A evolução recente do espaço financeiro no Brasil e alguns reflexos na cena
política
O primeiro ano do governo Lula surpreendeu a muitos pela rígida ortodoxia
aplicada na direção da economia. Agradando aos "mercados", a conduta
rapidamente desfez a bomba da profecia (auto-realizante) da "argentinização" do
Brasil ou da "De-La-Rualização" de Lula. Incomodando os adeptos de Fernando
Henrique Cardoso, foi chamada de "plágio mal feito" ou ironizada pelos séqüitos
do grupo que esteve no poder na quadra passada. Por outro lado, a política
econômica foi vista de maneira muito enviesada por diversos membros notórios do
grupo que, ao menos para o público, estava mais próximo do então candidato
Lula. Além do desconforto por ela mesma, ficou também fortemente sugerido que o
caminho da ortodoxia financeira impedia qualquer política social ou setorial
consistente. O espanto não foi evidentemente individual. Ele ecoava a apreensão
de setores das classes médias que esperavam do governo petista uma conduta que
aliviasse a enorme pressão que os grupos prejudicados pela expansão do espaço
financeiro na sociedade brasileira têm sofrido na última década.
Procurarei mostrar que a "surpresa" pode ser entendida sociologicamente como
efeito de uma homologia de posições. Ela vinha sendo engendrada em períodos
anteriores na prática cotidiana de diversos grupos de atores ligados ao Partido
dos Trabalhadores e fazia-se lado a lado com outros desenvolvimentos na esfera
das elites, em especial as econômicas. Assim, o fenômeno corresponde a uma
evolução da sociedade brasileira, em especial a uma recomposição e
diferenciação de suas elites, que é resultado da interação, não integralmente
percebida como tal nas suas conseqüências em termos de integração de
perspectivas, de ordens de atores situados em subespaços aparentemente
antagônicos do tabuleiro político e social.
Para afirmar a análise, trarei evidências das atividades legislativa e
financeira, do espaço da previdência privada e do relacionamento dos atores
políticos com os econômicos. As evidências surgem: (1) do comportamento dos
agentes e do resultado de suas interações em processos que dizem respeito à
tramitação de aspectos da legislação financeira; (2) da análise da face pública
de alguns empreendimentos econômicos ligados direta ou indiretamente à onda de
privatizações deflagrada por Fernando Henrique Cardoso; e (3) de um contraponto
geral, vindo dos resultados de pesquisas recentes no universo em contração das
organizações brasileiras.
No espaço intelectual, o trabalho pretende ser um exercício de sociologia
econômica, em especial, do ramo dessa especialidade que se ocupa das questões
financeiras. Os últimos anos assistiram ao desenvolvimento de um novo subespaço
nas ciências sociais, chamado de "estudos sociais das finanças". Em torno dele
estão se congregando dois grupos de autores: o primeiro diz respeito a nomes
conhecidos da sociologia econômica e o segundo, de cientistas mais ligados aos
estudos sociais sobre a ciência. As duas ordens de analistas registram a
centralidade das articulações financeiras na definição dos contornos da
sociedade contemporânea. Em seguida, cada uma delas tenta pôr para funcionar as
idéias centrais da respectiva modalidade de origem para penetrar
cientificamente naquele espaço. Grosso modo, a corrente analítica originária da
sociologia econômica reivindica o prosseguimento do caminho iniciado na obra
seminal de Polanyi (2001 [1944]). Este autor inaugura um veio analítico que
desenvolve a idéia da construção social dos mercados como ponto de entrada e
como a afirmação da relevância de um ponto de vista sociológico para os
fenômenos normalmente estudados exclusivamente pelos economistas (Garcia, 1986;
Callon, 1998).
Por sua vez, o pessoal oriundo dos estudos sociais da ciência procura utilizar
o ferramental de estudos de rede, desenvolvido originalmente para dar conta da
construção da veracidade e aceitação de enunciados científicos1. Aí, mais do
que evidenciar as suas condições sociais de existência, como procura fazer a
primeira corrente, a pretensão é de "abrir a caixa-preta" do mundo das finanças
para explicar seu funcionamento. Tentando utilizar as duas vertentes, o
objetivo teórico deste artigo é mostrar a pertinência do enfoque da "sociologia
das finanças" para a compreensão do Brasil contemporâneo.
