Ideologia, democracia e comportamento parlamentar: a Câmara dos Deputados
(1991-1998)
INTRODUÇÃO
Freqüentemente, políticos, jornalistas, acadêmicos e cidadãos em geral utilizam
conceitos espaciais para identificar as posições dos atores políticos. Dizemos,
por exemplo, que certo candidato está mais à esquerda de um, porém mais à
direita de outro. A teoria espacial do voto é uma formalização dessas idéias.
Ela parte do pressuposto de que as preferências individuais e as políticas
podem ser representadas como pontos em um espaço. Os atores dão primazia às
políticas mais próximas em detrimento daquelas que estão mais distantes de seus
pontos ideais.
O número de dimensões corresponde ao número de áreas temáticas relevantes para
os atores. Por exemplo, cada indivíduo pode ter avaliações distintas em
questões de finanças públicas, comércio exterior, política antidrogas etc., por
isso, a dimensionalidade do espaço político pode ser muito alta.
Um dos objetivos deste artigo é responder à pergunta: quantas dimensões são
necessárias para representar adequadamente as preferências dos legisladores da
Câmara dos Deputados brasileira no período 1991-1998? Para respondê-la, será
necessária uma rápida introdução à teoria espacial do voto. Em seguida,
apresentaremos o método estatístico W-NOMINATE que, a partir das votações dos
deputados, infere as localizações espaciais destes em uma ou mais dimensões.
Veremos que, de fato, uma dimensão explica a maior parte das votações na Câmara
dos Deputados, pois dimensões adicionais não melhoram significativamente a
capacidade explicativa do modelo estatístico. Falar em centro, direita e
esquerda parece, afinal, fazer sentido no caso brasileiro. Sugerimos que, no
período estudado, os "governistas" ocupam um extremo e a
"oposição", o outro, estando os deputados distribuídos ao longo desse
continuum ideológico. Ideologia tem um significado específico aqui: o de
constranger os atores a expressar suas preferências em um espaço de baixa
dimensão.
TEORIA ESPACIAL DO VOTO
Vamos supor que a Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados
tenha que decidir qual a taxa de imposto de renda para pessoas físicas no
Brasil. Vamos supor ainda que o conjunto de alternativas possíveis vá de 0% a
100%. Os seguintes partidos, em vez dos deputados, fazem parte da comissão: PT,
PDT, PSDB, PMDB e PFL. Isto é, estamos supondo que os partidos são atores
unitários. A preferência de cada um deles pode ser representada por um ponto na
linha que vai de 0 a 100.
Assumimos que as preferências têm pico único, ou seja, têm seu valor máximo no
ponto ideal de cada indivíduo (partido), decrescendo monotonicamente para ambos
os lados.
Uma das funções que apresenta essas propriedades é a que possui forma de tenda,
como a que observamos na Figura_1. Assumimos também que todos votam. Assim,
dadas duas alternativas s e n, o partido k vota em s se e somente se:
|s - k| < |n - k|
Isto é, se s está mais próxima de k do que n, o voto do indivíduo (no caso,
partido) k vai para s. Do contrário, vai para n. Para exemplificar, vamos supor
que o status quo esteja em n. Em uma votação hipotética existe uma proposta s
que muda a política do ponto n para o ponto s. Quem vota a favor de s? É fácil
observar que o PMDB e o PFL estão mais próximos do status quo n do que de s, e
portanto votam "Não". PT, PDT e PSDB, por outro lado, estão mais
perto de s, votando "Sim". Se assumirmos que cada partido dispõe de
apenas um voto, a proposta passa e o resultado é uma mudança da política do
ponto n para o ponto s.
O teorema de Black (1958) estabelece que, em contextos unidimensionais com
preferências de pico único, existe um equilíbrio bem definido: a posição
mediana. Na Figura_1, a posição mediana corresponde à do PSDB. Se o status quo
está localizado no ponto ideal do PSDB, e o PFL sugere n ou qualquer ponto à
direita do PSDB, o PT, o PDT e o próprio PSDB votarão contra e a posição
mediana vence. Se o PDT, por sua vez, sugere s ou qualquer outro ponto à
esquerda do PSDB, o PFL, o PMDB e o PSDB votarão contra, permanecendo a
política em PSDB. Ou seja, a posição mediana nunca perde em uma decisão pela
regra da maioria.
