O segredo ineficiente revisto: o que propõem e o que aprovam os deputados
brasileiros
INTRODUÇÃO
Que fatores induzem o comportamento dos legisladores nos sistemas
presidencialistas latino-americanos? Com a consolidação da democracia, o
comportamento dos parlamentares tornou-se um tema fundamental na literatura
comparada sobre as instituições políticas da região (Carey e Shugart, 1998;
Jones, 1995; Linz e Valenzuela, 1994; Mainwaring e Scully, 1995; Mainwaring e
Shugart, 1997; Morgenstern e Nacif, 2002; Shugart e Carey, 1992). E dada a
centralidade dos corpos representativos em regimes democráticos, não surpreende
a multiplicação de estudos sobre o Legislativo na América Latina.
Uma das contribuições mais importantes para essa literatura é o modelo do
segredo ineficiente, de Shugart e Carey (1992:167-205). O segredo ineficiente é
obviamente o oposto do segredo eficiente de Cox (1987). Um sistema político
dotado de um segredo eficiente é aquele em que os eleitores conseguem fazer uma
clara opção acerca de políticas públicas nacionais entre partidos concorrentes.
Essa escolha requer que os políticos eleitos pensem, na maioria das vezes, no
alcance nacional de suas propostas legislativas e demonstrem alta disciplina
partidária. O Reino Unido é o exemplo perfeito dessas condições. Em um sistema
político movido pelo segredo ineficiente, os legisladores têm um foco paroquial
de atuação parlamentar, o que significa dizer que, no período eleitoral, não
oferecem aos eleitores opções claras a respeito de políticas públicas
nacionais, e, além disso, a disciplina partidária é fraca. O segredo
ineficiente decorre sobretudo da interação de dois fatores institucionais: um
Executivo dotado de fortes poderes legislativos e líderes partidários com baixa
capacidade de controle sobre seus liderados. Que tipos de dinâmicas políticas
são gerados por esse desenho institucional?
Para entender a lógica do modelo do segredo ineficiente (doravante referido
como MSI), é preciso examinar as origens de sua estrutura constitucional. O
modelo pressupõe que os partidos nacionais são dominados por líderes locais, ou
caciques, que, por sua vez, controlam uma assembléia constituinte. Os caciques
demandam um sistema eleitoral que lhes preserve a autonomia local e um
Executivo dotado de fortes poderes legislativos. Em outras palavras, querem
proteger sua autonomia local ao mesmo tempo que se preocupam com a capacidade
do governo de elaborar políticas públicas de abrangência nacional. Na qualidade
de legisladores, eles agem como lobistas perante o Executivo federal buscando
maximizar as transferências de recursos para suas clientelas e, dessa forma,
especializam-se em canalizar para seus distritos eleitorais projetos e verbas
federais. O paroquialismo dos caciques provoca um sério problema de coordenação
quanto à sua capacidade de tomar decisões consistentes sobre políticas
nacionais. Os caciques escapam a esse dilema recorrendo ao que Elster (1988:18)
denomina de racionalidade estratégica, isto é, à solução de ''dar um passo
atrás e dois para a frente'': delegam autoridade ao Executivo, de modo a
limitar sua prodigalidade sobre o orçamento federal. Dado esse passo atrás,
passam a concentrar esforços na provisão de bens privados às suas clientelas
locais, sem se responsabilizarem pela gestão do governo federal ou correrem o
risco de solapar completamente as políticas do Executivo (dois passos para a
frente).
Note-se que o MSI implica uma divisão específica do trabalho legislativo ' ou
um padrão particular de apresentação de projetos e aprovação de leis ' que se
pode resumir em três proposições: (1) os congressistas apresentam projetos de
lei de baixo impacto que beneficiam seus distritos eleitorais, enquanto o
Executivo propõe projetos de impacto nacional; (2) diferentemente das propostas
de iniciativa do Executivo, poucos projetos dos congressistas passam na Câmara,
já que os legisladores não gastam tempo tentando aprová-los1; (3) os poucos
projetos iniciados pelos deputados que são aprovados também têm baixo impacto e
beneficiam igualmente suas regiões eleitorais. A ineficiência de tal divisão do
trabalho legislativo reside no fato de o paroquialismo dos congressistas não
oferecer aos eleitores opções claramente identificáveis entre políticas
públicas nacionais na época das eleições. Além disso, o foco paroquial da
atuação dos parlamentares induz a outra forma de ineficiência: a
irresponsabilidade fiscal (Shugart e Carey, 1992:168-170). Neste artigo vamos
nos ocupar apenas da ineficiência eleitoral.
Ao lado da Colômbia e do Chile de antes de 1958, o Brasil é um dos mais
notáveis exemplos de segredo ineficiente. A Constituição de 1988 concede ao
chefe do Executivo o mais vasto arsenal de prerrogativas legislativas entre os
regimes presidencialistas puros do mundo. E, mais ainda, como afirmam Shugart e
Carey (idem:177), a adoção do sistema de representação proporcional de lista
aberta no Brasil colocou os líderes dos partidos brasileiros entre os mais
fracos do ponto de vista da capacidade de controle eleitoral de seus liderados.
Dez anos já se passaram desde a publicação do livro de Shugart e Carey.
Felizmente, surgiram nesse período numerosos e férteis estudos sobre política
brasileira, os quais nos permitem avaliar a eficácia analítica do MSI.
Parece haver, principalmente, um amplo consenso entre os estudiosos da política
brasileira de que as prerrogativas constitucionais concedem grande poder ao
chefe do Executivo. Pelo que nos é dado saber, ninguém alegou até hoje que os
presidentes brasileiros tenham abdicado desses poderes. Portanto, o primeiro
pilar do segredo ineficiente ' a extensão dos poderes legislativos do
presidente da República ' parece ser empiricamente sólido.
O segundo pilar ' o controle dos líderes sobre seus liderados ' tem sido objeto
de acalorado debate acadêmico. Examinando dados sobre votos individuais dos
deputados, Ames (2001) conclui que os partidos brasileiros são realmente pouco
disciplinados e que seus membros somente cooperam com o chefe do Executivo
quando devidamente recompensados com dotações orçamentárias para suas
clientelas. Utilizando índices agregados de comportamento partidário (o índice
Rice), Mainwaring (1999) considera os partidos brasileiros, na melhor das
hipóteses, como moderadamente disciplinados, e por isso somente oferecem ao
governo um apoio instável. Baseando-se nos mesmos índices, Figueiredo e Limongi
(1999; 2000; ver, também, Limongi e Figueiredo, 1995) afirmam que os partidos
brasileiros têm um comportamento em plenário altamente previsível, e a
principal conseqüência disso é que as maiorias tendem a se formar mediante
acordos de coalizão entre o presidente e os líderes de partidos, e não entre o
presidente e cada congressista em particular. Portanto, o segundo pilar do
segredo ineficiente manifesta-se empiricamente de modo contraditório.
O que se pode dizer sobre a divisão do trabalho legislativo criada pelo segredo
ineficiente? Quanto às duas primeiras proposições, a observação de Figueiredo e
Limongi (1999; 2000) de que 86% das leis sancionadas entre 1989 e 1998 foram de
iniciativa do Poder Executivo certamente confirma o modelo. No que diz respeito
à terceira proposição ' o baixo impacto dos projetos de lei apresentados pelos
deputados ', Limongi e Figueiredo (2001a; 2001b) e Samuels (2002) mostram que a
maioria das emendas dos deputados às propostas orçamentárias do Executivo tem
por alvo seus estados de origem, e não municípios ou regiões. Sabendo-se que no
Brasil os estados funcionam como distritos nas eleições congressuais, essas
conclusões acerca das emendas orçamentárias nos parecem, em princípio,
perfeitamente compatíveis com o MSI.
Apesar disso, o desempenho empírico do MSI demanda um aprofundamento das
pesquisas sobre o tema, principalmente porque ainda existem dúvidas em relação
às motivações e ao comportamento dos legisladores brasileiros. Note-se que até
hoje nenhum estudo examinou em profundidade o foco de uma atividade essencial
dos deputados brasileiros ' o processo de elaboração de leis. Por esse motivo,
este artigo pretende contribuir para o conhecimento acumulado sobre a política
parlamentar na América Latina em geral e no Brasil em particular, utilizando um
modelo macropolítico que caracteriza os regimes políticos ' o MSI ' e
submetendo-o a uma análise micropolítica do comportamento individual dos
deputados brasileiros.