Os primeiros desenvolvimentos isolados de cada um dos grupos internacionais que
se ocupam do tema estão convergindo institucionalmente para espaços de diálogo
virtuais2 e analiticamente para a recuperação parcial do antigo programa da
FinanzSociologie (Guex, 2003), do início do século XX, de que Schumpeter (1991)
foi talvez o representante mais conhecido no presente. Trata-se, aí, justamente
de mostrar que os desenvolvimentos ocorridos ou em curso na esfera financeira
são uma espécie de construção do esqueleto ou da infra-estrutura em torno da
qual a sociedade, em especial as suas elites, está encontrando ou encontrou um
novo molde para se conformar. Nas palavras de Schumpeter:
"As finanças são um dos melhores pontos de entrada para estudar os
mecanismos sociais, em particular, ainda que não exclusivamente, os
mecanismos políticos. A fecundidade desse ponto de vista se revela
justamente nos momentos, ou melhor, nas épocas de mudanças, quando o
presente começa a morrer e a se transformar em alguma coisa de novo"
(idem:101).
Assim, o estudo do espaço das finanças pode conduzir-nos a uma aproximação do
que Bourdieu (1989) chamou de "campo do poder": o lócus social no qual as
diversas elites ou, na linguagem do autor, os pólos dominantes dos diversos
campos, mais ou menos autônomos, se encontram, gerando formas mais ou menos
regradas de convívio por meio do estabelecimento de critérios de equivalência
para os valores dos "capitais" de cada grupo3.
A sociologia das finanças, nos seus dois ramos, acaba dando uma pista forte
para as formas por meio das quais o consenso sobre as taxas de câmbio se
constrói, corroborando a idéia de que em torno do léxico das finanças se
construiu uma espécie de língua franca das elites contemporâneas que, entre
outros efeitos, acaba redefinindo a ordem de prioridades das agendas societais
modernas (Boyer, 2002). No cuore do gênero de análise aparece a sua preocupação
mais central, que é justamente a de explicitar o caráter mimético dos processos
cognitivos que informam as decisões dos agentes financeiros. Este veio aparece
como uma contraposição direta ao pressuposto maximizante, que é central na
explicação econômica do comportamento dos indivíduos nos mercados. Dessa
maneira, o mundo das finanças recebe um tratamento que pode ser considerado uma
evolução do programa da construção social da realidade da sociologia do
conhecimento dos anos 60 (Berger e Luckmann, 1966). A abordagem explica como,
dados os novos suportes informáticos advindos do estabelecimento e uso da rede
mundial de computadores, os corretores de câmbio acabam produzindo um novo
nível de realidade (virtual?) no seio da qual as notações (ratings)
estabelecidas pelas agências de risco acabam se tornando um ponto de referência
comum obrigatório e, ainda que amplamente insatisfatórios como representação
acurada da realidade econômica dos países ou empresas que eles classificam,
terminam por direcionar os comportamentos dos membros da comunidade financeira
internacional, com os efeitos já sabidos sobre o destino de milhões de
indivíduos em todo o mundo (Knorr Cetina e Bruegger, 2002a; King e Sinclair,
2003). E, mais do que isso, a abordagem contribui para elucidar os mecanismos
por meio dos quais as crises desencadeadas pela hipertrofia do espaço das
finanças acabam sendo "patrocinadas" pela sociedade, a qual, temendo os seus
"efeitos sistêmicos", generosamente banca os excessos da especulação,
absorvendo o seu custo, nas freqüentes operações de salvamento das manobras
financeiras malsucedidas, como foi o caso do fundo Long-Term Capital Management
' LTCM4 no final da década passada (Mackenzie, 2003).
O grupo "construção social do mercado", o outro ramo de origem da
especialidade, trata o mimetismo por um viés que normalmente é catalogado como
um neo-institucionalismo sociológico (Powell e Dimaggio, 1991). Neste caso,
fala-se mais de isomorfismo e buscam-se os constrangimentos sociais que induzem
as organizações ou indivíduos ao comportamento imitativo. A abordagem é mais
presente, e mesmo tradicional, na análise das organizações. Ela passou a se
interessar pelos aspectos financeiros da realidade econômica, provavelmente
impressionada pela centralidade que o ponto de vista financeiro ganhou
recentemente na definição dos destinos das empresas (Dimaggio, 2001; Fligstein,
2001). No espaço que nos interessa agora, esse gênero de análise irá, por
exemplo, mostrar que os gerentes de fundos de investimentos, ligados ou não a
fundos de pensão, estão mais preocupados em evitar erros pelos quais eles
seriam responsabilizados em termos judiciais, organizacionais ou, no plano da
reputação, como depositários infiéis, do que em "acertar na mosca", trazendo
rendimento ótimo para as aplicações que realizam. Assim, é preferível seguir o
comportamento dos demais agentes do mercado, mesmo quando o agente em questão
desconfia que esse não é o melhor caminho, do que correr o risco de ser
responsabilizado por conduta aventureira5. De maneira geral, as duas abordagens
acabam chamando a atenção para a dificuldade de um agente individual agir na
contramão do consenso estabelecido por essa arena social que é o mercado
financeiro, principalmente em momentos de euforia como os períodos de
crescimento vertiginoso dos valores bursáteis, que, como a experiência mostra,
antecedem quedas igualmente vertiginosas (Galbraith, 1998). Dessa maneira, o
caráter sacrossanto da hipótese da racionalidade dos agentes fica bastante
comprometido (Boyer, 2002; Mackenzie, 2003).
