Caminhos da visibilidade: a ascensão do culto a jurema no campo religioso de
Recife
A cognição é uma das mais básicas e evidentes capacidades do homem, e é através
dela, que o homem sempre procurou ajustar o fenômeno de sua existência ao
espaço que o circunda, respondendo aos eventos que neste venham a ocorrer, seja
a tentativa de adaptar o mundo à sua cognição ou a de adaptar sua cognição ao
mundo, criando assim a realidade. Esta se configura em um horizonte a ser
seguido, dando sentido à existência ontológica e antropológica do homem. Em
consequência do conhecimento nunca ser um fim em si mesmo, quando deparado com
a realidade, esta se recusa veementemente à captação, é que se desenvolve a
ideia de pluralismo cognoscitivo como forma de apreender e compreender as
diversas realidades existentes, uma vez que estas se constituem como
edificações socioculturais variando de uma cultura a outra.
Assim, o pluralismo cognoscitivo é a representação e a homologação do fato de
que todos os homens, e/ou sociedades, somente podem alvejar um horizonte
relativamente real e conhecer versões parciais desta realidade, não podendo de
forma alguma assumir o status de detentores de uma verdade única. Desta forma,
o pluralismo cognoscitivo constitui um leque infinito de formas e
possibilidades de pensamentos e reflexões. E, paradoxalmente, quanto mais
reconhecemos a impossibilidade de apreensão do real em sua totalidade, mais nos
aproximamos dele, uma vez que maior será a dimensão que dele teremos.
Neste artigo, a ideia do pluralismo cognoscitivo será o mediador entre religião
e política. O processo de racionalização da modernidade trouxe o fim das
antigas certezas e com ela a religião chegou ao fim de sua antiga função de
estruturar a sociedade. A religião se transforma em religiosidade no mundo
secularizado, ela se retira para o interior da pessoa, tornando-se uma crença
pessoal.1 Entretanto, quando a religião é vista como religiosidade, temos o
campo da experiência prática que unifica emoções e ações em um caminho que
reencanta novamente o mundo com um sentido religioso, nos fazendo questionar
sobre os lugares dados à religião, ao seu caráter público e/ou privado.
A jurema será objeto da nossa abordagem exemplar para percorremos o caminho
proposto. Desejamos contribuir com os estudos acerca da confluência entre os
processos religiosos e políticos na temática sobre a jurema, uma vez que a
literatura específica se mostra escassa. Muitos trabalhos a abordam de maneira
descritiva, outros a partir de aproximações com a umbanda, com o catolicismo e
em alguns casos com o candomblé ou xangô.2 Mas seu viés político ainda é
inexplorado e é sobre esse prisma que pensaremos os atuais caminhos da
visibilidade da jurema no campo religioso e seu lugar na constituição de uma
arena política fundamentada pela religião.
A jurema sagrada
A jurema é uma religião tipicamente encontrada no nordeste brasileiro. Sua
presença estende-se entre áreas do sertão e urbanas. É recente o interesse
acadêmico sobre o tema, no que diz respeito ao encontro da jurema no espaço
urbano, que envolve a confluência de vários outros tipos religiosos, como a
umbanda, o catolicismo, o candomblé e o vodum maranhense. Seu nome, de origem
tupi, liga-se a espécies de árvores encontradas no sertão. São elas a Mimosa
hostilis, hoje reclassificada como Mimosa tenuiflora, a Mimosa verrucosa e
também a Vitex agnus-castus, conhecidas como jurema preta, jurema mansa e
jurema branca, respectivamente.3 A jurema preta é utilizada na fabricação da
bebida que dá nome a esse universo religioso. Sua origem remonta a pajelança e
ao toré, ambos regimes religiosos que fundamentam a estrutura indígena do
sagrado.
No caso específico de Pernambuco, a jurema era inicialmente tida como um culto
um pouco escondido dentro dos terreiros de religião de matriz africana, um
culto secundário aos orixás.4 Entretanto, o "quarto da jurema", onde se
encontram os assentamentos e seu peji ou altar, está hoje, em muitos casos,
dentro do salão do candomblé, ao lado do "quarto do santo", um espaço destinado
aos assentamentos dos orixás. Candomblé e jurema dividem o mesmo espaço
temporal e espacial dentro de muitos terreiros,5 embora seus cultos sejam
separados. Dessa forma, a jurema foi ressignificada dentro do cenário afro-
religioso pernambucano, e o próprio candomblé sofreu sua influência. A jurema
apropriou-se da cosmologia africana aliando-a a cosmologia indígena. A jurema
também foi ao encontro da umbanda, do espiritismo kardecista e do catolicismo
popular ao incorporar o universo cristão na figura dos santos católicos e de
Jesus Cristo.
Como já foi dito, os vários elementos religiosos presentes nas sessões de
jurema, também chamadas de sessões de catimbó, agregam várias cosmologias
religiosas: o maracá, um chocalho que marca todas as sessões; as toadas que
versam sobre a história da jurema e seus significados, assim como as histórias
de suas entidades. Além da estrela do Rei Salomão, outros objetos litúrgicos
compõem a mesa da jurema, seu altar ou peji: a princesa, um recipiente com água
ou o vinho da jurema, nome dado à bebida feita através da raiz ou da casca
maceradas da jurema preta. Também podemos encontrar o príncipe, copo ou taça
com água ou a bebida jurema; velas; imagens de caboclos, mestre e santos;
crucifixos; cachimbo e fumo; as oferendas e os assentamentos. Em todos os
altares temos a presença do tronco da jurema, um pedaço do tronco da própria
árvore que após passar por uma ritualística encarnaria a entidade do mestre do
juremeiro.
O panteão da jurema é ordenado pelos caboclos, divididos em índios, personagens
do sertão nordestino ou sertanejos, o boiadeiro e ainda aqueles que
simplesmente viveram nas matas, pelos mestres e mestras e pelos exus, também
chamados de trunqueiros. Os últimos demonstram a influência do universo afro-
indígena dentro da jurema. Quanto aos mestres, esses são pessoas que viveram e
que depois de sua morte se apresentam como entidades que auxiliam os juremeiros
e todos que procuram a ajuda da jurema por alguma razão.6 Em muitos casos esses
mestres foram figuras da História do Brasil, como o mestre Corisco, que em vida
compôs o grupo de Lampião, e Malunguinho, hoje visto como uma das principais
entidades da jurema, líder do Quilombo do Catucá - PE.7 Temos ainda os ciganos
e os preto-velhos, numa clara reapropriação a partir da umbanda.
