Sociedade civil e globalização: repensando categorias
INTRODUÇÃO
O discurso da sociedade civil "globalizou-se". Conceito muito usado atualmente
por políticos, acadêmicos e ativistas em todo o mundo, o termo "sociedade
civil" é invocado para tudo, designando desde empreendimentos cívicos,
associações voluntárias e organizações sem fins lucrativos até redes mundiais,
organizações não-governamentais, grupos de defesa dos direitos humanos e
movimentos sociais transnacionais. Aliás, a idéia de uma sociedade civil
mundial ou transnacional já se tornou a principal contribuição do século XXI ao
debate sobre esse conceito. E assim como no passado, na maioria das vezes o
discurso da sociedade civil trata-a como elemento essencial para a democracia e
o processo de democratização e como a fonte principal da solidariedade e da
integração social1. Entretanto, o contexto em que a discussão irrompeu já não é
o do Estado, nem é este o alvo da democratização e da integração, mas a ordem
mundial emergente.
O motivo dessa mudança de foco é óbvio: a percepção de que os processos de
globalização tendem a solapar a capacidade dos Estados para o exercício das
funções cruciais de controle e regulação da economia e da sociedade. Os Estados
Nacionais parecem estar mais se amoldando aos imperativos da economia e do
mercado do que os modelando. A globalização da economia, inclusive a
vertiginosa expansão do comércio internacional, a rapidez dos fluxos de
capitais, a crescente autonomização das redes financeiras e de circulação, o
imenso poder das sociedades anônimas transnacionais, com base nas novas
tecnologias eletrônicas de comunicação, tudo parece substituir "os governantes
do território" pelos "mentores da velocidade"2.
Outros fatos associados com a globalização também tendem a diminuir a
importância do Estado e, por conseqüência, a relevância da sociedade política
nacional como um referente ou um foco de influência para os atores sociais. A
natureza transnacional dos "riscos", em que se incluem os problemas ecológicos
e ambientais (desde os acidentes nucleares à chuva ácida), as questões de saúde
pública (como a Aids e a pneumonia asiática), as organizações criminosas
internacionais ligadas ao tráfico de drogas, armas e sexo, a proliferação dos
incidentes envolvendo imigrantes e refugiados políticos, o terrorismo em escala
mundial e os planos militares e imperiais unilaterais, tudo isso acentua a
vulnerabilidade e o baixo controle dos Estados nacionais modernos sobre seus
territórios e fronteiras, sua população residente e os perigos com que se
defrontam os cidadãos. Na verdade, a fronteira entre o nacional e o
transnacional parece estar se diluindo, pondo em dúvida a soberania do Estado
(ver Strange, 1996; Sassen, 1996; Cohen, 1999a).
Observa-se, por outro lado, a notável expansão não só de várias instituições
supranacionais dedicadas à regulação e produção de regras, como o Fundo
Monetário Internacional ' FMI, o Banco Mundial, a Organização Mundial do
Comércio ' OMC e a União Européia, mas também de uma pletora de agências
privadas de âmbito mundial, como associações que definem normas e padrões de
comércio (Cutler, 2001; Rosenau, 1997; 1999; Teubner, 1996). A multiplicação de
fontes do direito acima do nível do Estado e a evidente desvinculação da
legislação do Estado territorial sugerem que, na realidade, este perdeu tanto
sua soberania jurídica quanto política. Contudo, as novas formas de governança
não são democraticamente estruturadas, não prestam contas a um corpo de
cidadãos nem os representam. Em suma, o Estado nacional, democrático,
constitucional e soberano, não parece mais ser a fonte legítima exclusiva das
mais importantes decisões coletivas vinculativas; os legislativos eleitos já
não monopolizam ou hierarquizam a elaboração das leis; os tribunais ou
parlamentos nacionais já não são as instâncias supremas na hierarquia jurídica;
o vínculo entre a soberania territorial e a político-jurídica dissolveu-se, e a
própria soberania desagregou-se, fragmentou-se e tornou-se complexa (Cutler,
2001; Jayasuriya, 2001:445; Haufler e Porter, 1999). Por outro lado, as
estruturas detentoras do poder efetivo impõem decisões, criam leis capazes de
produzir efeito real, estipulam regras e são imbuídas de um ethos gerencial:
não se podem dizer internamente democráticas, transparentes ou
responsabilizáveis3. A substituição do conceito de governo pelo de governança
capta esse estado de coisas4.
Nessas circunstâncias, não é de admirar que os teóricos da democracia depositem
mais uma vez suas esperanças na sociedade civil para gerar solidariedade,
tornar públicas as grandes questões e democratizar a ordem mundial emergente.
Esses teóricos acreditam que uma sociedade civil em escala global poderia
compensar o déficit democrático da nova ordem mundial5. Só que nem sempre está
claro o que eles entendem por sociedade civil e de que maneira essas funções
seriam desempenhadas no novo contexto. Alguns estudos combinam descrições
empíricas de organizações, movimentos e redes transnacionais com teorias
normativas sobre uma sociedade civil global emergente, que seria o lócus
potencial para a democracia mundial e um equivalente funcional do Estado
nacional (Held, 1995; Kaldor, 1999). Argumentam que a sociedade civil mundial
avança onde os Estados não mais progridem, isto é, no suprimento de novas bases
de identidade, solidariedade, coordenação, regulação e controle (Pasha e
Blaney, 1998; Linklater, 1999). Outras análises interpretam a sociedade civil
transnacional, composta de redes, organizações não-governamentais e movimentos
sociais, mais como um veículo essencial do que como o lócus democratizador das
governanças local e global. Segundo essa perspectiva, a sociedade civil é uma
matriz de normas liberais e democráticas ou de princípios morais que
configuram, orientam ou constrangem outros atores, instituições e ocupantes
oficiais de postos do poder público (Kaldor, 1999; Falk, 2000; Thoma, 2001). Há
ainda aqueles que argumentam com base nos modelos gerenciais de dispersão e
diluição dos poderes do governo nas instituições da "sociedade civil" e na
economia. Nessas análises, a "sociedade civil" diz respeito ao papel impositivo
das agências e organizações privadas mobilizadas para fiscalizar o cumprimento
das normas e executar funções de governo estruturadas em múltiplos níveis (cf.
Jayasuriya, 2001:457). A suposição aqui implícita é que, se esse governo
trocasse a estratégia de comando e controle estatal da regulação pela
experimentação, aprendizado adaptativo e colaboração com importantes grupos não
gerenciais, a "sociedade civil" promoveria a inovação e a inclusão (Sirianni e
Friedland, 2001:23; Dorf e Sabel, 1998). Parece-me evidente que esta última
abordagem tem pouco a ver com democratização ou crítica ' na verdade, podemos
interpretá-la como um disfarce para a privatização de antigos mecanismos
públicos de regulação e fiscalização (Cohen, 2002b:151-180). A proposta de uma
sociedade civil global talvez seja um ideal inatingível, enquanto o modelo de
produção de normas internacionais parece fraco e amorfo demais para impor
sanções a atores poderosos e poderia converter-se em uma ideologia
justificadora de ações bastante incivis em vez de instrumento de controle,
mesmo indireto6.
É aí que mora o problema. Sem um mapa que nos guie por todos esses discursos e
modelos conflitantes de sociedade civil, arriscamo-nos a cultivar um otimismo
ingênuo ou a assumir uma atitude francamente ideológica quanto à capacidade
democratizante e à natureza e papel mundial da sociedade civil. O que está
faltando é uma reflexão sistemática e cuidadosa sobre o modo pelo qual a
globalização transformou os parâmetros fundamentais da sociedade civil e como
essas mudanças afetam o impacto potencial da sociedade civil nas estruturas
nacionais, regionais e transnacionais. Sem uma reflexão meticulosa, não temos
condições de perceber o que é novo e o que é possível, e corremos o risco de
sobrecarregar o conceito de sociedade civil com funções reguladoras ou
democratizantes que ela provavelmente não pode realizar.
A intenção deste artigo é oferecer essa reflexão. Para começar, defino o
conceito de sociedade civil elaborado no contexto do Estado nacional. Depois,
apresento uma concepção dos parâmetros fundamentais da versão que elaborei
junto com Andrew Arato sobre o que já se tornou "um conceito essencialmente
controverso"7. Em seguida, analiso como esses parâmetros devem ser repensados
no contexto da globalização. Interessa-me especialmente avaliar a possibilidade
de as sociedades civis "globalizadas" ajudarem a promover direitos, democracia
e justiça social no mundo contemporâneo, evitando ao mesmo tempo a armadilha da
"analogia local".
Mas é preciso fazer uma advertência: não subscrevo a tese "forte" da
globalização que relegou o Estado nacional à lata de lixo da história. Prefiro
um entendimento "fraco" do conceito, que ainda atribui ao Estado importantes
aspectos de soberania e continua a ver a sociedade política nacional como
referente decisivo para os atores civis. Contudo, é fato que a soberania do
Estado está parcialmente desagregada; alguns de seus elementos foram deslocados
"para cima", para o âmbito de organismos regionais, internacionais ou globais,
e "para baixo", ao nível de atores privados e locais. Em síntese, existem
camadas adicionais de instituições políticas e jurídicas independentes do
Estado, que o complementam, mas não o substituem.
O CONCEITO DE SOCIEDADE CIVIL NO CONTEXTO DO ESTADO "SOBERANO"
Entendo a sociedade civil como uma esfera de interação social diferenciada da
economia e do Estado, composta de três parâmetros analiticamente distintos:
pluralidade, publicidade e privacidade. A moderna sociedade civil "autônoma"
nasceu de processos de constituição e mobilização independentes.
Institucionalizou-se e se generalizou mediante leis e direitos subjetivos que,
por sua vez, estabilizaram a diferenciação social. Por isso, é importante
salientar que o aparecimento da sociedade civil aconteceu junto com o
desenvolvimento do moderno Estado territorial soberano. Em outras palavras, foi
a vinculação do Estado ao direito e o desenvolvimento da soberania e do
constitucionalismo jurídico interno que permitiram o surgimento do modelo
tripartite. O constitucionalismo e o governo representativo, isto é, o
nascimento de uma sociedade política (partidos), responsiva e
responsabilizável, e de uma sociedade jurídica autônoma (juristas, tribunais),
tornaram-se indispensáveis para a estabilização da diferenciação entre o Estado
moderno, a sociedade civil e a economia de mercado. É claro que o
reconhecimento por parte da "sociedade internacional" de um Estado soberano
dentro de um sistema de Estados também foi crucial: a soberania interna veio
junto com a soberania externa, embora também seja verdade que o desenvolvimento
da sociedade civil não dependeu da atribuição a um Estado de uma soberania
externa "westfaliana" absoluta (Krasner, 1999; Sorensen, 1999).