Observe que precisamos conhecer tanto a localização da proposta como a do
status quo para podermos predizer os votos. Em livro recente, Ames ignora este
fato e se pergunta:
"Se a maior parte dos projetos de legislação tem por objetivo
satisfazer o legislador mediano, os membros conservadores dos
partidos de direita seriam os mais insatisfeitos e, portanto, mais
inclinados à indisciplina [ ] Por que os conservadores
cooperam?" (2001:221, tradução nossa)
Para esse autor, a resposta são pagamentos colaterais para que os deputados
deixem suas ideologias de lado. No entanto, ao representarmos cada votação como
dois pontos no espaço, os achados de Ames tornam-se consistentes com o modelo
espacial.
Retornemos à ordem dos partidos exposta na Figura_1, supondo agora que o status
quo esteja à esquerda do PDT. Em uma votação entre esse status quo e a posição
mediana (PSDB), o PFL (o membro mais conservador) vota em favor da posição
mediana. Afinal, sendo xio ponto ideal do partido i (ou do status quo), |xPFL -
xPSDB|<|xPFL - xstatus quos|. o ponto ideal do partido i (ou do status quo),
|xPFL - xPSDB|<|xPFL - xstatus quos|. Portanto, não há uma coalizão dos
extremos contra a mediana como Ames faz supor.
Outra questão é o que acontece quando mais de uma dimensão é relevante.
Considere um plano em que há uma dimensão social e outra econômica. Indivíduos
e políticas podem ser localizados em qualquer lugar desse plano. A teoria da
escolha social informa-nos que, nessas condições, tudo pode acontecer. Isto é,
o caos instaura-se (McKelvey, 1976). Daí a importância teórica da
dimensionalidade do espaço político.
Por último, em votações nominais, partidos não votam, mas sim os deputados
individualmente. Temos que estar atentos à possibilidade de os deputados
estarem localizados mais à esquerda ou mais à direita dentro dos seus
respectivos partidos.
ANÁLISE ESPACIAL DAS VOTAÇÕES NOMINAIS
Até agora, a discussão baseou-se na seguinte premissa: sabemos quais são as
posições das políticas e dos representantes. O problema, obviamente, é como
identificar as posições das 235.831 decisões e dos 963 legisladores na Câmara
dos Deputados1 no período que se estende de 1991 a 1998.
Limongi e Figueiredo argumentam que com a simples tabulação das proporções em
que os líderes dos maiores partidos apresentaram encaminhamentos similares
(Tabela_1), podemos perceber uma estrutura nos dados.
"Os partidos aqui são apresentados de acordo com a ordenação
ideológica sugerida pela própria análise dos dados. A Tabela_1
apresenta de maneira (clara) a prevalência do ordenamento proposto
[...]. A disposição dos partidos no continuum ideológico direita-
esquerda emerge de maneira nítida [...]. A distância entre os dois
extremos é patente: a concordância entre os líderes do PDS e do PT
ocorreu em apenas 13,6% dos casos. Observe-se ainda que o centro está
bem mais próximo da direita que da esquerda." (Limongi e
Figueiredo, 1995:502, ênfases nossas)
A proporção dos votos em que os líderes dos partidos concordam (índice de
concordância) tem conotação espacial. Isto é, partidos podem estar mais ou
menos distantes uns dos outros, estando mais próximos quanto mais votarem
juntos. Note que a estrutura ideológica sugerida pelos autores é constituída
por uma só dimensão (esquerda-centro-direita), mas não são apresentadas
evidências para fundamentar tal hipótese.
Como os partidos no Brasil não são totalmente coesos, o ideal seria estimar as
preferências de cada deputado, e não somente dos líderes ou dos agregados
partidários. O problema é bastante complexo. Temos que identificar em cada
legislatura as posições de cerca de 500 deputados, observando um quadro com
124.750 distâncias. Seria como tentar desenhar o mapa de uma região
desconhecida a partir de um quadro contendo apenas as distâncias entre os
municípios. E mais, não se sabe ainda se as distâncias incluem ou não as
altitudes!
Felizmente, existe um conjunto de técnicas estatísticas específicas para
resolver esse tipo de problema: métodos de escalonamento multidimensional. Note
que não cabe ao analista determinar a priori quantas dimensões são necessárias,
nem qual o conteúdo substantivo destas. Este trabalho é feito a posteriori por
diferentes métodos: análise das medidas de ajuste estatístico, análise dos
gráficos (mapas), regressões lineares etc.
O Procedimento NOMINATE
Métodos de escalonamento multidimensional não têm como base a teoria espacial
do voto. Por isso, Poole e Rosenthal desenvolveram o procedimento NOMINATE,
acrônimo de Nominal Three-Step Estimation (Estimação Nominal em Três Passos),
que expomos brevemente a seguir e que utilizaremos no decorrer deste artigo.