Quando comparamos a jurema ao candomblé, em termos ritualísticos, as diferenças
são nítidas.8 De um lado, temos as toadas cantadas em português e de outro, em
iorubá; as vestimentas também diferem, na jurema há um espetáculo de cores nos
tecidos de "chita" usados pelas juremeiras, enquanto no candomblé cada filha e
filho de santo veste a cor específica de seu orixá, quando não estão todos de
branco. A jurema pode ser celebrada em ritos festivos que são embalados ao
ritmo do coco, em que, na maioria das ocasiões, são os próprios mestres/
entidades os cantantes, e também em rituais chamados de "jurema de mesa". Esses
últimos caracterizam-se pela presença de um número menor de pessoas, fechado ao
público, as vestimentas já não são coloridas, mas brancas, e a alegria
característica da festa, com toques de ilús e danças,9 dá lugar a uma tímida
entoação das cantigas acompanhadas de rezas e do barulho do maracá ao redor de
uma mesa ou de uma toalha colocada ao chão. A presença marcante da fumaça está
nos dois tipos de rituais. Os juremeiros invertem seus cachimbos colocando o
fornilho (onde se queima o fumo) na boca o soprando a fumaça que sai através da
piteira. A fumaça é responsável pela limpeza, ela eleva os desejos dos fiéis ao
mesmo tempo em que comunica o desejo das entidades.
Nessa pequena descrição o que mais nos chama atenção nas estruturas dos cultos
é a diferença entre as entidades da jurema (falantes/cantantes) e do candomblé
(os orixás não cantam, mas os fiéis) e a presença do cachimbo e sua fumaça
durante todos os rituais, o que não ocorre no candomblé. Seguindo a definição
proposta por Motta, inspirado em Victor Turner, a jurema seria um culto
fortemente logofílico, amparado na língua e na metáfora, ao passo que o
candomblé seria da ordem do iconofílico e do somatofílico.10
Kipupa e Caminhada dos Terreiros de Pernambuco da tradição ao espaço público
Sabemos que a prática da observação participante nos permite uma maior
aproximação com a comunidade pesquisada. É através dela que percebemos a
importância de algumas ações e de alguns eventos. Ao nos referimos ao Kipupa e
à Caminhada dos Terreiros, os tomamos como eventos que têm seus prolongamentos
entre o passado e o presente, sendo possível estruturá-los na medida em que os
dotamos de ordem e sentido. Sahlins nos diz que os eventos são acontecimentos
de significância com um dado sistema simbólico, e que a ele é dado uma
interpretação de acordo com os projetos pessoais de cada participante.11
Um evento é de fato um acontecimento de significância e, enquanto
significância, é dependente na estrutura por existência e por seu
efeito. "Eventos não estão apenas ali e acontecem", como diz Max
Weber, "mas têm um significado e acontecem por causa desse
significado." Ou, em outras palavras, um evento não é somente um
acontecimento no mundo; é a relação entre um acontecimento e um dado
sistema simbólico. O evento é a interpretação do acontecimento, e
interpretações variam.12
Dessa forma, os eventos aqui trabalhados serão fontes de conhecimento para o
processo de visibilidade da jurema, eventos estruturados numa lógica
culturalista, como colocou Sahlins. Para o autor, os sistemas simbólicos são
estruturadores da ação social, o que poderíamos entender como uma espécie de
estruturalismo da práxis onde a compreensão das práticas sociais possibilita a
compreensão dos diferentes significados culturais,13 entendendo o significado
simbólico como variação de cada experiência social. Estamos diante da estrutura
de conjuntura de Sahlins, a mediação entre estrutura e o evento através do
significado cultural dos sistemas simbólicos.14
Ao falarmos em sistema simbólico nos remetemos a Geertz e caminhamos com o
autor para o que ele chama de "reconfiguração religiosa da política do
poder".15 Retomamos a ideia do conceito do beliscão do destino, desenvolvido
por William James, um conceito subjetivo que exprime a experiência pessoal
sobre a religião.16 Sentimentos, emoções, crenças vividas no interior dos
sujeitos. Mas, como mesmo Geertz observou, como explicar as manifestações
públicas do que entendemos como religioso?
Os eventos dos cem anos decorridos desde que James fez suas palestras
duas guerras mundiais, o genocídio, a descolonização, a disseminação
do populismo e a integração tecnológica do mundo menos contribuíram
para impelir a fé para dentro, para as comoções da alma, do que para
impulsioná-la para fora, para as comoções da sociedade, do Estado e
desse tema complexo a que chamamos cultura.17
O autor nos dá exemplos de vários eventos ocorridos em muitas partes do mundo
para trazer novamente a religião para o espaço público, para as questões
públicas. Em momento anterior, Geertz nos diz que "os conceitos religiosos
espalham-se para além de seus contextos especificamente metafísicos, no sentido
de fornecer um arcabouço de ideias gerais em termos das quais pode ser dada uma
forma significativa a uma parte da experiência intelectual, emocional,
moral".18 A religião é privada porque é uma experiência sentida e é pública
porque é uma das esferas que constituem a realidade social dos sujeitos. Campos
e Gusmão nos chamam atenção, através da imagem midiática religiosa, ou não, da
peregrinação, para essa complementaridade entre a experiência subjetiva do
beliscão do destino e a publicidade do sentido religioso, da identidade e do
poder.19 Partimos, portando, da peregrinação a outros eventos religiosos.
O Kipupa Malunguinho é um evento idealizado por Alexandre L'Omi L'Odò,
realizado pelo Quilombo Cultural Malunguinho (QCM) e que marca o encerramento
da Semana Estadual de Vivência e Prática da Cultura Afro Pernambucana,
instituída pela Lei Malunguinho 13.298/07, um projeto de lei formulado e
aprovado pelo então deputado estadual Isaltino Nascimento.20 Embora o evento
marque o fim da Semana, ele começou a ocorrer no ano de 2006, um ano antes da
aprovação da Lei. De acordo com Alexandre L'Omi L'Odò,21 o termo quimbundo
kipupa significa agregação de pessoas. Logo o Kipupa Malunguinho significa
agregação de pessoas em volta da figura de Malunguinho. O evento ocorre em
terras do antigo Quilombo do Catucá, zona da mata de Pernambuco,
especificamente onde hoje é a cidade de Abreu e Lima.
[...] as pessoas iam vivenciar Malunguinho no espaço histórico onde
foi Catucá mesmo, aquele espaço ali teve uma coisa muito importante.