Os mais importantes teóricos da sociedade civil no século XIX tinham uma visão
peculiar dos três parâmetros acima mencionados (Cohen e Arato, 1992, prefácio e
introdução; Cohen, 1999b). O conceito de pluralidade dizia respeito à
associação voluntária, que incluía as interações face a face e as organizações
nacionais baseadas na iniciativa de grupos locais. Publicidade referia-se a
reuniões públicas de caráter civil, realizadas em espaços "públicos", como
cafés, tabernas, clubes, parques, bibliotecas, hotéis, sedes de prefeituras,
destinadas à articulação de interesses comuns e sua interconexão por intermédio
do veículo de comunicação de massa da época, a imprensa. Privacidade referia-se
à autonomia do indivíduo, institucionalizada em direitos que abrangiam o habeas
corpus e o devido processo judicial, o direito à privacidade do lar e do
matrimônio, a liberdade de consciência e as liberdades de mercado8. A Lei
Magna, no sentido do conjunto de direitos subjetivos constitucionais, garantia
da estrutura de autonomia da coletividade e do indivíduo, bem como da
diferenciação da sociedade civil em relação ao Estado e à economia, assegura a
institucionalização da sociedade civil (ver Habermas, 1996b:82-131). Dessa
forma, a constitucionalização do Estado implicou uma autolimitação da sociedade
política em face da sociedade civil, protegendo esta última de desaparecer,
sufocada pela superpolitização. Em outras palavras, os direitos
constitucionalizam a diferenciação entre a sociedade civil (com suas
organizações informais, pluralidade interna e públicos civis) e os sistemas
administrativos e políticos do Estado, que formulam decisões coletivas e
compulsórias e são organizados pelo poder do Estado ' ou pelo power medium,
conforme a expressão de Habermas.
Um sistema judiciário (inclusive a polícia) guiado por princípios do Estado de
direito e uma cultura jurídica que obrigue seus membros a se comprometerem com
normas de imparcialidade são fundamentais para o processo mediante o qual os
projetos particularistas de indivíduos associados e comunicativos da sociedade
civil sejam compatibilizados e inspirados pelos princípios universalistas das
democracias constitucionais modernas (Cohen e Arato, 1992:1-117; Cohen, 1999b:
212-214). E são também essenciais para a generalização da confiança.
Essas três dimensões da sociedade civil foram a bem dizer concebidas para estar
em relação recíproca com os setores políticos institucionalizados do sistema
político e jurídico (parlamentos e tribunais), por intermédio das organizações
da "sociedade política" (partidos) e da sociedade jurídica (advogados e
juristas em geral), dedicadas à aquisição e exercício do poder e à elaboração
de decisões coletivas vinculativas para toda a sociedade. Fundamentais nessa
concepção geral foram a existência de uma cadeia de influências ligando a
sociedade civil ao sistema político, por meio da sociedade política, e uma
relação de mediação ligando as organizações representativas (partidos
empenhados na formação da vontade coletiva e na agregação de interesses) e os
organismos representativos (parlamentos dedicados à formação da vontade
legislativa).
Já destaquei em outro trabalho que os autores europeus do século XX que
estudaram a sociedade civil acrescentaram três componentes fundamentais ao seu
entendimento (Cohen e Arato, 1992:1-117). O primeiro, salientado por Gramsci,
foi a ênfase na dimensão cultural e simbólica da sociedade civil e seu papel na
geração do consentimento (hegemonia) e, por decorrência, na integração da
sociedade (Gramsci, 1971:206-277; Anderson, 1977; Cohen e Arato, 1992:142-159).
A principal contribuição de Gramsci foi conceber a sociedade civil ao mesmo
tempo como campo simbólico e como conjunto de instituições e práticas que são o
lócus da formação de valores, normas de ação, significados e identidades
coletivas. Dessa forma, a dimensão cultural da sociedade civil não é dada ou
natural; ela é antes um lugar de contestação social: suas associações e redes
constituem um campo de luta e uma arena onde se forjam alianças, identidades
coletivas e valores éticos. Visões antagônicas da sociedade civil são
mobilizadas em uma luta contínua, seja para manter a hegemonia cultural de
grupos dominantes, seja para afirmar a contra-hegemonia de atores coletivos
subalternos. Assim, nenhuma concepção da sociedade civil é neutra, nem a de
Gramsci, e sempre faz parte de um projeto de construção de relações sociais,
formas culturais e modos de pensar da sociedade.
Uma segunda contribuição importante foi a de Touraine, Melucci e outros, que
enfatizaram o aspecto dinâmico, criativo e contestador da sociedade civil ' a
visão das associações informais e dos movimentos sociais como distintos das
associações e instituições voluntárias mais formalizadas e das organizações de
classe (partidos, sindicatos) (Touraine, 1981; Melucci, 1985:798-816; 1980;
Cohen e Arato, 1992:492-564). O reconhecimento dessa dimensão nos permite
articular e transitar entre duas perspectivas: a sociedade civil como fonte
dinâmica e inovadora para a tematização de novos problemas; formulação de novos
projetos; criação de novos valores e novas identidades coletivas; e a sociedade
civil como autonomia cívica institucionalizada. Permite também considerar que,
por sua capacidade dinâmica (ação coletiva), o formato institucional da
sociedade civil e da sociedade política pode se tornar alvo de lutas pela
democratização. Vê-se, portanto, que o acréscimo fundamental do século XX à
conceituação da pluralidade societária foi a ênfase nos movimentos sociais,
como importante manancial de inovação, experimentação e participação cívica,
com uma função essencial para o sistema político de despertar a consciência
para novos problemas e questões.
A outra importante contribuição que gostaria de ressaltar é a concepção
deliberativa da esfera pública a que se referem Jürgen Habermas e seus
seguidores (Habermas, 1989; Cohen e Arato, 1992; Calhoun, 1992). A categoria de
esfera pública já estava presente em definições anteriores da sociedade civil,
mas seu papel de mediação entre o particular e o geral só se tornou claro
recentemente. Nos públicos civis, as pessoas discutem assuntos de interesse
comum como seres iguais e informam-se sobre fatos, acontecimentos e sobre as
opiniões, interesses e perspectivas de outros. O debate em torno de valores,
normas, leis e políticas gera uma opinião pública politicamente relevante. Além
disso, por intermédio dos meios de comunicação de massa ' na primeira metade do
século XX, tratava-se da imprensa, rádio e televisão ', a esfera pública
estabelece uma mediação entre inúmeras miniaudiências que se desenvolvem entre
e dentro de associações, movimentos, organizações religiosas, clubes, centros
de encontro de cidadãos conscientes e de simples convívio social. Sem dúvida,
existem públicos políticos e civis diferenciados e institucionalizados, fracos
e fortes9. No entanto, em toda concepção liberal-democrática, a finalidade de
uma opinião pública formada discursivamente é influir nos debates travados nas
esferas decisórias políticas e jurídicas pertinentes (legislativos, tribunais
constitucionais) e obter controle informal sobre as ações e decisões dos
governantes e legisladores (princípio da receptividade). A liberdade de acesso
e a participação paritária (direito igual de emitir opinião) são o ideal de
regulação de todos os arranjos institucionais que reivindicam uma legitimidade
democrática; todos os cidadãos sujeitos à lei deveriam ter o direito de
participar e de expressar suas opiniões, de tentar exercer influência, e todos
os participantes deveriam ser capazes de fazê-lo em igualdade de condições10.
Juntamente com eleições democráticas, essa idéia implicou, pelo menos no século
XX, uma certa visão dos procedimentos da soberania popular: a influência
exercida pelos meios de comunicação de massa e a prestação de contas realizada
pela sanção eleitoral são os mecanismos que garantem que um governo
representativo realmente represente (Habermas, 1996a:462-490; Cohen, no prelo).
No estudo teórico que realizei com Arato sobre o conceito de sociedade civil,
procurei explicar e justificar a concepção tripartite legada pelos principais
autores dos séculos XIX e XX, tomando por base a distinção dos habermasianos
entre sistema e mundo-da-vida e suas implicações institucionais (Cohen e Arato,
1992, cap. 9). O argumento utilizado é o de que as instituições e os atores
pertencentes aos dois subsistemas coordenados por via do poder e do dinheiro '
Estado e economia capitalista de mercado ' estão sujeitos a uma série de
restrições que não afetam os atores da sociedade civil. Em outras palavras,
nessas instituições, os atores estão diretamente envolvidos com o poder do
Estado e com a produção econômica, que buscam controlar e administrar. Por esse
motivo, não têm condições de subordinar critérios instrumentais e estratégicos
aos padrões de integração normativa e social ou à comunicação irrestrita que
caracteriza a sociedade civil. Assim, apesar de nos referirmos à "sociedade
política" e à "sociedade econômica" como mediadoras entre a sociedade civil e o
Estado ou a economia, respectivamente, e embora delas façam parte diferentes
grupos ' partidos políticos, parlamentos, sindicatos, estruturas de barganha
coletiva e co-determinação ', ambas se norteiam por imperativos distintos dos
que comandam as instituições da sociedade civil. Os setores decisórios no
âmbito do Estado sofrem restrições formais e temporais (devem suspender as
discussões em algum ponto e tomar uma decisão); na empresa privada, os
decisores econômicos, por mais que discutam problemas e questões internas, como
os impactos sociais e ambientais das medidas tomadas, não podem se furtar aos
imperativos do lucro e da produtividade. Assim, embora a legalização dos
sindicatos, da negociação coletiva e da co-determinação seja uma expressão do
desenvolvimento da sociedade econômica, as limitações impostas pelo uso efetivo
do poder e do dinheiro não podem ser ignoradas. Já na sociedade civil, os
atores não visam à conquista do poder do Estado ou à organização da produção;
em vez disso, tentam exercer influência pela participação em associações e
movimentos democráticos e por meio da mídia pública. Isso obviamente supõe que
as instituições e organizações da sociedade política e econômica são receptivas
à influência da sociedade civil, que estabelecem "sensores" no interior do
Estado e da economia para viabilizar tal coisa. Por "sensores" refiro-me aos
espaços públicos institucionalizados dentro do Estado e das corporações,
acessíveis à influência dos atores relevantes: o conjunto dos cidadãos, no
primeiro caso, operários ou empregados e, mais indiretamente, os consumidores,
no segundo.
