulheres no estado" no âmbito do
direito civil, "sem distinção de raça ou cor, ou referência à sua condição
anterior". Ao longo das semanas seguintes, Tinchant participou de outros
debates sobre o direito ao voto e sobre o acesso aos espaços e serviços
públicos, afirmando sua posição em favor do direito ao voto universal para
homens e igualdade jurídica para todos os cidadãos. Nos últimos dias da
Assembleia, ele retomou o tema dos direitos das mulheres, principalmente no
tocante ao reconhecimento das relações conjugais não formalizadas por meio do
casamento. Propôs que, "para prevenir o concubinato no estado, a Assembleia
Geral deverá criar leis que tornem mais fácil para uma mulher, sem distinção de
raça ou cor, processar um homem pela quebra da promessa [de casamento]. A
Assembleia também deve fornecer meios para que, mediante pedido de uma das
partes, a outra seja compelida ao casamento, desde que o casal tenha coabitado
por pelo menos um ano ininterruptamente".2
A determinação de obrigar os homens a casar é surpreendente em um jovem de 26
anos, assim como sua reivindicação implícita para a formalização das uniões
interraciais é notável por sua audácia.3 Quem foi esse jovem atrevido?
Pesquisando a trajetória de Edouard Tinchant nos documentos preservados nos
arquivos, encontramos seu nome nos registros do liceu da cidade de Pau, no sul
da França, para onde seus pais haviam se mudado depois de deixar Nova Orleans
em 1840. Em seguida, após a revolução de 1848 e o golpe de estado de Louis-
Napoléon Bonaparte, em 1851, emigrou com seus pais para a Bélgica.
Aproveitando-se da experiência adquirida em Nova Orleans, os irmãos mais velhos
de Edouard abriram um negócio de importação e exportação na Antuérpia, mantendo
a conexão com a pequena fábrica de charutos que tinham na Louisiana. Edouard
chegou a Nova Orleans em 1862, em meio à Guerra Civil, supostamente para
trabalhar com seu irmão Joseph, negociante de tabaco. Após a tomada da cidade
pelas forças da União, em abril, Edouard alistou-se voluntariamente no serviço
militar para servir no recém-formado regimento de homens de cor do exército da
União, assumindo, publicamente suas convicções abolicionistas. Dispensado do
serviço militar em agosto de 1863, ele retornou ao comércio de tabaco em
pequena escala, mas enviou cartas polêmicas ao editor da Tribune de la Nouvelle
Orléans, expondo suas ideias sobre cidadania e igualdade. Essa experiência
juvenil ajuda a explicar a intensidade com que Edouard Tinchant rejeitava a
distinção jurídica de castas e o que ele denominava "tirania aristocrática".4
Mas a sua formação tinha outros elementos. Em uma carta enviada ao editor do
jornal Tribune, em 1864, Tinchant declarava ser um "filho da África"; em outra,
escrita anos depois, descreveu-se como um "descendente de haitianos". Essas
referências nos levararam ao arquivo colonial francês em Aix-en-Provence, onde
encontramos documentos que possibilitaram que sua história fosse aprofundada
com a descoberta da vida de sua avó, uma mulher de nome "Rosalie nação poulard"
e, mais tarde, conhecida como Rosalie Vincent.5
A análise dos documentos, nos quais Rosalie Vincent aparece de forma ativa,
comprova seus esforços para alcançar a liberdade e proteger seus filhos e
netos. As concepções de cidadania e direito das mulheres de Edouard Tinchant
resultam, assim, da experiência de três gerações, tendo a escravidão e a
Revolução Haitiana como pontos de partida. A história dessa família, por
consequência, torna-se parte da história dos conceitos vernaculares sobre
direitos e dignidade no mundo atlântico. Esses conceitos nasceram da
consciência da vulnerabilidade individual e familiar dessas pessoas. Os
numerosos documentos administrativos e os instrumentos legais envolvendo essa
família incluindo cartas de alforria, certidões de batismo, testamentos e
contratos de casamento demonstram a dinâmica do seu relacionamento com a lei e
suas tentativas de oficializar e garantir a liberdade e assegurar seus
benefícios. A história dessas pessoas também exprime a importância da cidadania
para aqueles que tinham experimentado o expatriamento, na sua forma mais cruel
da escravização e da deportação.6
Jérémie, São Domingos
A primeira evidência nos documentos da existência de uma mulher de nome Rosalie
nação poulard encontra-se em um contrato registrado, em 1793, na cidade de
Jérémie, localizada no litoral norte da península situada ao sul da então
colônia francesa de Saint Domingue, ou São Domingos, em português (chamada
Haiti depois da Independência). No documento, uma mulher livre negra de nome
Marthe Guillaume [Aliés], marchande(comerciante), vendeu uma escrava de nome
"Rosalie nação poulard" para um mulâtre(mulato) liberto de nome Jean-Baptiste
Mongol, que era açougueiro. Apesar da distância dos centros de produção
açucareira do norte e do oeste da colônia, o distrito de Jérémie contava com um
grande número de escravos, a maioria empregada na produção de café, e outros
trabalhando na cidade ou como empregados domésticos.7 O termo "poulard", na
designação de Rosalie, referia-se aos falantes da língua pulaar e, por
extensão, ao grupo geralmente denominado peul, em francês, fulani, em inglês, e
fula, em português. Evidentemente Rosalie fora escravizada alguns anos antes,
em alguma parte da extensa região onde os fulas viviam dispersos, que se
estende do vale do rio Senegal até o norte do litoral da Guiné e, no interior,
para além do Mali. Ela provavelmente fora comprada no "Trato de Galam", como
era chamado o sistema de comboio de barcos que viajavam rio acima, saindo do
porto da ilha de Saint-Louis, no Senegal, para trocar tecido, papel e outras
mercadorias por goma-arábica (usada na fabricação de tecidos), marfim, milhete
e cativos.8 É possível que ela tivesse sido trazida para as Américas em um
navio negreiro inglês e logo transportada a Jérémie por uma rota de contrabando
muito movimentada no período anterior à Revolução Francesa, que ia da Jamaica
para o sudeste de São Domingos. Pela idade de Rosalie, no entanto, parece mais
provável que tivesse chegado em um navio francês, que saíra do porto de Saint-
Louis no rio Senegal, em algum momento entre 1779, quando os franceses
retomaram Saint-Louis dos ingleses, e 1792, quando o comércio de cativos nas
Antilhas foi interrompido por causa da revolução em São Domingos e na França.9
Etnônimos designando as origens das pessoas da Senegâmbia eram relativamente
pouco comuns em São Domingos. A maioria dos escravos nascidos na África aparece
nos documentos com os etnônimos congo, arada, ou nagô, o que sugere serem
provenientes de regiões localizadas mais ao sul da África, no caso dos congos
bem mais ao sul. Mesmo entre os aproximadamente 10% dos escravos nascidos na
África que vieram da Senegâmbia, os etnônimos bambara, senegal ou mandingo eram
mais comuns do que poulard. Desse modo, enquanto um nome como Jean congo podia
referir-se a vários moradores de uma determinada região, diversas menções ao
nome Rosalie nação poulard, dado a uma jovem que vivia na relativamente pequena
comunidade de Jérémie, provavelmente referia-se a uma única pessoa.10
Quando o nome de Rosalie nação poulard apareceu pela primeira vez nos
documentos dos arquivos, a França já estava em revolução havia três anos e
meio, com repercussões em todas as suas colônias. Homens e mulheres livres de
cor sabiam que aquele era o momento de lutar pelos direitos que lhes haviam
sido negados.11 Mesmo no contexto extremamente complexo de acontecimentos que
atualmente denominamos de Revolução Haitiana, os conflitos no distrito de
Jérémie foram especialmente tumultuados. À revolta dos escravos na planície do
norte, em agosto de 1791, seguiu-se a da península do sul, região na qual
escravos e pessoas livres de cor lutaram para quebrar o monopólio do poder de
seus vizinhos brancos. Em dezembro de 1791, o Conselho Municipal de Jérémie foi
atacado por indivíduos que eles chamaram de arruaceiros e os representantes (ou
delegados) da França revolucionária imploraram a seu governo que mandasse
ajuda. Na opinião dos delegados, tinham sido os homens livres de cor que haviam
instigado a rebelião dos escravos nos distritos agrícolas da região.12
Embora algumas famílias de descendência mestiça fossem proprietárias de grandes
plantações de café e de vários escravos, e com partilhassem, assim, os
interesses econômicos dos seus pares brancos, outros simplesmente trabalhavam
no interior, na lavoura ou nas cidades, como artesãos, permanecendo muito
ligados aos que continuavam no cativeiro. Foi nesse cenário, no início da
década de 1790, que Rosalie nação poulard se tornou escrava de um homem de nome
Alexis Couba, que, por sua vez, conquistara sua própria liberdade em 1778.
Couba, a princípio, teve uma escrava de nome Anne, com a qual se casou em 1781.
De acordo com o Code Noir, que formalmente governava esses assuntos, Anne
tornou-se livre em virtude de seu casamento. Alexis Couba decidiu comprar mais
uma escrava: Rosalie nação poulard, que ele transferiu, em seguida, para a
marchande(comerciante) Marthe Guillaume.13
Então, no começo da década de 1790, Rosalie nação poulard tornou-se escrava da
casa de Martha Guillaume, uma família ligada através do casamento a outras
famílias livres de cor do interior, e comandada por uma mulher que sabia como
lidar com as leis e com a escrita formal. Marthe Guillaume possuía várias
propriedades no centro da cidade, e uma de suas filhas casara com um integrante
da família de Noël Azor, um homem de cor engajado nas perenes lutas políticas
da época. A natureza das transações comerciais de Marthe Guillaume requeria que
ela comparecesse com frequência diante do tabelião, a quem era obrigada a
apresentar prova de sua liberdade a fim de receber autorização para firmar seus
contratos. Aparentemente Rosalie e Marthe Guillaume tornaram-se relativamente
próximas. Em um rascunho de seu testamento, de janeiro de 1793, Marthe
Guillaume expressou sua intenção de conceder a liberdade a Rosalie. Mas, alguns
dias mais tarde, mudou de ideia e vendeu Rosalie ao açougueiro Jean-Baptiste
Mongol.14
No entanto, os acontecimentos na colônia transcorriam rapidamente, colocando em
questão toda a estrutura hierárquica, os privilégios de cor e a posse de
pessoas. Em abril de 1792, com o intuito de apaziguar a população livre de cor
e evitar mais rebeliões, os delegados da Assembleia Nacional, em Paris,
enquanto ganhavam tempo para debater a questão da escravidão, decidiram que a
lei não reconheceria mais a distinção de cor entre cidadãos franceses.
Entretanto, nas colônias, os proprietários de terras brancos não tinham a menor
intenção de permitir que pusessem fim a essas distinções, resistindo
ostensivamente e gerando mais confrontos com seus vizinhos de cor. Quando a
Câmara Municipal de Jérémie foi convocada, e entre seus membros não se contava
sequer uma pessoa de cor, recomeçaram os protestos das "anteriormente
denominadas pessoas de cor", seguidos de revoltas no interior.15
Os comissários enviados pela República Francesa para tentar controlar a crise
perceberam que esse tipo de impasse poderia abalar ainda mais a ordem na ilha.