No ritual profundo de jurema dentro de uma mata fechada, que é uma
coisa totalmente inusitada, difícil de acontecer, e possibilitando as
pessoas de chegar. Entendeu? E o coco, que é uma coisa importante na
jurema. O coco é essencial na jurema, também. [...] Porque é o ritmo
que os mestres dançam, é o ritmo que é dos mestres. Porque o coco
sempre foi do Nordeste e os mestres são figuras do Nordeste. Então,
naturalmente, eles gostam de coco, que eles chamam de pisada, a
macuca ou a macumba deles. Aquele toque assim, tac rutac tac... É uma
levada baseada na linha de coco e as toadas da jurema são linhas de
coco.22
O ritual propriamente dito ocorre em uma mata na área rural do município de
Abreu e Lima, mas a festa que congrega os juremeiros ocorre no pátio da casa de
Juarez, um colaborador do QCM, a uma distância aproximada de 100 metros da
mata. Em um determinado momento da festa as pessoas caminham até a mata,
regressando para a festa após o fim do ritual.
Foi no dia 25 de setembro de 2011, um domingo, o VI Kipupa Malunguinho. Pessoas
vestidas de branco, algumas vestidas de chita, outras com estampas variadas.
Eram muitos participantes. As mesas já estavam repletas. Muitos juremeiros
traziam em seus braços garrafas de bebida, frutas soltas para serem ofertadas,
cestos já recheados de frutas e nas mãos estavam seus cachimbos. Um grande
grupo muito animado chegou, pareciam ser todos de uma mesma família de
terreiro, vestiam branco e se colocaram em frente ao altar preparado para
Malunguinho. Dois homens carregavam um grande cesto com frutas que foi colocado
sobre as folhas de bananeira distribuídas ao chão. Logo atrás, mais um homem
com um balaio nos ombros. Em seus pescoços grandes guias feitas com a semente
ave-maria. Dois ogãs traziam nos ombros dois ilús. Colocaram ao lado do altar e
começaram a tocá-los. As oferendas já colocadas sobre o altar, os juremeiros
pegaram seus cachimbos ao som alto dos batuques. Cantos e palmas acabam por
constituir a orquestra para Malunguinho. Cuias com farofa e mingau foram
depositadas no altar. A fumaça começou a se espalhar na defumação das
oferendas. Um cheiro das ervas do fumo se espalhou e com ele a turvidez da
jurema começou seu trabalho. Em meio à fumaça os juremeiros mandaram seus
recados, receberam das entidades suas respostas, pediam proteção, guerreavam,
falavam a Malunguinho que estão em suas terras, o Quilombo do Catucá. A jurema
fala através da fumaça, os juremeiros a sabem ler. A fumaça faz a intermediação
entre os mundos, ela corre as cidades da jurema, lugar de moradas das
entidades. E a grande neblina em que se transforma o ar é o esconderijo e a
emanação de suas forças, a ciência da jurema.
Os cantos continuaram, o altar já estava repleto de oferendas. Muitas frutas
dispersas sobre o chão, em balaios e gamelas, garrafas de cachaça, vinho e
velas. A orquestra para Malunguinho seguiu a tocar suas toadas. Pelo pátio mais
e mais pessoas. Uma confraternização para saudar Malunguinho da jurema sagrada.
Os juremeiros ao encontrarem-se, abraçavam-se, uma alegria embalava seus
rostos, contagiava seus corpos ao som do coco. Como em extensão ao terreiro, a
comida se torna um momento de união. Muitos traziam em suas bolsas o almoço de
domingo. Ao redor das mesas famílias almoçaram juntas. Muitos, ainda, compraram
os alimentos preparados pela família de Juarez. Foi uma tarde de muito calor, o
sol pernambucano estampava o suor no rosto de todos.
Na tenda armada no pátio, a poucos passos do altar destinado as oferendas para
Malunguinho, Alexandre L'Omi L'Odò, ao microfone, pedia a atenção dos presentes
e chamava algumas pessoas ligadas ao QCM. Ele disse algumas palavras, falou
sobre o significado do Kipupa, sobre o Quilombo do Catucá, sobre a jurema, a
discriminação sofrida até mesmo entre os juremeiros que não a assumem perante a
sociedade mais abrangente, deu algumas informações sobre o que aconteceria e em
seguida passa o microfone para João Monteiro. João é historiador e por esse
fato sua fala se direciona a legitimar Malunguinho como uma figura histórica e
a incitar estudos dentro dos terreiros para uma melhor formação dos fiéis,
principalmente para dialogar com o Estado:
[...] Porque senão gente, a gente vai passar, a gente vai continuar
passando despercebido do Estado, quando não, a forma que o Estado
tenta nos reconhecer é uma forma que não tá legal. Não tá legal a
forma que o Estado tá se propondo a reparar os danos causados nos
últimos 400 anos não está legal. Não existe política pública para o
povo de terreiro. Não existe política pública. E, nós estamos muitas
vezes sendo tratados como massa de manobra e o Quilombo Cultural
Malunguinho está de olho pra denunciar todos os momentos que fomos
feitos de massa de manobra, doa a quem doer. Certo? Nós estamos aqui
pra isso, pra denunciar. O Estado se quiser reparar, então, vai
reparar com dignidade, reparar com folclore não dá. A nossa fase de
ser visto como folclore passou. Hoje, somos povo de terreiro. Certo?
E temos o nosso espaço [...].23
Alexandre, que faz graduação em história, retomou o microfone e citou diversos
nomes de religiosos ali presentes, falou sobre juremeiros que vieram de outros
estados e outras regiões do país. Citou também nomes de professoras da rede
estadual de ensino que estavam participando do Kipupa, inclusive tendo levado
alguns alunos. Entre elas, estava a professora Carmem Dolores:
[...] Nenhuma mudança, em nada, vai acontecer no mundo, na educação
no Brasil, se não for pela educação, a educação é o grande
transformador da sociedade. Tem que quebrar barreiras, porque às
vezes a criança em casa é educada, ela vive no meio do candomblé, ela
vive no meio da religião e na escola ela se sente humilhada, ela se
sente ofendida. Porque na escola, infelizmente, a gente vê que o
racismo institucional na própria escola provoca. Por que o que a
gente vê que a criança estuda na escola? A criança estuda a Bela
Adormecida que é loira dos olhos azuis, a criança estuda Chapeuzinho
Vermelho, a criança só estuda o padrão europeu. É isso que as
crianças estudam. E nós precisamos lutar pra que isso, realmente,
seja [...] a tolerância na escola aconteça. Isso só vai acontecer,
com certeza, se todos nós que estamos aqui podemos lutar e
reivindicar do Estado, da escola, que é importante o respeito e a
diversidade no na sociedade brasileira.24
Após a fala de várias outras pessoas ligadas à jurema de alguma maneira e a
entoação de alguns cantos seguimos em direção à mata para o ritual propriamente
religioso. Os juremeiros levaram as oferendas depositadas no altar para a mata
de Malunguinho. Ao fim do ritual a festa no pátio da casa de Juarez foi
retomada no constante ritmo do coco, em que vários grupos musicais dividem o
palco.