Entendendo a interação comunicativa como o grande mecanismo coordenador da
sociedade civil, em vez do dinheiro ou do poder, e interpretando a autonomia de
comunicação ' a liberdade dos atores na sociedade para organizar, criticar e
reafirmar normas, valores, identidades e significados por meio da interação
comunicativa ' como traço característico da sociedade civil, procuramos
enfatizar o potencial crítico desta última no que se refere às normas e
projetos, sua capacidade de exercer influência na sociedade política e a
importância de proteger a sociedade civil contra a "colonização" pelo dinheiro
ou pelo poder. Recente exposição de nosso conceito distingue-o da visão liberal
da sociedade civil (Chambers, 2002:94), já que esta concebe a escolha
individual e a associação voluntária, e não a interação comunicativa e os
públicos civis autônomos, como a característica definidora da sociedade civil.
É certo que nossa explicação inclui a associação voluntária, mas a propõe como
um parâmetro entre outros. A teoria liberal, ao contrário, esconde o problema
da colonização, com o que a instrumentalização do dinheiro e da política
subjuga a natureza da sociedade civil (ibidem). Além disso, o papel
democratizante dos atores civis fica obscurecido: um papel para o qual a esfera
pública da sociedade civil, difícil de conceber como associação voluntária ou
compreensível como "escolha" individual, é decisiva. O que importa neste caso é
a interação comunicativa dos atores civis, e não a pulverização de escolhas
particulares11.
Portanto, conforme declarava a primeira frase do estudo que Arato e eu
escrevemos em 1992, nosso modelo de sociedade civil visava ser uma contribuição
para a teoria democrática (Cohen e Arato, 1992:vii). Nesse trabalho, propusemos
deslocar a problemática central da teoria da democracia para a questão dos
canais de influência entre as sociedades civil e política. Nosso modelo,
ademais, chamava a atenção para a configuração institucional e a articulação
interna da própria sociedade civil. Defendemos a democratização da sociedade
civil (da família, da vida associativa e da esfera pública, por exemplo), no
intuito de tornar suas instituições nucleares mais justas, igualitárias e
abertas. Por fim, nosso modelo apontava para uma "continuação reflexiva" do
Estado de Bem-Estar Social e se opunha à sua substituição pela economia
neoliberal (idem:464-487).
Reconhecemos, é verdade, a seriedade do ataque neoconservador e neoliberal ao
Estado de Bem-Estar Social e a dose de verdade contida na crítica de esquerda à
dependência e fragmentação social criadas por determinadas características dos
sistemas assistenciais (colonização do mundo da vida). Entretanto, rejeitamos o
argumento de que os procedimentos ou dispositivos estatais de resolução de
conflitos (negociação coletiva, direito de co-determinação etc.) reduzissem
ipso facto a autonomia da sociedade civil ou a espontaneidade de associação.
Por "continuação reflexiva do Estado de Bem-Estar Social" nos referimos à
necessidade e à possibilidade de descobrir alternativas aos meios ineficientes
ou destrutivos de estímulo ao crescimento. Em outras palavras, os dilemas da
regulação decorrentes da imposição e do controle vertical por parte do Estado
devem ser levados a sério da mesma forma que o efeito fragmentador de certos
tipos de intervenções. Só que, para tanto, teríamos de desagregar o termo
"Estado de Bem-Estar Social" para verificar precisamente quais tipos de
práticas, regulamentos e disposições administrativas e legais de "benefícios
sociais" resultam em quais efeitos.
Como afirmei em 1992, provisões como a seguridade social, seguro-saúde e
seguro-desemprego, programas de treinamento ocupacional e medidas de apoio
familiar, como creches e licença maternidade, ou a legislação referente à
negociação coletiva e outros procedimentos relativos à resolução participativa
de conflitos, não debilitam a sociedade civil. Longe de criarem dependência e
fragmentação, dispositivos procedurais ajudam a constituir a sociedade
econômica (civilizando a economia), enquanto as medidas substantivas provêem as
precondições básicas para a autonomia e a solidariedade no interior da
sociedade civil. Argumentei naquele trabalho que, especialmente no caso do
sistema americano, outros aspectos, por exemplo, as políticas sociais que
selecionam os beneficiários em função da renda [means-tested social policies],
e alguns equívocos paternalistas, como a norma de habilitar uma família à
assistência social desde que haja um homem adulto e fisicamente capaz no
domicílio, humilham, fragmentam e criam dependências. Conforme Linda Gordon,
Robert Lieberman e, posteriormente, Bo Rothstein mostraram, em trabalho
posterior, a principal diferença se dá entre benefícios universalistas e
programas intrusivos que selecionam os beneficiários pelo nível de renda.
Gordon e Lieberman demonstraram a existência de pressupostos de raça e gênero
subjacentes às políticas sociais seletivas por nível de renda nos Estados
Unidos, desde o New Deal. Rothstein, por sua vez, afirmou que, diferentemente
das políticas universalistas, os programas sociais de tipo means-tested, que
"colonizam" o mundo da vida, fragmentam os atores e destroem a confiança e o
capital social da sociedade civil (Fraser e Gordon, 1994; Lieberman, 1998;
Rothstein, 1998). Portanto, é uma questão complexa determinar quais regras,
benefícios e proteções fornecidos pelo Estado fortalecem ou debilitam a
sociedade civil e a democracia.
Em um estudo posterior, Andrew Arato e eu retomamos a idéia de um paradigma
jurídico reflexivo como forma de evitar a criação de "regulatory trilemmas",
quando a regulação estatal, imposta de cima para baixo, ocorre em áreas onde
não é conveniente12. A idéia novamente, é que a regulação estatal é
indispensável para uma sociedade civil e econômica sadia; o problema está na
sua forma. Contrariando os teóricos dos sistemas, de quem tiramos o conceito,
evitamos o evolucionismo argumentando em favor de uma relação reflexiva com o
próprio direito reflexivo. Em outras palavras, acreditamos que formas
reflexivas de regulação jurídica devem substituir o enfoque do domínio e
controle da regulação previdenciária em setores essenciais, mas certamente não
em todos13. O principal argumento do paradigma reflexivo é que é possível
escolher entre formas jurídicas e tipos de "intervenções assistenciais" a fim
de fortalecer a sociedade civil, garantir justiça social e proteção contra
efeitos colaterais adversos. Haveria uma espécie de afinidade eletiva
(wahlvenwandtschaft) entre a perspectiva da sociedade civil e o paradigma
reflexivo do direito. No entanto, certas provisões estatais universalistas
básicas, como assistência médica universal ou a idéia de uma renda mínima, não
podem e não devem ser substituídas nem pela privatização nem pelo direito
reflexivo.
Isso é compatível com a tese de que algumas formas de relacionamento entre o
Estado e a sociedade civil são melhores do que outras, do ponto de vista da
vitalidade da própria sociedade civil. Em sua análise sobre o "modelo sueco",
Rothstein afirma isso. Mostra que as formas adequadas de "neocorporativismo",
que promoveram a confiança vertical e a autolimitação por parte dos parceiros
sociais e do Estado, não abalaram a confiança horizontal que é fundamental para
a associação civil ou seu advento em várias esferas (Rothstein, 1998). O
governo teve um importante papel de facilitação, mas não se sobrepôs aos atores
sociais: não sufocou a sociedade econômica14. Ao que parece, uma vez
abandonadas as restrições ao papel do governo e com a intervenção mais direta
do sistema político, desfez-se a confiança vertical construída no modelo mais
antigo. Isso repercutiu na confiança horizontal, para usar a linguagem de
Putnam. Essa análise parece confirmar as descobertas do modelo do direito
reflexivo e da idéia da "continuação reflexiva do Estado de Bem-Estar" como
fundamentais para a manutenção da vitalidade de uma sociedade civil.
O modelo que desenvolvi com Arato adotou explicitamente o pressuposto do Estado
soberano como objetivo e referente fundamental. De fato, partimos da premissa
tácita de que a sociedade civil e o Estado são contíguos. Presumimos que os
indivíduos aos quais se aplicam as prerrogativas de pluralidade, publicidade,
privacidade, portadores de direitos subjetivos e objeto de proteções da lei
(legalidade) são cidadãos do Estado em cujo território e sob cuja jurisdição
vivem. E sua atividade cívica tem por finalidade influir nas decisões políticas
dos seus respectivos Estados e o propósito de fazê-los responder por tais atos.
Partimos do pressuposto de que os cidadãos, como autores e objetos do direito,
subordinados à mesma jurisdição e às mesmas regras, participam de certa forma
de um destino comum. Definimos a cidadania como fundamento para a solidariedade
do Estado assistencial e da justiça social: "nós" insistimos em afirmar que
"nossos" representantes elaboram leis, políticas públicas e regulamentos que
propiciam a base social para uma cidadania de peso, para a justiça e a
solidariedade social.
Assim, embora a "sociedade civil" não seja uma organização com critérios de
pertencimento, como é o Estado-nação, e apesar de não ser necessário atribuir
exclusivamente a cidadãos os parâmetros (e direitos) da sociedade civil, é
verdade que nossa concepção moderna continha essa premissa. Conseqüentemente,
na sociedade civil, os atores dirigem-se aos seus respectivos Estados e são
objeto de suas ações, as associações organizam-se nos planos local, regional e
nacional, mas não no supranacional; a participação no debate público, a
dissensão e a crítica fazem parte de um processo de construção da opinião
coletiva e da formação da vontade dos cidadãos (a soberania popular), tendo por
objetivo influir no processo legislatório e nas políticas públicas de "seu"
Estado representativo soberano. Entendemos que uma sociedade civil ativa e
vigilante, que ademais de votar em eleições periódicas, participa desses
processos, é que torna um governo representativo, democrático e justo (Manin,
1997:6, 161-193).
A despeito de algumas importantes divergências em relação às nossas idéias,
todas as outras teorias sobre a sociedade civil elaboradas no último terço do
século XX continham o mesmo pressuposto ' de que os atores em uma determinada
sociedade civil são cidadãos do Estado soberano onde residem15. Isso ocorre
tanto na abordagem liberal que mencionei acima, no enfoque neocomunitário, que
enfatiza o fortalecimento da integração social e de valores corretos mediante a
associação espontânea (principalmente de natureza religiosa), o voluntariado e
as organizações de auto-ajuda, quanto na concepção neo-republicana da escolha
racional da escola de Putnam, interessada no estudo do desenvolvimento da
confiança, do capital social e da virtude cívica (entendida como o privilégio
imputado aos fins públicos sobre os fins privados e a disposição ou aptidão
para cooperar)16. Aliás, esse pressuposto está explícito na abordagem
neoparsoniana de Jeff Alexander, que traduz o conceito de sociedade civil para
o esquema teórico do estrutural-funcionalismo, equiparando-o ao de "comunidade
societária" ' a esfera da integração social. Portanto, ele define sociedade
civil como uma organização com critérios de pertencimento, ou seja, como nação
' uma comunidade societária fechada e contígua ao Estado ', que se caracteriza
pela confiança, solidariedade e identidade entre seus membros e pela
desconfiança, falta de solidariedade e diferença entre os não-membros. O estudo
de Alexander centra-se na dinâmica da inclusão e da exclusão na sociedade civil
americana, concebida nesses moldes. Com isso, toda diferença entre o conceito
de sociedade civil e o de nação, como uma comunidade fechada de cidadãos de um
Estado soberano, é finalmente suprimida.