Em junho de 1793, os comissários já estavam convencidos de que a única forma de
assegurar a colônia para a França seria aproveitar a onda de reivindicações
feitas pelos escravos e pessoas livres de cor e usar a energia do momento para
impedir tanto uma contrarrevolução por parte dos brancos, quanto a invasão dos
espanhóis que controlavam a outra metade da ilha de Hispaniola. Os comissários
começaram a formar Legiões da Igualdade grupos armados formados por pessoas de
cor e tomaram a decisão fundamental de declarar a abolição da escravatura no
norte. Esses decretos seriam estendidos ao sul em outubro de 1793. Em lugares
como Jérémie, a escravidão chegaria ao fim oficialmente em pouco tempo, com a
lei deixando de reconhecer, a partir de então, o direito de propriedade sobre
homems e mulheres.16
Diante da possibilidade de perder o controle sobre as pessoas que mantinham em
cativeiro, um grupo de abastados proprietários brancos, incluindo homens de
Jérémie, buscou a ajuda dos ingleses. Com a chegada do outono de 1793, os
ingleses se dispuseram a entrar no conflito com a dupla intenção de desafiar os
franceses e apoderar-se de parte da ainda próspera colônia. Soldados ingleses,
vindos da Jamaica, desembarcaram em Jérémie no final de setembro de 1793. A
presença dessas tropas, a partir de 1793, resguardou os donos de escravos no
distrito de Jérémie dos efeitos legais da abolição da escravidão alcançada
pelos rebeldes. Contudo, os ingleses enfrentariam uma pressão contínua do
general André Rigaud, homem de cor que lutava na região sul em nome da
República da França. No final de 1794, as forças republicanas recuperaram o
controle de Léogane, no leste, e de Tiburon, no sul. Ao mesmo tempo, os
ingleses enfrentaram o que um colono descreveu como "une masse de Canaille
attachée à la République" (uma massa da canalha ligada à República), ou seja,
alguns indivíduos brancos que não faziam parte da elite, além de outros
cidadãos que se recusaram a passar para o lado das forças de ocupação
britânicas.17
Apesar dos ataques republicanos a um forte próximo ao povoado litorâneo de Les
Abricots, os ingleses se mantinham, em dezembro 1795, no controle de Jérémie.
Nesse mesmo ano, Marthe Guillaume, que tinha reavido a posse de Rosalie,
procurou um tabelião, não para vender a escrava, mas para registrar seu
affranchissement (a alforria individual de Rosalie), denominada négresse de
nation Poulard (negra de nação poulard). O texto do documento referiu-se apenas
à lealdade de Rosalie como motivo para a concessão da alforria, não mencionando
nenhum pagamento por parte da ex-escrava ou de qualquer outra pessoa embora
algum tipo de pagamento possa ter sido feito sem o conhecimento do tabelião. O
documento concedeu à Rosalie a liberdade plena e a instruiu a obedecer as leis
que governavam as pessoas libertas da colônia. Marthe Guillaume prometeu
empenhar-se para conseguir das autoridades inglesas em Jérémie a ratificação
formal da liberdade de Rosalie.18
No entanto, a relação entre direito e escravidão passava por um momento de
contínua mudança. Com as forças antiescravagistas republicanas a pressionar nos
arredores da área sob domínio dos ingleses, e com o governador inglês
prometendo a liberdade a alguns negros, a fim de persuadí-los a alistar-se no
exército britânico de ocupação, não era fácil manter a subordinação social
necessária para a manutenção do cativeiro. Ao mesmo tempo, os mesmos
fazendeiros que aconselhavam o governador inglês, instigaram-no a proibir as
alforrias que não fossem para fins militares ' na opinião deles, já existiam
muitos homens livres de cor na colônia e a alforria individual de mulheres
acarretaria a perda da força de trabalho de seus futuros filhos.19 Sendo assim,
a condição de Rosalie ficou ambígua. Sua ex-proprietária não exercia mais poder
sobre ela, contudo, sem uma carta de alforria devidamente ratificada, Rosalie
se tornara uma pessoa livre, mas vulnerável.
Nos anos que se seguiram, os ataques contra a ocupação britânica na colônia
ganhariam força e, em 1798, os ingleses retiraram suas tropas.20 Os
republicanos assumiram o controle e o general Rigaud foi reconhecido pelos
franceses como governador dessa região de São Domingos. A abolição podia então,
em princípio, ser implementada por completo na região de Jérémie. Todos que
haviam sido escravizados anteriormente, a partir desse momento seriam
designados affranchis,cultivateurs, ou simplesmente nègresenégresses libres.
Como todos os outros, Rosalie era agora legalmente livre.21
No ano seguinte, ela aparece nos documentos com o nome de Marie Françoise dite
Rosalie négresse libreMarie Françoise, chamada Rosalie, negra livre. A
referência ao nome de batismo, Marie Françoise, juntamente com o de Rosalie,
pelo qual era conhecida, é intrigante. Como este era um registro sacramental,
talvez o nome de batismo tivesse que constar para satisfazer os critérios da
Igreja.22 Esse foi um acontecimento importante: o padre da paróquia de Cap-
Dame-Marie, que servia ao distrito rural de Les Abricots, estava registrando
Rosalie como mãe de uma filha natural que ele batizou com o nome de Elisabeth
Dieudonné.23 O termo filha natural indicava que os pais não eram casados. O pai
da criança, no entanto, estava presente e reconheceu a paternidade.
O nome do pai foi registrado simplesmente como Michel Vincent, sem título de
distinção. Por ser europeu e proprietário, Vincent talvez esperasse ser chamado
de Sieur. De acordo com outros documentos que encontramos, seu nome completo
era Michel Étienne Henry Vincent, e ele era proprietário de uma pequena fazenda
no litoral, em Les Abricots. Filho de um tabelião de Le Mans, na França, havia
emigrado para São Domingos por volta de 1770, adquirindo (e em seguida
perdendo) o monopólio da arrecadação de impostos sobre a venda de carnes no
distrito de Les Cayes. Vincent havia se casado com uma viúva rica, mas sua
esposa habilmente tratara de assegurar as propriedades dela para os filhos de
seu casamento anterior. Aparentemente arruinado financeiramente, Michel Vincent
recomeçou na região cafeeira dos arredores de Jérémie. A cidade de Jérémie
tinha 180 casas em 1789, várias delas propriedade da marchande Marthe
Guillaume, que as alugava aos europeus. Michel Vincent não tinha muitas
propriedades, mas, de vez em quando, procurava o tabelião para vender pequenos
lotes de suas terras em Les Abricots para vizinhos, incluindo o cidadão Jean,
conhecido por Tomtom, e a cidadã Olive, ambos designados cultivateurs, termo
geralmente usado para designar ex-escravos na zona rural. Em meados dos anos de
1790, a esposa de Michel Vincent já havia falecido. Não é difícil imaginar em
que circunstâncias esse viúvo francês em decadência social encontrou Rosalie
nação poulard.24
De acordo com as regras do ancien régime, a presença de Michel Vincent como pai
da criança no batismo de 1799 não equivalia à legitimação. No entanto, de
acordo com as controvertidas regras revolucionárias francesas, os filhos
naturais podiam, sob certas circunstâncias, requerer a sua parte na herança
juntamente com os filhos legítimos. Ninguém podia prever que leis estariam em
vigor quando Michel Vincent morresse, mas parece que sua intenção, ao
reconhecer a paternidade da filha e dar a ela uma madrinha e um padrinho, com
os quais pudesse contar numa emergência, era assegurar o futuro da pequena
Elisabeth. O padrinho era Sieur Lavolaille, um marceneiro naval. A madrinha era
Marie Blanche Peillon, ou viúva Aubert. Assim como o pai, a madrinha não trazia
no nome nenhum título nem nenhuma designação de cor. Aparentemente, ela tinha
status suficiente para impedir que o padre lhe atribuísse uma marca de cor. No
entanto, alguns anos mais tarde, documentos produzidos na Louisiana referem-se
a ela como uma femme de couleur libre (mulher livre de cor).25
Embora as relações sociais escravistas do ancien régime tivessem sido abaladas
pela revolução haitiana, a liberdade conquistada pelos escravos continuava sob
ameaça em 1799. Napoleão Bonaparte havia consolidado seu poder na Europa e
buscava subjugar os livres e os recém-libertos em São Domingos, implementando
sua visão de um império americano. No final de 1801, com a França sob o regime
do Consulado, Bonaparte enviou uma expedição sob o comando de seu cunhado, o
general Victor-Emmanuel Leclerc, para arrancar o poder das mãos dos homens
negros e pardos que haviam recebido o título de general em São Domingos. O
comandante do distrito de Jérémie tentou resistir, mas as tropas francesas
conseguiram entrar na cidade no início de 1802 e, em seguida, receberam
reforços por mar. Em maio de 1802, o governo de Paris autorizou o recomeço do
tráfico transatlântico de escravos, que tinha sido proibido pela França
revolucionária, e restaurou a escravidão na colônia francesa de Martinica,
indicando a intenção de Bonaparte de restabelecer a escravidão também em São
Domingos.26
Os soldados negros em São Domingos que haviam se mantido leais à república
francesa percebiam os riscos crescentes que acompanhavam uma possível
reocupação francesa sob o comando de Napoleão Bonaparte. Os comandantes
franceses, por sua vez, tornavam-se cada vez mais desconfiados dos negros que
permaneciam nas suas tropas, e a hostilidade desses comandantes em relação aos
seus próprios soldados negros provocou mais deserções para o lado adversário.
Em 1802, o general Leclerc informou que a insurreição havia irrompido em
Jérémie e que fazendas haviam sido incendiadas. As últimas cartas escritas pelo
general, antes de morrer de febre amarela, dão uma ideia da situação na
colônia: "Os negros estão convencidos pelas cartas que chegam da França, pela
lei que autoriza o tráfico de escravos e pelos decretos do general Richepanse
que reinstituiram a escravidão em Guadeloupe, de que queremos escravizá-los".
"Esses homens", ele escreveu, "não querem desistir". O rumor de que os
franceses, em breve, seriam expulsos se estava espalhando. Os soldados negros
que restavam nas tropas francesas passaram rapidamente para o lado dos
rebeldes, levados pelas circunstâncias e em resposta ao desdém e à violência de
Leclerc e de seu sucessor, o general Donatien Rochambeau.27
Nas últimas semanas de março de 1803, Rochambeau ordenou ataques coordenados de
forças francesas e de legionários poloneses nas cidades do sul controladas
pelos rebeldes, porém não obteve sucesso. Quando os revolucionários negros
partiram do sul na direção de Jérémie, cercando as guarnições francesas que
encontravam no caminho e fazendo os soldados inimigos passarem fome, alguns
trabalhadores das fazendas de Les Abricots juntaram-se à insurreição. Os
revolucionários usaram o fogo como sua arma mais poderosa, queimando campos e
morros cultivados.28
Foi em 10 de maio de 1803 que se produziu outro documento no qual o nome de
Rosalie aparece. Com a chegada iminente da guerra, Michel Vincent fez planos de
partir para a França, mas sem Rosalie ou seus filhos. Ela se viu diante da
possibilidade de se tornar mãe solteira e refugiada de guerra em uma região
literalmente em chamas. Diante das circunstâncias, Michel Vincent foi
aparentemente convencido ' provavelmente pela própria ' Rosalie de que se ia
abandoná-los, devia então se empenhar em produzir um documento que reforçasse
sua liberdade legal e de seus filhos. Sem o auxílio de um tabelião, mas
aparentemente usando como modelo um documento de alforria anterior, Michel
Vincent preencheu uma folha de papel com uma linguagem jurídica improvisada.