O Kipupa é a ação de visibilidade da jurema mais expoente do QCM. Com uma
ocorrência anual, por isso é considerada dessa forma, todo o grupo se organiza
em torno do evento. Convites são enviados, contatos são feitos, alianças e
parcerias com outras entidades são buscadas. Fotógrafos profissionais,
documentaristas pessoas ligadas à TV também participam e dão como contribuição
o material produzido durante o evento. Ainda segundo Alexandre L'Omi L'Odò:
Assim, o objetivo do evento é manter viva a memória e história, além
do imaginário que cerca toda essa cultura, construindo o sentimento
de pertencimento e reconhecimento nacional a estes líderes negros e
indígenas, através das discussões de temáticas socioeducacionais,
culturais e religiosas, com a participação de toda comunidade, em
especial os mestres e mestras da cultura tradicional e popular,
pesquisadores (da academia ou não) e interessados, materializando em
matas fechadas do antigo quilombo de Malunguinho uma possibilidade de
imersão na experiência do corpo e espírito, através de debate, ritual
(liturgia da jurema) e o grande coco sagrado da mata .25
Nesse ponto, já podemos delinear que os caminhos que levam à visibilidade da
jurema vão além do ritual religioso, abarcando o contexto histórico para
legitimar a figura de Malunguinho e, em consequência, a jurema, a instituição
escola, a presença de juremeiros de outras cidades de Pernambuco e outros
estados do Brasil, tendo inclusive a presença de representantes da Escola de
Umbanda Caboclo Sete Flechas de São Paulo participando e filmando todo o
evento. Essa filmagem se tornou um DVD sobre a jurema, vendido pelos
representantes da Escola de Umbanda. Outro trabalho do tipo é desenvolvido pelo
fotógrafo e documentarista Felipe Peres, em uma série exibida na TV
Universitária da UFPE sobre Malunguinho.
Já a Caminhada dos Terreiros de Pernambuco tem um alcance maior. Além de
abarcar a jurema, também congrega o candomblé e a umbanda, num cortejo pelas
ruas centrais do Recife. A Caminhada acontece em meio ao centro da cidade, sob
a vista dos mais diversos segmentos sociais e com a cobertura da mídia
recifense. No ano de 2011, foi sua quinta edição, abrindo o mês da Consciência
Negra, no dia 4 de novembro.
A Caminhada surgiu a partir da discussão do projeto Memorial Águas de Iemanjá,
no ano de 1997. Esse projeto diz respeito a um memorial, hoje já construído na
Praia do Pina em Recife, de referência religiosa para o candomblé pernambucano.
Porém, apesar de o projeto ter surgido no ano de 1997, somente em 2007 o
memorial foi construído e a Caminhada tomou corpo. Em conversas informais e
também em algumas entrevistas que realizamos sobre a Caminhada de Terreiros, o
nome de Marcos do Grac foi citado como o primeiro idealizador do evento, para
ele:
[...] essa Caminhada surgiu e teve como propósito, na verdade,
reivindicar e mostrar o papel do candomblé em Pernambuco, que não é
pouco, Pernambuco tem uma referência, inclusive muito grande, porque
aqui se chegou em 1532, a primeira nação, que foi o povo banto que
chegou. E esse trabalho desse povo veio até hoje, que é o trabalho de
procurar respeito, visibilidade na luta, na época inclusive nessa
questão do racismo, e a luta que, inclusive, Zumbi encampou, era a
luta pela liberdade. Então, a partir daí, essa Caminhada se tornou a
grande referência não só para a cidade e para o estado, mas para o
Brasil e fora do Brasil. Nós estivemos inclusive representando no
encontro de preparação do Fórum Social Mundial essa discussão. Então,
tanto a Caminhada como o Memorial de Iemanjá são pontos fundamentais
das religiões de matriz africana e para os terreiros de candomblé
como um todo. Porque dentro disso tem a questão, em Pernambuco a
umbanda tá fazendo 101 anos. E a questão da jurema é fundamental
porque foi a consolidação do candomblé, de matriz africana, com a
questão dos índios, porque os índios tiveram papel importantíssimo
nessa questão da coligação, porque foram eles que adaptaram os negros
as suas florestas e aqui desenvolveram as suas raízes junto [...].
Ainda segundo Marcos:
[...] Essa nossa ida, agora, pra uma reunião com a Ministra da
Igualdade Racial é um reflexo disso que tá acontecendo no Brasil, e
Pernambuco é a grande influência. Segundo o Ministério tem-se dito o
seguinte, que Pernambuco tem um diferencial do Rio de Janeiro que é
um conjunto de religiões que vão às ruas e tal, de Salvador que
agrega samba, reggae, todos os grupos de tambores, diferentemente de
São Luís do Maranhão que leva bumba-meu-boi pra rua. Pernambuco é um
cortejo religioso que canta o xirê de Exu a Oxalá e faz um
complemento com a jurema e com a umbanda. Então isso, coloca pra esse
estado e pra gente um orgulho muito profundo e uma responsabilidade
muito grande de que a gente, a partir dessa visão, a gente não pode
errar. Ou a gente continua dentro da mesma linha, buscando a
educação, dando visibilidade, capacitando, criando espaço pra que o
povo de terreiro ocupe, conheça profundamente, inclusive, a religião.
Enfim, é um trabalho e uma posição política forte porque a gente
começa a reivindicar os espaços, ou seja, políticas públicas para o
povo negro.26
No início a Caminhada foi um pouco tímida, o cortejo não era nas ruas centrais
de Recife, mas nos arredores do Memorial Águas de Iemanjá. E o nome da
Caminhada era outro, Primeira Caminhada contra Descriminação Religiosa e
Racial. Nos anos posteriores, a Caminhada foi levada para o centro de Recife,
num cortejo em que "o povo de santo toma as ruas de Recife!", nos dizeres de
Claudilene, membro da Secretaria de Educação da Prefeitura de Recife, no
primeiro ano da Caminhada. Campos adverte que embora a ideia de identidade
cultural suponha uma equivalência entre uma identidade e uma cultura, no mundo
globalizado isto não parece tão evidente porque se supõe um compartilhamento
cultural.27 Entretanto, as identidades são reivindicadas com base em diferenças
culturais e isso possibilita novos rearranjos nas formas políticas.