Submeti vários desses modelos a minucioso exame crítico e analisei as
diferenças que os separam de nossa concepção de sociedade civil em outro
trabalho, de modo que me parece dispensável repetir aqui os argumentos ali
usados (Cohen e Arato, 1992; Cohen, 1999b). Gostaria apenas de ressaltar que
também discordo profundamente do enfoque neoparsoniano, que parte de um erro
categorial: o conceito de sociedade civil não equivale ao de nação ou de
comunidade societária, porque não é uma organização determinada por critérios
de pertencimento, não constitui uma comunidade total17. Ao contrário, os
parâmetros e o conceito em si de sociedade civil não são fechados: nenhum dos
direitos, atividades, públicos ou formas associativas nele incluídos são
privativos aos seus cidadãos ou pressupõem o Estado soberano como referente
político exclusivo ou alvo único da ação cívica. É verdade que mesmo no modelo
que elaborei com Arato havia a premissa tácita de que os membros de associações
da sociedade civil constituem a cidadania de um Estado em particular, que é seu
ponto de referência, e cujas leis e direitos são reciprocamente constituídos
pelas relações comunicativas e interdependências complexas que os unem. Mas
este pressuposto não é inerente ao modelo; simplesmente expressa a forma
histórica de sociedade civil que estávamos estudando naquela época.
O IMPACTO DA GLOBALIZAÇÃO NOS PARÂMETROS DA SOCIEDADE CIVIL
O nível de abstração de nossa análise dos parâmetros da sociedade civil é
bastante amplo para admitir outro conteúdo e outras institucionalizações de
cada dimensão, que podem ser aplicadas tanto à esfera supranacional quanto à
subnacional. Passo agora a examinar o impacto da globalização sobre os
parâmetros específicos de nosso modelo original, na intenção de evitar as
ciladas da "analogia local", que simplesmente transpõe uma análise inalterada
dos parâmetros de uma sociedade civil nacional para o plano global, o que
constitui, na minha opinião, um grave erro. O que desejo mostrar, ao contrário,
é que a transformação dos parâmetros da sociedade civil no contexto
contemporâneo da globalização impõe uma percepção descentrada da sociedade
civil "globalizada". Pretendo ainda avaliar os pontos fortes e os pontos fracos
dos atores da sociedade civil em face dos diferentes subsistemas da sociedade
mundial no plano global, isto é, do ponto de vista de seu papel na promoção de
direitos, justiça social e democracia. Analisarei em seqüência cada um desses
parâmetros.
Pluralidade
No livro que Arato e eu escrevemos em 1992, interpretamos os "novos movimentos
sociais" nascidos no final dos anos 50 e início dos 60, que incluíam desde a
luta pelos direitos civis até os movimentos feministas, ambientalistas,
pacifistas, os grupos de defesa dos consumidores e de organização de
comunidades, como um novo tipo de pluralidade e engajamento cívico
paradigmático do século XX. Todos giravam em torno da participação em
inumeráveis pequenos grupos, de âmbito local e interação face a face (como os
grupos de conscientização e de auto-ajuda), do desenvolvimento de públicos de
oposição (jornais, revistas, estações de rádio etc.) e de mobilizações de massa
mais visíveis que tinham como objetivo alcançar Washington e outras grandes
cidades. Argumentamos, então, que essas novas formas de pluralidade eram
indicativas da vitalidade da sociedade civil, já que envolviam formas de
engajamento cívico capazes de gerar capital social e muito importantes para os
projetos de democratização. Creio que essa análise pode ser aplicada a outros
países da Europa Ocidental no mesmo período. Os "novos movimentos sociais"
organizavam-se local e nacionalmente, mas não no plano internacional, em que
pese a ocorrência de sucessivas ondas de protesto por todo o Ocidente nas
décadas de 60 e 70, embora "o novo movimento social" tenha surgido em todo o
planeta.
O século XXI está assistindo a uma outra mudança na forma da pluralidade. Quer
se pense nos militantes que acorreram às cidades de Seattle e Gênova, quer se
tenha em mente os protestos realizados em diversas cidades do mundo inteiro, no
dia 15 de fevereiro de 2003, contra a guerra no Iraque, é evidente que a
presença de atores vindos de muitas partes do planeta, nos dois primeiros
casos, e a natureza coordenada das ações coletivas nas três situações, impõem
um novo entendimento da pluralidade e do potencial de organização. A grande
inovação é a "rede transnacional", que vem se convertendo na forma
paradigmática de pluralidade da sociedade civil (como modo de associação e
solidariedade) nesta primeira parte do século XXI. Não estou dizendo que as
antigas formas de pluralidade e de organização de movimentos sociais tenham
desaparecido, mas que uma nova forma e uma outra camada de "atividade
associativa" vem se somando às anteriores.
Muito já se escreveu sobre o conceito de rede, de modo que vou utilizar aqui
apenas uma definição operacional. De acordo com o estudo de Keck e Sikkink
(1998) sobre os militantes que atuam além das fronteiras de um país, uma
"ligação entre redes de computadores" consiste de estruturas comunicativas das
quais participam atores situados em diferentes posições com a finalidade de
influir nas políticas públicas, nos discursos, nas normas e nos processos
decisórios de entidades muito poderosas. As "redes" geralmente caracterizam-se
por esquemas de comunicação e intercâmbio voluntários, recíprocos e
horizontais. Sob outro ângulo, é possível caracterizá-las como estruturas cuja
capacidade de agir é maior que a soma de suas partes18. E, de resto, envolvem a
interação direta em grupos locais. Só que suas estruturas de comunicação lançam
mão de modo cada vez mais freqüente dos novos meios eletrônicos, permitem o
entrelaçamento de atores "locais" e "não-locais", que se conectam e discutem no
ciberespaço por meio de troca de mensagens instantaneamente recebidas e
respondidas. A internet facilita a expansão das interações comunicativas em
escala planetária.
A meu ver, a rede é uma nova forma de pluralidade que torna possível uma nova
forma de conexão social, novas formas de ação coletiva e uma "solidariedade
entre estranhos" mais ampla que as anteriores. Não me refiro à "ação coletiva"
ou à conexão realizada unicamente pela internet, como uma campanha por correio
eletrônico ou as conversas em salas de bate-papo19. Estou pensando na
articulação de grupos locais que se inter-relacionam por intermédio da rede
virtual de computadores e se comunicam em parte através da nova mídia
eletrônica. É essa combinação que constrói um todo maior que a soma de suas
partes.
Decerto, essa interpretação está sujeita a controvérsias. Alguns afirmam que
redes sempre houve e, portanto, não há novidade alguma nisso. Outros insistem
em dizer que estamos diante de algo completamente novo. A diferença de opiniões
baseia-se na abordagem analítica que cada um utiliza. Do ponto de vista da
análise de redes sociais, essa ligação é uma das formas mais antigas de
organização social. A análise tecnológica, centrada no uso dos novos meios
eletrônicos, considera a rede como um fenômeno radicalmente novo, enquanto a
teoria organizacional das redes se coloca em uma posição intermediária:
reconhece a existência de redes no passado, mas a teoria permite explicar o
novo sem cair em um falso evolucionismo20. Prefiro a última abordagem que
representa, na verdade, um refinamento da definição geral de Keck e Sikkink.
A teoria das organizações diferencia a organização no formato de rede da forma
hierárquica e das trocas de mercado. Foram identificados três diferentes tipos
de configuração de rede: a rede de cadeia, a rede de hub (que usa um ponto de
conexão, ou nodo, central) e rede com todos os canais abertos (all-channel). As
diferenças dependem de como e se os participantes atuam com autonomia, de onde
a liderança se encontra ou se distribui, de quem pode se comunicar com quem, e
se e como se dá uma combinação de dinâmica hierárquica com uma dinâmica de
rede. É possível haver ainda formas híbridas dessas três configurações básicas,
bem como híbridos de rede e hierarquia (Arquilla e Ronfeldt, 2001:325 e
passim).
Mas a organização é apenas um dos cinco níveis a considerar na análise do
formato de rede. A força de uma rede também é influenciada pelos níveis
narrativo, doutrinal, tecnológico e social. A rede será forte se incluir uma
história que persuade e integra seus membros; se abranger estratégias e métodos
colaborativos baseados em uma doutrina bem definida; se utilizar sistemas
avançados de comunicação e apoiar-se em vínculos sociais e pessoais fortes. Com
a devida vênia a Robert Putnam, até a forma de rede global não prescinde de uma
dimensão associativa de âmbito local; do contrário, tenderá a ser muito frágil
e efêmera.
É preciso deixar claro, porém, que a narrativa não é somente uma ênfase ou uma
interpretação, mas uma história que expressa de modo convincente as
experiências, interesses e valores das pessoas, que traz à tona e alimenta um
senso de identidade, uma causa, um objetivo, uma missão (idem:328). Antigos e
novos veículos de comunicação são utilizados para transmitir essas narrativas.
No nível doutrinal ou estratégico, a ausência de líderes e o recurso a
múltiplas estratégias são as principais inovações, como se pôde verificar nas
manifestações em Seattle contra a Organização Mundial do Comércio, em 1999 (cf.
idem, cap. 7). As redes podem funcionar sem acesso à internet ou a outras
mídias avançadas, mas o que chama a atenção é o uso das novas tecnologias
principalmente por parte dos ativistas da sociedade civil em fins do século
passado e início deste. Isso age como rápido catalisador de protestos
espontâneos e, ademais, ajuda a divulgar a imagem desejada da identidade ou dos
objetivos da rede. Em que pese a importância de comunicações impessoais,
relações pessoais de confiança se desenvolvem-se relações pessoais de confiança
em "comunidades de ação" ou grupos locais de pessoas que se conhecem.
Os ativistas da sociedade civil transnacional contemporânea fazem intenso uso
do ciberespaço e universalizam solidariedades locais, mas em função de questões
ou áreas bem delimitadas, que envolvem interesses e valores específicos ' as
redes de defesa dos direitos humanos, por exemplo, evocam solidariedades
diversas das que mobilizam os grupos feministas ou os defensores do meio
ambiente ou, de resto, as redes comerciais. Isso faz brotar uma grande
variedade de redes globalizadas que se dirigem a diferentes "subsistemas", e
não a uma única sociedade civil global.Além disso, não é demais ressaltar que a
forma de rede também tem sido adotada pelos atores não-estatais de conduta mais
incivil ' por exemplo, as redes transnacionais de terrorismo e as redes
internacionais de organizações criminosas. Em outras palavras, a rede é uma
forma neutra que pode ser usada para os propósitos mais diversos.