Afinal, ele era filho de tabelião e tinha certa intimidade com esse tipo de
linguagem. O documento foi escrito em uma circunstância de muito perigo, com a
finalidade de evitar o pior. Caracterizou-se como algo entre um texto e um
talismã, uma declaração não oficial com a finalidade de ter a mesma força legal
de um documento registrado em cartório, mas sem a assinatura de um tabelião.29
Esse texto de 1803 começa por identificar Marie Françoise, chamada Rosalie,
como négresse de nation Poulard(negra de nação poulard). Nas linhas seguintes,
Michel Vincent declarou que Rosalie e seus quatro filhos eram seus escravos, o
que era uma mentira. Ele enumerou as crianças: "Juste Theodore Mulatre, Marie
Louise dite Resinette Mulatresse, Etienne Hilaire dit Cadet Mulatre, et
Elisabeth dite Dieudonné Mulatresse". Étienne, o menino mais novo, recebera um
dos sobrenomes do próprio Michel Vincent. Elisabeth fora reconhecida como filha
na cerimônia de batismo. Todos foram designados mulâtre ou mulâtresse,
indicando uma descendência mista de africanos e europeus. É bem provável que
Michel Vincent fosse o pai de todos os filhos de Rosalie.30
Michel Vincent, então, concedeu a liberdade a Rosalie e a seus quatro filhos,
usando a linguagem, convencional nestes casos, de gratidão pela lealdade e
pelos serviços prestados por ela "na doença e na saúde". Ele prometeu não
demandar mais os serviços da ex-escrava, com exceção dos que ela quisesse
prestar por livre e espontânea vontade e pelos quais ele pagaria um salário.
Ela estava livre para ir aonde quisesse e decidir sobre os rumos de sua vida.
Ele declarou que o documento devia ser tratado como se tivesse o mesmo poder de
um documento autenticado por um tabelião. Diante da possibilidade de sua
partida para a França, outorgou poderes ao portador do documento para "obter
sua ratificação perante os governantes da colônia, ou em qualquer outro país
aliado da França onde a dita négresse estabeleça residência".31
O conteúdo desse documento de alforria de 1803 é muito estranho. sabemos que
quatro anos antes Rosalie fora designada négresse libre(negra livre), quando
Michel Vincent fora batizar sua filha Elisabeth Dieudonné, e que esta nascera
livre. A própria Rosalie fora provisoriamente liberta pela alforria concedida
por Marthe Guillaume em 1795 e, mais tarde, havia conquistado sua liberdade
plena em virtude dos decretos de emancipação aprovados pela Assembleia Nacional
francesa. Então, por que Rosalie e seus filhos precisavam ser alforriados mais
uma vez?
A resposta talvez tenha a ver com o poder da palavra escrita numa situação de
incerteza, e com o potencial simbólico e jurídico dos documentos, mesmo os não
oficiais. Com a guerra em andamento, era difícil prever o que ia acontecer,
sobretudo se a abolição da escravidão em São Domingos seria mantida. Além
disso, a situação em Les Abricots estava se tornando tão perigosa que Rosalie
talvez precisasse fugir para uma das ilhas do Caribe e em quase todos os outros
lugares das Américas a escravidão ainda vigorava. Mesmo as mais rígidas
sociedades escravistas geralmente reconheciam o direito dos senhores de
alforriar seus escravos, contanto que fossem respeitadas as regras
governamentais de cada país.32 Portanto, uma alforria individual assinada por
um homem branco, que se declarava senhor de escravos, provavelmente tinha mais
eficácia do que um decreto da república francesa (ou que o documento particular
criado por Martonne, mulher negra, durante a ocupação das forças britânicas). E
Michel Vincent teria que os declarar todos eles, até mesmo seus filhos, como
escravos, para ter a autoridade para libertá-los. 33
O plano de Michel Vincent de partir para França nunca se materializou. Em meio
aos tumultos de maio e junho de 1803, ele provavelmente não teve como conseguir
passaporte, ou não teve dinheiro para a passagem, ou não encontrou um
comandante de navio disposto a levá-lo. Talvez o seu estado de saúde tenha
piorado, ou, quem sabe, tenha-lhe faltado coragem quando chegado o momento de
deixar os filhos, ou ainda, ele simplesmente não tivesse ajeitado as coisas a
tempo. O relato de uma testemunha sobre essas semanas, escrito por um
fazendeiro e oficial francês, Peter Chazotte, nos permite visualizar o que
aconteceu a seguir.
Chazotte escreveu que, em junho de1803, diante do avanço de rebeldes negros do
sul, o general francês Sarrazin ordenou às suas tropas e às legiões polonesas
sob seu comando que se retirassem dos distritos rurais nos arredores de
Jérémie. Chazotte ficou irritado com a decisão, que considerou covarde, mas foi
de fazenda em fazenda transmitindo a ordem e mandando os civis fugirem. Ele
logo seria informado de que "o país [...] do outro lado da nossa montanha
estava todo em chamas". À medida que as chamas se aproximavam, as pessoas
procuravam refúgio e alguma maneira de fugir. Na baía em Les Abricots, "tendo
somente duas embarcações pequenas, tomou-se a decisão de embarcar primeiro as
mulheres e as crianças brancas e depois as de cor". Aqueles que não puderam
embarcar ' uma multidão de retirantes negros, brancos e pardos, levando somente
o que conseguiam carregar ' arrastaram-se a pé pela estrada de terra até
Jérémie. "Abandonamos a pequena cidade de Abricots no instante em que uma
fileira de mil negros invadiu com tochas acesas em suas mãos".34
A cidade de Jérémie, entrementes, não oferecia refúgio seguro. A França e a
Inglaterra estavam de novo em guerra, e as tropas francesas não podiam contar
com provisões ou reforços da França. Em poucos dias, a cidade seria evacuada
pelo comandante francês, cujas tropas francesas e polonesas sitiadas estavam
quase morrendo de fome. Alguns civis juntaram-se aos revolucionários, esperando
pelo melhor; outros tentaram escapar de barco. Navios inimigos ingleses,
rondando a área, capturaram alguns dos barcos que tentavam fugir, tanto
militares como civis. No entanto, muitos passageiros acabaram conseguindo
chegar ao porto seguro mais próximo, Santiago, na costa leste da colônia
espanhola de Cuba.35 Michel, Rosalie e pelo menos um de seus filhos estavam
entre eles.36
Santiago de Cuba
A cidade portuária cubana ficou tumultuada com a chegada dos barcos lotados com
refugiados de vários portos em São Domingos, trazendo quase dezoito mil
pessoas. Refugiados brancos, mulheres de cor, crianças e "criados domésticos
leais" recebiam permissão para desembarcar; já os soldados franceses, exaustos
e maltrapilhos, geralmente não recebiam essa autorização.37Temendo o contágio
revolucionário, as autoridades deram ordens para que todos os refugiados negros
com mais de treze anos fossem mantidos fora da cidade e deportados para o
continente (Tierra Firme) na primeira oportunidade. Do ponto de vista dos
governantes espanhóis, os ex-escravos que presenciaram ou participaram da
Revolução Haitiana representavam uma ameaça inequívoca embora alguns pudessem
talvez ser confiáveis, se aceitassem a reescravização e demonstrassem a
adequada subordinação aos seus antigos donos.38
Michel Vincent e Rosalie conseguiram chegar à terra firme, juntos ou separados,
e sua filha Elisabeth também desembarcou. Mas os outros filhos de Rosalie,
Marie Louise, Juste Théodore e Étienne Hilaire, sumiram dos documentos. Talvez
tivessem ficado para trás na revolucionária ilha de São Domingos, que em breve
passaria a ser o Haiti, ou quiçá estivessem presos nos barcos mantidos ao largo
na baía por ordem do governador espanhol. É também possível que tivessem
entrado em Cuba, clandestinamente, e se mantido longe dos funcionários
responsáveis pela escrituração de documentos e registros.39
Aparentemente, durante certo período, Michel Vincent trabalhou como
mareschal,ferreiro de cavalos e, além disso, ele e Rosalie criaram porcos e
galinhas. Com tantos cidadãos franceses em Cuba, os funcionários da Agence des
Prises de la Guadeloupe, encarregados de arbitrar sobre a propriedade dos
barcos apreendidos por navios corsários franceses, improvisaram uma resposta
temporária para tratar dos problemas dos refugiados. Não sendo um consulado nem
uma embaixada, essa repartição não tinha autoridade legal para autenticar
documentos ou oferecer serviços diplomáticos. Seu objetivo principal era criar
receita com a venda de navios confiscados e usar o dinheiro para manutenção das
colônias francesas restantes, agora bastante isoladas devido ao controle
marítimo britânico. Mas, extraoficialmente, esses burocratas faziam o papel de
uma chancelaria, copiando ou arquivando documentos relevantes que os refugiados
franceses entregavam a eles. Em 1804, Michel Vincent aparentemente ficara
doente e, em 14 de março, levou seu testamento a essa agência em Santiago, onde
o documento foi homologado.40
Três dias mais tarde, a própria Rosalie foi pedir aos mesmos funcionários para
registrar seus documentos de alforria, que tinham sido escritos em Les Abricots
dez meses antes. Com Michel à beira da morte, Rosalie aparentemente tinha
esperança de que o registro em um cartório francês desse aos seus documentos
mais força, incrementando o poder legal de sua frágil prova de liberdade. Como
Rosalie via acontecer ao seu redor, outras mulheres que chegavam de São
Domingos, livres como ela, por determinação de decretos republicanos franceses,
eram tratadas em Cuba como escravas e vendidas de um suposto senhor para outro.
Na verdade, não havia garantia de que os funcionários franceses, que estavam
buscando aumentar a receita, ficariam imunes à mesma tentação. Mas ela resolveu
arriscar.41
O escrivão francês em Santiago começou a executar sua tarefa como se estivesse
tratando com um senhor de escravo, escrevendo "Registro de Liberdade concedido
por ". Então parou, incluiu um ponto e começou outra vez com uma preposição
diferente, esclarecendo que esse texto tratava da alforria damulher de nome
Marie Françoise, chamada Rosalie. Nesse momento crucial, Rosalie estava, na
realidade, sendo autorizada a atestar sua própria liberdade. Fazendo uso do
último resquício das práticas da Era das Revoluções na França e em São
Domingos, o funcionário deu a Rosalie um título de distinção, citoyenne
(cidadã), quando transcreveu o texto dela para o registro. O funcionário também
deu a Rosalie uma cópia do novo documento assinado por ele. Na verdade, o
título de citoyenne não tinha quase nenhum valor legal e, além disso, a Agence
des Prisesnão era, na realidade, um consulado, e os serviços e documentos
processados pelos funcionários não necessariamente seriam respeitados pelos
tribunais coloniais de Cuba. Por ora, no entanto, de posse desse texto híbrido
e em companhia do homem que afirmara ser seu ex-dono e agira como tal, Rosalie
aparentemente manteve sua liberdade em Santiago. Mas, em poucos dias, Michel
Vincent estava morto, e um testamenteiro foi nomeado para executar as cláusulas
do testamento.42
O relatório do testamenteiro foi preservado nos arquivos dos funcionários
franceses em Santiago, e testemunha como um procedimento mais formal podia
desfazer os acordos negociados durante o limbo jurídico provocado pela guerra e
pela revolução. O testamenteiro François Vallée, alfaiate e imigrante de São
Domingos, começou explicando o que havia feito com os bens móveis que
pertenciam ao espólio. Ele vendera os "porquinhos", assim como os "serpes et
haches" (podões e machados), gerando uma modesta quantia de sete gourdes e
meio, equivalentes ao mesmo valor em piastras espanholas. Ele deu o cavalo
vermelho, juntamente com as galinhas e as chaleiras, para a cidadã Rosalie, que
foi identificada como légataire particulière (legatária) de Michel Vincent.