Era sexta-feira, 4 de novembro de 2011, quando a comunidade de terreiro
pernambucana se concentrava na área conhecida como Marco Zero. Uma multidão se
espremia tomando também as ruas adjacentes. A maioria das pessoas se vestia de
branco. No centro do Marco Zero havia um pequeno palco. Um pouco à frente, na
rua, um grande trio elétrico. No palco várias lideranças religiosas se
pronunciaram, mas a presença não se estendeu apenas aos religiosos, o próprio
prefeito de Recife, João da Costa, se pronuncia em favor da liberdade religiosa
e enalteceu as raízes ancestrais africanas na formação da referida cidade e
também do estado de Pernambuco, embora não tenha acompanhado o cortejo.
A concentração para a Caminhada fora marcada para as 15 horas. Um pouco antes,
juremeiros começaram a se reunir na conhecida Rua da Guia, nos arredores do
Marco Zero. Essa rua tem uma forte conotação para os juremeiros, era ali que
muitos mestres e mestras da jurema, em vida carnal, frequentavam os
estabelecimentos de meretrício. O motivo para se reunirem derivou de um
desentendimento entre a coordenação da Caminhada e os coordenadores do QCM.
Entretanto, todo conflito gera outra "possibilidade", um novo rearranjo na vida
social. Desse conflito foi lançada, por Alexandre L'Omi L'Odò, a Rede Nacional
do Povo da Jurema, hoje com duzentos juremeiros ligados a ela.
Mas voltemos à Caminhada. Durante o percurso, que vai do Marco Zero ao Pátio da
Igreja do Carmo (onde foi morto Zumbi dos Palmares e exposto seu corpo,
portanto um lugar muito significativo para toda a comunidade de terreiro), são
entoados somente cantos do candomblé. Todos os orixás são louvados. Os
religiosos que cantam as toadas se posicionam no trio elétrico. Ali também
outros personagens ligados ao poder público fazem suas manifestações. É o caso
de Rosilene Rodrigues, Diretoria da Igualdade Racial da Secretaria Municipal de
Direitos Humanos e Segurança Cidadã da Prefeitura de Recife, que embora faça
parte do candomblé, estava ali, naquele momento, representando a prefeitura.
Vejamos a sua apresentação:
Aqui nasceu e foi pro mundo o Quilombo dos Palmares. Essa cidade é
uma cidade de resistência, foi aqui que Zumbi provou a primeira
sociedade baseada no respeito aos diferentes. Então, Recife não
poderia deixar jamais de provar e mostrar a cada tijolo, a cada
prego, a cada ponte, que nós estamos vivos. Não é por nada que somos
mais de 70% da população. Homens e mulheres negras que resistem em
todos os cantos dessa cidade. E é com esse compromisso que a
Prefeitura da Cidade do Recife vem implementando políticas que deem
conta dessa realidade [...]. Na verdade a população negra precisa
provar, cada dia mais, que essa cidade, tão negra, vibra em cada
homem e em cada mulher. [...] Não é só a cidade e a Prefeitura de
Recife, não é só apoiar a Caminhada, a cidade compreende e precisa de
políticas que falem sobre nossas vidas, que digam sobre nossa
história. E é por essa história que nós estamos caminhando, é sobre
essa história que nós vamos navegar nesse rio.28
Ao fim do cortejo, chegamos ao Pátio da Igreja do Carmo. Havia um pequeno carro
de som estacionado no pátio para a saudação à jurema sagrada.29 Sandro de Jucá
iniciou a saudação à Malunguinho e depois foi seguido por vários outros
juremeiros encarregados de louvar os trunqueiros, boiadeiros, caboclos, mestres
e mestras da jurema. O pátio da igreja foi aos poucos ficando vazio e se
encerrou mais uma edição da Caminhada dos Terreiros de Pernambuco.
Em um folheto distribuído em um dos seminários de preparação da Caminhada
podemos ver o seguinte trecho:
Em 2010, fomos às urnas decidir que País queríamos para os próximos
anos, e, já eleitos, os governantes "políticos" que ajudamos a
eleger, precisam se comprometer fazendo com que as Leis Existentes no
País sejam "de fato" cumpridas. Pois, nosso povo carece de reparações
URGENTES, no que tange a Religião, Educação, Saúde, Segurança,
Trabalho e Renda. Portanto, entendemos que, enquanto cidadãos, temos
nossos direitos assegurados pela Constituição; Tudo que conquistamos
foi com Luta, Suor, Lágrimas e Resistência. É importante ressaltar
que Pernambuco é o segundo estado brasileiro com o maior contingente
de Negros(as), como também, o de maior população de, umbanda e
jurema, sendo estas duas últimas, religiões de maior culto em todo
País. Não entendemos o porquê do Governo do Estado não ter um
tratamento Político/Social respeitoso a esta comunidade tão
expressiva de Pernambuco. Hoje, neste seguimento de luta, trazemos
nossos Cânticos as mudanças que queremos para nossa população,
visando o Respeito às nossas necessidades que, para nós são
extremamente SAGRADAS.30
As críticas e reivindicações acima podem se estender também ao QCM. O evento/
festa Kipupa Malunguinho desdobra-se em um ritual religioso que finda a Semana
de Vivência e Prática da Cultura Afro-Pernambucana instituída pelo poder
público. A Caminhada, um evento religioso e de cunho político, leva a
comunidade de terreiro para as ruas reivindicando a tolerância religiosa.
Através de ambos, o espaço público é construído pela esfera religiosa e a
tradição se torna um ponto de encontro entre o discurso e ação. Van der Port já
havia chamado a atenção para a continuidade do terreiro em outros espaços
frequentados e recriados pelos candomblecistas.31
Embora percebamos que a linguagem da Caminhada seja enfaticamente política, são
as questões subjetivas que a motivam, é o "beliscão do destino" subjetivo de
William James que visualizamos como o estopim desse discurso. É a religião e a
tradição que definem o discurso e o jogo político. Podemos novamente nos
referir a Sahlins quando diz que nas diversas relações estabelecidas na
experiência social as categorias são transformadas quando colocadas diante do
campo de ação, diante da própria esfera da relação social.
A experiência social humana consiste da apropriação de objetos de percepção por
conceitos gerais: uma ordenação de homens e dos objetos de sua existência que
nunca será a única é possível, mas acredito que, nesse sentido, é arbitrária e
histórica. A segunda proposição é de que o uso de conceitos convencionais em
contextos empíricos sujeita os significados culturais a reavaliações práticas.