Escolhemos esse método pelas seguintes razões: a) as estimativas resultantes
são o atual padrão na ciência política norte-americana, o que permite a
comparação imediata dos resultados obtidos aqui com o de outras assembléias
legislativas; b) é um dos métodos mais diretamente ligados à teoria espacial do
voto; c) os programas e documentação necessários estão disponíveis na Internet.
O método possibilita a estimação de posições multidimensionais para as
políticas e os legisladores. As coordenadas são forçadas a situar-se em uma
hiperesfera de raio 1 centrada em zero (Poole e Rosenthal, 1997:234).
Precisamos, primeiro, de alguma notação: s representa o número de dimensões
indexadas por k= 1...s; prepresenta o número de legisladores (i =1,..., p); q,o
número de votações (j= 1,..., q). O ponto ideal do legislador i é x1 = (xi1,
xi2,...,xis). Cada votação é representada por zjy e zjn,onde y e n são as
conseqüências políticas dos resultados "Sim" e "Não",
respectivamente.
A utilidade para o legislador na votação j é dada por:
A soma representa a distância euclidiana entre a política "Sim" e o
ponto ideal do legislador.bé uma constante que indica a razão de sinal para
barulho, comum a todos os legisladores. O termo e segue a distribuição
logística.
O problema, nada trivial, é acharb, os x, zjyk e zjnk que maximizam a
verossimilhança. É semelhante a inferir os betase osxem uma regressão logística
em que só dispomos da variável dependente. A solução encontrada por Poole e
Rosenthal para esse problema foi um dos maiores avanços da ciência política
quantitativa2.
Dimensionalidade e Precisão do Modelo no Caso Brasileiro
Equilíbrios em contextos multidimensionais induzidos unicamente pelas
preferências dos atores são (teoricamente) raros a ponto de serem implausíveis.
Se o espaço em que os políticos fazem suas escolhas são de fato
multidimensionais, esperaríamos que as decisões no Legislativo fossem caóticas.
Um modelo que tentasse explicar essas decisões seria certamente muito complexo.
No entanto, a existência ou não de caos, assim como o número de dimensões
relevantes, são questões empíricas. Quanto das decisões individuais dos
deputados é explicado por um modelo simples, com uma ou duas dimensões? A
adição de mais dimensões melhora significativamente o poder explicativo do
modelo?
Os dados utilizados neste artigo são provenientes do Banco de Dados
Legislativos CEBRAP ' Votações Nominais na Câmara dos Deputados ' 1988-1999,
coordenado por Fernando Limongi e Argelina Cheibub Figueiredo. Nele são
registradas todas as votações nominais na Câmara dos Deputados de novembro de
1989 a fevereiro de 1999. Analisamos aqui as votações da 49ª e da 50ª
legislaturas (1991-1999).
O programa W-NOMINATE inclui na análise somente os deputados que votaram pelo
menos 25 vezes em cada período em estudo. Todas as votações em que o lado
minoritário excedeu 2,5% dos votos foram incluídas. Apesar de excluir algumas
votações não unânimes, esse corte é bem menor que o utilizado nos trabalhos de
Limongi e Figueiredo (10%), por exemplo.
O Banco de Dados do CEBRAP também inclui a identificação partidária dos
deputados a cada votação. Adotamos, no entanto, "retratos" da
identificação: a) o partido em que o deputado estava quando votou pela primeira
vez na legislatura em questão; b) o partido do deputado na primeira vez que
votou quando Itamar Franco substituiu Fernando Collor na Presidência da
República no decorrer da 49ª legislatura; c) o último partido do deputado na
50ª legislatura. Quando o texto não indicar o contrário, as filiações
partidárias são as do último período disponível em cada legislatura.
Foram incluídos na análise, além dos deputados, os líderes partidários, por
meio de suas indicações (ou "encaminhamentos") ao plenário. O PDS, o
PPR e o PPB são tratados como um só partido. Os presidentes da República o são
como membros da Câmara, isto é, as indicações do líder do governo3 entram na
análise como se fossem ações de um "legislador".
A estrutura das votações nominais na Câmara do Deputados é claramente
unidimensional, afinal, com apenas uma dimensão, o procedimento W-NOMINATE
classifica corretamente4 86,4% (49ª legislatura) e 90,4% (50ª) das votações
nominais (Tabela_3).
Essa medida, no entanto, tende a superestimar a capacidade preditiva do modelo,
especialmente quando existem muitos votos em que a maioria supera em larga
escala a minoria. Vamos supor que, em determinada votação, em uma assembléia
com 100 representantes, 80 votaram "Sim" e 20, "Não". Sem
nenhum modelo matemático ou sabedoria política, um observador poderia fazer a
predição de que todos votaram igual e acertar 80% dos votos (errando 20%).