Nossos dados incluem todos os 269 projetos de lei apresentados por deputados e
transformados em lei entre 1985 e 1999, bem como os 1.291 projetos de lei
propostos em 1995. O estudo examina quem propôs o quê em 1995 e identifica os
atributos dos deputados que conseguiram aprovar suas propostas no período de
1985 a 1999. Mostramos que, se o MSI acerta algumas conseqüências legislativas
do sistema de representação proporcional de lista aberta, não esclarece o
impacto de várias estratégias eleitorais de que se valem os deputados, como
demonstra Ames (2001), nem as conseqüências da clivagem governo-oposição no
comportamento parlamentar e na eficiência eleitoral.
O artigo está estruturado da seguinte maneira. A segunda seção examina o nível
de agregação, o efeito e os assuntos das propostas dos deputados e das leis que
eles aprovam, usando uma tipologia criada por Taylor-Robinson e Diaz (1999). Os
principais achados desse estudo são que a maior parte da produção legislativa
dos deputados brasileiros tem abrangência nacional, traz mais benefícios do que
impõe custos e trata de questões sociais. Usando uma análise logit, a terceira
seção mostra que os deputados que mantêm laços de proximidade com os eleitores
propõem leis de nível mais estreito de agregação e que os governistas tendem a
apresentar menos projetos de alcance nacional do que os oposicionistas. Esta
última observação sugere que há um certo partidarismo nos projetos apresentados
pelos deputados. Em seguida, o artigo identifica os fatores que afetaram a
capacidade dos deputados de obter a aprovação dos seus projetos no período
1985-1998. A análise logit sugere que os deputados formalmente ligados ao
partido de sustentação do regime militar (1964-1985) tinham menos chances de
conseguir aprovar seus projetos; além disso, demonstra que os políticos com
carreiras parlamentares mais longas e que haviam exercido cargos de relevo na
Câmara ou no Executivo tinham mais facilidade de aprovar seus projetos. Os
dados sobre a produção legislativa sugerem que o partidarismo não tem nenhuma
influência nesse aspecto do processo decisório. A seção de conclusões contém
uma revisão do MSI à luz de nossos principais resultados. Afirmamos que, em
certas circunstâncias, uma dinâmica eleitoral mais eficiente pode emergir de um
sistema baseado no segredo ineficiente. Sugerimos também que, para representar
corretamente o comportamento parlamentar e o processo decisório nos regimes
presidencialistas do Brasil e de outros países da América Latina, os analistas
devem incluir em seus modelos supostos de natureza partidária e
distributivista.
CLASSIFICANDO PROJETOS E LEIS
Para classificar os projetos apresentados pelos deputados brasileiros,
adaptamos para uso no Brasil uma tipologia criada por Taylor-Robinson e Diaz
(1999) para avaliar o processo legislativo em Honduras. Esta tipologia é útil
para os propósitos deste estudo porque explora os níveis de agregação dos
projetos e seus efeitos. Recorde-se que é possível deduzir do MSI que os
deputados brasileiros tenderão a propor leis de baixo nível de agregação e que
geram efeitos benéficos para suas clientelas eleitorais.
Quanto ao nível de agregação, Taylor-Robinson e Diaz definiram cinco
categorias: individual, local, regional, setorial e nacional. Classificamos um
projeto de lei como de nível individual de agregação quando tem como alvo um
único ou uns poucos indivíduos; é o caso dos projetos honoríficos e dos que
concedem pensão a viúvas de ex-presidentes. Um projeto de lei de nível local de
agregação é aquele que tem por objeto um único município, ou um pequeno número
deles, mas não a totalidade dos municípios de um estado, região ou país. Os
projetos de nível de agregação regional visam a um ou a alguns estados ou
regiões, mas não à totalidade das regiões do país. Classificamos um projeto
como de nível setorial quando tem por objeto um determinado setor da economia
ou ramo de atividade profissional ' os melhores exemplos são os projetos de
regulamentação do exercício de uma nova profissão. Finalmente, os projetos de
nível nacional afetam indiscriminadamente todos os grupos de cidadãos, regiões,
estados e municípios.
No entanto, há uma séria dificuldade na aplicação dos critérios de nível de
agregação ao caso brasileiro. Se a finalidade de um projeto de lei que
estabelece isenções fiscais é o desenvolvimento de uma região pobre, cujas
condições representam um problema para o país inteiro (como foi o caso da
Operação Nordeste, do presidente Juscelino Kubitschek, em 1956-1961), será
correto classificá-lo em uma categoria mais estreita que a nacional? Ou, quando
se trata de um projeto de lei destinado a impulsionar o desenvolvimento de
áreas metropolitanas em regiões de nível de renda inferior a um determinado
limite, será essa lei subnacional, em um sentido restritivo, ou estará
relacionada a um problema de abrangência nacional? Na gestão de Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002), por exemplo, o governo federal desenvolveu um
programa denominado Alvorada, cuja finalidade era ajudar municípios muito
pobres concentrados em determinadas regiões do país. Seria correto classificar
esse programa como não nacional, sabendo-se que estava em jogo um interesse
geral? O Alvorada era um programa, não um projeto de lei, mas a essência da
questão é a mesma. Ou seja, alguns projetos criam programas que parecem ter um
nível de agregação restrito, ou não nacional, mas que, na realidade, têm por
objetivo solucionar problemas nacionais2.
Não é nada fácil resolver essa limitação dos critérios de classificação. Uma
possível solução seria tentar interpretar a intenção dos legisladores quando
propõem projetos de lei. Contudo, esse exercício de interpretação acarreta
necessariamente uma série de juízos subjetivos e ad hoc, o que prejudica, por
definição, a objetividade dos critérios. Deve-se considerar ainda que programas
como o Alvorada têm óbvio impacto e motivação política locais. Assim, dada a
ambigüidade desses casos, preferimos correr o risco de um eventual erro de
avaliação quanto ao nível de agregação de um projeto de lei a desistir de uma
aplicação coerente e homogênea dos critérios.
Quanto aos efeitos dos projetos de lei, Taylor-Robinson e Diaz (idem:618-619)
subdividiram essa variável em quatro categorias: benéfica, onerante, mista e
neutra. Projetos benéficos são os que concedem benefícios a um indivíduo, uma
prefeitura, uma região, um grupo social ou ao país como um todo. Projetos
onerantes são os que impõem ônus financeiros ou regulatórios. Os projetos
mistos são os que ao mesmo tempo beneficiam algumas pessoas e oneram outras,
como, por exemplo, os que provêem proteção a uma bacia hidrográfica. Essa
proteção gera efeitos mistos porque traz benefícios ecológicos, mas impõe
custos a agricultores e indústrias locais. Os projetos neutros comemoram um
acontecimento específico, estabelecem um dia de festa sem conceder um feriado
aos trabalhadores, ou especificam um contrato já existente sem ajudar ou
prejudicar as pessoas.
Além dos efeitos citados, acrescentamos uma terceira variável à classificação
de Taylor-Robinson e Diaz: o assunto ou objeto dos projetos de lei. Criamos
oito categorias: administrativa, econômica, honorífica, orçamentária, política,
social, cultural-científica-tecnológica e ecológica. Geralmente é fácil
identificar o assunto de um projeto de lei pelo sumário e palavras-chave
fornecidos pelo Centro de Informática e Processamento de Dados do Senado
Federal ' PRODASEN. Mas quando um projeto trata de vários assuntos, a solução
foi avaliar o tópico mais proeminente.
As Tabelas_1, 2 e 3 mostram o nível de agregação, o efeito e o assunto dos
projetos convertidos em lei no período de 1985 a 1999. Para nossa surpresa,
descobrimos que dois terços das 269 leis têm nível nacional de agregação. Mas
não nos surpreendeu que quase a metade das leis seja benéfica e somente 6,3%
delas, a menor fração, sejam onerantes. É interessante notar que cerca de
metade dos projetos de iniciativa de deputados transformados em lei trata de
uma temática social. Não houve leis orçamentárias, mas isto se explica pelo
fato de que esse tipo de projeto só é examinado pela Câmara quando encaminhado
pelo Poder Executivo. Matérias de natureza política e econômica também são
áreas importantes no trabalho legislativo dos deputados. Contudo, o número de
leis que tratam dessas matérias é significativamente menor do que o das
referentes a questões sociais.