Cabe ressaltar que a forma de rede transcende as fronteiras nacionais, constrói
associações transnacionais da sociedade civil e inclusive extrapola, em termos
de participação, a linha divisória entre atores civis e atores estatais. Keck e
Sikkink salientam que entre os principais atores podem estar movimentos sociais
locais, fundações, organizações não-governamentais internacionais e locais de
pesquisa e defesa de interesses (as ONGs), organizações intergovernamentais
regionais e internacionais e mesmo setores do Executivo e do Legislativo, bem
como igrejas, órgãos de defesa de consumidores, intelectuais e sindicatos (Keck
e Sikkink, 1998:9). Houve certamente no passado movimentos transnacionais que
se utilizavam de redes: as células comunistas ligadas ao movimento comunista
internacional são o exemplo mais evidente. Mas, a meu ver, a principal
diferença entre as antigas e as novas redes está na flexibilidade e no caráter
horizontal dos vínculos que caracterizam as últimas em comparação com a
estrutura organizacional hierárquica e a relativa rigidez dos laços
internacionais que especificam as primeiras. Outro aspecto particularmente
relevante no século XXI, ao qual já me referi, é a crescente importância da
mídia eletrônica. Recorde-se que as redes não são organizações baseadas em
critérios de pertencimento e, embora possam ser formadas por organizações, a
palavra rede não caracteriza sua estrutura como um todo ou as ligações entre os
nodos.
Não quero negar as continuidades existentes entre o formato de rede e a
estrutura dos "novos movimentos sociais" da década de 60, ou mesmo de
movimentos transnacionais mais antigos, como o do pacifismo. Só desejo
assinalar que as novas tecnologias de comunicação tornam possíveis novas formas
de articulação social e de contestação política. A internet facilita o
desenvolvimento de todo um repertório de novas formas de ação, inclusive
"marchas virtuais", petições on-line e outras, que permitem a criação de laços
entre "grupos" locais com identidade de pensamento, bem como a mobilização
extremamente rápida e simultânea de pessoas em muitos locais diferentes.
A influência dessas novas formas de ação coletiva se faz sentir na criação de
causas e na definição de questões, no subsídio ao discurso adotado por Estados
e organizações internacionais, nos procedimentos institucionais e na
modificação das políticas públicas. As entidades visadas podem ser Estados,
organizações internacionais, organismos políticos ou associações privadas de
nível local, regional e transnacional. As redes globalizadas participam da
política nacional e internacional e simultaneamente deslocam seu foco e lócus
conforme o assunto em causa. Seja qual for o alvo visado ' um Estado, a
Organização Mundial do Comércio ' OMC, as Nações Unidas ou uma corporação
multinacional ', o referente da ação coletiva agora é algo que se denomina de
"opinião pública mundial". Qual seu significado e como funciona esse novo
elemento da sociedade?
Publicidade
É evidente que as novas tecnologias de comunicação anunciam a chegada de novas
formas de publicidade. As principais inovações tecnológicas recentes são a
mídia eletrônica (a internet, o correio eletrônico, o bate-papo virtual), a
televisão a cabo ou por satélite e a criação dos noticiários "globais",
transmitidos ao vivo durante 24h, entre outras.
É no espaço das novas tecnologias de comunicação que veio à tona, ou está sendo
construído, um novo personagem: a "
opinião pública mundial
"21. Ao descrever os protestos de 15 de fevereiro de 2003 contra a guerra no
Iraque, um repórter do The New York Times afirmou que há duas superpotências no
século XXI: os Estados Unidos e a Opinião Pública Mundial. Escrita como
pilhéria, a frase contém um grão de verdade; de fato, a mais importante
transformação da esfera pública ocorrida neste século é a substituição do
nacional pelo internacional e agora pela opinião pública "mundial", viabilizada
pelos novos meios de comunicação já mencionados e evocada nos discursos tanto
dos ativistas quanto das elites políticas.
Do mesmo modo que as novas formas de pluralidade, a "opinião pública mundial" é
um outro plano e um outro referente que não substitui a opinião pública
nacional ou os incontáveis pequenos grupos civis e contra-públicos que afloram
nos níveis locais.
É possível tratar teoricamente a porosidade recíproca entre públicos parciais e
gerais de duas outras maneiras. Recorrendo-se às observações da teoria das
redes, os públicos serão vistos não só como fincados em associações ou meios
sociais específicos, mas também como setores intersticiais: isto é, como grupos
de interações comunicativas que facilitam as transições entre domínios
específicos por desvincularem os atores do padrão de relações e dos modos de
pensar enquistados em qualquer público dado (Emirbayer e Goodwin, 1994; White,
1995b). Vistos dessa maneira, os públicos cumprem funções essenciais de
estreitamento de distâncias entre diferentes domínios de rede, favorecendo a
formação de "solidariedades cruzadas".
Pode-se também recorrer ao conceito de uma esfera pública civil mais geral e
abstrata de leitores, ouvintes, espectadores e, agora, de cibercomunicadores
espalhados por toda a sociedade mundial para pensar sobre o que articula os
participantes de públicos parciais e constitui fóruns mais gerais, isto é, os
novos meios de comunicação de massa. Esses novos veículos permitem pôr em
contato impessoal, ou virtual, interlocutores socialmente distantes com o
objetivo de articular alianças e estabelecer orientações coletivas de ação na
busca de exercer influência política. Do mesmo modo, os novos meios de
comunicação de massa permitem que membros de públicos parciais se vejam como
partícipes de um público maior e contribuintes para uma "opinião pública
mundial".
Para tanto, a velocidade das novas comunicações é um aspecto crucial. Mas a
rede e as novas mídias também facilitam a formação de um novo padrão de
influência da sociedade civil. Refiro-me à capacidade de pessoas que não são
necessariamente cidadãos do Estado ou membros das organizações alvo de
participarem de uma política de influência ou de interesse [leverage politics].
"Militantes além fronteiras" mobilizam a "opinião pública mundial" por meio do
que se denominou, com bastante propriedade, de "padrão bumerangue" (Keck e
Sikkink, 1998:12-14). Trata-se do processo pelo qual associações da sociedade
civil ou organizações não-governamentais de origem nacional passam por cima dos
seus Estados e se vinculam diretamente a aliados transnacionais para tentar
exercer pressão sobre seus Estados (ou outros Estados que tenham como alvo) a
partir de fora ou "do alto". Uma forma de triangulação, o "padrão bumerangue"
pode também incluir as demandas de populações locais desejosas de participar em
projetos de desenvolvimento que afetam suas vidas e dependem de recursos ou
pressões externos. Ligações estabelecidas através de redes transnacionais
proporcionam aos atores locais acesso, influência e informações utilizáveis
para pressionar, desde fora, os órgãos governamentais e não-governamentais
relevantes. O "efeito bumerangue" implica, portanto, passar por cima de um
Estado local, acionar uma rede transnacional para dar publicidade a uma
questão, criar uma "opinião pública mundial" e apelar para normas e princípios
acordados no plano supranacional a fim de pressionar outros Estados, organismos
regionais ou organizações que, por sua vez, tentarão fazer pressão sobre o
Estado cujas políticas estão em causa22.
Assim se formam públicos transnacionais, problemas ascendem à ordem do dia, a
"opinião pública mundial" é construída e invocada, novas normas são fixadas, e
se faz pressão e exerce influência de fora sobre o poder estatal (ou não-
estatal) pertinente. Esse modelo é aplicável tanto a redes transnacionais de
defesa dos direitos humanos, quanto às redes dos movimentos feminista e de
preservação do meio ambiente ou à opinião pública mundial criada pelos
militantes pacifistas contrários à intervenção dos Estados Unidos no Iraque. Os
militantes residentes nos Estados Unidos lograram articular-se a grupos de
igual pensamento, espalhados pelo mundo inteiro, os quais procuraram exercer
pressão sobre a "sociedade política" que se tornou relevante no assunto: o
Conselho de Segurança das Nações Unidas. Embora não se tenha evitado que os
Estados Unidos realizassem seus objetivos, o governo de George W. Bush
certamente perdeu legitimidade, porque, ao contrário do que ocorreu na
administração de seu pai, o presidente americano jamais conseguiu alegar que
contava com o apoio da opinião pública mundial. As conseqüências dessa falta de
legitimação ainda se fazem sentir atualmente.
Há quatro aspectos envolvidos na publicidade: umapolítica de informação, cuja
condição necessária é a capacidade de gerar de modo rápido e confiável
informações políticas mobilizáveis nas situações em que tenham máxima eficácia;
umapolítica simbólica, ou o recurso a símbolos e narrativas que explicam a
lógica de uma situação para públicos locais e distantes; umapolítica de
influência ou de interesses, ou a capacidade de apelar a atores poderosos para
influir em uma situação em que membros mais fracos de uma rede têm pouca
influência; e uma política de responsabilização, isto é, o esforço para fazer
com que atores poderosos respeitem os princípios acordados previamente no plano
nacional ou no plano da opinião pública mundial23. É realmente impressionante o
grau de reflexão e auto-reflexão em torno da articulação de novas normas, a
mobilização de públicos e a construção e invocação de uma "opinião pública
mundial" que os membros mais atuantes da sociedade civil transnacional põem em
ação.
Mas é preciso examinar também o "lado negativo" de tudo isso. Afinal, há uma
possibilidade óbvia de que Estados e organizações econômicas poderosas façam
uso instrumental da "opinião pública mundial" a fim de justificar práticas
injustas ou ilegítimas. Exemplos notórios são os esforços recentes realizados
por governos muito poderosos de invocar normas "humanitárias" ou princípios
democráticos para encobrir projetos de intervenção e dominação. Visto que ainda
não existem pesquisas mundiais de opinião, é impossível comprovar alegações
sobre uma "opinião pública mundial". No entanto, essas alegações não passam sem
controvérsia. Os novos meios de comunicação tornam-se veículos de disputa pela
influência na "opinião pública mundial".
Privacidade
Já afirmei que o parâmetro da "privacidade" refere-se à autonomia pessoal
conferida ao indivíduo e institucionalizada por um conjunto de direitos que
abrangem desde o habeas corpus e o devido processo judicial à preservação da
intimidade do lar e das associações íntimas, à liberdade de consciência e às
liberdades de mercado (o direito de adquirir propriedade e a liberdade de
contratação). Esse parâmetro sofreu muitas modificações, inclusive no que diz
respeito à definição da privacidade como garantia da autonomia pessoal e a quem
ela é concedida. Focalizarei minha análise em duas áreas principais: a da
privacidade e autonomia concernentes a "associações íntimas" e a atribuição de
personalidade jurídica e os direitos correspondentes a todos os indivíduos,
sejam eles cidadãos ou não do Estado em que residem.