Parece claro que, para um modelo qualquer ter realmente alguma capacidade
explicativa, ele terá que acertar mais do que essa predição ingênua.
Por isso, criou-se uma medida chamada redução proporcional do erro, ou PRE. Ela
é definida como % erros ingênuos ' % erros com o modelo/% erros ingênuos. No
caso:
Se, no exemplo anterior, o modelo acerta 90% dos casos (ou seja, erra 10%), o
PRE será de (20% ' 10%)/20% = 50%. Ou seja, o modelo reduz os erros em 50%.
APRE, por sua vez, é a redução proporcional do erro agregado, e é definida
como:
Os valores de APRE e de classificação correta de uma a quinze dimensões estão
na Tabela_3. Essas medidas possibilitam a utilização de um dos critérios para a
escolha da dimensionalidade do modelo. O Gráfico_1 mostra quanto de explicação
adicional em termos de classificação correta cada dimensão traz. Observe que a
segunda dimensão adiciona pouco mais de 2% na 49ª legislatura. Quando
adicionamos uma terceira dimensão, mais 1,2% dos votos é corretamente
classificado. A partir daí, cada dimensão adicional acrescenta menos de 1% de
explicação.
Uma maneira de se estimar a dimensionalidade consiste em observar quando os
dados fazem um "cotovelo", ou seja, uma queda acentuada na explicação
adicional. Em dois momentos, verifica-se essa queda na 49ª legislatura: da 1ª
para a 2ª dimensão (de 86% para 2%), e da 2ª para a 3ª (de 2% para 1%).
Na 50ª legislatura, no entanto, tanto a 2ª como a 3ª dimensões adicionam menos
de 1% na explicação. Não há nenhum critério em termos de ajuste estatístico
para escolhermos entre um modelo bi ou tridimensional. Podemos dizer que a 50ª
Legislatura é essencialmente unidimensional.
Só saberemos se 90% de predição correta ou 60% de APRE são números de monta se
analisarmos os dados comparativamente. A Tabela_4 apresenta os resultados do
Parlamento Europeu, da Casa dos Representantes americana, da Assembléia
Nacional Francesa e da Câmara dos Deputados brasileira em uma e duas dimensões.
Mesmo com deputados orientados (segundo parte significativa da literatura) por
políticas distributivas, e com partidos políticos fracos e sem vínculos com a
sociedade, a Câmara dos Deputados brasileira encaixa-se no modelo espacial tão
bem como o legislativo nacional norte-americano, ou como legislativos de países
europeus famosos pela disciplina partidária.
POSIÇÕES IDEOLÓGICAS DOS DEPUTADOS: 49ª E 50ª LEGISLATURAS
O procedimento NOMINATE foi criado para testar a hipótese das injunções
ideológicas. Apesar de o espaço político ter potencialmente uma
dimensionalidade muito alta, as injunções ideológicas fariam o espaço efetivo
(com base em que as decisões são feitas) ter um número bem pequeno de
dimensões. Os procedimentos que existiam antes, argumentam Poole e Rosenthal
(1985:358-360), superestimavam o número de dimensões, sendo inapropriados para
o teste de modelos espaciais.
A discussão sobre dimensionalidade da seção anterior não pode obscurecer o
achado mais importante: a quase unidimensionalidade da estrutura das votações
nominais na Câmara dos Deputados. Por que não achamos, como seria de se esperar
dada a complexidade das questões tratadas na Câmara, caos ou uma
multidimensionalidade mais acentuada?
Analogias espaciais da política, como "esquerda", "centro"
e "direita", tendem a ser unidimensionais. São representações
abstratas, mas legisladores e eleitores parecem utilizar esses conceitos como
auxílio em suas decisões políticas. Nos Estados Unidos, por exemplo:
"Um liberal dos dias de hoje [ ] provavelmente apóia um aumento
no salário mínimo; [ ] é contra o uso de força no estrangeiro; apóia
programas compulsórios de ação afirmativa; e apóia o financiamento
federal de programas seguro-saúde e creches. De fato, saber se um
político se opõe a um aumento no salário mínimo é suficiente para
predizer, com razoável confiabilidade, a opinião do político em
muitas questões aparentemente desconexas" (Poole e Rosenthal,
1997:11, tradução nossa).
A capacidade de predizer o posicionamento de um deputado em uma variedade de
questões aparentemente não relacionadas revela a presença de injunções
ideológicas. Poderíamos até afirmar que não existem diversas dimensões
políticas (segurança nacional, direitos civis, impostos, salário mínimo etc.),
mas apenas uma: ideologia, variando da esquerda a moderados, à direita.