Então o testamenteiro informou que ele ia dar também a négresse Marie Louise
Désir para Rosalie, como determinava o testamento. Esta pode ter sido a filha
de Rosalie, em outros documentos chamada Marie Louise diteResinette, porém é
mais provável que fosse uma criada doméstica (provavelmente escravizada) de
Michel Vincent. O testamenteiro disse que, por causa da dívida que recaía sobre
o espólio, ele não entregara Marie Louise para Rosalie, significando que ela
seria mantida pelo testamenteiro como empregada, ou vendida como escrava, para
pagar os credores de Michel Vincent.43
Elisabeth Dieudonné, a filha de Rosalie que nasceu livre, já estava ou iria em
breve morar com a madrinha, a viúva Aubert, que também fugira de Les Abricots
para Santiago. Mas, contar com a ajuda de refugiados mais prósperos de São
Domingos era uma estratégia arriscada, já que muitos deles estavam
transformando em escravos as pessoas de cor que haviam fugido junto com eles. A
viúva Aubert pode ter servido de tutora para proteger Elisabeth, sem que isso
significasse que ela rejeitava a ideia de possuir escravos. Se tratou Elisabeth
como filha, empregada, ou uma combinação dos dois, é difícil dizer.44
Além do mais, na era das guerras napoleônicas, todos os refugiados de São
Domingos em Cuba estavam vulneráveis às mudanças políticas na Europa. Quando as
tropas de Bonaparte entraram na Espanha, em 1808, a relação entre a Espanha e
qualquer cidadão francês nas colônias espanholas foi imediatamente posta em
questão. Quando os espanhóis na Península Ibérica se revoltaram contra as
forças de Napoleão, em 1809, a França passou a ser considerada inimiga também
nas colônias. Tempos antes, o governo colonial espanhol havia oferecido a
alguns refugiados em Cuba a possibilidade e jurar fidelidade à coroa espanhola,
e as autoridades locais ficaram satisfeitas com o aumento do cultivo do café
pelos lavradores imigrantes. Mas, depois das revoltas na península, existia uma
pressão forte para a expulsão dos franceses das colônias espanholas, obrigando
até mesmo os seus protetores a agir contra eles. Em abril de 1809, o governador
ordenou que todos os franceses deixassem a ilha.45
Para Rosalie e sua filha Elisabeth a situação ficou insustentável. Elas não
estavam protegidas pelas leis da abolição geral de 179394, que, aliás, não
seriam mais sustentadas por nenhum funcionário francês. Além disso, elas faziam
parte de uma população de refugiados cujos membros mais abastados tinham
rapidamente retomado os hábitos da sociedade escravista. Agora estavam todos a
ponto de serem expulsos. Os que receberam ordens de partir teriam que,
novamente, tentar achar um navio, dinheiro para passagem e passaportes. Outra
vez a família seria separada: Elisabeth foi para Nova Orleans com sua madrinha,
a viúva Aubert. Rosalie uma mulher africana cujo status de pessoa livre seria
muito frágil em qualquer sociedade escravista aparentemente permaneceu em
Santiago, achando depois um jeito de retornar ao Haiti, agora independente. Não
temos nenhum documento sobre o destino dos outros três filhos dela.46
Nova Orleans
Durante os meses da primavera e do verão de 1809, dúzias de navios repletos de
refugiados de língua francesa, vindos do leste de Cuba, chegaram ao porto de
Nova Orleans. O governador do território, William C. C. Claiborne, viu-se
diante de um problema político imenso. Muitos dos homens e das mulheres a bordo
das embarcações afirmavam que outros passageiros eram seus escravos. Esses
"escravos" incluíam mulheres e homens libertos de São Domingos, alguns dos
quais haviam sido reescravizados em Cuba, bem como outros comprados como
escravos na ilha. Um pouco antes, porém, o Congresso dos Estados Unidos havia
proibido o tráfico internacional de cativos, sendo assim, ninguém podia
legalmente trazer escravos de fora para dentro do país. Uma solução lógica
teria sido reconhecer formalmente os decretos da abolição Francesas de 1793-94
e declarar livres todos os que vieram de São Domingos. Mas esse não era o tipo
de solução que um governador de uma sociedade escravista do território da
Louisiana quisesse ou pudesse considerar. Em vez disso, o governador W. C. C.
Claiborne tratou as circunstâncias como extraordinárias e, finalmente, permitiu
que os passageiros desembarcassem, alguns como homens e mulheres livres, outros
como escravos.47
A viúva Aubert, madrinha da filha de Rosalie, Elisabeth, conseguiu chegar de
Santiago a Nova Orleans. O companheiro da viúva, Jean Lambert Détry, um belga
dono de pousada que virou marceneiro, comprou dois lotes de terra em Faubourg
Marigny, próximo ao rio, na Rue Moreau. Détry começou a trabalhar como
construtor, empregando vários escravos como serradores. A viúva rapidamente
tornou-se uma mulher de negócios, vendendo e comprando propriedades e escravos.
Foi na casa dessa mulher que a jovem Elisabeth Dieudonné foi criada, com a
viúva servindo de mãe substituta' e talvez também de patroa.48
Quando Jean Lambert Détry faleceu em 1821, deixou um "testamento lacrado" '
quer dizer, um testamento preparado confidencialmente e lacrado no tabelião.
Legou a maior parte de suas propriedades para duas jovens de cor que eram as
filhas naturais de seu amigo e testamenteiro François Xavier Freyd, mas deu
usufruto vitalício da maior parte de suas propriedades para a viúva Aubert, que
viveu até os 90 anos. Ele estipulou que dois de seus escravos deveriam ser
libertados assim que atingissem "a idade exigida por lei para a alforria".49
Détry também designou um legado de quinhentos dólares para a afilhada de
Aubert, Elisabeth Dieudonné, filha de Michel Vincent e Rosalie. Détry explicou
o legado, referindo-se a ela como sua afilhada, embora tecnicamente não fosse o
caso. Talvez os anos de convivência com a viúva Aubert tivessem dado a ele esse
status de fato.50 Na verdade, ao longo de seu duradouro relacionamento conjugal
com a viúva Aubert, Lambert Détry estabelecera uma extensa rede de dependentes,
a maioria pessoas livres de cor. Détry não mencionou no seu testamento qualquer
herdeiro necessário que pudesse existir na Bélgica, mas, após sua morte, um
grupo de parentes contratou um advogado e tentou invalidar seu testamento, com
o argumento de que ele vivera abertamente em concubinato com a viúva Aubert.
Eles chegaram rapidamente a um acordo, recebendo uma parte dos bens.51
Com a promessa do legado de Détry em mãos, Elisabeth Dieudonné (às vezes
chamada Marie), agora com vinte e três anos, ficou noiva de um jovem chamado
Jacques Tinchant, filho de Suzette Bayot, uma imigrante de cor de São Domingos.
Quando o contrato de casamento foi redigido, em 1822, foi a viúva Aubert quem
compareceu com a noiva ao cartório. Ela afirmou que era como uma mãe para
Elisabeth, desde quando esta era criança; afirmou ainda que, naquele momento, a
mãe biológica da noiva não estava morando em Nova Orleans, mas no lugar que a
viúva continuava a chamar de "Saint-Domingue". A mãe de Elisabeth tinha tomado
o nome do homem que nunca a desposara, Rosalie Vincent.52
Pouco mais de um ano depois do casamento, Elisabeth Dieudonné e Jacques
Tinchant se afastaram da viúva.53 Jacques prosperou profissionalmente como
marceneiro e construtor e, em 1835, foi a um cartório para constituir uma
sociedade formal com seu meio irmão, Pierre Duhart, com o objetivo de comprar
terrenos, construir casas e vendê-las. Adquiriram dois escravos cujo trabalho
complementava o deles.54 À medida que Jacques e sua esposa ascenderam como
proprietários e tiveram filhos, alguns dos documentos que haviam assinado
antes, aparentemente, passaram a ser motivo de preocupação para eles. Em
novembro de 1835, foram a um cartório para retificar o nome de Elisabeth na
certidão de casamento. O casal agora tinha em mãos uma cópia da certidão de
batismo de Elisabeth, na qual seu pai, Michel Vincent, reconhecia a paternidade
da menina. Então, pediram que o nome dela fosse corrigido e que aparecesse no
documento como Elisabeth Dieudonné Vincent.55
O aparecimento repentino e muito conveniente da certidão de batismo trinta e
seis anos depois do batizado e quinze anos depois do casamento de Elisabeth foi
para nós, inicialmente, um enigma. Porém, existe uma pista: o documento que
eles apresentaram não foi o original de 1799, mas uma cópia feita por um
funcionário haitiano, em 1823. Dado o que sabemos sobre Rosalie Vincent, surge
uma hipótese. Rosalie demonstrou estar ciente da importância de um documento
oficial quando, ainda em Les Abricots, conseguiu que Michel Vincent produzisse
um documento de alforria e, ainda mais, quando levou esse documento para ser
recopiado por um funcionário francês em Santiago. É possível que, enquanto
criança, vivendo numa sociedade muçulmana do vale do rio Senegal, a mulher mais
tarde chamada Rosalie tivesse aprendido a importância da palavra escrita ou de
um amuleto, também escrito, que oferecesse proteção.56 Se Rosalie trouxe essa
noção com ela da África ocidental ou a aprendeu na casa da comerciante Marthe
Guillaume na Place d'Armes, em Jérémie, ou a descobriu por si mesma na casa de
Michel Vincent, em Les Abricots, o fato é que ela compreendia a importância que
tinham os documentos escritos.
Uma função dos documentos oficiais é tornar irrelevante a complexidade dos
fatos anteriores nos quais se baseiam. Sua natureza oficial intrínseca torna
peremptória a palavra escrita ' ela substitui a história complicada que existe
por trás dela.57 "Rosalie é minha escrava e por meio desta eu a declaro livre."
Com uma assinatura oficial, essas palavras podiam tornar-se o tipo de carta de
alforria que uma mulher africana, vivendo na cidade escravista de Santiago,
precisava possuir para exibir, caso fosse parada ou interrogada, ou tivesse
assuntos para tratar que exigissem registro em cartório. Não importava que não
fosse escrava quando saiu de São Domingos, e que Michel Vincent provavelmente
nunca tivesse sido seu dono. A escravidão foi uma criação do direito positivo e
tal lei positiva fora abolida em São Domingos. Mas em sociedades escravistas
como Cuba, onde se presumia que a maioria dos africanos e dos seus descendentes
diretos fossem escravos, a liberdade também foi uma criação do direito
positivo. Então Rosalie, considerada livre em um sistema de governo, teve que
achar uma maneira de se tornar livre em outro, e conseguiu.