Na minha opinião, algumas das mais importantes transformações se deram no
"domínio da intimidade", a esfera por excelência do privado. A perda de
importância do casamento para o início e continuidade de associações íntimas,
as transformações dos papéis familiares devido ao divórcio e novas uniões**, a
mudança de visão da sociedade sobre o sexo reprodutivo, de imperativo moral a
escolha ética, e a entrada em massa das mulheres (casadas, solteiras, com ou
sem filhos pequenos) no mercado de trabalho e na vida pública estão entre as
mudanças mais relevantes. Nesse campo, como em outros, houve um processo geral
de individualização que conceituou o indivíduo, e não a família, como o
referente da privacidade e o portador dos direitos correspondentes (Cohen,
2002a). Sinal desta tendência é uma importante modificação no status da mulher,
cujos direitos à plena personalidade jurídica e igualdade cívica foram
reconhecidos, princípio este que vem se universalizando, não obstante as
resistências do poder patriarcal24. A multiplicação das formas legítimas de
associação íntima é um dos efeitos desse processo.
A privacidade da unidade familiar, que conferia autonomia e controle ao homem,
na qualidade de chefe do domicílio, e protegia a família, entendida como uma
"comunidade afetiva" contra interferências externas, foi substituída por
direitos de privacidade que garantem personalidade jurídica e autonomia de
decisão ao indivíduo, homem e mulher, não só para formar associações íntimas,
mas também para agir dentro da família e em função de interesses privados. Uma
vez atribuída plena personalidade jurídica às mulheres, que, casadas ou não,
passaram a ser merecedoras de igual respeito e consideração, não é mais
possível ignorar as questões de justiça geradas na esfera doméstica pela
imputação de privacidade à família como unidade. Tornou-se igualmente
inaceitável a interferência do Estado proibindo relações íntimas não-maritais a
pretexto de serem, por definição, imorais. Os alicerces da premissa de que só
há uma maneira moralmente correta de estabelecer relações íntimas foram
atacados junto com a raison d'être de grande parte da legislação estatal sobre
princípios morais. Em outras palavras, o caráter "natural" da velha distinção
entre público e privado foi abalado juntamente com as premissas de gênero que
modelavam as formas de regulação jurídica anteriores, inclusive a criação de
categorias especiais às quais se atribuía o direito de privacidade.
A luta das mulheres pela igualdade de gênero foi certamente um fator importante
nessas transformações. O significado da liberdade de estabelecer associação
íntima e do direito à privacidade realmente sofreu uma mudança radical, desde o
direito de casar ou de divorciar-se à igual condição de todos os adultos para
estabelecer e orientar suas relações íntimas como melhor lhes aprouver,
envolvendo ou não o casamento, desde que conduzidas de modo a não violar as
liberdades equivalentes ou as necessidades fundamentais de outros (filhos).
Já escrevi vários estudos sobre esse tema (Keck e Sikkink, 1998). Nesses
textos, questionei principalmente os argumentos dos que consideram a
multiplicação de formas de intimidade e a individualização do referente dos
direitos à privacidade nesta área como sinônimo de desintegração dos valores da
família e como a causa do suposto crescimento de um individualismo desmedido,
atomizado, egoístico e irresponsável (idem; Cohen, 1999:235-238). O que se
desintegrou não foi "a família", mas o consenso sobre o que é uma família
adequada, sobre a forma que deve ter uma relação íntima apropriada e a
definição do status da mulher e do homem, bem como a identidade de gênero. Além
disso, direitos individualizados à privacidade, no que respeita às associações
íntimas, não afetam a comunidade ou responsabilidade mútua. Pelo contrário,
eles protegem os indivíduos, se e quando a solidariedade da comunidade afetiva
entra em crise e os resguarda contra o uso iníquo do poder pela parte mais
forte.
Não resta dúvida de que a família de hoje vem sofrendo enormes pressões. Se
ocorrem processos de individualização sem o devido suporte social e
institucional, os parceiros de uma associação íntima tendem a ficar
sobrecarregados. A privatização das tarefas de atendimento familiar ' do
trabalho de educar, cuidar das crianças, oferecer atividades extra-escolares,
assistir aos idosos e aos doentes ' acaba criando responsabilidades injustas e
insuportáveis para quem realiza esses encargos (e que ainda hoje são, em grande
maioria, as mulheres), além de submeter os parceiros a enorme tensão. As
inseguranças e dificuldades que afligem as associações íntimas são explicadas
pela mudança institucional, individualização e insegurança econômica, de um
lado, e pelo aumento da igualdade entre os gêneros, a expansão da mobilidade e
das oportunidades sociais, de outro. Na ausência de um apoio social adequado,
os laços familiares, agora mais frouxos e mais frágeis, correm o risco de
romperem-se. O suprimento desses apoios implica ajuda financeira e remuneração
para o trabalho doméstico, bem como a igualdade de oportunidades para as
mulheres. Somente se forem criadas, no âmbito local, formas de solidariedade e
comunidade, com a alocação de recursos federais para suprir essas funções (como
a criação de creches nos bairros e nos locais de trabalho, de serviços de
assistência a idosos e assistência médica domiciliar, de centros comunitários,
a redução da jornada de trabalho para todos etc.), será possível atenuar os
aspectos negativos da privatização e da individualização.
Um outra tendência que pretendo discutir a respeito do parâmetro da privacidade
é a desvinculação da personalidade jurídica de uma cidadania nacional e a
atribuição de direitos e proteções legais a residentes não-cidadãos ' um
processo que acompanhou a transformação do Estado soberano. A concessão de uma
personalidade jurídica, isto é, da proteção da lei, inclusive o direito de
mover processo judicial, a residentes não-cidadãos é o fato mais importante no
que diz respeito a esse parâmetro. Sua relevância é comparável à transformação
no domínio da intimidade, pois reconhece a igualdade, dignidade, valor moral e
integridade de todos os indivíduos independentemente não só do gênero a que
pertencem, mas também do seu status de cidadania. O enorme desenvolvimento do
direito internacional e o tratamento de conceitos fundamentais dos direitos
humanos como "jus cogens" [direito cogente] são aspectos dessa transformação.
Já vimos que os Estados vêm sendo submetidos à crescente pressão de acordos
internacionais e instituições transnacionais no sentido de proteger os direitos
humanos de seus cidadãos e residentes estrangeiros (mesmo que ilegais). Esse
novo regime jurídico globalizado e "cosmopolita" é um sinal de que os governos
e os tribunais nacionais já não constituem a autoridade suprema ou a fonte
única no que concerne aos direitos básicos do indivíduo.
Tais mudanças me levam às seguintes conclusões teóricas: o status de
personalidade jurídica deveria ser desvinculado do status de cidadania como
princípio de pertencimento a um determinado Estado e, portanto, deveria estar
sob a proteção de múltiplos níveis de jurisdição e sanção legal. Na realidade,
perante os tribunais internacionais (da Câmara Internacional do Comércio à
Corte Européia de Justiça) e os organismos governamentais de federações
regionais (como os Estados Unidos), o conceito de "cidadania" passou a
significar "personalidade jurídica" e status legal, não o pertencimento a um
corpo de cidadãos (demos) delimitado por uma identidade nacional. Uma
conseqüência dessa situação é a faculdade de usufruir de uma ampla gama de
direitos em Estados dos quais as pessoas não são cidadãs25. Outra é o direito
dos indivíduos que são cidadãos de apelar a tribunais supranacionais para
proteger seus direitos contra a ação de seus próprios Estados. O "efeito
direto" dos tribunais regionais sobre os indivíduos nos Estados-membros da
União Européia e a criação de cortes mundiais tornam isso possível. Essas
proteções legais aplicam a capa protetora da personalidade jurídica e, em
conseqüência, autonomia e privacidade pessoal, cruciais para uma sociedade
civil, a todas as pessoas, embora a definição do conteúdo dos direitos em
questão seja politicamente controversa e diferente em contextos diversos.
No entanto, seria uma irresponsabilidade não mencionar as graves ameaças à
privacidade e autonomia pessoal possibilitadas pela globalização e pelos novos
meios eletrônicos de comunicação (técnicas de vigilância, monitoramento da rede
etc.). As liberdades civis vêm sendo seriamente ameaçadas após os
acontecimentos de 11 de setembro, e os Estados começaram de repente a fazer
valer neste domínio uma forma perigosa e não controlada de soberania, em nome
da "segurança nacional". Estados poderosos têm suspendido os direitos à
privacidade e à defesa na Justiça, o habeas corpus e o direito de instaurar
processo, sobretudo, mas não somente aos não-cidadãos. Em suma, é possível que
se esteja assistindo ao início de tendência contrária aos importantes processos
jurídicos globalizados de preservação da privacidade, pluralidade e
publicidade. Mas a tendência positiva ainda está viva e constitui um fundamento
para a contestação judicial e a resistência por parte de juristas e demais
atores da sociedade civil.
LEGALIDADE E GLOBALIZAÇÃO
Embora o direito não seja um parâmetro da sociedade civil é o veículo por meio
do qual ela se institucionaliza. No entanto, a dimensão da legalidade também
sofreu importantes modificações entre fins do século XX e início do XXI, com
grandes repercussões para a sociedade civil. Também nesse aspecto as mudanças
se expressaram em uma nova terminologia: são exemplos disso a substituição da
palavra governo por "governança", para designar a ordem transnacional, e os
novos discursos jurídicos da "soft law" e do "constitucionalismo societário"26.
O que está em jogo é, de uma parte, um deslocamento das funções regulatórias da
órbita de instituições públicas para a das instituições semiprivadas e, de
outra parte, o deslocamento da regulação do plano do Estado nacional para o de
instituições públicas transnacionais. A questão-chave é saber se a nova
"verrechthlichung" (legalidade) garante a expressão autônoma e a solidariedade
dos atores da sociedade civil.
O termo "governança" diz respeito a sistemas de poder que contam com mecanismos
de controle regularmente exercidos e que geram aquiescência sistemática sem
exigir a presença de uma autoridade política ou jurídica formal ' um "governo"
' e sem incluir necessariamente uma hierarquia27. Objetivos são definidos,
diretrizes determinadas, políticas aplicadas e normas estabelecidas com uma
dependência mínima de uma estrutura hierárquica de comando ou da referência a
um "legislador soberano". As associações e instituições não-governamentais vêm
se tornando fontes cada vez mais importantes do direito. Assim, "governança"
remete a várias dimensões do sistema global emergente e a importantes fatos de
ordem local. As novas formas de governança causam uma proliferação de
organizações voltadas para as necessidades, problemas e oportunidades com que
as pessoas se defrontam no dia-a-dia e que resultam das novas interdependências
criadas e possibilitadas pelo capitalismo global.