O que esquerda e direita significam depende do contexto histórico e cultural. É
necessário que essa acepção seja compartilhada por grande parte dos atores, e
que seja possível ser mais ou menos "de esquerda" ou "de
direita". Além disso, as dimensões do espaço ideológico não são fixas, mas
latentes, ou seja, elas são determinadas pela maneira como estão relacionadas
às crenças ou retórica dos políticos (Hinich e Munger, 1997:191). O W-NOMINATE
é um método que se propõe a recuperar as dimensões em que as decisões políticas
são tomadas por meio da análise das votações nominais.
O espaço ideológico não está divorciado das questões políticas. As n dimensões
políticas são "mapeadas" no espaço ideológico de baixa
dimensionalidade, mas ainda não existem teorias explicando esse processo. Para
tentar, pelo menos, descrever o que acontece, temos que interpretar a estrutura
das votações nominais. Afinal, qual o conteúdo substantivo das dimensões?
É claro que pode haver mais de uma dimensão ideológica. No caso norte-
americano, Poole e Rosenthal (1997:47) consideram que, em alguns períodos, uma
segunda dimensão é, de fato, necessária, conseqüência da distinção entre
questões raciais e econômicas. Nos congressos recentes, no entanto, as questões
de raça vêm se tornando cada vez mais questões redistributivas (econômicas).
Voltando ao caso brasileiro, nosso primeiro objetivo é analisar o quadro
partidário e suas modificações no período, à luz da representação espacial dos
pontos ideais dos deputados. Antes de tudo, porém, um aviso. Como os dados não
são rodados todos juntos (a análise é feita por legislatura), o procedimento
não constrange a posição dos deputados a manter-se a mesma nas duas
legislaturas. Como as distâncias reveladas são relativas à posição dos outros
deputados, não podemos saber se o movimento do deputado A de 0,2 para 0,8
significa uma mudança na composição da Câmara ou um efetivo movimento à direita
do deputado. Este fato deve ser especialmente considerado no Brasil, onde a
renovação quase sempre excede os 50%. Comparações entre as posições relativas
dos deputados ou partidos podem ser feitas sem problemas.
Como seria a representação espacial de um modelo partidário do tipo
Westminster, ou seja, com dois partidos altamente disciplinados? Ora, se os
deputados de cada partido realmente votassem sempre juntos, veríamos dois
pontos no espaço, onde os deputados estariam concentrados. Se há, vez por
outra, alguma "rebeldia", seriam dois grupos separados de pontos bem
concentrados. De qualquer forma, a análise espacial de um Legislativo desse
tipo seria quase desprovida de interesse. As decisões de interesse, na verdade,
já teriam sido tomadas antes, pelos comitês partidários e/ou pelos líderes.
Quando os partidos não são coesos, os pontos ideais dos deputados tendem a
estar mais dispersos no espaço e a dimensionalidade passa a ser uma questão
empírica. Já vimos que, na Câmara dos Deputados brasileira, uma ou duas
dimensões são suficientes para explicar os votos dos deputados. A seguir estão
representados os pontos ideais dos deputados graficamente.
Na 49ª legislatura (Figura_3), a 1ª dimensão reflete o espectro esquerda-
direita que os observadores da política brasileira têm em mente para o período:
PT-PDT-PSDB-PMDB-PFL-PPB-PTB. Os três partidos da direita não se distinguem bem
na primeira dimensão e PTB e PFL são separados pela 2ª dimensão (a dimensão
vertical). O PPB, por sua vez, não ocupa uma posição distinta da dos outros
partidos da direita. O PSDB é nitidamente um partido de centro-esquerda, mas a
sua diferença com o PMDB se deve mais à 2ª dimensão. O PT e o PDT diferenciam-
se tanto na 1ª quanto na 2ª dimensão. O PSDB e o PMDB, por sua vez, distinguem-
se melhor pela 2ª dimensão.
Os líderes partidários, de modo geral, não estão separados dos respectivos
partidos. A exceção é o líder do PFL. Aparentemente, ele se comportou como os
mais extremados dos seus membros. O PTB, por sua vez, ocupa posições aleatórias
à direita na primeira dimensão.
O presidente Fernando Collor de Mello está no extremo direito do espectro
político. Somente 9% da Câmara tem pontos ideais à direita do seu. O presidente
Itamar Franco, por outro lado, ocupa uma posição central no espaço, e nada
menos que 60% dos deputados estão à sua direita.