A filha de Rosalie, Elisabeth, enfrentou um desafio diferente. Sua liberdade
não foi questionada, mas, porque era filha natural e não tinha o sobrenome do
pai, sua legitimidade e posição social, sim. Mesmo o casamento religioso com
Jacques Tinchant não havia conseguido eliminar o estigma. Porém, talvez Rosalie
pudesse fazê-lo. Em abril de 1835, um navio de dois mastros, a escuna Ann,
aportou em Nova Orleans, vindo de Port-au-Prince, Haiti. Na lista de
passageiros encontramos o nome Rosalia Vincent. A versão em espanhol do nome
Rosalie talvez seja do tempo em Cuba, mas sabemos de onde veio o sobrenome
Vincent. É provável que tivesse sido Rosalie quem conseguiu uma cópia da
certidão de batismo de Elisabeth com as autoridades em Jérémie, talvez um pouco
depois de seu casamento, em 1822. Ela então embarcou num navio levando o
documento com ela para Nova Orleans, onde o poder do mesmo podia ser
incrementado a partir do registro em um cartório.58
Tendo encontrado um tabelião disposto a considerar o documento como prova
suficiente de paternidade, Elisabeth Dieudonné passou a reivindicar o direito
ao sobrenome Vincent de seu pai. Por causa da distinção feita no Código Civil
da Louisiana entre reconhecimento e legitimação, não fica totalmente claro se o
nome de Michel Vincent na certidão de batismo conferia à sua filha natural o
direito de adotar seu sobrenome legalmente. Mas esse tabelião de Nova Orleans,
que por muitos anos tratara dos negócios de Jacques Tinchant, concordou.59
Quando o nome de Elisabeth Vincent apareceu em documentos subsequentes, não
parecia ser mais o nome da filha de uma ex-escrava, pelo contrário, não se
podia distinguir o seu nome dos de pessoas nascidas em famílias que sempre
haviam sido livres.60
Conseguimos uma confirmação definitiva de que Rosalie Vincent, agora com quase
setenta anos, conseguira chegar à Nova Orleans. Em 1836, Jacques Tinchant e
Elisabeth Vincent levaram seu filho mais novo para ser batizado na catedral de
Saint-Louis, no coração de Vieux Carré. Eles o batizaram com o nome Juste '
nome do irmão de sua mãe, filho de Rosalie, que desaparecera durante a fuga de
Jérémie, trinta anos antes. Foram necessárias três gerações para que se
chegasse a esse ponto, mas assim como seus irmãos mais velhos, o menino Juste
foi designado filho legítimo e não filho natural. Alfred Duhart ' filho do
maçom e professor Louis Duhart, de Nova Orleans, e da mãe de Jacques Tinchant,
Suzette Bayot ' foi o padrinho. A mulher que escolheram para madrinha não
marcou a certidão de batismo com seu próprio traço, mas o padre registrou o seu
nome: Rosalie Vincent.61
Epílogo e conclusão
Em 1836, a escravidão estava endurecendo na Louisiana, logo o poder legislativo
do estado tentaria impedir a ascensão social de pessoas livres de cor em quase
todas as frentes. A mãe de Jacques Tinchant, Suzette Bayot, já havia deixado de
vez os Estados Unidos e ido de navio para a França, estabelecendo-se nos
Basses-Pyrénées, onde conseguiria legalizar sua união com Louis Duhart.62
Alguns anos mais tarde, seu filho Pierre, meio irmão e sócio de Jacques
Tinchant em Nova Orleans, também se mudou para Gan, perto de Pau, na mesma
região, onde se casou com uma jovem francesa. Em 1840, Jacques Tinchant e
Elisabeth Vincent, acompanhados de quatro dos seus cinco filhos, também
partiram. O filho mais velho deles ficou em Nova Orleans. A história de suas
vidas na França, o nascimento do filho Edouard, o estabelecimento pela família
de uma firma de importação e exportação de charutos na Bélgica, e a vida de
seus filhos em Gan, Pau, Veracruz, Nova Orleans, Mobile e Antuérpia é muito
longa para contarmos aqui.63 Mas podemos concluir retornando ao extraordinário
momento da história da Louisiana com o qual iniciamos este artigo.
O neto de Rosalie Vincent, Edouard Tinchant' filho mais novo de Jacques e
Elisabeth 'chegou a Nova Orleans, vindo da Antuérpia, em 1862, com 21 anos.
Nascido na França, ele chegava à cidade que seus pais haviam deixado porque seu
pai se recusara a criar os filhos numa cidade caracterizada por "leis infames e
preconceitos estúpidos", segundo escreveu mais tarde o próprio Edouard. Depois
de servir como voluntário no Exército da União, Edouard aproveitou-se de sua
eloquência política e de seu francês refinado para se destacar escrevendo
cartas ao editor do Tribune de la Nouvelle Orléans, a fim de explicar e
promover sua crença na igualdade de direitos, tornando-se ainda diretor de uma
escola para crianças libertas, quando a guerra terminou. Com o direito de voto
concedido a quase todos os homens adultos, ele ganhou a eleição para o
6ºdistrito de Nova Orleans na Assembleia Constituinte de 1867'68.64
No final, somente parte dos ideais de Edouard Tinchant seria incorporada à
constituição do estado da Louisiana de 1868. E mesmo com a lei garantindo a
igualdade de direitos civis, políticos e públicos, não foi nada fácil impor seu
cumprimento.65 Além disso, depois que a convenção terminou, Edouard Tinchant
ficou desempregado. Com sua esposa e filhos pequenos, ele passou os anos da
Reconstrução em Mobile, Alabama, erguendo sua modesta fábrica de charutos.
Quando a Reconstrução terminou e a supremacia branca saiu vitoriosa, Edouard e
sua esposa, Louise Debergue, assim como seus pais em1840, partiram de navio
para outra terra. Eles criaram os seus filhos em Antuérpia, no norte da Europa.
Se não puderam se livrar totalmente do que Edouard denominava "preconceitos
estúpidos", pelo menos puderam manter-se fora do alcance de "leis infames".66
Um pouco antes de deixar os Estados Unidos, Louise deu à luz a uma menina. Os
pais lhe deram o nome de Marie Louise, talvez por causa do nome de sua mãe, ou
porque este lembrasse o nome de alguém que tinha ligação com a mãe de Edouard:
sua irmã Marie Louise, que sumira dos documentos durante a fuga de São
Domingos. Nas gerações seguintes, os descendentes de Tinchant continuaram a
usar o nome Marie Louise, até a bisneta de Edouard, Marie-Louise Van Velsen,
que atualmente vive em Antuérpia.67
A história de vida de Edouard Tinchant e suas ideias políticas foram atlânticas
por definição. Em diferentes momentos, ele se identificou como cidadão francês,
cidadão americano, ou de descendência haitiana. Quando pesquisamos as duas
gerações anteriores e rastreamos a mulher que inicialmente recebeu o nome de
Rosalie nação poulard, por pouco tempo chamada de cidadã Rosalie, e finalmente
de Rosalie Vincent, pudemos ver que a perspectiva atlântica da família ia mais
longe ainda, do vale central do Rio Senegal à cidade de Jérémie na península do
sul de São Domingos, à populosa cidade de Santiago, em Cuba, e, finalmente, até
o Haiti independente. As convicções de Edouard Tinchant foram construídas a
partir de seu conhecimento das histórias dos homens e das mulheres de sua
família, que enfrentaram inúmeras "leis infames" associadas à escravidão. Junto
com o trauma transmitido de uma geração para a outra, também foram passados
hábitos de engajamento com a escrita e a lei. Quando Rosalie nação poulard
enfrentou a crise da guerra e o possível abandono em Les Abricots, em 1803, ela
sabia que sua situação requeria a criação de um documento que tivesse poder. E
sabia, quando Michel Vincent estava à beira da morte em 1804, que ela tinha de
assegurar que o documento de alforria por ele redigido fosse recopiado nos
assentamentos das autoridades francesas em Santiago. Décadas mais tarde, mesmo
depois de sua filha Elisabeth estar casada e com filhos, Rosalie partiu do
Haiti para Nova Orleans, aparentemente levando uma cópia da certidão de
batismo, que iria, tardiamente, dar um sobrenome a Elisabeth. Esta, por sua
vez, junto com seu marido Jacques, abandonou o aparentemente bem sucedido
negócio em Nova Orleans e mudou-se com seus filhos para a França, país onde os
meninos podiam frequentar o liceu.
Ao chegar à Louisiana, o hábito de Edouard Tinchant de usar a palavra escrita,
reforçado por seus estudos de retórica em francês e latim no lycée em Pau,
ganhou vulto em suas cartas públicas, em suas eloquentes e vigorosas
iniciativas legislativas. A repulsa pela hierarquia racial era para ele uma
questão de princípio, assim como a questão de direitos iguais para as mulheres.
Edouard não pôde mudar o passado, no qual a liberdade de Rosalie nação poulard
fora negada e no qual a reivindicação do sobrenome Vincent por sua mãe havia
exigido tanto esforço. Mas quando chegou o momento, assim como havia feito
Rosalie antes dele, aproveitou a oportunidade de escrever a liberdade no tempo
presente.
* Esta é uma versão revista de artigo publicado em John Garrigus e Christopher
Morris (orgs.), Assumed Identities: The Meanings of Race in the Atlantic World,
College Station: Texas A & M University Press, 2010. O
texto baseia-se na pesquisa para um trabalho mais abrangente, Freedom Papers:
An Atlantic Odyssey in the Age of Emancipation, a ser publicado, em 2012, pela
Harvard University Press. Tradução de Elizabeth de Avelar Solano Martins.
1 Sobre a vida de Edouard Tinchant, ver Rebecca J. Scott, "Public Rights and
Private Commerce: An Atlantic Creole Itinerary", Current Anthropology n.48
(2007), pp. 237-49. Informações sobre o trabalho de Tinchant
como diretor de escola e sobre seu compromisso com as escolas racialmente
integradas estão incluídas na minuta da reunião da comissão escolar da Paróquia
de Nova Orleans do dia 16 de setembro de 1867, e encontram-se na Special
Collections, Earl K. Long Library, University of New Orleans.
2 Official Journal of the Proceedings of the Convention for Framing a
Constitution for the State of Louisiana, Nova Orleans: J. B. Roudanez &
Co., 1867-1868), v. 35, pp. 116-17, 192.
3 A questão dos casamentos que atravessavam o que os suprematistas brancos
denominavam "linha de cor" foi levantada também nas convenções de outros
estados. Ver a discussão sobre os debates em Arkansas em Hannah Rosen, Terror
in the Heart of Freedom: Citizenship, Sexual Violence, and the Meaning of Race
in the Postemancipation South,Chapel Hill: University of North Carolina Press,
2009.