A Tabela_4 apresenta o número e a porcentagem de leis por partido. O que nos
revelam esses dados? Aparentemente, os autores do maior número de leis
pertencem aos maiores partidos. Em primeiro lugar está o PMDB, seguido pelo
PSDB, PFL, PT, PDS e PPB. Observe-se que outros dez micropartidos conquistaram
umas poucas cadeiras na Câmara Federal no período de 1985 a 1999, mas jamais
conseguiram aprovar uma única lei. Significativamente, há uma relação linear
quase perfeita entre a autoria de leis por partido e o peso parlamentar médio
dos partidos nesse período. Fazendo a regressão da primeira variável sobre a
segunda, obtemos a seguinte equação:
Produçã= 0,023 + 0,997 (tamanho do partido)
(N = 27; R2 ajustado = 0,865)
O fato de a relação entre a porcentagem média de cadeiras controladas por um
partido e a porcentagem de leis de autoria de seus membros ser de paridade
quase perfeita indica que os partidos não afetam a produção legislativa da
Câmara Baixa; se afetassem, a relação não seria linear ' isto é, os pequenos
partidos dificilmente conseguiriam aprovar seus projetos ou os grandes
partidos, sobretudo os que habitualmente aderem à coalizão governativa (em
geral, o PMDB, o PFL e o PSDB), conseguiriam aprovar os deles a taxas
superiores ao peso que têm na Câmara3. Na realidade, conforme se verá mais à
frente, o conteúdo das leis patrocinadas por deputados não tem nada a ver com
as clivagens clássicas que opõem os partidos políticos, e certos atributos dos
deputados explicam sua capacidade de obter a aprovação e a transformação em lei
dos seus projetos.
Procuramos também verificar se os partidos se especializam em algum nível de
agregação, efeito ou temática (os dados não estão relatados neste artigo).
Quanto ao assunto, os integrantes do PT, PFL e PSDB concentram cerca de metade
de sua produção legislativa em leis de natureza social, mas a produção dos
peemedebistas distribui-se de forma eqüitativa entre os diversos assuntos. Os
deputados do PPB não se concentram na elaboração de leis sociais. No que se
refere ao nível de agregação e aos efeitos, não se observa uma variação muito
significativa entre os partidos: todos concentram esforços em leis que geram
benefícios de abrangência nacional. Este dado parece corroborar a idéia
implícita no MSI de que os partidos brasileiros não diferem muito do ponto de
vista da produção de políticas públicas. Veremos, porém, na próxima seção que
existem, sim, importantes diferenças entre governo e oposição no que se refere
ao conteúdo dos projetos de lei apresentados.
Neste ponto, a questão que se impõe é a seguinte: como se explica o predomínio
de leis do tipo nacional, benéfico e de teor social? Acreditamos que a resposta
a esta pergunta depende dos efeitos da concentração dos poderes de agenda nas
mãos do Executivo e de suas conseqüências no comportamento dos deputados. Para
elaborar tal resposta, recorremos ao caso inglês como ponto de referência
comparativo. A comparação talvez pareça despropositada, já que a Inglaterra é o
principal exemplo de sistema político movido por um segredo eficiente. Contudo,
a Inglaterra, tal como o Brasil, tem um sistema político em que o poder
decisório está concentrado no Executivo (Lijphart, 1999) e os membros do
Legislativo têm um papel de menor importância no processo legislatório (Cox,
1987). Pelos mesmos motivos, a Inglaterra é uma boa ilustração do tipo de
agenda que formulam os parlamentares, quando delegam ao Executivo prerrogativas
decisórias a pretexto da eficiência.
Desde a segunda metade do século XIX, as regras de procedimento do Parlamento
inglês vêm se modificando gradualmente de modo a ampliar o tempo dedicado às
discussões em plenário dos projetos iniciados pelo gabinete e reduzir o tempo
alocado aos backbenchers** (idem:45-67). Os projetos de autoria de private
members*** eram considerados de alcance estritamente local e destinados a
clientelas limitadas, ao contrário das propostas do governo que priorizavam as
grandes questões nacionais. Pode-se dizer que, desde então, a agenda do
gabinete tornou-se não só predominante, mas também eminentemente programática.
Como observou Cox (idem), o gabinete começou a concentrar esforços em matérias
que afetam o conjunto do país. Ao mesmo tempo, aspectos cotidianos dos
problemas que afligem os cidadãos deixaram de ser mencionados especificamente
na legislação.
A história recente da Inglaterra corrobora empiricamente essas afirmações.
Durante as décadas de 60 e 70, foi sancionada uma série de leis referentes a
uma diversidade de questões pós-modernas (permissão do aborto, divórcio,
regulamentação sobre material pornográfico, entre outras). Essas leis tinham as
seguintes características: haviam sido propostas por backbenchers e o gabinete
não se envolveu diretamente na tramitação de nenhuma delas. Cabe notar que,
desde o fim da Segunda Guerra Mundial até os anos 80, somente foram aprovados
projetos de lei elaborados por private members em 24 ocasiões (Marsh e Read,
1988). O que isto significa?
Significa que nas raras oportunidades que os private members tiveram para
propor leis e aprová-las, os projetos destinavam-se a tentar resolver problemas
que não dividiam os partidos segundo linhas convencionais. E foi exatamente por
isso que o gabinete não se envolveu naquelas questões4. Nosso argumento é que a
mesma coisa está acontecendo agora no Brasil. A concentração dos poderes de
agenda nas mãos do Poder Executivo faz com que os projetos sociais iniciados
pelo governo assumam um caráter mais agregado ou abstrato e apenas toquem
indiretamente em pormenores dos problemas que afetam cotidianamente os
cidadãos. Os projetos de autoria dos deputados federais procuram preencher essa
lacuna. Não admira, portanto, que os assuntos das 129 leis sociais promulgadas
entre 1985 e 1999 fossem os seguintes: proibir as empresas de obrigarem os
candidatos a um emprego a exibir atestado de esterilidade ou gravidez;
substituição progressiva de produtos contendo asbesto; obrigatoriedade de
prestar informações mensais sobre juros pagos pelos consumidores;
regulamentação das vendas a prazo; definição do que são relações estáveis entre
homem e mulher; distribuição gratuita de medicamentos a pessoas portadoras do
vírus do HIV; obrigatoriedade de incluir dispositivos de segurança em seringas
descartáveis para impedir sua reutilização; obrigatoriedade de editar
publicações em braile; isenção de impostos para a aquisição de automóveis por
deficientes físicos e regulamentação da doação de órgãos humanos.
Note-se que a legislação patrocinada por deputados federais não modifica o
status quo em áreas relevantes como a macroeconomia ou as políticas fiscal e
tributária. Isto quer dizer que a agenda legislativa dos deputados não promove
programas de políticas públicas de largo alcance, como supõe o MSI. Ao
contrário, os legisladores tendem a concentrar-se em alguns problemas tópicos
que dizem respeito à vida cotidiana do cidadão médio. Em contraposição, eis uma
lista das questões abordadas por alguns projetos recentes de iniciativa do
Executivo: sistema de aposentadoria rural; reforma da legislação trabalhista;
criação de um fundo social de emergência e determinação de regras de
responsabilidade fiscal para todos os níveis de governo. Todos esses projetos
têm um considerável impacto redistributivo.
Uma possível objeção a esses argumentos é que os projetos apresentados, e não
as leis sancionadas, devem constituir a amostra para a avaliação das motivações
dos congressistas no trabalho legislativo. Por isso, resolvemos examinar todos
os projetos de lei levados à Câmara pelos deputados brasileiros em 1995.
Escolhemos este ano porque foi o primeiro, após a promulgação da Constituição
de 1988, em que o país não esteve às voltas com crises políticas ou econômicas.