A 50ª legislatura é a que marca um grande número de mudanças no mapa espacial
partidário. Em primeiro lugar, porque PTB, PMDB e PPB aparecem mais
aleatoriamente dispersos no espaço à direita da 1ª dimensão. O PSDB, por sua
vez, passou de um partido de centro ou centro-esquerda para um partido à
direita na 1ª dimensão. A 2ª dimensão divide a coalizão de governo: PFL, PTB e
PPB, de um lado, PMDB e PSDB, de outro. Essa dimensão separa também o PT do
PDT. No entanto, é importante lembrar que a 2ª dimensão acrescenta menos de 1%
à explicação.
O traço mais interessante é a fenda que se abre entre governo e oposição. Não
há mais partidos de centro-esquerda, principalmente por causa da mudança de
localização espacial do PSDB. A coalizão de governo (PFL, PPB, PMDB, PSDB e
PTB) aparece quase toda à direita na 1ª dimensão. Ainda podemos distinguir
visualmente os partidos, mas não tão bem quanto na 49ª legislatura. O
presidente Fernando Henrique Cardoso, a exemplo de Collor, está bem à direita
na 1ª dimensão, com somente 7% do plenário à sua direita.
Quais as questões que "acionam" a segunda dimensão? Para responder a
esta pergunta temos que definir que características das votações evidenciam
divisões na 2ª dimensão. Poole e Rosenthal utilizam os seguintes critérios: a)
selecionar as votações onde o PRE com duas dimensões é maior que 50%, ou seja,
em que o modelo bidimensional consegue explicar bem os votos; b) destas,
selecionar aquelas em que a diferença entre o PRE com duas dimensões e o PRE
com uma só dimensão seja maior que 10%, ou seja, votações em que a 2ª dimensão
melhora consideravelmente a predição.
O Quadro_1 mostra quantas votações (e a porcentagem em relação ao total de
votações no período) satisfazem esses critérios. Como não havia na base de
dados do CEBRAP uma variável codificando as questões por áreas temáticas, foi
necessário fazer nossa própria codificação.
Na 50ª legislatura, não há um padrão definido sobre quais os tipos de questões
são de segunda dimensão, pois existe uma grande variedade de questões, mas com
poucas votações em cada. Das 452 votações somente 16 cumpriram os critérios.
Na 49ª legislatura, no entanto, a 2ª dimensão ganha alguma consistência. Das 23
votações sobre legislação tributária, 10 tinham um componente considerável de
segunda dimensão. Das 6 sobre dívidas dos estados e municípios, nada menos que
5 foram de segunda dimensão.
Para que a 2ª dimensão pudesse ser "acionada", os partidos deveriam
encaminhar seus liderados de modo diferente do previsto pelo modelo espacial
com uma só dimensão. De fato, das 21 votações da 49ª legislatura, em 12 houve
indicações contrárias ao modelo unidimensional (PPB e PT votando juntos contra
o resto, por exemplo). Na 50ª, entretanto, em apenas uma das 16 votações, os
partidos indicaram em desacordo com o modelo unidimensional.
Estabilidade das Dimensões
Para serem fontes de coalizões estáveis, a 1ª e a 2ª dimensões devem não apenas
ser importantes em um dado período legislativo, mas também entre períodos. As
dimensões são estáveis através do tempo? Os deputados adotam uma só posição
durante sua carreira, ou mudam muito de posição a cada eleição?
Em um país em que "realinhamentos" políticos ocorrem a cada eleição
(Coppedge, 1998) ' pelo menos 30% dos deputados federais trocam de partido
durante cada legislatura (Desposato, 1998:7) e pelo menos 50% dos deputados não
são reeleitos ' se poderia esperar que a estabilidade das posições fosse baixa.
Podemos testar essa hipótese por meio de coeficientes de correlação linear. Se
os deputados são estáveis no tempo, a correlação entre esse par de legislaturas
deve ser alta. Se, por outro lado, os deputados mudam de idéia (ou
posicionamento ideológico) a cada momento, as correlações devem ser baixas.
O índice de correlação entre essas legislaturas atingiu 0,80, significativo no
nível 1% (N = 258). Este resultado é surpreendente. É verdade que, se
comparados com seus análogos americanos (Poole, 1997), os resultados não são
muito altos. No entanto, mesmo no pós-Guerra, a Casa dos Representantes teve
alguns momentos em que a correlação entre Casas adjacentes no tempo foi mais
baixa do que se demonstra aqui para o caso brasileiro, que, inclusive, tem
mandatos mais longos (quatro anos versus dois, no caso americano). A 2ª
dimensão não é nada estável. A correlação é de praticamente zero e sem
significância estatística entre as duas legislaturas.