4 Em uma carta aos pais, em outubro de 1863, Edouard descreveu a tensão que
sentia ao ter que esconder as suas ideias políticas daqueles que ele descreveu
como "confederados mais furiosos", os quais costumavam reunir-se na Tabacaria
Tinchant, na avenida St. Charles. Num tom um pouco irônico, Edouard se declarou
"o abolicionista mais fanático de Nova Orleans". Ver Edouard Tinchant a Mes
chers parents, 28 Octobre 1863, nos documentos da família Tinchant; uma
transcrição dessa carta foi gentilmente fornecida por Philippe Struyf, de
Bruxelas.
5 Para uma discussão sobre a linguagem das cartas de Edouard Tinchant entre
1864 e 1899, ver Scott, "Public Rights and Private Commerce".
6 Sobre a escravidão como ausência de nacionalidade, ver Linda K. Kerber, "The
Stateless as the Citizen's Other: A View from the United States", American
Historical Review, n. 112 ( 2007), pp. 1-34, principalmente pp. 16-7.
7 A venda a Mongol encontra-se em "Vente par Marthe Guillaume a mongol de la
Nesse Rosalie", 14 de janeiro de 1793, Notary Lépine, File 6C-119, Jérémie
Papers, Special Collections, University of Florida Libraries (daqui em diante
SC, UFL). A condição de Mongol foi descrita em detalhes no
seu documento de casamento de novembro de 1787. Liberto em 1782, ele casou com
sua escrava Lisette, que alforriou em seguida, legitimando os dois filhos do
casal. St. Domingue, Etat Civil, Jérémie, 1783-1786, SOM 5Mi/60, Centre
d'accueil et de recherche des Archives nationales (CARAN). A descrição clássica
de cada paróquia da colônia encontra-se em Méderic Moreau de Saint-Méry,
Description topographique, physique, civil, politique et historique de la
partie française de l'isle de Saint-Domingue, Paris: Société Française
d'Histoire d'Outre-Mer, 2004 [orig. 1797] .
8 Sobre a história dos peul, ver Oumar Kane, La première hégémonie peule: Le
Fuuta Tooro de Koli Tenella à Almaani Abdul, Paris e Dakar: Karthala e Presses
Universitaires de Dakar, 2004. Ver também, Frédérique Dejou,
Roger Botte, Jean Boutrais e Jean Schmitz (orgs.), Figures peules, Paris:
Karthala, 1999.
9 Tendo em vista a idade atribuída a ela em um documento posterior, registrado
em cartório, estimamos que ela nasceu por volta de 1767. Sobre o tráfico de
cativos para São Domingos, ver Jean Mettas, Répertoire des expéditions
négrières françaises au xviiie siècle, org. Serge e Michèle Daget, Paris:
Société Française d'Histoire d'Outre-Mer, 1984; Boubacar
Barry, Senegambia and the Atlantic Slave Trade, Cambridge: Cambridge University
Press, 1998; Martin Klein, Slavery and Colonial Rule in
French West Africa, Cambridge: Cambridge University Press, 1998; e David Geggus, "Sex Ratio, Age and Ethnicity in the Atlantic Slave
Trade: Data from French Shipping and Plantation Records", Journal of African
History, n. 30 (1989), pp. 23-44.
10 Geggus, em "Sex Ratio", analisa os dados demográficos da população escrava
em São Domingos, dando atenção especial aos etnônimos. Também descobrimos que o
nome poulard, como designador, era muito raro nos registros dos cartórios de
Jérémie.
11 Ver, mais recentemente, Florence Gauthier, L'Aristocratie de l'épiderme. Le
combat de la Société des Citoyens de Couleur. 1789-1791, Paris: CNRS Edition,
2007.
12 Ver as cartas do prefeito e do Conselho Municipal no dossiê 13, DXXV/65,
CARAN. Ver também Carolyn Fick, The Making of Haiti: The Saint Domingue
Revolution from Below, Knoxville: University of Tennessee Press, 1990, principalmente a parte três, "The South".
13 O registro de casamento de Alexis Couba e Anne, que faz referências à
alforria dela, datado de 9 de janeiro de 1781, encontra-se em SOM 5Mi/59,
CARAN. A transferência de Rosalie de Alexis Couba para Marthe Guillaume é
citada no rascunho do testamento de Marthe Guillaume, de 8 de janeiro de 1793,
Notary Lépine, File 6C-116, Jérémie Papers, SC, UFL.
14 A venda de Rosalie é "Vente par Marthe Guillaume a Mongol de la Nesse
Rosalie", 14 de janeiro de 1793, Notary Lépine, File 6C-119, Jérémie Papers,
SC, UFL. O casamento da filha de Marthe Guillaume, Marie Anne [Aliés] com Jean
Baptiste Azor dit Fortunat, em 28 de fevereiro de 1783, encontra-se no SOM 5
Mi/60, CARAN. Para uma discussão mais completa sobre Marthe Guillaume, ver
Rebecca J. Scott e Jean M. Hébrard, "Servitude, liberté et citoyenneté dans le
monde atlantique des XVIIIe et XIXe siècles: Rosalie de nation poulard", Revue
de la Société Haïtienne d'Histoire et de Géographie, n. 83 (2008), pp. 1-52.
15 Ver "Addresse à tous les citoyens chargés des autorités civiles &
militaires, & à tous les citoyens de la Colonie", Jérémie, maison commune,
le 7 mars 1793, l'an second de la république française", cópia no dossier 895,
DXXV/113, CARAN.
16 Laurent Dubois, A Colony of Citizens: Revolution and Slave Emancipation in
the French Caribbean, 1787'1804 Chapel Hill: University of North Carolina
Press, 2004, principalmente pp. 162-65.
17 A citação é de Bérault de Saint Maurice, reproduzida em David Geggus,
Slavery, War, and Revolution: The British Occupation of Saint Domingue, 1793-
1798,Oxford: Clarendon Press, 1982, pp. 62-8.
18 "Affranchissement de la négresse Rosalie par Martonne", 2 de dezembro de
1795, Notary Dobignies, File 9218. Outros negócios de Marthe
Guillaume aparecem na sua lista de credores e devedores em Notary Lépine, File
6C-210, ambos em Jérémie Papers, SC, UFL.
19 Ver discussão sob o título affranchissement, p. 69, "Copie des lettres
écrites par le Conseil privé", File T81/15, British National Archives.
20 Sobre a complexidade da evacuação inglesa, ver Geggus, Slavery, War, and
Revolution, pp. 373-81.
21 Com intenção de garantir a produção agrícola, Rigaud alugou terras a homens
e mulheres que pudessem pagar o aluguel, em muitos casos obrigando os ex-
escravos a trabalhar na terra dos outros, de forma semelhante ao tempo da
escravidão. Ver Dubois, Avengers of the New World, pp. 197-98.
22 Talvez seu batizado fosse recente, ligado de alguma maneira ao
relacionamento com o pai da criança, embora isto seja especulação. A falta de
um sobrenome, no entanto, não surpreende. No final do período colonial, em São
Domingos, a lei proibia que os libertos adotassem sobrenomes usados pelas
famílias brancas, e pessoas recém-libertas geralmente apareciam nos documentos
sem sobrenome. Já em 1799, a designação négresse libre (mulher negra livre) era
um anacronismo: todas as pessoas em São Domingos eram então legalmente livres.
O uso da designação négresse libre podia evocar o estigma do status anterior de
escravo - ou ser um eco do termo da época da pré-abolição, que indicava a posse
de prova da alforria individual. A cópia da certidão de batismo encontra-se em
"Rectification de noms d'épouse Tinchant dans son contrat de marriage", 16 de
novembro de 1835, Act 672, 1835, Notary Theodore Seghers, New Orleans Notarial
Archives Research Center (henceforth NONARC). Sobre o ordonnance de 1773, em
relação a sobrenomes, ver Moreau de Saint-Méry, Loix et Constitutions des
colonies françoises de l'Amérique sous le vent, Paris: Autor, 1784'1790, v. 5,
pp. 448'50.
23 A inclusão do apelido Dieudonné no documento de batismo é enigmática. Em
geral, somente nomes de santos eram dados no momento do batismo, embora o uso
de apelidos fosse muito comum. Para uma discussão detalhada do documento, ver
Scott e Hébrard, "Servitude". Sobre a escolha de nomes nas
Antilhas francesas, ver John Garrigus, Before Haiti: Race and Citizenship in
French Saint-Domingue,Nova York: Palgrave Macmillan, 2006, e
Myriam Cottias, "Le Partage du Nom", em Jean Hébrard, Hebe M. Mattos e Rebecca
J. Scott (orgs.), Écrire l'esclavage, écrire la liberté, número especial
deCahiers du Brésil Contemporainn. 53/54 (2003), pp. 163-74.
24 Na ocasião do seu casamento, Michel Vincent fora identificado como ex-
coletor de impostos sobre a venda de carnes na cidade de Les Cayes, no sul. Ver
os documentos da Paróquia de Les Cayes du Fond (1698-1782) em SOM 6Mi/37,
CARAN. O seu casamento com Nicole Catherine Bouché, viúva Randel, encontra-se
na página 177, ano 1772. Sobre Michel Vincent, ver Jean Hébrard, "Les deux vies
de Michel Vincent colon à Saint-Domingue (c.1730-1804)", Revue d'Histoire
Moderne & Contemporaine n. 57 (2010), pp. 50-77. As
poucas idas de Vincent aos tabeliães em Jérémie foram para vender parte de suas
terras. Ao contrário de seus vizinhos mais prósperos, ele aparentemente não
fazia empréstimos ou financiava compras. Ver, por exemplo, o documento de venda
datado de 13 pluvioso ano 7, in Joubert 413, Jérémie Papers, SC, UFL. A descrição da região e o número de casas encontram-se em Moreau de
Saint Méry, Description topographique, 2: 762-816. Os
negócios de Marthe Guillaume encontram-se amplamente registrados com o tabelião
Lépine, tanto os arquivados no Archives Nationales, Sección d'Outre-Mer em Aix-
en-Provence (daqui em diante ANOM), como os que se encontram em Jérémie Papers,
SC, UFL.
25 Sobre o uso do termo "sieur" em São Domingos, ver John Garrigus, "Colour,
Class and Identity on the Eve of the Haitian Revolution: Saint-Domingue's Free
Coloured Elite as Colons américains", Slavery and Abolition,n. 17 (1996),
pp.19-43, principalmente pp. 25-9. Ao longo do século XVIII,
muitas crianças nasceram de uniões entre colonos franceses e mulheres africanas
e, quando adultos, geralmente se estabeleciam como artesãos, comerciantes,
empresários e, em alguns casos, tornavam-se proprietários de terra. Nas últimas
décadas do século, esses homens e essas mulheres e seus descendentes foram
sendo cada vez mais estigmatizados pelos brancos, que buscavam monopolizar o
poder e os direitos civis. Ver Garrigus, Before Haiti. Sobre as atividades da
viúva Aubert em Nova Orleans, ver abaixo. Quando Michel Vincent morreu, as leis
da era da revolução sobre herança haviam sido substituídas pelo Código Civil
Napoleônico, o que reduziu as reivindicações que os filhos naturais podiam
fazer. Ver Jean-Louis Halperin, "Le droit privé de la Révolution: héritage
législatif et héritage idéologique", Annales historiques de la Révolution
française, n. 328 (2002).
26 Fick, The Making of Haiti, pp. 210'13; Alexis Beaubrun
Ardouin, Études sur l'histoire d'Haïti, Port-au-Prince: Chéraquit, 1930, vol.