Dizem alguns que a globalização da governança e o surgimento da
soft la
w*** obriga a repensar a doutrina tradicional das fontes do direito, segundo as
quais a distinção entre o que é direito e o que não é baseia-se numa hierarquia
de normas jurídicas. A Constituição de um Estado nacional, por esse modelo, é a
lei máxima que remete à legislação política democrática (a vontade do soberano)
como fonte suprema da validade legal. Outros fenômenos normativos, baseados em
regras, devem ser entendidos ou como legislação delegada, que depende do
reconhecimento por parte de uma ordem jurídica oficial, ou não constituem lei.
A governança globalizada parece romper com esse modelo de hierarquia de normas.
O novo dilema é a elaboração de normas em foros públicos ou privados que fogem
ao controle dos Estados soberanos no contexto de uma sociedade global
"heterárquica" cada vez mais fragmentada (Black,1997). Alega-se que o
pluralismo legal substitui a soberania e a hierarquia jurídica na sociedade
mundial globalizada.
Disso decorre o novo discurso do "constitucionalismo societário"28. O suposto
básico é que devemos separar a idéia de Constituição dos laços históricos que a
ligam ao Estado e generalizá-la para entidades não-estatais e supra-estatais,
se quisermos nos manter atualizados com relação aos fatos do mundo
contemporâneo. A tese é que o desenvolvimento da sociedade mundial,
funcionalmente diferenciada em uma pluralidade de sistemas globalizados e
globalizantes, gira em torno da criação de constituições, que tanto constituem
quanto constitucionalizam cada domínio. Em suma, não haveria apenas a
governança e o direito "brando", não vinculativo, mas também o direito
constitucional em cada subsistema em processo de globalização.
Mas o que é uma Constituição nesse discurso? Que critérios nos permitem dizer
que um determinado domínio está constitucionalizado? A resposta para essa forma
de pensamento é que uma Constituição é uma questão de "vinculação estrutural"
entre subsistemas específicos e normas legais.
Para nós que estamos habituados ao conceito de constitucionalismo aplicado a
Estados nacionais, a proposição parece muito obscura. Os teóricos dos sistemas
insistem em dizer que, mesmo no âmbito estatal, a função essencial das
constituições é garantir a pluralidade da diferenciação social. Desse ponto de
vista, o importante na constitucionalização é liberar o dinamismo de cada
subsistema e, ao mesmo tempo, institucionalizar mecanismos de autocontrole que
evitem sua expansão para toda a sociedade, sufocando-a em um pântano de
regulamentos.
Segundo se alega, existe "vinculação estrutural" entre o direito e cada
subsistema globalizado: política, economia etc. Mas isto será de fato
constitucionalismo ou mero acúmulo de regulamentos e montanhas de legislações?
Fazer essa distinção é importante para a teoria da sociedade civil porque a
primeira hipótese, e não a segunda, é que é fundamental para sua proteção e
institucionalização. Cabe lembrar a propósito o argumento de Hart de que, para
haver uma ordem jurídica, é preciso diferenciar entre regras primárias e regras
secundárias, entre normas de conduta e normas para a produção de leis. Uma
constituição é um componente de uma ordem jurídica formada em parte por regras
secundárias ou regras para a mudança, inclusive as que regulam a modificação
das próprias regras secundárias. De igual importância é a existência de uma
regra de reconhecimento que indique aos componentes do sistema judiciário,
sobretudo os tribunais, como discernir uma lei válida ' isto é, uma regra
invocável para dirimir conflitos sobre isto e sobre jurisdições, mostrando-
lhes, o que são regras primárias e secundárias e quem tem autoridade para fazê-
las. Em outras palavras, a reflexividade é essencial para uma ordem legal e
mais ainda para uma constituição que, ainda por cima, confere poderes além de
impor obrigações. As fontes do direito podem ser muitas, mas deve haver algo
para unificá-las e hierarquizá-las para que possa existir uma ordem jurídica e
uma constituição. Em resumo, só há ordem jurídica e, evidentemente, ordem
constitucional se existirem regras secundárias que especifiquem o modo de
determinar conclusivamente regras primárias, como introduzi-las, eliminá-las,
modificá-las e definir de maneira irrevogável em que consiste sua violação29.
Ora, não há uma constituição global total para a sociedade mundial que se
aproxime minimamente desses critérios e tampouco existe uma única sociedade
civil global. Do ponto de vista da teoria dos sistemas, não faz o menor sentido
defender esse tipo de coisas, porque a idéia nuclear é que a sociedade mundial
é radicalmente destituída de centro: nenhum subsistema dentre os vários
subsistemas funcionalmente diferenciados pode representar a totalidade. A
teoria contemporânea dos sistemas rejeita fortemente a idéia da pars pro toto
[tomar a parte pelo todo] seja para o Estado em uma sociedade nacional, seja
para a política internacional. Globalização e constitucionalização em uma
sociedade mundial são processos policêntricos.
Assim, o discurso do "constitucionalismo societário" inclui uma proposição um
pouco diferente, isto é, a de que existe uma constituição global para cada
subsistema globalizado da sociedade internacional, incluindo o subsistema
político. Os constitucionalistas chamam a atenção para a organização
heterárquica dos tribunais de justiça no centro do novo regime jurídico global,
assim como para a centralização dos remédios jurídicos em foros supranacionais,
como a Corte Européia de Justiça, o Tribunal Penal para a ex-Iugoslávia, o
Tribunal Penal para o Ruanda, a Câmara Internacional do Comércio, as comissões
de verdade instaladas pelas Nações Unidas, ao lado dos tribunais regionais de
direitos humanos ' cuja base legal encontra-se em tratados de direito público
internacional (Slaughter, 1997; Fischer-Lescano, s/d). Esses teóricos assinalam
também o caráter cada vez mais hard da legislação internacional sobre direitos
humanos (o jus cogens), que invalida toda e qualquer lei que admita a tortura,
o genocídio, o desaparecimento de pessoas, as execuções ilegais, os crimes
contra a humanidade e atos do mesmo gênero30, alegando que já existem regras
constitucionais de jurisdição, normas globais de recurso judicial, tribunais e
legislação constitucional formal (normas relativas à formação legal de normas '
tratados jurídicos obrigatórios até para os não-signatários) na arena política
mundial. Certamente ninguém diz que a constituição política global está
completa por causa do vergonhoso déficit democrático. Não há nenhum poder
constituinte e representação política no plano mundial, e, portanto, existe
carência de legitimidade democrática. O que antes se afirmava é que havia uma
constituição política global, não uma constituição democrática.
Gostaria de chamar a atenção para os perigos dessa tese sobre o
constitucionalismo societário. A idéia de que o direito globalizado medeia e
institucionaliza a sociedade civil no subsistema político mundial, moderando a
soberania do Estado através de mecanismos de efeito direto e outros, é
importante. No entanto, é perigoso e apologético afirmar que já existe uma
constituição global nesse terreno. Isso porque, dada a ausência do princípio de
separação de poderes (no Conselho de Segurança das Nações Unidas, por exemplo)
e a limitada jurisdição da Corte Internacional de Justiça, persistem grandes
lacunas jurídicas, para não mencionar a falta de clareza sobre a condição de
lei básica dos direitos humanos como hard law. Continuamos sem saber com
certeza o que é regra de reconhecimento nesse domínio globalizado e que regras
secundárias dizem respeito à mudança da lei básica. Tampouco existe consenso
quanto aos parâmetros fundamentais do processo legislativo que produz regras de
precedência. Tampouco existe consenso quanto aos parâmetros fundamentais do
processo legislativo que gera o direito de preferência ou de preempção.
O perigo de afirmar que já existe uma constituição global em escala política
mundial é o de fortalecer a tendência de invocar a cobertura da lei '
pretextando um suposto "direito" à intervenção humanitária ', ou apelar para
princípios de direitos humanos, para justificar duras intervenções em países
mais fracos, sejam elas de natureza violenta ou não violenta, por parte de
alianças de Estados ou de potências individuais somente interessadas em seus
próprios objetivos. Em outras palavras, o discurso do constitucionalismo dá
cobertura legal a ações carentes de princípios e incentiva o uso simbólico
abusivo da idéia de direito constitucional. É esta a razão que me leva a
insistir na necessidade de olhar com reservas essas alegações.
Não estou dizendo que a intervenção em nome da defesa de direitos humanos é
sempre desnecessária ou ilegal, mas que ainda não temos condições de afirmar
com clareza quais são as regras ou qual é a reflexão crítica sobre as regras
nessas situações. Certo é que o discurso antecipa a importante tarefa de
constitucionalização de vários domínios globalizados; é uma verité à faire
[verdade a comprovar], e ainda não chegamos lá. Gostaria de concluir analisando
esse problema.
CONCLUSÃO
Estou convencida de que a globalização da sociedade civil trouxe importantes
êxitos no campo dos direitos humanos, incentivou a gênese de um direito
mundial, estimulou a sensibilidade para problemas ecológicos e para o avanço da
democratização de sociedades nacionais devido, em boa parte, ao efeito
bumerangue mencionado acima. A sociedade civil continua a ter um importante
papel no avanço da juridicidade da sociedade internacional. É possível falar na
existência de uma grande quantidade de leis na esfera internacional e global,
mas não ainda de constitucionalismo. Em certos aspectos, o papel dos atores da
sociedade civil globalizada é maior aí do que no plano das sociedades
nacionais, pois na esfera global não há uma sociedade política equivalente, nem
órgãos representativos e responsabilizáveis empenhados na elaboração de
decisões coletivamente obrigatórias, mas sujeitas à sanção eleitoral, como
acontece nos Legislativos e Executivos nacionais. Portanto, partindo desse
ponto de vista, os atores da sociedade civil têm mais o que fazer no domínio
global do que na esfera nacional.
Contudo, é um erro considerar as organizações não-governamentais, associações
locais e redes que povoam a sociedade civil transnacional como equivalentes
funcionais das instituições representativas e da sociedade política (partidos,
sindicatos) na esfera nacional em democracias constitucionais. A sociedade
civil não consegue fiscalizar por conta própria as novas e poderosas
instituições supranacionais ou subnacionais de governança. A verdade é que a
própria sociedade civil precisa ser fiscalizada. Redes e associações civis
podem ser muito excludentes, injustas, desiguais e antidemocráticas. Mais do
que isso, organizações não governamentais ricas têm condições de incentivar o
desenvolvimento de sociedades civis autônomas locais nos países em
desenvolvimento ou de ocupar o lugar, junto com suas verbas, de iniciativas
locais, contribuindo, assim, para enfraquecer, em vez de fortalecer, as ações
conducentes à construção da democracia, da confiança horizontal e da
solidariedade social. Em suma, os fiscalizadores devem ser fiscalizados.