As decisões dos deputados, no entanto, não são feitas em um vácuo
institucional, ou sem pressões dos diversos atores políticos. As preferências
estimadas pelo procedimento NOMINATE são apenas uma aproximação das
preferências dos deputados. Muitos dos efeitos de grupos de pressão ou da base
eleitoral do deputado tendem a cancelar uns aos outros porque o procedimento
usa quase todas as votações. Mas fatores sistemáticos, muitos deles
institucionais, acabam por influenciar uma parte substancial das votações e,
conseqüentemente, as estimativas das preferências.
Alguns fatores são constantes em uma determinada legislatura, mas variam de uma
para outra. Se eles de fato influenciam as decisões individuais, sua variação
pode ser responsável, no tempo, pela estabilidade espacial das preferências dos
deputados.
Que fatores políticos podem ser a explicação para o padrão que encontramos nos
resultados acima?
Presidentes
O Brasil no período estudado teve três presidentes: Fernando Collor de Mello e
Itamar Franco na 49ª, e Fernando Henrique Cardoso na 50ª. O problema de isolar
a variável "presidente" de outros fatores está no fato de que não
somente os presidentes variam, como também a composição do Legislativo. Isto
impede, ou dificulta, separar os efeitos de cada uma dessas variáveis.
Por isso, a 49ª legislatura pode proporcionar um interessante experimento
natural. Das 164 votações do período que satisfizeram as condições para entrar
na análise, 95 foram feitas enquanto o presidente era Collor de Mello e 69 no
tempo de Itamar Franco. Realizamos separadamente o escalonamento dos dois
períodos e analisamos a correlação entre ambos. Como base para comparação,
fizemos também o escalonamento separado da 50ª legislatura, dividindo-a entre a
segunda e a terceira sessões legislativas.
Passemos para o teste de nossa hipótese. A hipótese nula é:
h0: os presidentes não têm influência na estabilidade das preferências
individuais dos deputados.
É importante ressaltar que isso não significa que os presidentes não
influenciam nas decisões dos deputados, mas apenas que não influenciam na
estabilidade de suas preferências ao longo do tempo. A hipótese que testamos é:
h1: os presidentes influenciam na estabilidade das preferências individuais dos
deputados.
Temos por hipótese que a troca de presidentes desestabiliza as preferências,
por causa das mudanças nos partidos e coalizões no poder. A correlação entre os
períodos Franco e Collor de Mello é de espantosos 0,98. Este número ressalta
ainda mais pelo fato de a correlação entre os dois períodos da 50ª legislatura,
em que o único presidente foi Fernando Henrique, ser de 0,916. Ou seja, os
presidentes não alteram o mapa ideológico dos deputados: h0 não pode ser
rejeitada. Nada impede que os presidentes mudem a posição do ponto médio ou a
localização das políticas no espaço. O importante é perceber que a influência
do presidente é consistente com o mapa ideológico das preferências.
Pereira e Mueller (2000:46-50) resumem bem como os presidentes influem no
processo legislativo:
"Do total de 805 propostas que tramitaram no Congresso
brasileiro entre 1995 e 1998, 648 (80,49%) foram iniciadas pelo
Executivo, 141 (17,51%) foram iniciadas pelo Legislativo e apenas 16
(1,98%) pelo Judiciário. O tempo médio para uma proposta do Executivo
ser sancionada pelo Congresso foi de 183 dias; no caso das propostas
iniciadas pelo Legislativo e pelo Judiciário, este prazo estendeu-se
para 1.194 e 550 dias, respectivamente." (idem:47)
Citando dados de Limongi e Figueiredo, Pereira e Mueller afirmam que o mesmo
padrão se verifica entre 1989 e 1994. Das 1.259 leis aprovadas, 997 foram
iniciadas pelo Executivo. Estes dados, em conjunto com outras evidências de
controle da agenda pelo Executivo (Limongi e Figueiredo, 1998), atestam o papel
central do Executivo na análise da Câmara dos Deputados.
Mas o que exatamente o Executivo quer? Os mapas espaciais mostram dois
presidentes, Fernando Henrique e Collor de Mello, bem à direita na primeira
dimensão. Tudo indica que os presidentes polarizam as decisões congressuais,
tentando pressionar os membros de sua base de apoio a aprovar suas políticas. A
exceção foi Itamar Franco. Se o presidente polariza a Câmara, por que Itamar
Franco está no centro da primeira dimensão?
O enigma é solucionado quando fazemos em separado a análise dos votos da 49ª
legislatura para o período em que Franco era o presidente. A figura seguinte
mostra o mapa espacial do período:
A reanálise mostra o presidente Itamar Franco na direita do espaço político,
quase confundido com a indicação do líder do PFL. Ou seja, Franco só é um caso
desviante se considerarmos a 49ª legislatura como um todo, mas não se levarmos
em conta somente seu governo. Nessa nova divisão, todos os presidentes se
encontram na extrema-direita da primeira dimensão, acima do 90º percentil.