Ou seja, 1995 foi o primeiro ano de ''normalidade'' política, por assim dizer,
no Brasil pós-autoritário. As Tabelas_5, 6 e 7 mostram o nível de agregação, os
efeitos e os temas dos projetos de lei apresentados pelos deputados federais em
1995, respectivamente.
É significativo que a distribuição dos projetos de lei siga o mesmo padrão que
observamos no caso das leis efetivamente sancionadas: 72,4% dos projetos têm um
nível nacional de agregação (contra 66,5% das leis); 55,5% deles geram um
efeito benéfico (49,1% no caso das leis promulgadas); 57,1% tratam de questões
sociais (contra 48,0% das leis sancionadas). Portanto, é possível afirmar com
segurança que o conteúdo das leis sancionadas de autoria dos deputados
constitui uma proxy confiável do conteúdo dos projetos de lei.
Resta examinar a razão do predomínio de leis de abrangência nacional na
produção legislativa dos deputados federais brasileiros. Cabe recordar que
essas leis não promovem amplos programas de política social e, por isso mesmo,
não alteram o persistente status quo perverso do país; visam aos cidadãos em
geral e não a áreas geográficas específicas. Em outras palavras, o
paroquialismo dos deputados não se reflete em sua produção legislativa. Por
quê?
Lemos (2001:576-577) chama a atenção para o fato de que o poder do Congresso
para propor leis de natureza orçamentária e fiscal é muito limitado. Essas são
áreas cruciais de políticas públicas em que é fácil beneficiar regiões e
clientelas específicas. Isto é, os deputados não podem propor leis benéficas
com um nível local de agregação porque poderosas barreiras constitucionais os
impedem de fazê-lo. Por surpreendente que pareça, a incapacidade dos políticos
brasileiros em aprovar leis paroquiais e benéficas é mais uma indicação de que
o desenho institucional do país é regido por um segredo ineficiente. De acordo
com o MSI, a prerrogativa de propor medidas de política econômica é delegada ao
Poder Executivo. Em conseqüência disso, nas áreas de política pública em que os
deputados têm liberdade para legislar há poucas oportunidades de obter verbas e
projetos federais de interesse localizado.
Para os deputados federais, a principal oportunidade de obter verbas públicas
para suas regiões é o processo orçamentário. Ames (1995; 2001) afirmou que os
deputados geralmente fazem uso do seu direito de propor emendas ao orçamento,
mas não temos informação alguma sobre a proporção do tempo que eles dedicam a
essa tarefa em comparação com a que devotam a outras atividades essenciais,
tais como legislar ou fazer lobbyno Executivo. Não temos como aquilatar, pelos
dados aqui apresentados, a importância relativa do trabalho dedicado à
elaboração de emendas orçamentárias que envolvem gastos em comparação com o
tempo devotado à apresentação de projetos que não implicam despesas públicas.
Tudo o que nossos dados permitem afirmar é que o achado de que a maior parte da
produção legislativa dos deputados não tem alcance estadual ou local não
contradiz necessariamente o MSI. Esse fato é uma conseqüência direta das
barreiras constitucionais que impedem os deputados de propor projetos,
transferindo recursos orçamentários para regiões ou clientelas reduzidas. Essas
barreiras representam, além disso, o ''passo atrás'' subjacente a uma estrutura
institucional baseada no segredo ineficiente. Assim, os deputados são induzidos
a concentrar suas atividades legislativas em questões tópicas de política
social de abrangência nacional.
QUEM PROPÕE O QUÊ NA CÂMARA DOS DEPUTADOS?
Os dados analisados na seção anterior mostram que embora o MSI seja capaz de
explicar boa parte da dinâmica institucional do Brasil, a capacidade
explicativa do modelo quanto ao conteúdo da produção legislativa é bastante
limitada. O objetivo desta seção é reformular o MSI de um modo que nos permita
obter uma melhor compreensão das motivações subjacentes às iniciativas dos
deputados.
Cabe lembrar, de início, que um pressuposto do MSI é que a estratégia eleitoral
de equilíbrio no Brasil é cultivar o voto pessoal, o que traz como conseqüência
uma conduta parlamentar paroquialista. Outro pressuposto do modelo é que esse
tipo de incentivo influi de modo uniforme sobre todos os membros da Câmara
Baixa. Mas em um estudo recente Ames (2001) questiona essa suposição.
Antes de nos aprofundarmos no trabalho de Ames, é conveniente dar uma breve
explicação sobre o sistema eleitoral brasileiro. O país adota o sistema de
representação proporcional de lista aberta nas eleições para a Câmara Baixa.
Por ser uma federação, a disposição geográfica dos distritos eleitorais em
pleitos para a Câmara dos Deputados justapõe-se à dos estados da federação. O
número de cadeiras disputadas em cada distrito varia com o tamanho da
população. O tamanho do distrito varia de um mínimo constitucional de oito
cadeiras nos estados menores a um máximo de setenta para São Paulo, o maior
eleitorado do país. Os eleitores dão apenas um voto para um candidato em uma
lista partidária ou para a legenda de um partido. A posição do candidato na
lista depende do número de votos que ele recebeu, o que estimula a competição
entre candidatos do mesmo partido. Dado que a sorte eleitoral dos candidatos
depende de sua capacidade de conquistar votos, presume-se que a melhor
estratégia eleitoral para eles é cultivar o voto pessoal e conquistar
eleitorados estreitos (Carey e Shugart, 1995).
Ames demonstra que embora os candidatos à Câmara Federal busquem atrair votos
em todas as regiões dos seus estados, certas estruturas geográficas, sociais e
econômicas, determinados padrões de carreira e a própria história favorecem
diferentes tipos de estratégias de campanha, as quais, por sua vez, geram
diversos padrões espaciais de distribuição de votos. Esses padrões são
explicados por duas dimensões: a contigüidade espacial dos municípios em que o
candidato recebe votos e o grau de dominância que ele tem nos municípios em que
é votado. Um candidato tem uma distribuição dominante quando os votos que
recebe saem de municípios onde ele obtém a maioria da totalidade dos votos
dados. Uma distribuição compartilhada significa que o candidato é votado em
municípios onde divide a totalidade da votação com outros concorrentes. A
combinação dessas duas dimensões dá origem a quatro padrões de distribuição de
votos: (1) distribuição dispersa de votos em municípios-chave combinada com uma
baixa porcentagem da totalidade dos votos nesses municípios (tipo disperso-
compartilhado); (2) distribuição dispersa dos votos combinada com uma alta
porcentagem da totalidade da votação desses municípios (tipo disperso-
dominante); (3) distribuição concentrada de votos combinada com uma baixa
porcentagem da totalidade da votação (tipo concentrado-compartilhado); e (4)
distribuição concentrada de votos combinada com uma porcentagem elevada da
totalidade da votação dos municípios (tipo concentrado-dominante).
A análise de Ames indica que somente os deputados cujo padrão de distribuição
de votos é do tipo concentrado ou dominante se empenham nos tipos de trocas
paroquiais ou clientelistas com os eleitores que o MSI pressupõe. Esses
políticos mantêm relações mais estreitas com o eleitorado e, por isso, são os
únicos que têm a capacidade de reivindicar o crédito exclusivo pelos recursos
federais que trazem para seus estados ou pelos serviços que proporcionam aos
seus distritos eleitorais. Se essa análise for verdadeira, temos condições de
especificar algumas das principais implicações do MSI, formulando duas
hipóteses:
Hipótese 1a. Quanto mais concentrado ou dominante for o padrão espacial de
distribuição da votação de um deputado, maior será a probabilidade de que ele
patrocine projetos de lei do tipo paroquial-benéfico.
Inversamente, também podemos afirmar que:
Hipótese 1b. Quanto mais concentrado ou dominante for o padrão espacial de
distribuição dos votos de um deputado, menor será a probabilidade de que ele
patrocine projetos de lei de nível nacional.
Considere-se ainda que o MSI somente reconhece os incentivos eleitorais criados
pelo sistema de representação proporcional de lista aberta. Isto significa que
o modelo ignora outras duas motivações fundamentais para o comportamento dos
políticos: os objetivos programáticos e a busca de cargos (Strøm, 1990; Müller
e Strøm, 1999). É justo esperar que essas motivações tenham um efeito na
proposição de leis pelos deputados brasileiros.