As categorias tradicionais, quando levadas a agir sobre um mundo com razões
próprias, um mundo que é por si mesmo potencialmente refratário são
transformadas. Pois, assim como o mundo pode escapar facilmente dos esquemas
interpretativos de um dado grupo humano, nada pode garantir que sujeitos
inteligentes e motivados, com interesses e biografias sociais diversas,
utilizarão as categorias existentes das maneiras prescritas. Chamo essa
contingência dupla de o risco das categorias na ação.32
Ao pensarmos que o espaço público, tal como concebido através do processo de
secularização na modernidade, é o locus onde a religião está ausente, o campo
de ação empírica nos mostra o contrário. A religião também é uma linguagem
política.33 O que impressiona é que os representantes da política "de fato" já
perceberam isso e os religiosos não ficam atrás. Na realidade brasileira, o
espaço público é bem mais parecido com aquele tipo de sociabilidade
antropológica descrito por Gabriel Tarde, o encontro do aspecto subjetivo do
sujeito/indivíduo com o público ou a opinião pública, entendida pelo autor não
como essencialmente política, mas também perpassada pelo sentimento religioso e
por todas as ações experimentadas no âmbito do vivido.34
O paradigma weberiano da secularização perde força em nossas experiências. Não
é somente a religião como linguagem política que invade a política "de fato", a
recíproca também é verdadeira. O prefeito de Recife contribuiu com sua fala no
início da Caminhada. A diretora da Secretaria de Igualdade Racial legitimou na
política um discurso de origem religiosa que abordou questões relacionadas à
religião, à política, à etnicidade, à identidade, à raça, todas essas amparadas
na ideia de tradição das matrizes afro-indígenas. A instituição escola esteve
presente com as professoras no Kipupa Malunguinho, o discurso sobre a
diversidade foi levantado por quem estava fora da jurema.
Ao recolocar a religião no espaço público, chegamos a uma abordagem sistêmica
em que a religião refaz inversamente os caminhos propostos por Weber 35 e
Simmel 36 sobre o processo de secularização na modernidade. A religião,
enquanto expressão subjetiva nessa modernidade, retoma a expressão objetiva de
coesão do social, porém de uma ordem diferente daquelas expostas pelos autores.
Não mais como um processo de secularização em que a racionalidade instrumental
traria o domínio das coisas sobre os homens ou a objetividade coisal da
"tragédia da cultura", mas a partir de uma criatividade própria dos sujeitos
modernos. Geertz coloca a experiência para além da subjetividade do "beliscão
do destino" e a amarra com termos mais firmes, como identidade e poder para a
compreensão das paixões e atos que chamamos de religiosos.37
Marcos do Grac nos fala de uma ação do governo realizada em muitos terreiros:
[...] Um exemplo concreto: chegam as campanhas de vacinação e o
governo simplesmente coloca a vacinação no seu terreiro, terminou a
campanha ele deixa pra lá, nem obrigado ele volta pra dar, e a gente
precisa de tudo. A gente precisa de que? A gente precisa de
saneamento básico, a gente precisa, inclusive, de uma cozinha, a
gente precisa de sanitários, a gente precisa de reforma, a gente
precisa da documentação legal que é o registro de terreiro de
candomblé, o que não é fácil fazer, pra que a gente possa ter... seja
viável, alguns projetos sociais que o terreiro desenvolve. Porque o
terreiro de candomblé, além de ser um espaço educativo, um espaço
psicológico, um espaço de carinho, todo povo que precisa de um espaço
religioso lá encontra. Você nunca chega numa casa pra sair de lá com
fome, por incrível que pareça. Sem sair com carinho, com uma direção.
Sempre buscam te dar essa consideração. Então um terreiro de
candomblé é como se fosse o peito de Iemanjá, cujos filhos são
peixes... você viu lá ela com o peixe, dando de mamar ao peixe,
então... me arrepiei todinho... isso é coisa da gente, entendesse?38
Sua fala, acompanhada de um choro na hora que conversávamos, indica a ligação
entre os aspectos subjetivos e as necessidades objetivas sentidas pelo povo de
santo. Dessa forma, o pluralismo cognoscitivo nos possibilita compreender que o
processo de secularização leva a religião para a arena do privado, entretanto o
ethos religioso é público.39 Retornamos a Sahlins,40 quando esse diz que
devemos permear o fenômeno da "organização da experiência e da ação humana por
meios simbólicos", porque a experiência humana, subjetiva, se expressa como
valores e significados atribuídos socialmente.41 E o processo simmeliano de
reencantamento do mundo permite que a religião venha novamente a ser pública.
Embora Simmel deixe claro que a modernidade transforma a religião em
religiosidade pessoal,42 ele a reconecta com outras esferas da vida. O
"beliscão do destino" possui um duplo sentido para Geertz,43 de um sentimento
subjetivo e profundo sobre a religião imersa na individualidade dos sujeitos,
uma espécie de linguagem emotiva que reorienta as ações públicas e seus
significados. Assim, podemos entender que essa linguagem emotiva, religiosa,
dentro de uma linguagem política modelada pela potência das paixões religiosas,
é capaz de se tornar um instrumento para a realização de propósitos. Como
salientou Mãe Elza de Iemanjá, uma das responsáveis pela Caminhada dos
Terreiros, sobre a autoestima do povo de santo:
Olhe, eu penso que primeiro a autoestima dos terreiros, a confiança
dos terreiros no seu potencial de luta, porque eu acho que a nossa
estima da reparação que nunca chegava, que toda vez é muito buscada
pelo povo de terreiro, mas que infelizmente não chega, não vinha
chegando. Eu acho que essa coisa da autoestima ela tá bem mais
acentuada, eu acho que o respeito de um com o outro também, de nós
com os outros credos, porque nós passamos a conversar com outros
credos de forma mais aberta. Da Caminhada surge a ideia de fazer um
fórum inter-religioso, coisa que antes Pernambuco não conversava.44
O público e o privado se entrelaçam, e mais ainda, podemos dizer, ao contrário
de Weber e Simmel, que a religião na modernidade pode novamente galgar o espaço
de uma esfera social que estrutura o mundo. Nesses termos, a religião é uma
linguagem de compreensão sobre o mundo, um fato social total em termos
maussianos. É o que percebemos com o relato de João Monteiro sobre Sandro de
Jucá. Em uma das vezes que se reuniram para o grupo de estudos, no Arquivo
Público Estadual João Emereciano, o historiador Marcus Carvalho estava
presente. Marcus fora fazer uma exposição de sua pesquisa que culminou no livro
Liberdade rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850. Nesse livro o
autor cita a figura histórica de Malunguinho. Vamos à fala de João Monteiro, é
interessante notar que esse foi o primeiro momento de encontro de Sandro com os
outros coordenadores do QCM:
O depoimento de Sandro... num primeiro momento ele foi lá no Arquivo,
mexeu comigo até hoje. Porque ele foi na primeira vez assistir a
palestra de Marcus Carvalho. E Marcus Carvalho começou, falou da
pesquisa dele e se deteve na questão de João Batista, falou de João
Batista e Malunguinho e tal... então Sandro, no final da palestra a
gente sempre abria o debate, e Sandro foi... "eu vim aqui dar um
depoimento porque eu estou emocionado, que eu não entendia porque a
minha avó, assentamento dela de Malunguinho, tinha uma imagem de São
João Batista". Era um assentamento bem antigo da avó dele. [...] Por
que essa construção simbólica? Ele não entendia. E a partir da fala
de Marcos Carvalho ele linkou uma coisa com a outra. Pode ser,
provavelmente, pelo nome dele, o último, ter sido João Batista, a avó
linkou com São João Batista e montou lá a história.45
As alianças estabelecidas para o processo de visibilidade da jurema passam por
instituições (arquivo público, escola, universidades, blogs e redes sociais
virtuais, prefeituras, secretarias), mídias, agentes religiosos e
intelectuais.46 Como exemplo, no mês de abril de 2012, Alexandre L'Omi L'Odò
foi convidado, pelo antropólogo José Jorge de Carvalho, a realizar um ritual
religioso de jurema na inauguração da Sede do Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI), instituição
ligada à Universidade de Brasília. Para legitimar a jurema, o QCM está num
processo de se constituir em entidade jurídica, o que já aconteceu com a
Caminhada dos Terreiros, desde o ano de 2011. O QCM também vem discutindo a
necessidade do povo de terreiro entrar, como alunos, nas universidades e eles
próprios escreverem suas histórias. Essas ações levam, ainda, a entraves no
próprio campo como conflitos entre os coordenadores da Caminhada e os
coordenadores do QCM, o que culminou no nascimento da Rede Nacional do Povo da
jurema que, apesar de recente, é um novo de instrumento de visibilidade que
tende a ganhar cada vez mais força na disputa de poderes.