Até agora, não enfrentamos uma questão fundamental na análise espacial da
Câmara dos Deputados: qual, afinal, o significado da primeira dimensão? Nos
Estados Unidos, os partidos políticos estruturam esta dimensão:
"Embora as dimensões sejam abstrações matemáticas, o leitor pode
considerar que a primeira dimensão diferencia os fiéis ao partido dos
infiéis. [Ela] parte dos muito leais a um partido, passa pelos que
são pouco leais a qualquer partido, e termina nos que são muito leais
a um segundo partido" (Poole e Rosenthal, 1997:230).
Substitua a palavra "partido" por "Executivo" e
"Oposição" e você terá uma interpretação bastante razoável da
primeira dimensão da Câmara dos Deputados brasileira. O continuum ideológico
dessa dimensão pode ser entendido como indo da oposição total às propostas do
Executivo ao apoio incondicional a este. Um ex-presidente da Câmara parece
concordar:
"(S)e um estrangeiro visitasse hoje o Congresso ficaria com a
impressão de que existem três partidos no Brasil: um que vota a favor
do governo, outro que vota contra e um terceiro que vota
alternadamente" (afirmação atribuída a Michel Temer, O Estado de
S. Paulo, 31/12/2001).
Todos os presidentes no período estudado se posicionaram do mesmo lado da 1ª
dimensão. Não sabemos, ainda, o que ocorreria se um presidente
"oposicionista" estivesse no poder. No entanto, essa dimensão não é
refeita a cada eleição, ou seja, ela é moderadamente estável.
CONCLUSÃO
Este artigo procurou estimar as posições ideológicas dos deputados a partir das
preferências expressas por eles nas votações nominais. A análise revelou uma
estrutura ideológica basicamente unidimensional, que prediz corretamente mais
de 85% dos votos.
A localização dos partidos nos mapas espaciais não está em conflito com a
percepção usual do quadro partidário na Câmara. A vantagem óbvia é que temos
não só as posições dos partidos como um todo, mas de cada membro específico,
dos líderes e do Executivo. Os deputados em geral não mudam muito de posição
espacial de uma legislatura para outra, ou seja, a estrutura é estável.
O fato de todos os presidentes do período estarem localizados na extrema-
direita do espectro ideológico parece sustentar a hipótese de que a primeira
dimensão está fortemente relacionada com as posições adotadas pelo Executivo
nas votações da Câmara dos Deputados.
Limongi e Figueiredo (1995) consideram que as posições dos líderes partidários
predizem corretamente a maior parte dos resultados na Câmara dos Deputados.
Eles argumentam, ainda, que os partidos se comportam ideologicamente. Neste
artigo, partimos do princípio de que os deputados podem, individualmente,
escolher seu posicionamento no espectro ideológico. De fato, os mapas espaciais
mostram que os legisladores dispõem de grande margem de escolha, com exceção
dos membros de partidos de esquerda, especialmente os do PT. A estimativa de
posições individuais dos deputados, em vez de partidos, tem melhor
justificativa teórica e parece representar muito bem a configuração das
preferências na Câmara dos Deputados.
O modelo estatístico que utilizamos explica a maior parte das votações
nominais. Portanto, nossas estimativas das preferências individuais são
bastante aceitáveis, além do que elas são adequadamente representadas em uma só
dimensão. Esses achados colocam as análises da Câmara dos Deputados baseadas na
teoria da escolha racional em terreno mais firme. Afinal, esses modelos
requerem alguma estimativa das preferências dos atores e muitas vezes partem da
premissa de que o espaço político é unidimensional.
A ampla disponibilidade de medidas individuais de preferências, como o W-
NOMINATE, proporcionou uma rápida expansão nos estudos empíricos sobre o
Legislativo norte-americano sob a égide da teoria da escolha racional. Nossa
aspiração é que um fenômeno parecido ocorra no Brasil5.
NOTAS
1. Estes números foram extraídos do Banco de Dados CEBRAP de votações nominais
na Câmara dos Deputados.
2. Remetemos o leitor interessado ao Apêndice A de Poole e Rosenthal (1997).
3. Acrescidas de "Sim" para votações de projetos introduzidos pelo
governo.
4. (Número de votos corretamente classificados)/(número de votos).
5. As posições ideais dos deputados da 49ª e 50ª legislaturas estão disponíveis
para download na minha página na Internet www.columbia.edu/~ell2002.