3; Yves Benot, La démence coloniale sous Napoléon, Paris:
Éditions La Découverte, 1992; Dubois, A Colony of Citizens,
pp. 368'70.
27 Ver as cartas de Leclerc em Paul Roussier (org.), Lettres du Général
Leclerc, Commandant en Chef de l'Armée de Saint-Domingue en 1802,Paris: Société
de l'Histoire des Colonies Françaises et Librairie Ernest Leroux, 1937, p. 200,
201, 255. Sobre os tumultos de 1802-1803, ver também Dubois,
Avengers; e Ardouin, Études.
28 Ver Jan Pachoñski e Reuel K. Wilson, Poland's Caribbean Tragedy: A Study of
Polish Legions in the Haitian War of Independence, 1802-1803,Boulder: East
European Monographs, 1986, capítulos 4 e 5; Fick, The Making
of Haiti, pp. 234-35.
29 "Enregistrement de liberté (...)", 26 ventoso ano XII, folio 25 verso,
registro entitulado "Actes déclarations & dépots divers, 10 Pluviose An
XII-12 Avril 1809", no volume "Registre Comprenant du 10 Pluviose an XII au 10
Vendémiaire an XIII", 6supsdom/3, Agence des Prises de la Guadeloupe, Dépôt des
Papiers Publics des Colonies (daqui em diante APG, DPPC), ANOM.
30 "Enregistrement de liberté (...)", 26 ventoso ano XII. O apelido Résinette
pode ser um diminutivo carinhoso de raisiné, geleia de uva (como sugeriu
Valérie Sega Gobert). Não localizamos informações sobre os batismos das outras
três crianças, embora alguns trechos nos documentos de Jérémie sejam
sugestivos, incluindo o batismo, em 1795, de "Marie Louise mulatresse" e "Jean
Théodore mulatre", aparentemente na mesma paróquia de Cap-Dame-Marie. Ver as
páginas sem título, aparentemente a continuação de um répertoire, localizadas
na pasta 12, caixa 5, Jérémie Papers, SC, UFL.
31 "Enregistrement de liberté (...)", 26 ventoso ano XII. Ver Scott e Hébrard,
"Servitude", para o texto do documento em francês.
32 Os critérios legais para a concessão de alforrias podiam, por exemplo,
basear-se na idade e na conduta do escravo em questão e nos direitos dos
herdeiros e dos credores do senhor. O estado de Louisiana, onde Elisabeth
Dieudonné terminou por se estabelecer, impôs restrições cada vez maiores ao
longo do tempo. Ver Judith Kelleher Schafer, Becoming Free, Remaining Free:
Manumission and Enslavement in New Orleans, 1846-1862, Baton Rouge: Louisiana
State University Press, 2003.
33 Sobre documentos comparáveis, criados em situação semelhante de incerteza em
Guadeloupe, ver Dubois, A Colony of Citizens, cap. 2.
34 Peter S. Chazotte, Historical Sketches of the Revolutions, and the Foreign
and Civil Wars in the Island of St. Domingo, Nova York: Wm. Applegate, 1840,
pp. 32-5.
35 Pachoñski e Wilson, Poland's Caribbean Tragedy. Os relatos sobre a retirada
da população de Jérémie, encontrados nos Rochambeau Papers, SC, UFL, são igualmente intensos. Ver, por exemplo, o relatório de um capitão
de navio no ítem 2021: "Copie du Rapport du Citoyen Pruniet, Capitaine de la
falouche la Doucereuse venant de Jérémie".
36 Michel Vincent, identificado como mareschal (ferreiro), aparece na
referência ao "Testament de Michel Etienne Henry Vincent Mareschal demt ordint
au Bourg des Abricots", Actes, Déclarations et Dépôts Divers, St Yago de Cuba,
1806'1809, Vol. II, 6supsdom/2, APG, DPPC, ANOM.
37 Gabriel Debien, "Les colons de Saint-Domingue réfugiés à Cuba (1793'1815)",
Revista de Indias, n. 54 (1953), pp. 559'605, principalmente p. 590 e 593; Alain Yacou, "Esclaves et libres français à Cuba au lendemain
de la Révolution de Saint-Domingue", Jahrbuch fur Geschichte von Staat,
Wirtschaft und Gesellschaft Lateinamerikas, n. 28 (1991), pp. 163-97; Laura Cruz Ríos, Flujos inmigratorios franceses a Santiago de Cuba
(1800'1868), Santiago de Cuba: Editorial Oriente, 2006; Scott
e Hébrard, Freedom Papers, cap. 3.
38 Alguns refugiados burlaram os procedimentos da alfândega ao desembarcarem
sem comunicar ao comandante no porto. Evidências de desembarques, tanto
oficiais como clandestinos, encontram-se espalhadas nos diversos documentos no
Fondo Correspondencia de los Capitanes Generales, incluindo Legajos 63, 445 e
471, Archivo Nacional de Cuba, Havana (ANC).
39 Podemos confirmar a presença de Elisabeth com base em documentos produzidos
mais tarde, que demonstram que ela foi de Santiago para Nova Orleans com a
madrinha. Ver Scott, "Public Rights and Private Commerce". A presença de Marie
Louise é menos evidente. Ver discussão sobre o testamento de Michel Vincent
abaixo.
40 O funcionário que transcreveu o relatório da herança de Vincent, feito por
François Vallée, foi Bascher Boisjoly, que fora membro do tribunal de
Sénéchaussée, em Jérémie (6supsdom/3, APG, DPPC, ANOM). Ainda não encontramos
cópia do testamento de Michel Vincent, embora seja feita referência a ele no
Vol. II, 6supsdom/2, APG, DPPC, ANOM. Sobre os refugiados franceses em
Santiago, ver também Debien, "Colons"; Yacou, "Esclaves"; e Olga Portuondo
Zúñiga, Entre esclavos y libres de Cuba colonial, Santiago de Cuba: Editorial
Oriente, 2003, pp. 58-97.
41 Ver, por exemplo, a venda de outra mulher, coincidentemente chamada Rosalie.
O vendedor disse ter perdido seu título de propriedade, mas reivindicou a posse
com base em um ferrete no corpo da mulher. Venda, Brebion a Marsand, 12
frutidor ano 12, Archives Coloniales, Saint Domingue, Agence des Prises de la
Guadeloupe, Correspondence, Actes, declarations & dépôts divers St. Yago de
Cuba, An XII-An XIV. Este volume, agora no ANOM (e citado
acima), foi microfilmado sob o número 960762, Genealogical Society of Salt Lake
City. Essa citação encontra-se na versão em microfilme.
42 "Enregistrement de liberté [...]", 26 ventôse an XII.
43 "Remise de Succn par Vallée", 9 floreal ano XII, 6supsdom/3, APG, DPPC,
ANOM. Essas mudanças nos nomes eram comuns, especialmente nos casos em que, por
circunstâncias do nascimento, as crianças não podiam adotar o sobrenome
paterno. Ver a interpretação sobre as práticas de escolha de nomes em Jean
Hébrard, "Esclavage et dénomination: imposition et appropriation d'un nom chez
les esclaves de la Bahia au XIXe siècle", em Hébrard, Mattos e Scott (orgs.),
Écrire l'esclavage, écrire la liberté, pp. 31-92. O relatório
do testamenteiro não menciona herdeiros necessários na França. Em 1827, quando
a França concordou em reconhecer a independência do Haiti em troca de uma
imensa indenização, os herdeiros legítimos de Michel Vincent, incluindo um
sobrinho-neto, vivendo na França, entraram com um pedido ao governo francês
para receber uma parte da indenização. Ver V 141, Vincent (Michel Étienne
Henry), 1390, Indemnités traités, em 7supsdom/97, DPPC, ANOM.
44 A viúva Aubert mais tarde declarou ter sido como uma mãe para Elisabeth,
desde sua infância. Ver abaixo uma discussão sobre o contrato de casamento de
Elisabeth com Jacques Tinchant em 1822. Sobre reescravização de libertos pelos
imigrantes, ver Martha S. Jones, "Time, Space, and Jurisdiction in Atlantic
World Slavery: The Volunbrun Household in Gradual Emancipation New York", Law
and History Review, n. 29 (2011), pp. 103'160.
45 As intrigas e as políticas em torno dessa expulsão foram muito complexas.
Ver Portuondo, Entre esclavos, pp. 78-82.
46 A saída de Santiago foi, na prática, um processo vagaroso, incompleto e
negociado. As correspondências, as lista de passageiros e os documentos no
Fondos Asuntos Políticos e na Correspondencia de los Capitanes Generales, ANC,
dão uma ideia da complexidade desse processo.
47 Sobre a retirada de refugiados de Santiago para os Estados Unidos, ver os
artigos em Carl A. Brasseaux e Glenn R. Conrad (orgs.), The Road to Louisiana:
The Saint-Domingue Refugees 1792'1809, Lafayette: Center for Louisiana Studies,
University of Southwestern Louisiana, 1992; e o trabalho de
Paul Lachance, incluindo "Repercussions of the Haitian Revolution in
Louisiana", in David P. Geggus (org.), The Impact of the Haitian Revolution in
the Atlantic World (Columbia: University of South Carolina Press, 2001), pp.
209'30. Ver também Nathalie Dessens, From Saint-Domingue to
New Orleans: Migration and Influences, Gainesville: University Press of
Florida, 2007. Sobre o desenrolar dos acontecimentos e as
dificuldades enfrentadas pelo governador, ver Dunbar Rowland (org.), Official
Letter Books of W. C. C. Claiborne, Jackson: State Department of Archives and
History, 1917, vols. 4 e 5.
48 O documento de compra da terra é "Vente de terrain par Bd Marigny à Lambert
Détry", 20 Juillet 1809, p. 348r, 348v, 349r, Notary M. de Armas, Acts n. 2,
NONARC. No censo de 1810 dos Estados Unidos, na seção sobre a Louisiana,
Lambert Détry aparece como oitavo morador registrado da Rue Moreau, em uma casa
com um residente branco, três "outros indivíduos livres" e treze escravos. Ver
United States National Archives (USNA), Microcopy M252, Roll 10, p. 272. Détry e a viúva aparecem em documentos adjacentes de compra
de escravos nos documentos oficiais de Philippe Pedesclaux, 8 de março de 1817,
NONARC.
49 O nome de um dos escravos era Blaise. A outra escrava aparece com o nome
Marie Louise no relatório do testamenteiro, e Marie Joseph na cópia do
testamento arquivada com o juiz. Existe a possibilidade remota de que ela fosse
a filha mais velha de Rosalie, Marie Louise diteRésinette, que pode ter sido
escravizada em Santiago e comprada por Lambert Détry. A sua idade e o local de
seu nascimento nos documentos, no entanto, não são os mesmos e Marie Louise era
um nome comum. Liquidation & partage de la Succon Lambert Détry, aux termes
de la transaction judiciaire passée entre les héritiers & les légataires de
feu Lambert Détry, File D-1821, Inventories of Estates, Court of Probates,
Orleans Parish, Louisiana in City Archives, New Orleans Public Library (daqui
em diante NOPL).