Quanto à busca de cargos, afirmamos na Introdução que o MSI pressupõe que os
deputados delegam a decisão de políticas de abrangência nacional ao Executivo
por razões de eficiência. Novamente, o modelo presume que o incentivo para
delegar ao Executivo se distribui uniformemente entre todos os membros da
Câmara Baixa. Essa suposição é válida? Parece que não. Somente os deputados que
fazem parte da coalizão parlamentar do governo têm motivos fortes para delegar
as decisões de políticas nacionais ao Executivo, porque isto lhes permite
dedicar seu tempo à negociação de verbas e recursos federais para suas regiões
ou à prestação de serviços às suas clientelas. Os deputados da oposição têm
motivos para propor projetos de alcance nacional, já que isto lhes permite
marcar uma posição política perante os eleitores. Esse raciocínio nos leva à
seguinte hipótese:
Hipótese 2.Os deputados que pertencem à coalizão parlamentar do presidente
estão negativamente associados com o patrocínio de projetos de lei de alcance
nacional.
E quanto às preocupações programáticas dos deputados? Vimos na seção anterior
que não há muita diferença de conteúdo entre os projetos de lei propostos pelos
deputados brasileiros e os que são finalmente transformados em lei. Contudo, a
ideologia dos deputados pode influir no nível de agregação dos seus projetos.
Essa hipótese se fundamenta em um recente estudo de Timothy Power (2000). De
acordo com Power, os padrões de recrutamento e de socialização política que
prevaleceram durante o regime militar (1964-1985) criaram sérias distorções no
comportamento dos parlamentares brasileiros durante o regime democrático
instalado em 1985, principalmente no que diz respeito aos políticos que eram ou
tinham sido filiados à extinta Arena/PDS.
Quais eram os padrões de recrutamento e socialização política durante o regime
militar? Cabe lembrar, antes de tudo, que os poderes do Congresso tinham sido
consideravelmente reduzidos em proveito do Executivo, o que tornou menos
atraente fazer uma carreira parlamentar. Mas os políticos que permaneceram no
Congresso tiveram de envolver-se em outras atividades não monopolizadas pelo
Executivo, e já que havia poucas opções, a maioria optou pelo clientelismo.
Power (idem:19) observa que
''[...] os incentivos para o clientelismo individualista não tiveram
um efeito uniforme em toda a classe política. Os estímulos
clientelistas foram mais fortes entre os políticos que apoiavam os
militares e se beneficiavam com o acesso privilegiado aos recursos do
Estado, e mais fracos entre aqueles que ' excluídos dos círculos
imediatos do poder e da patronagem ' empenhavam todas as energias no
ativismo oposicionista''.
O resultado foi que os políticos socializados na patronagem e sob a influência
de instituições parlamentares débeis tenderam ' sob o novo regime democrático '
a resistir ao fortalecimento do Congresso, temendo as pressões cada vez mais
fortes para aumentar a prestação de contas aos eleitores pelos parlamentares,
bem como a perda de espaço para o exercício do clientelismo. Três pesquisas de
opinião realizadas por Power entre membros do Congresso em 1990, 1993 e 1995
revelaram que os antigos filiados da Arena/PDS davam menos apoio às medidas
destinadas a fortalecer e institucionalizar os partidos que outros setores
políticos (idem:124-139); eram menos atuantes nas atividades parlamentares
clássicas; estavam menos interessados na função de representar grupos e mais
envolvidos em interações clientelistas com a máquina do Estado (idem:166-170).
Se Power estiver certo, temos razões para supor que o clientelismo dos antigos
membros da Arena/PDS influa nos tipos de projetos que eles propõem. Portanto:
Hipótese 3a. Os deputados que eram ou tinham sido filiados à Arena/PDS têm mais
probabilidade de propor leis do tipo paroquial-benéfico do que os demais
parlamentares.
Inversamente:
Hipótese 3b. Os deputados que eram ou tinham sido filiados à Arena/PDS têm
menos probabilidade de propor leis de nível nacional do que os demais
parlamentares.
A seguir, examinamos separadamente os dois tipos de hipóteses ''a'' e os três
tipos de hipóteses ''b'', utilizando uma análise logit.
As Hipóteses do Tipo ''a''
A variável dependente para as hipóteses do tipo ''a'' é uma variável binária
que explora se um deputado eleito em 1994 propôs em 1995 pelo menos um projeto
de lei com nível de agregação individual ou local. As medidas de concentração e
dominância foram fornecidas por Ames. A afiliação prévia à Arena/PDS também é
medida por uma variável binária. Atribuímos o valor 1 a um deputado que fosse
ou tivesse sido filiado à Arena/PDS e o valor zero à situação oposta5.
A Tabela_8 apresenta os resultados das regressões. No modelo 1, somente a
concentração se mostrou significante (no nível de 0,05) e veio com o sinal
positivo esperado. A variável Arena/PDS exibiu um resultado estatisticamente
não significante, provavelmente porque em 1995 o número dos antigos membros
desses partidos fosse menor do que nas legislaturas anteriores. A variável
afiliação à Arena/PDS também é colinear com a concentração e a dominância. Por
essa razão, eliminamos a afiliação a esse partido no teste do modelo 2. Neste
modelo, somente a concentração apareceu com o sinal correto e revelou um efeito
significante sobre a variável dependente (no nível de 0,05). Finalmente, o
modelo 3 representa uma equação de regressão bivariada em que a única variável
independente é a concentração, que manteve o sinal, o coeficiente e o nível de
significância (0,05) encontrados nos modelos anteriores. Em termos
substantivos, os coeficientes encontrados no modelo 3 indicam que um deputado
cujos votos tinham uma concentração geográfica máxima tem uma probabilidade de
20,6% de propor um projeto de lei destinado a beneficiar seu eleitorado, em
comparação com a probabilidade de 4,2% de um deputado cujos votos se distribuem
geograficamente com um grau máximo de dispersão tomar a mesma iniciativa. A
diferença é considerável6.
Observe-se, porém, que somente 28 dos 389 deputados que compõem a amostra
apresentaram, em 1995, pelo menos um projeto de lei do tipo paroquial-benéfico.
Isto indica que um suposto fundamental do MSI ' que os deputados concentram
suas atividades no trabalho em favor de clientelas pequenas ' é um fenômeno
muito limitado no que concerne a iniciativas legislativas.
As Hipóteses do Tipo ''b'' e a Hipótese 2
Aqui, a variável dependente também é binária e explora se cada deputado eleito
em 1994 apresentou, em 1995, pelo menos um projeto de lei de nível nacional de
agregação. Recorde-se que agora, além das três variáveis explicativas
examinadas nos modelos 1, 2 e 3, também verificamos o efeito das relações dos
deputados com o Executivo em suas iniciativas legislativas. Visto que as
nomeações para o Ministério são consideradas a principal arma do chefe do
Executivo para a construção de uma base de apoio parlamentar no Brasil (Ames,
2001; Amorim Neto, 2002; Figueiredo e Limongi, 1999; 2000), a nova variável é
estimada como uma variável binária que atribui o valor 1 aos deputados filiados
a partidos representados no Ministério e o valor zero na situação contrária7.
Os resultados apresentados na Tabela_9 indicam que no modelo 4 todas as
variáveis explicativas, exceto a afiliação à Arena/PDS, se mostraram
significantes em um bom nível de significância. Entretanto, a concentração veio
com o sinal errado. Esperávamos que essa variável tivesse um efeito negativo na
proposição de leis de nível nacional. Testamos um quinto modelo, excluindo a
filiação à Arena/PDS, e os resultados foram qualitativamente semelhantes aos do
modelo 4. No modelo 6, eliminamos a variável concentração e, mais uma vez,
encontramos os mesmos resultados: a dominância e o pertencimento à coalizão
parlamentar do presidente tiveram o impacto negativo esperado sobre a
iniciativa dos deputados de proporem projetos de lei de abrangência nacional,
ambos com níveis de significância de 0,01. Fixando na média a participação na
coalizão parlamentar do governo, um deputado que possui dominância máxima nos
municípios onde é votado registra uma probabilidade de 31,7% de propor um
projeto de lei de alcance nacional, enquanto um outro que tem uma taxa de
compartilhamento máximo da votação em seus municípios-chave registra 69,4% de
chances de apresentar à Câmara um projeto do mesmo tipo ' a diferença é enorme.