Assim, mediação entre as formas culturais (entendidas em consonância com o
religioso) e políticas é um espaço privilegiado para a compreensão de como se
dá a ascensão da jurema no campo religioso pernambucano, além de nos
possibilitar uma compreensão sobre o espaço público como um espaço de
negociações das categorias que definem o sentido da ação social. Um espaço que
se estrutura na interação entre jogos de linguagem articulados em torno de
elementos tanto da tradição, quanto da religião, do direito e da política, e
que por este motivo, podem ser, em um sentido wittgensteiniano, publicamente
acessíveis. A visibilidade da jurema ocorre não só como um movimento oriundo do
campo religioso e suas disputas de poder, ela é possibilitada através do
próprio espaço público que legitima, ainda que de forma incipiente e não
emancipadora, o questionamento sobre o lugar de juremeiros, candomblecistas e
umbandistas, agentes que buscam os valores ligados à cidadania a partir de um
espaço das razões justificado principalmente através da religião. Nesse
sentido, a religião afere o poder emancipador que o processo de secularização
não percebe ou ignora.
Texto recebido em 23 de agosto de 2012 e aprovado em 24 de outubro de 2012
1 Georg Simmel, Religião Ensaios vol. 1, São Paulo: Olho d'Água, 2010.
2 Citamos como exemplo alguns trabalhos: Mário de Andrade, Música de feitiçaria
no Brasil, São Paulo: Martins Editora, 1983; Luiz Assunção, O
reino dos mestres: a tradição da jurema na umbanda nordestina, Rio de Janeiro:
Pallas, 2006; Roger Bastide,"Imagens do Nordeste místico em
branco e preto", O Cruzeiro(1945); Maria do Carmo Brandão e
Luís Felipe Rios, "O catimbó-jurema do Recife, in Reginaldo Prandi (org.),
Encantaria brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encantados (Rio de
Janeiro: Pallas, 2001), pp. 160-81; Luís da Câmara Cascudo,
Meleagro: depoimentos e pesquisa sobre a magia branca no Brasil, Rio de
Janeiro: Agir, 1978; Álvaro Carlini, Cachimbo e maracá: o
catimbó da missão (1983), São Paulo: CCSP, 1993; Maria
Rosário Carvalho, Edwin Reesink e Julie Cavignac (orgs.), Negros no mundo dos
índios: imagens, reflexos, alteridades, Natal: EDUFRN, 2011;
Clarisse Novaes Motta e Ulisses Pessoa Albuquerque (orgs. ),As muitas faces da
jurema: da espécie botânica à divindade afro-indígena, Recife: NUPEEA, 2006; Roberto Motta, "A jurema do Recife: religião indo-afro-
brasileira em contexto urbano", in B. C. Labate e S. L. Goulart (orgs.), O uso
ritual das plantas de poder (Campinas: Mercado de Letras, 2005), pp. 279-99; Sandro Guimarães de Salles, À sombra da jurema encantada:
mestres juremeiros na umbanda de Alhandra, Recife: UFPE, 2010; Waldemar Valente, Sincretismo religioso afro-brasileiro, São Paulo:
Nacional, 1955; René Vandezande, "Catimbó: pesquisa
exploratória sobre uma forma nordestina de religião mediúnica" (Dissertação de
Mestrado, Universidade Federal de Pernambuco, 1975).
3 Clarice Novaes da Mota e José Flávio Pessoa de Barros, "O complexo da Jurema:
representações e drama social negro-indígena", in Clarice Novaes da Mota,
Ulysses Paulino de Albuquerque (orgs.), As muitas faces da Jurema: de espécie
botânica a divindade afro-indígena (Recife: Bagaço, 2002), pp. 19-60.
4 Neste ponto, desejamos destacar que muito provavelmente os motivos dessa
invisibilidade residem na dicotomia magia/religião como juízos valorativos. A
perseguição sofrida pelos terreiros, principalmente durante os anos do Estado
Novo, os coloca sob a tutela da polícia acompanhados do jargão charlatanismo.
Em 1933, é criado em Pernambuco o Serviço de Higiene Mental, liderado por
Ulisses Pernambucano e tendo entre seus intelectuais Gilberto Freyre, Gonçalves
Fernandes, René Ribeiro, entre outros. De forma bem simplificada, o SHM foi uma
tentativa de elevar o candomblé à categoria de religião, colocando-o como um
componente na formação do Brasil e retirando-o da alçada policial. O mesmo não
aconteceu com a jurema, que continuou a ser reconhecida como magia e,
principalmente, acusada de charlatanismo e falsa medicina por realizar
trabalhos de cura. Essa postura frente à jurema fez com que seus altares fossem
escondidos nos terreiros.
5 Ressalvamos que a presença da jurema nos terreiros de candomblé não pode ser
entendida como uma ocorrência geral. Há casas que somente se destinam ao
candomblé e casas que cultuam somente jurema. Estas últimas, geralmente, não
são terreiros, mas o local de moradia do juremeiro, que tem ali seu altar de
jurema e onde realiza suas consultas.