O papel da sociedade civil em cada domínio globalizado, além disso, não é o de
se colocar em lugar da sociedade política representativa faltante (o governo),
porque a conseqüência seria sobrecarregar demais os atores da sociedade civil,
cujo papel é o de exercer influência, não o poder ou tomar decisões
coletivamente obrigatórias. Aí está o erro da noção de sociedade civil
globalizada a que aludi na introdução deste artigo. Só que também não se pode
restringir as funções desses atores à criação de normas (segundo o modelo da
sociedade civil transnacional)31. Em cada domínio globalizado os atores da
sociedade civil têm, ao contrário, a tarefa, por assim dizer, adicional de
ajudar a criar seus interlocutores, isto é, o equivalente funcional de uma
sociedade política responsiva, e fazer pressão pela institucionalização da
sociedade política e por mecanismos de cobrança de responsabilidade pública.
Isso inclui a constitucionalização de cada domínio globalizado, no sentido de
Hart, a fim de tornar representativos e responsabilizáveis aqueles que tomam
decisões coletivamente vinculativas, além de fazer com que se abram à
influência da sociedade civil. Em outras palavras, a constitucionalização da
governança supranacional e a criação de instituições representativas e
responsabilizáveis, inclusive a separação e o equilíbrio de poderes, ainda não
foram consumadas, são tarefas por cumprir. Os defensores de uma constituição
para a União Européia já compreenderam essa aspiração. E, somente se ela for
alcançada, será possível falar na estrita observância da ordem jurídica e do
fim do "déficit democrático" da governança supranacional.
A regulação da auto-regulação por parte de uma sociedade política
representativa, responsiva, responsabilizável, que toma decisões públicas e
coletivamente vinculativas, é indispensável para o futuro de uma democracia
global. É preciso forjar uma sociedade política global e regional e faz-se
necessário torná-la forte no âmbito nacional, mesmo enquanto a soberania dos
Estados esteja sendo parcialmente desagregada e mesmo que os atores da
sociedade civil logrem impor a aceitação de princípios de direitos humanos, a
preocupação com as questões ecológicas e assuntos semelhantes a todos os atores
políticos.
O processo político nas sociedades civis globalizadas, com suas novas formas de
pluralidade, publicidade e privacidade, não pode mais ser analisado com os
termos usados para sua antecessora, a sociedade civil nacional. A nova formação
social é mais forte do que muitos Estados em vários aspectos. Poucos Estados
(nem os Estados Unidos, provavelmente) podem fugir e resistir à pressão da
mobilização internacional em torno das questões dos direitos humanos, da
ecologia, do trabalho e da cultura. Isso porque os atores civis tem hoje
condições de mobilizar Estados e organizações regionais por meio dos processos
de comunicação e pelo exercício da pressão política. Isso quer dizer que na
nova sociedade civil global a política de influência é complementada pela
utilização de algumas formas de poder. A constitucionalização de regimes
globais ajudaria a conferir-lhes legitimidade e legalidade.
Isso tem importância especial para a economia global. Nesse terreno, os atores
da sociedade civil global, e mesmo regional, são muito mais fracos do que seus
correspondentes nacionais. Como se sabe, a economia global é dominada por um
consenso neoliberal e apesar das significativas críticas dos atores da
sociedade civil, suas instituições, do FMI ao Banco Mundial, não têm sido muito
sensíveis às demandas por justiça socioeconômica ou às reivindicações de
participação nas deliberações daqueles que são afetados por tais decisões. Sem
a institucionalização de uma sociedade política bastante inclusiva nos
organismos públicos que tomam as decisões econômicas mundiais, atores das redes
da sociedade civil e a "opinião pública mundial" não terão condições de influir
ou ter controle nesse nível decisório.
Embora pareça irônico concluir desta forma um ensaio sobre a sociedade civil,
eu diria que a principal tarefa de hoje é construir uma sociedade política
responsável e responsabilizável nas instituições globais e reconstruir as
sociedades políticas e os desenhos institucionais nacionais que parecem estar
em crise (principalmente nos Estados Unidos), se quisermos assegurar uma
relação saudável e eficiente entre a sociedade civil, os direitos humanos, o
estado de direito, a democracia e a justiça social.
NOTAS
1. Ver Cohen e Arato (1992); Arato (2000); Putnam (2000; 1993); Cohen (1999),
para análises sobre o debate acerca do conceito de sociedade civil no último
terço do século XX.
2. Estou parafraseando Habermas (2001:67).
3. Ver Jayasuriya (2001) sobre a natureza gerencial desse enfoque sobre a
sociedade civil.
4. Ver Rosenau (1999), Hirst e Thompson (1996), Slaughter (1997), sobre as
novas redes de organismos reguladores responsáveis pela criação de normas
internacionais que fogem ao modelo das relações entre Estados nacionais. Ver,
também, Jayasuriya (2001).
5. Rosenau (1999:38-51) cita as cidades globais, juntamente com a sociedade
civil, como equivalentes funcionais do controle estatal. Não estamos ainda
convencidos da propriedade dessa equivalência. Ainda não nos parece claro que
seja possível realizar funções públicas e formas democráticas de participação e
prestação de contas sem as devidas transformações da sociedade política.
6. Ver a crítica de Carl Schmitt sobre a retórica do humanitarismo e dos
direitos humanos em Schmitt (1976; 2003).
7. Para uma análise da história desse conceito, ver Cohen e Arato (1992, cap.
1).
8. É claro que a liberdade de contrair matrimônio estava limitada aos
heterossexuais, e a autonomia da pessoa dentro do casamento era prerrogativa do
homem, na qualidade de chefe da família. Havia muitas restrições a relações
maritais, e o sexo fora do casamento era condenado.
9. Sobre a distinção entre públicos civis e políticos, ver Cohen e Arato
(1992). Acerca do conceito de públicos fortes e fracos, ver Fraser (1992). A
distinção entre os conceitos de público civil fraco e público político forte
deve ser entendida como um contínuo. Os públicos fracos são, relativamente
falando, mais deliberativos e susceptíveis a poucas restrições no que toca às
deliberações. Públicos decisórios fortes são mais restringidos, tanto
qualitativa quanto quantitativamente (por exemplo, o prazo para a deliberação é
mais curto). Um exemplo de público civil não institucionalizado, aberto a todo
tipo de raciocínio e declarações, é um grupo de conscientização dentro de um
movimento feminista. Um júri é um exemplo de público civil institucionalizado
"forte" no sentido de que suas deliberações acarretam decisões politicamente
vinculativas. Um parlamento é um público institucionalizado ainda mais forte,
dado que legisla para toda a sociedade. Sobre uma outra forma de diferenciar as
várias restrições impostas a diversos tipos de públicos, ver Rawls (1993:212-
254).
10. Essa forma de conceituar a esfera pública evita conferir legitimidade a
qualquer grupo ou instituição que proclame encarnar ou representar o público e
se diga portador de autoridade para definir o que seja uma questão de interesse
público. Ademais, não é possível decidir de modo definitivo por onde passa a
linha divisória entre o público e o privado e quem deve ser incluído no domínio
público.
11. Para uma reformulação do componente de privacidade na sociedade civil, ver
Cohen (2002b).
12. Para uma análise dos paradoxos da regulação que surgem no Estado
regulatório, ver Sunstein e Arato (1998:26-36), Cohen (2002a:151-180). Para o
conceito de "regulatory trilemma", ver Teubner (1993:239-285).
13. Direito reflexivo é uma nova forma de regulação que complementa, mas não
substitui outra formas jurídicas. Decidir quando e onde um tipo de legislação
ou modo de regulação é adequado é uma questão empírica. O direito reflexivo é
uma forma de regulação da auto-regulação, não de privatização. Seu objetivo é
dirigir a auto-regulação para fins públicos e incentivar a criação de
procedimentos de resolução de conflitos e de tomada de decisões que facilitem a
participação, a eqüidade e a influência dos interesses pertinentes. Ver Cohen
(2002b, cap. 4).
14. Até que ponto esses arranjos foram transparentes e o grau de exclusão que
promoveram é uma outra questão.
15. Isto também se aplica ao modelo antipolítico da sociedade civil
desenvolvido no Ocidente. Ver a este respeito Arato (2000:1-81). Outro problema
foi a necessidade de reconstruir uma sociedade política representativa e
receptiva às contribuições da sociedade civil.
16. Cohen (1999:262-291), contém uma análise crítica dessas duas escolas que
surgiram nos Estados Unidos nos anos 1900.
17. Ver nossa crítica de Parsons em Cohen e Arato (1992:118-142).
18. Para uma excelente discussão sobre esse assunto, ver Keck e Sikkink (1998:
1-38).
19. Esses contatos são bastante efêmeros e instáveis. O argumento de Putnam
provavelmente funciona melhor para esses tipos de "redes".
20. Para uma discussão sobre esses assuntos, ver Arquilla e Ronfeldt (2001).
21. Para uma excelente análise do conceito, ver Jaeger (s/d).
22. Para um diagrama veja Keck e Sikkink (1998:13).
23. Parafraseio Keck e Sikkink (1998:16). Esta parte do artigo se baseia nas
excelentes análises de ambas.
24. Prova disso são os bons resultados obtidos na organização do movimento das
mulheres em torno de questões relacionadas com a saúde, defesa contra a
violência e a transgressão de direitos humanos (o estupro) e temas ligados ao
desenvolvimento no âmbito mundial. Ver a este respeito Keck e Sikkink (1998:
165-198).
25. Era esta a tendência antes dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001.
26. Sobre o conceito de "constitucionalismo societário", ver Teubner (1996) e
outros textos mais recentes.
27. Baseio-me em Rosenau (1999:28-57), para o conceito de governança.
28. Cito o termo cunhado por Gunther Teubner.
29. Não se trata de uma questão de eficácia da lei ou de disponibilidade de
sanções, como geralmente se encara o assunto ao pôr em confronto as
deficiências do direito internacional ou supranacional e a legislação do Estado
nacional, mas de um problema de validade.
30. Cito o Artigo 53 da Convenção de Direitos Humanos de Viena.
31. O mesmo pode ser dito sobre o modelo gerencial: embora a inclusão em arenas
deliberativas nas áreas econômicas seja uma importante aspiração para domar o
capitalismo globalizado, os atores da sociedade civil não se dedicam mais à
atividade de obter lucros do que a de governar.