De modo análogo, fixando a dominância na média, um deputado que apóia o governo
tem uma probabilidade de 49,4% de apresentar um projeto de abrangência
nacional, contra 64,3% de chances de um parlamentar da oposição; isto é, uma
chance aproximadamente 30% maior que a do governista8.
Em resumo, os resultados estatísticos desta pesquisa sugerem que, por manterem
relações mais estreitas com o eleitorado, os deputados dominantes preocupam-se
menos com a elaboração de políticas de impacto nacional do que os parlamentares
que dividem suas bases eleitorais com outros políticos. O incentivo para
delegar ao Executivo a elaboração de políticas nacionais, como supõe o MSI, é
mais forte entre os políticos que apóiam o presidente. Por outro lado, os
deputados da oposição têm na possibilidade de marcar posição perante seu
eleitorado um incentivo para propor leis de impacto nacional. Esses resultados
não são inconsistentes com a essência do MSI, mas exigem certas qualificações
do modelo.
QUEM CONSEGUE APROVAR PROJETOS NA CÂMARA DOS DEPUTADOS?
Afirmamos na segunda seção que a produção legislativa dos deputados não é
afetada pelos partidos, no sentido de que ser filiado a umas quantas legendas
partidárias não aumenta a probabilidade de que eles consigam aprovar seus
projetos. Em outras palavras, não há no Brasil nenhum partido ou grupo de
partidos que detenha um poder de cartel sobre a agenda legislativa, como é o
caso do partido majoritário no Congresso dos Estados Unidos (Cox e McCubbins,
1993) ou dos partidos governistas em Honduras (Taylor-Robinson e Diaz, 1999),
no que diz respeito a projetos de lei de autoria de deputados. Esse resultado é
certamente compatível com o MSI, porque o modelo postula expressamente uma
concepção não partidária do processo decisório. Na realidade, o MSI inclui uma
visão distributivista desse processo, isto é, as maiorias formam-se pela troca
de favores ou permuta de votos entre legisladores de orientação paroquialista,
conforme sugere o estudo de Weingast e Marshall (1988). Dito de outra forma, se
as coalizões partidárias não são mecanismos de articulação de maiorias no
Brasil, só resta apelar para acordos de permuta de votos entre parlamentares.
Se o partido não altera a probabilidade de um deputado conseguir aprovar seu
projeto, cabe buscar nos atributos pessoais de cada um os fatores que
determinam tal probabilidade. Nossas hipóteses baseiam-se em uma proposição
simples: os deputados que conseguem aprovar seus projetos são os que têm a
motivação e os recursos políticos necessários para tal. Não é difícil entender
por que o acesso a recursos é necessário para fazer aprovar um projeto. Afinal
de contas, a aprovação demanda a árdua tarefa de convencer uma maioria de
parlamentares, além da superação dos obstáculos burocráticos e legais impostos
pela Constituição e pelo Regimento Interno da Câmara. Desse modo, os deputados
que dispõem de mais recursos devem ter maior probabilidade de obter a aprovação
dos seus projetos do que os que contam com menos recursos.
Entretanto, não é óbvio que haja uma variação semelhante na motivação para
propor projetos e no desejo de tê-los aprovados. Afinal, apresentar propostas
de lei é uma das atividades essenciais dos deputados, de modo que todos
deveriam ter o mesmo desejo de enriquecer seus currículos com a promulgação de
uma lei de sua autoria. Cabe lembrar, porém, que o estudo de Power já
mencionado demonstra que os antigos membros da Arena/PDS são menos operantes
nas atividades parlamentares clássicas (Power, 2000:166-170). Se isto for
verdade, pode-se inferir que:
Hipótese 4. A motivação para propor projetos de lei entre os deputados que eram
ou tinham sido filiados à Arena/PDS é mais fraca e por isso eles têm menor
probabilidade de conseguir aprová-los do que os outros parlamentares.
Examinemos agora a definição dos recursos que os deputados devem possuir para
obter a aprovação dos seus projetos.
Um primeiro recurso essencial é a longevidade de suas carreiras na Câmara
Federal. Quanto mais tempo de Câmara eles têm, mais tempo terão acumulado para:
(a) acompanhar a tramitação de seus projetos; (b) familiarizar-se com as normas
formais e informais do processo legislativo; (c) especializar-se em uma área de
política pública; (d) conhecer as preferências de outros deputados e partidos;
(e) aprender a fazer acordos com os colegas; (f) adquirir prestígio e,
portanto, influência sobre seus pares. Portanto:
Hipótese 5. Quanto mais longa é a carreira do deputado, maior é sua
probabilidade de conseguir a aprovação de um projeto.
Outro importante recurso é o peso eleitoral. Existe na Câmara uma convenção não
escrita segundo a qual os deputados de maior peso eleitoral são objeto de maior
deferência9. Todos os deputados, no fim das contas, devem sua presença na
Câmara aos votos que recebem e, por isso mesmo, não surpreende que seu peso
eleitoral se traduza em influência política. Portanto:
Hipótese 6. Quanto maior é o peso eleitoral de um deputado, melhores são suas
chances de conseguir a aprovação de um projeto.
Além desses dois recursos, consideramos que ocupar um posto na estrutura de
poder da Câmara também é uma prova da influência de um deputado. O cargo
proporciona a seu ocupante recursos que podem ser negociados em troca do apoio
dos pares aos projetos de lei que ele encaminhou. Espera-se que essa variável
capte o padrão de permuta de votos no processo decisório presumido pelo MSI. Em
outras palavras:
Hipótese 7. Ocupar um posto na estrutura de poder da Câmara deve estar
positivamente associado à probabilidade de obter a aprovação de um projeto.
Por fim, considerando a baixa qualidade da assessoria da Câmara, supomos que os
deputados que exercem cargos na esfera executiva, sejam eleitos ou por
nomeação, dispõem de um recurso escasso, qual seja, conhecimentos específicos
em questões de políticas públicas que são evidentemente de grande importância
para o processo legislativo. Ocupar por certo período um cargo no Executivo,
seja na esfera local, estadual ou federal, proporciona a um político uma
experiência inigualável que obviamente poderá traduzir-se em influência na
arena parlamentar. Isso nos leva à hipótese de que:
Hipótese 8. Uma experiência prévia na esfera executiva está positivamente
associada à capacidade do deputado de obter a aprovação de um projeto de lei.
O Teste das Hipóteses 4 a 8
Para verificar a validade empírica dessas cinco hipóteses, usamos novamente uma
análise logitmultivariada. A variável dependente é binária e avalia, para cada
deputado eleito em 1982, 1986, 1990 e 1994, se ele conseguiu fazer com que pelo
menos um dos seus projetos fosse transformado em lei nas legislaturas do
período de 1985 a 1998. Por exemplo, um deputado que se elegeu três vezes e
aprovou duas leis em legislaturas diferentes aparecerá três vezes na amostra.
Nas duas legislaturas em que ele conseguiu aprovar uma lei, receberá o valor 1.
Na legislatura em que ele não aprovou nenhuma lei, receberá o valor zero. Nossa
amostra tem 2.024 observações10. Do total de deputados que compõem a amostra,
somente 171 conseguiram abrilhantar seus currículos com pelo menos uma lei
sancionada entre 1985 e 1998. Ou seja, a probabilidade média de obter a
aprovação de uma lei é de apenas 8,4%.
Quanto às variáveis independentes, cabe lembrar o efeito da filiação prévia à
Arena/PDS11. A duração da carreira de um deputado corresponde ao número de anos
que ele serviu na Câmara dos Deputados no começo de uma nova legislatura.
Assim, se um deputado foi eleito pela primeira vez em 1982 e reelegeu-se em
1986, 1990 e 1994, ele aparecerá quatro vezes na amostra. Na primeira
legislatura (1983-1986), a duração de sua carreira é zero; na segunda
legislatura (1987-1990), é de quatro anos; na terceira (1991-1994), oito anos,
e na quarta (1995-1998), doze anos.