6 São diversos os motivos que levam as pessoas à jurema, entre os mais
corriqueiros podemos citar problemas de saúde, financeiros e amorosos.
7 Malungo era o título dado à liderança do Quilombo do Catucá PE (1817-1830) e
significa amigo, companheiro de viagem.
8 Apesar de falarmos sobre o candomblé, nos deteremos mais especificamente nas
descrições da jurema por ser esta o ponto central de nosso argumento, além de
compreendermos as inúmeras etnografias já realizadas sobre o candomblé e que
podem ser tomadas como modelos descritivos do ritual para o presente trabalho.
9 Nome dado aos tambores tocados na jurema e no candomblé.
10 Roberto Motta, "O corpo e a religião no xangô e na umbanda", Revista de
Teologia e Ciências da Religião, ano VII, n. 7 (2008), pp. 55-69.
11 Marshal Sahlins, Ilhas de História,Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
12 Sahlins, Ilhas de História, p. 191.
13 Michelle Gonçalves Rodrigues, "Conhecimento e alteridade: história,
estrutura, função, cultura e significado em três perspectivas antropológicas",
CSOline Revista Eletrônica de Ciências Sociais, ano 2, v. 5 (2008), pp. 242-65.
14 Sahlins, Ilhas de História.
15 Clifford Geertz, Nova luz sobre a Antropologia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001, p. 157.
16 Geertz, Nova luz sobre a Antropologia.
17 Geertz, Nova luz sobre a Antropologia, pp. 151-2.
18 Clifford Geertz, A interpretação das culturas, São Paulo: LCT, 1989, p. 90.
19 Roberta Bivar Carneiro Campos e Eduardo Henrique Araújo de Gusmão, "Religião
em movimento: relações entre religião e modernidade", Campos, v. 11, n. 1
(2011), pp. 65-83.
20 O QCM é uma entidade surgida, em 2004, a partir de um grupo de estudos
realizado no Arquivo Público Estadual João Emereciano na cidade de Recife PE,
durante o período de 2004 a 2007. Os três principais líderes do QCM são Sandro
de Jucá (pai de santo, juremeiro e coordenador religioso do QCM), Alexandre
L'Omi L'Odò (filho de santo, juremeiro e coordenador do QCM) e João Monteiro
(filho de santo, juremeiro e coordenador do QCM). Para maiores esclarecimentos
http://www.qcmalunguinho.blogspot.com.br/.
21 Alexandre L'Omi L'Odò possui um blog constantemente atualizado sobre as
ações realizadas pelo QCM e sobre assuntos que envolvem a jurema: <http://
alexandrelomilodo.blogspot.com.br/>
22 Depoimento de Alexandre L'Omi L'Odò em 14 de maio de 2011.
23 Fala de João Monteiro na cerimônia do dia 25 de setembro de 2011.
24 Fala da professora Carmem Dolores na cerimônia do dia 25 de setembro de
2011.
25 Disponível em <http://alexandrelomilodo.blogspot.com.br/2011/09/o-que-
significa-kipupa-malunguinho.html>. É interessante notar que os caminhos da
visibilidade da jurema, neste trabalho, vão além dos eventos em que nos
propomos a abordar. Eles perpassam os blogs de divulgação do QCM, porém essa
observação já seria por si só motivo de outro trabalho.
26 Depoimento de Marcos do Grac no dia 13 de3 dezembro de 2011.
27 Roberta Bivar Carneiro Campos, "Les Défis de Xambá: un terreiro Devenu
Quilombo: analyse du syncretisme et de l'africanité", Cahiers du Brésil
Contemporain, n. 75/76 (2010), pp. 91-112.
28 Fala de Rosilene na Caminhada do dia 4 de novembro de 2011.
29 Eis um dos pontos do conflito entre as lideranças da Caminhada e os
coordenadores do QCM. Para os últimos, a jurema deveria ter o seu lugar durante
o cortejo propriamente dito, enquanto para os primeiros, as diferenças de
ritualística, principalmente atribuídas aos cachimbos e a exalação das fumaças,
comprometeriam a louvação aos orixás. Poderíamos destacar mais uma vez a
dicotomia magia/religião para a explicação desse conflito, o que faremos em
outra ocasião.
30 Fonte Associação Caminhada dos Terreiros de PE (ACTP), "5ª Caminhada dos
Terreiros de Pernambuco", Folheto impresso. 2011.
31 Mattjs van der Port, "Candomblé in Pink, Green and Black. Re-scripting the
Afro-Brazilian Religious Heritage in the Public Sphere of Salvador, Bahia",
Social Anthropology, v. 13, n. 1 (2005), pp.3-6.
32 Sahlins, Ilhas de História, p. 182.
33 Quando utilizamos o termo linguagem nos remetemos a Jürgen Habermas,
"Religion in the Public Sphere", European Journal of Philosophy, v. 14, n. 1
(2006), p. 1-25. Para o autor a religião pode ser vislumbrada
como um componente linguístico que compõe a modernidade para a compreensão
desta. Essa abordagem se coloca contra o paradigma de secularização de Weber,
entretanto Habermas avança por meio de uma referência de procedimento embasada
no direito para a busca do consenso entre o conflito de discursos normativos.
Acreditamos que este último ponto não pode ser objeto de compreensão para nossa
realidade brasileira.
34 Gabriel Tarde, A opinião e as massas, São Paulo: Martins Fontes, 2005.
35 Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
36 Georg Simmel, "O conceito e a tragédia da cultura", in Jessé Souza e
Berthold Öelze (orgs.), Simmel e a modernidade (Brasília: Editora da UnB,
2005).
37 Geertz, Nova luz sobre a Antropologia, p. 157
38 Marcos do Grac, em 13 de dezembro de 2011.
39 Geertz, A interpretação das culturas.
40 Marshal Sahlins, "O pessimismo sentimental e a experiência etnográfica:
porque a cultura não é um objeto em vias de extinção. Parte I",Mana, v.3, n.1
(1997), pp. 41-73.
41 Sahlins, "O pessimismo sentimental e a experiência etnográfica", p. 41.
42 Simmel, "Religião".
43 Geertz, "O beliscão do destino".
44 Mãe Elza de Iemanjá, em 6 de janeiro de 2012.
45 João Monteiro, em 14 de maio de 2011.
46 Desejamos destacar que o processo de compreensão dessas alianças ocorre nos
moldes metodológicos propostos por Bruno Latour em duas obras: Jamais fomos
modernos,São Paulo: Editora 34, 2005; e Changer de Société.
Refaire de la Sociologie, Paris: La Découverte, 2006.