50 Ver "Liquidation & partage", citado acima. Détry refere-se à sua
legatária como Marie Dieudonné, f. de c.1, mas o testamenteiro mais tarde
identificaria Marie Dieudonné como a esposa de Jacques Tinchant, deixando claro
que essa era, na realidade, a filha mais nova de Rosalie, Elisabeth (que, em
algum momento, passou a usar o nome Marie). Ver também a referência de 1822 a "
[...]Marie Dieudonné f. de couleur et Libre demeurant par [ilegível] en cette
ville faubourg marigny chez marie Blanche Vv Aubert, f de c et qui l'ayant
recueillie des sa plus tendre enfance lui a constament tenue lieu de mere; née
a Saint Domingue, fille naturelle et majeure de rozalie vincent qui réside en
ce moment à Saint Domingue [...]". Contrato de casamento, Jacques Tinchant e
Marie Dieudonné, 26 de setembro de 1822, p. 31, vol. 22, Notary M. Lafitte,
NONARC.
51 Os indivíduos que se apresentaram como sendo os "herdeiros legais", Jean
Joseph Détry, Marie Françoise Détry, viúva de Jean Georges Paternot, Marie
Thérèse Détry, esposa de Antoine Bauman, Joseph Germain Détry e Thérèse Détry,
esposa de Pierre Joseph Guiotte, contrataram o advogado P. Derbigny alegando
que o testamento não tinha efeito legal, "porque não está de acordo com as
formalidades exigidas pela nossa lei e também porque contém disposições que são
proíbidas por essas leis". Além disso, alegaram que a cláusula na qual a viúva
baseava a sua reivindicação "[...] é nula porque é um legado para herdeiro
universal, e tal legado é proibido entre pessoas que viviam abertamente em
concubinato, como afirmam esses réus sobre a querelante e o falecido, F. L.
Détry, que realmente viveram e estavam vivendo [em concubinato] na época da
morte de Détry". O processo está arquivado como Marie Louise Blanche, viúva
Aubert, fwc vs. Détry Jean (François X. Freyd, testamenteiro) ano 1822,
processo næ% 206, in Court of Probates (Série Numerada). O original está
atualmente arquivado juntamente com os "flattened records" na Louisiana, NOPL.
Devemos agradecimentos especiais a Irene Wainwright, da NOPL, por ter
encontrado este documento, que não havia sido microfilmado juntamente com
outros processos judiciais desse tipo.
52 Ver o contrato de casamento citado acima. O manuscrito da certidão do
casamento religioso registra a mãe da noiva ("la expresada Madre de la
contrayente") como testemunha, mas é difícil saber se a própria Rosalie Vincent
esteve presente à cerimônia, ou se o padre simplesmente considerou a viúva
Aubert mãe da noiva. O documento arquivado é uma cópia e parece que a pessoa
que o transcreveu pulou uma linha, alterando a primeira referência sobre a
noiva. Ver Act 328, 28 de setembro de 1822, in Saint Louis Cathedral, Marriages
of Slaves and Free Persons of Color, v. 1, 1877'1830, Part 2, nos Archives of
the Archdiocese of New Orleans (daqui em diante AANO). O
resumo da cópia desse documento aparece em Charles E. Nolan (org.), Sacramental
Records of the Roman Catholic Church of New Orleans, Nova Orleans: Archdiocese
of New Orleans, 2000, v. 15, p. 368.
53 Jacques entrou com um processo para tentar receber da viúva o legado
prometido pelo falecido Lambert Détry. Ela argumentou que a subsistência do
casal havia consumido o equivalente ao valor do legado e que ela não lhe devia
nada de fato, ele é que devia a ela US$103.20. No transcorrer dessa
desagradável disputa, a viúva Aubert produziu um documento que revela a
importância, para cada uma dessas famílias, do trabalho de uma escrava chamada
Gertrude, de mais ou menos 22 anos, que a noiva recebera como presente de
casamento. O aluguel de Gertrude rendia US$140 por ano uma quantia maior do que
as despesas anuais do casal com alimentação. Ver Jacques Tinchant vs. Marie
Blanche Widow Aubert, docket 3920, Parish Court, Orleans Parish, Louisiana
Division, NOPL.
54 Ver "Société entre Jacques Tinchant et Pierre Duhart", Act. 62, 1835, Notary
Théodore Seghers, NONARC. Os seus negócios estão documentados nos volumes de
Seghers. Pierre Duhart era filho da mãe de Jacques Tinchant, Marie Françoise
dite Suzette Bayot, e Louis Duhart, um professor branco e maçon. Por causa da
proibição do casamento interracial na Lousiana, o relacionamento de Bayot e
Duhart era tecnicamente considerado concubinato, embora Suzette Bayot fosse, às
vezes, chamada de Suzette Duhart. Bayot e Duhart se mudaram para a França na
década de 1830, onde se casaram. Ver a certidão de casamento de Marie Françoise
Bayot e Louis Duhart, de 17 de abril de 1832, no Registre de Mariages, Archives
Departementales des Pyrénées Atlantiques, Pau (ADPA).
55 Ver "Rectification de noms d'épouse Tinchant dans son contrat de mariage",
16 de novembro de 1835, Act 672, 1835, Notary Theodore Seghers, NONARC.
56 Durante o século XVIII, o papel era uma das mercadorias mais negociadas em
alguns trechos do rio Senegal e, na cultura islâmica do norte da Senegâmbia, a
leitura era muito pestigiada e a escrita considerada uma fonte de poder. Ver
P.-David Boilat, Esquisses sénégalaises, Paris: Éditions Karthala, 1984 [orig.
1853] ; James F. Searing, West African Slavery and Atlantic
Commerce: The Senegal River Valley, 1700'1860, Cambridge: Cambridge University
Press, 1993; e Barry, Senegambia. Agradecemos a Mamadou
Diouf, Boubacar Barry, Ibrahima Thioub e Rudolph Ware pelas discussões sobre o
Senegal no final do século XVIII e no início do XIX.
57 Agradecemos a Scott Shapiro, da Universsidade de Michigan, por essa
observação.
58 Rosalia Vincent aparece na lista de passageiros com a idade estimada de 50
anos mas ela provavelemente era uns 18 anos mais velha. Em 1793, Rosalie de
nação poulard foi declarada uma jovem de 26 anos, portanto nascida em 1767. Mas
não parece existir muita precisão nos rabiscos que registram as idades na lista
de passageiros, e existe confirmação subsequente (ver abaixo) de que Rosalie
Vincent, mãe de Elisabeth, estava em Nova Orleans nos meses seguintes. A lista
de passageiros do navio está reproduzida em "List of all Passengers taken on
board the Brig Ann whereof Charles Sutton is Master at the Port of Port Au
Prince and bound for New-Orleans", aqui chegando em 20 de abril de 1835,
microfilmado como parte de "Passenger Lists of Vessels Arriving at New Orleans,
1820'1902", USNA Microcopy 259, Roll 12.
59 Em 1825, a lei do estado da Louisiana tornou mais difícil a legitimação e
limitou os mecanismos disponíveis para o reconhecimento da paternidade: Ver
Civil Code of the State of Louisiana, Nova Orleans: J.C. de St. Romes, 1825,
Livro I, Título VII, Capítulo 3, Seção 1, Art. 217, e seção 2, Artigos 220 e
221.
60 Já em 1834, ela assinava documentos como Elisabeth Vincent, abandonando o
apelido Dieudonné. Ver "Vte de terre par Jacques Tinchant à Eulalie Desprès
g.c.l.", 20 de setembro de 1834, act 442, Notary Octave de Armas, NONARC, e
Échange d'immeubles, 6 de agosto de 1839, Act 646, Notary T. Seghers, NONARC.
Sobre as maneiras pelas quais as mulheres no Brasil modificavam seus nomes nos
encontros sucessivos com as autoridades seculares e religiosas, ver Hébrard,
"Esclavage et dénomination". Os esforços para ganhar o sobrenome do pai podiam
também estar relacionados à esperança de receber herança. Michel Vincent estava
morto, mas as indenizações para os antigos proprietários de São Domingos,
concedidas pela França, talvez estivessem em pauta também em Nova Orleans. A
reivindicação de Elisabeth Vincent, no entanto, teria sido muito fraca os
filhos naturais estavam no final da lista entre os autorizados a receber
herança dos pais.
61 A certidão de batismo que repete o erro da certidão de casamento original,
na qual Marie [Elisabeth] Dieudonné é confundida com a sua sogra Suzette Bayole
[Bayot] é "Act 326, St. Louis Cathedral, Baptisms of Slaves and Free Persons of
Color, Vol. 25, Part I", no AANO. Sobre os requisitos formais para servir como
madrinha, ver Virginia Meacham Gould, "Henriette Delille, Free Women of Color,
and Catholicism in Antebellum New Orleans, 1727'1852", in David Barry Gaspar e
Darlene Clark Hine (orgs), Beyond Bondage: Free Women of Color in the Americas
(Urbana: University of Illinois Press, 2004), pp. 271'86.
62 De acordo com o Digest of the Civil Laws Now in Force in the Territory of
Orleans, de 1808, "os casamentos contraídos por pessoas brancas livres com
pessoas livres de cor" não podiam ser celebrados e eram considerados nulos na
Louisiana. Ver Título IV, Capítulo II, Artigo 9, do Digest, Baton Rouge:
Claitor's Publishing Division, 2008. Para a certidão de casamento na França, em
1832, ver nota 55.
63 Sobre as condições das pessoas livres de cor, ver Joseph G. Tregle
Jr.,Louisiana in the Age of Jackson: A Clash of Cultures and Personalities,
Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1999, p. 304.
Sobre a história subsequente de Edouard Tinchant, ver Scott, "Public Rights and
Private Commerce"; e Scott e Hébrard, Freedom Papers.
64 Scott, "Public Rights and Private Commerce".
65 Para uma discussão sobre o conceito de direitos públicos e a sua relevância
para a questão do acesso ao transporte coletivo, ver Rebecca J. Scott, "Public
Rights, Social Equality, and the Conceptual Roots of the Plessy Challenge",
Michigan Law Review, n. 106 (2008), pp. 777'804.
66 Scott, "Public Rights and Private Commerce". Sobre a partida da família, ver
o pedido de passaporte de Edward Tinchant, emitido em 29 de maio de 1878, em
Nova Orleans, in "Passport Applications, 17951905, General Records of the
Department of State", RG 59, reproduzido em USNA Microcopy M1372.
67 Sobre o nome da filha deles, ver a anotação, de 3 de julho de 1878, sobre a
família de Edouard Tinchant pela administração da Sureté Publique N. 148, em
M.A., Vreemdelingendossiers 1878, Stadsarchief, Antuérpia. Sua filha mais nova
aparece como Marie Louise Julie, nascida em Nova Orleans, em 14 de março de
1878. (Não localizamos ainda o registro de batismo que deve se encontrar entre
os documentos de uma das igrejas de Nova Orleans). Pela informação sobre as
gerações subsequentes, agradecemos a Marie-Louise (Loulou) Van Velsen, que
generosamente nos deu acesso a cartas, documentos e memórias sobre seu bisavô
Edouard Tinchant, sua avó, Marie Louise Tinchant, e sua mãe, também chamada
Marie Louise. Agradecemos, também, com carinho à familia de Philippe Strufy, na
Bélgica, e a Françoise Cousin, na França, pela ajuda e pela hospitalidade.