O peso eleitoral de um deputado corresponde simplesmente ao número de votos que
recebeu na última eleição. Como os distritos eleitorais no Brasil têm tamanhos
e eleitorados diferentes, os deputados provenientes de distritos maiores tendem
a ter mais peso eleitoral do que os que vêm de distritos menores.
Relativamente aos cargos parlamentares, atribuímos o valor 1 aos deputados que
eram ou tinham sido membros da Mesa da Câmara dos Deputados, bem como aos que
eram ou tinham sido líderes de partidos ou presidentes de comissões; caso
contrário, atribuímos o valor zero. Finalmente, criamos uma variável binária
para medir os cargos ocupados na esfera executiva. Os deputados que exerceram
cargos executivos, eletivos ou por nomeação, em qualquer nível de governo,
receberam o valor 1; caso contrário, receberam o valor zero.
A Tabela_10 informa sobre as estimativas logit. No modelo 7, todas as variáveis
saíram com o sinal esperado. O peso eleitoral foi a única variável que não
obteve significância. Por isso, a excluímos do oitavo modelo12. Neste modelo,
todas as variáveis tiveram o sinal correto e foram estatisticamente diferentes
de zero: filiação à Arena/PDS, duração da carreira e exercício de postos
parlamentares foram significantes no nível de 0,01; o nível de significância de
ter ocupado cargos executivos foi de 0,05.
Fixando em suas médias as variáveis duração da carreira, postos parlamentares e
cargos executivos, a probabilidade de um deputado que era ou foi filiado à
Arena/PDS fazer aprovar uma lei é de 5,6%; este valor sobe para 9,3% no caso de
deputados que nunca pertenceram à bancada daqueles partidos. Usando o mesmo
procedimento para a duração da carreira, obtemos as probabilidades associadas a
diferentes valores dessa variável, como pode ser verificado no Gráfico_1. Um
deputado recém-chegado à Câmara dos Deputados tem uma probabilidade de 6,7% de
obter a aprovação de uma lei; com quatro anos de carreira, a probabilidade sobe
para 8,1%; com oito anos, passa para 9,6%; e com doze anos alcança 11,4%.
Os deputados que ocupam ou ocuparam cargos parlamentares têm 10,6% de chances
de conseguir a aprovação de uma lei, ao passo que os que não exercem ou nunca
exerceram funções comparáveis têm 8,6% de possibilidades de fazê-lo. A
probabilidade de fazer aprovar uma lei no caso de deputados que têm ou tiveram
cargos executivos é de 9,9% contra 7,2% dos que nunca ocuparam posições
semelhantes. Considerando que a probabilidade média de um deputado conseguir
aprovar seu projeto é de apenas 8,4%, uma diferença de 4,0% associada a um
atributo individual representa quase a metade da chance média. Isto é, dada a
baixa probabilidade média de um deputado conseguir a aprovação de seu projeto,
acreditamos que variações entre 2,0% e 4,0% associadas a qualidades pessoais
dos parlamentares são politicamente significativas.
Falta examinar por que o peso eleitoral não afeta de modo significativo as
chances de os deputados aprovarem uma lei. Uma possível explicação é que os
deputados ''puxadores de voto'', justamente porque têm grande sucesso
eleitoral, tendem a concorrer a cargos de maior relevo, como os de prefeito,
senador e governador. E por isso mesmo, não permanecem muito tempo na Câmara.
Este é um exemplo do que Samuels (2000:483) denominou de ''ambição
extraparlamentar'', cuja lógica supõe que a maior parte dos ''pesos pesados''
deixe a Câmara para concorrer a postos de mais prestígio.
Por paradoxal que seja, um bom desempenho nas eleições para a Câmara dos
Deputados não incentiva os políticos a nela permanecerem. Como a duração da
carreira na Câmara Baixa é um fator crucial para a capacidade de um deputado
aprovar seus projetos, os pesos pesados geralmente não ficam na Câmara tempo
suficiente para acompanhar a tramitação dos seus projetos até a aprovação
final. É por isso que o peso eleitoral não altera de modo significativo a
capacidade dos deputados de obter a aprovação de suas propostas legislativas.
Que tipo de relação nossos resultados permitem estabelecer entre os
determinantes da produção legislativa dos deputados e o MSI? Lembremos, antes
de tudo, que este modelo contém, por definição, uma concepção não partidária do
processo decisório entre Executivo e Legislativo, o que permite interpretá-lo
como uma concepção distributivista na linha do que descreveram Weingast e
Marshall (1988). Portanto, o fato de os partidos não influírem na produção
legislativa confirma os fundamentos do modelo. Se o MSI propõe uma visão
distributivista da organização parlamentar, deveríamos esperar que as decisões
políticas dos deputados brasileiros resultassem da troca de favores entre eles.
O fato de a variável que identifica se os deputados já exerceram ou não um
cargo na estrutura de poder da Câmara influir significantemente na
probabilidade de eles obterem a aprovação de uma lei é uma prova da presença de
um importante componente distributivista na atividade legislativa desses
parlamentares. O que explica essa relação é que, por ocupar um cargo na Câmara,
o político tem acesso a recursos que poderá negociar com os colegas em troca de
votos para os projetos que ele apresentou. Isto lembra muito a lógica do
logrolling (troca de favores) elaborada por Weingast e Marshall (1988).
Contudo, os efeitos da permuta de votos entre deputados brasileiros ' as leis
efetivamente sancionadas ' não se prestam, de modo geral, a fins locais. A
razão disso é que, conforme observamos na segunda seção, o poder do Congresso
para iniciar leis de natureza orçamentária e fiscal é muito limitado.
DISCUSSÃO
O que nos dizem os resultados desta pesquisa sobre o modelo do segredo
ineficiente proposto por Shugart e Carey? Em primeiro lugar, o fato de a maior
parte da produção legislativa dos deputados brasileiros não ter em vista
problemas locais não contradiz o modelo. A explicação disto está nas barreiras
constitucionais que impedem os deputados federais de propor leis envolvendo a
transferência de recursos para regiões e clientelas restritas. É este
justamente o ''passo atrás'' subjacente a um desenho institucional baseado no
segredo ineficiente. E a conseqüência é que os deputados investem seu tempo e
os poucos recursos de que dispõem para atividades legislativas em questões
tópicas de política social de abrangência nacional.
Em segundo lugar, o MSI tem uma grave deficiência: a incapacidade de modelar
adequadamente o papel dos partidos e da oposição. Existe, sem dúvida, um
incentivo para delegar ao Executivo a formulação de políticas públicas de
alcance nacional, mas esse incentivo repercute com mais força nos políticos que
apóiam o governo. Os partidos de oposição usam suas prerrogativas de introduzir
projetos de lei de abrangência nacional para fazer propaganda de suas posições
políticas perante os eleitores e com isso fortalecer suas chances de chegar à
Presidência da República. Se esta tese estiver correta, então é possível que no
interior de um sistema baseado no segredo ineficiente se gere de maneira
endógena uma dinâmica eleitoral mais eficiente. É essa possibilidade que o
Partido dos Trabalhadores tem exemplificado no Brasil. Fazendo uma oposição
sistemática aos governos com base em propostas políticas de abrangência
nacional, o PT tornou-se um dos principais competidores na corrida à
Presidência da República. E, desde as primeiras eleições pluripartidárias
livres de 1982, a representação do PT no Congresso tem tido um crescimento
constante, a ponto de tornar-se o maior partido da Câmara dos Deputados depois
das eleições de outubro de 2002.
A bem da verdade, uma das principais dificuldades das análises
institucionalistas centradas nos incentivos eleitorais gerados pelo sistema de
representação proporcional de lista aberta sempre foi a de explicar a alta
disciplina em plenário dos membros do PT. Este fato foi em parte elucidado pelo
estudo de Barry Ames a respeito da competição eleitoral no Brasil, em que ele
mostrou que a principal característica do sistema de representação proporcional
de lista aberta em grandes distritos de mais de um representante não é a de
favorecer o voto pessoal, mas a de facilitar a multiplicação de estratégias
eleitorais. É bem verdade que algumas dessas estratégias realmente estimulam um
foco estreito de atuação parlamentar previsto pelo MSI. E já vimos que estas
são as que favorecem o paroquialismo na proposição de leis. Há, no entanto,
outras estratégias que estimulam uma visão mais ampla. É significativo que o PT
tenha sido o partido que mais investiu no conteúdo informativo de sua legenda
(Samuels, 1999), estratégia que se tem revelado bem-sucedida mesmo nos confins
de um sistema baseado no segredo ineficiente.
O MSI oferece uma visão demasiado atomística ou não partidária do processo
político. Um óbvio corolário disto é o fato de o Brasil ser, de maneira geral,
governado por coalizões ad hoc. O modelo simplesmente não leva em consideração
a possibilidade de que os presidentes e os partidos eventualmente se unam para
compor maiorias de governo estáveis. Quando são formadas, essas maiorias podem
oferecer aos eleitores importantes informações acerca de quem deve ser cobrado
pelas políticas públicas nacionais em eleições congressuais, contribuindo para
elevar o nível de eficiência eleitoral. De fato, muitos estudos mostram que
Fernando Henrique Cardoso contou com uma coalizão governista mais estável do
que outros presidentes (Amorim Neto, 2002; Amorim Neto et alii, 2003;
Figueiredo e Limongi, 1999; Mainwaring, 1999:313-317; Nicolau, 2000). Isto é, o
modelo do segredo ineficiente descarta muito radicalmente os partidos, o que
prejudica seriamente sua capacidade de explicar a dinâmica eleitoral e o
processo decisório no Brasil e em outros países da América Latina.
O fato de termos introduzido no modelo, em mais alto grau, as clivagens e
coalizões partidárias levou-nos à conclusão de que os sistemas políticos
baseados no segredo ineficiente podem ter às vezes eleições congressuais muito
ineficientes, porque o comportamento dos parlamentares não oferece aos
eleitores escolhas claramente identificáveis de políticas nacionais. Mas isso
só acontece quando o Executivo se apóia exclusivamente em coalizões ad hoc.
Sempre que o Executivo tem o apoio de uma coalizão estável, as eleições
congressuais podem alcançar níveis significativamente mais elevados de
eficiência eleitoral.
Nossa análise sobre quem consegue aprovar seus projetos mostra que o Congresso
brasileiro tem um papel de menor importância no processo legislativo não só por
causa das restrições impostas pelo segredo ineficiente ' isto é, a ampla
delegação ao Executivo da autoridade para tomar decisões sobre políticas
públicas de abrangência nacional ', mas também em virtude dos incentivos à
construção das carreiras parlamentares. A essência desses incentivos é que o
Poder Executivo é o locus fundamental da influência política, o que dissuade os
deputados de tentarem construir uma carreira mais duradoura no Congresso. A
falta de políticos dispostos a permanecer muito tempo no Congresso enfraquece
ainda mais o papel do Legislativo na formulação de políticas nacionais. Em
síntese, os fracos incentivos à construção de longas carreiras parlamentares
contribuem para reforçar alguns aspectos da lógica que está na base do modelo
do segredo ineficiente.
Finalmente, nossa análise empírica indica que os partidos não afetam o que os
deputados aprovam e que há um importante aspecto distributivista na capacidade
dos deputados brasileiros de aprovarem leis, conforme evidencia a significância
estatística da variável explicativa que identifica quem exerceu ou não cargos
burocráticos na Câmara. Portanto, se há uma influência partidária no que os
deputados propõem, outros fatores determinam o que eles aprovam. Essa diferença
entre os determinantes do que é proposto e do que é aprovado se explica pelo
fato de que a legislação apresentada por deputados que tramita com sucesso na
Câmara tende a situar-se fora da dimensão dominante do conflito partidário.
Isto transforma os deputados ' principalmente os dos partidos de oposição ' em
patrocinadores de temas que passam ao largo da dimensão política dominante e em
agentes potenciais do realinhamento de partidos e alianças13.
Em suma, dada a complexidade empírica dos dados apresentados neste artigo,
acreditamos que futuros trabalhos deveriam considerar seriamente a sugestão de
que a melhor forma de construir modelos sobre o comportamento dos parlamentares
e o processo decisório nos regimes presidencialistas do Brasil e de outros
países da América Latina que se baseiam no segredo ineficiente é incorporar e
combinar fatores partidários e distributivistas. Um modelo que desconsidere
quaisquer desses aspectos se arrisca a oferecer uma visão demasiado restritiva
da realidade política.
NOTAS
1. Essa proposição não é diretamente dedutível do MSI, mas pode ser derivada da
hipótese contida no modelo de que a agenda legislativa é dominada pelo
Executivo, o que significa que haverá menos tempo para o exame dos projetos de
lei dos congressistas.
2. Agradecemos a Antônio Octávio Cintra por nos ter alertado sobre essas
limitações de nossa classificação.
3. Agradecemos a Fernando Limongi por nos ter chamado a atenção para este
ponto.
4. Não estamos dizendo que o Executivo inglês deixou de tratar dos problemas
sociais. A história da Inglaterra no século XX mostra que os gabinetes
chefiados por líderes liberais (Herbert H. Asquith, 1908-1951 e David Lloyd
George, 1916-1922), assim como os trabalhistas (Ramsay MacDonald, 1929-1935 e
Clement Attlee, 1945-1951), foram responsáveis pela parcela mais importante da
legislação social inglesa.
5. Os dados sobre filiação à Arena/PDS na legislatura de 1995-1998 foram
obtidos em Brasil. Câmara dos Deputados (1995).
6. Quando usamos o número de projetos paroquiais-benéficos, em vez de uma
variável binária, como indicador operacional da variável dependente, os
resultados são iguais do ponto de vista da significância estatística e do sinal
das variáveis independentes. Como o número de projetos paroquiais-benéficos
somente pode assumir valores inteiros não-negativos, o modelo binomial negativo
é o método apropriado de análise econométrica, conforme recomenda King (1998).
Esse modelo produz os seguintes resultados substantivos: um deputado com uma
concentração geográfica máxima de votos tinha uma probabilidade de 18,0% de
iniciar pelo menos um projeto paroquial-benéfico em comparação com a
probabilidade de 5,4% de um deputado com dispersão máxima de votos ' uma
diferença ligeiramente menor que a gerada pelo modelo logit.
7. Os partidos representados no Ministério em 1995 eram o PSDB, PFL, PMDB e o
PTB (Amorim Neto, 2002:56).
8. Novamente, quando usamos o número de projetos de lei de alcance nacional
como variável dependente e adotamos o modelo binomial negativo como nosso
modelo econométrico, os resultados qualitativos são os mesmos gerados pela
análise logit. No entanto, as diferenças entre as probabilidades são muito
maiores no caso da dominância e um pouco menores no caso da participação no
governo. Fixando na média a participação na coalizão parlamentar do presidente,
descobrimos que um deputado com dominância máxima tem uma probabilidade de
35,5% de propor pelo menos um projeto de alcance nacional, enquanto um deputado
com dominância mínima possui uma chance de 92,6% de encaminhar pelo menos um
projeto de lei de nível nacional, uma diferença de 57,1%! Fixando a dominância
em sua média, descobrimos que um deputado que apóia o governo tem uma
probabilidade de 75,9% de propor pelo menos um projeto de nível nacional contra
a probabilidade de 87,1% de um deputado da oposição tomar igual iniciativa.
9. Agradecemos a Nelson Carvalho, assessor parlamentar do Congresso, por nos
ter alertado para essa convenção.
10. Note-se, porém, que o número de deputados eleitos em 1982, 1986, 1990 e
1994, 2.292, é superior ao da amostra, 2.024. Infelizmente, não conseguimos
obter informações completas sobre todos os deputados.
11. Os dados sobre a filiação à Arena/PDS no período 1985-1994 nos foram
fornecidos por Timothy Power (2000). Para a legislatura de 1995-1998, os dados
provêm de Brasil. Câmara dos Deputados (1995).
12. O peso eleitoral também foi operacionalizado como o número de votos
recebidos por um deputado dividido pela cota eleitoral do distrito do deputado.
Essa medida também não se revelou significante.
13. Agradecemos a John Carey por nos ter chamado a atenção para essa
possibilidade.