Outro ponto que deve ser salientado é a chamada teoria do "Estado mínimo"
(Guex, 2003). A sociologia econômica, em especial o ramo da construção social
do mercado, tem seu fundamento moral na luta contra a transformação dos Estados
de Bem-Estar Social construídos no pós-guerra dos países desenvolvidos. A
economia financeira, que afiança intelectual e operacionalmente aquele
desenvolvimento, constrói uma nova idéia de como devem comportar-se as finanças
públicas, em contraposição ao fundamento keynesiano do Estado de Bem-Estar
Social. Dando conta das políticas, aparentemente sem sentido, de produção de
déficit fiscal perseguidas pelos governos republicanos dos EUA a partir de
Reagan e em especial o último Bush, surge o enunciado de que o Estado deve
estar permanentemente deficitário para, por meio da repactuação contínua de
suas dívidas com os mercados financeiros, voltar a ser controlado pelos setores
que perderam a primazia absoluta da sua condução6. Esse controle se teria
perdido com a democratização crescente e a diferenciação de interesses que
começou no pós-guerra e se ampliou a partir dos anos 60.
A doutrina professada pela economia financeira predica que as riquezas da
sociedade se tornam mais produtivas se estiverem nas mãos de particulares, e
não do Estado ou das empresas. Afinal, só os indivíduos diretamente
interessados na frutificação dos seus capitais são sistemáticos no objetivo de
maximizar o lucro de suas aplicações. As grandes empresas sofrem do problema do
gigantismo ' seus gerentes, que controlam os processos decisórios internos por
causa da assimetria de informações, teriam mais interesse em fazer as
organizações crescerem para aumentar o seu poder pessoal do que em aplicar
diligentemente o capital que lhes foi confiado pelos acionistas7. Da mesma
forma, os Estados seriam presas inevitáveis de seus burocratas, que,
analogamente, também prefeririam o crescimento dos aparelhos e,
conseqüentemente, do seu poder, à eficiência no gasto público. O
desenvolvimento da sociologia das finanças entraria na guerra cultural
contemporânea procurando desvendar o fundamento ideológico das considerações
acima. Ela abriria a caixa-preta das finanças, mostrando os interesses bem
delimitados e parciais que estas alimentam, apesar da aparência (robusta) de
representarem o interesse geral da nação8.
O Espaço Empírico
No caso brasileiro, acompanhei em primeiro lugar a disputa pela definição da
configuração precisa dos fundos de pensão e, em seguida, a análise do poder
locutório dos diversos grupos de atores que disputam e ao mesmo tempo
contribuem para a institucionalização da governança corporativa.
Acessoriamente, procurei referências sobre a tramitação legislativa de assuntos
financeiros, como a possível limitação da taxa de juros e a lei de falências.
Os dados colhidos desses objetos possibilitam uma visão ' evidentemente
parcial, como todas ' do campo do poder: esse espaço, ao mesmo tempo econômico,
social e cultural, em que se definem atualmente os diversos caminhos pelos
quais irá passar a evolução da sociedade brasileira nos próximos anos.
Fundos de pensão são uma realidade interna importante nos países anglo-saxões
desde os anos 40, pelo menos. Nos países mais populosos da Europa continental,
eles se tornaram um tema relevante nos anos 90, em parte pelo comportamento dos
fundos anglo-saxões que passaram a ser investidores importantes nos mercados
financeiros europeus, em parte pelas diversas tentativas de substituir o
tradicional sistema de aposentadoria por repartição pelo sistema de
aposentadoria por capitalização. Segundo a sabedoria convencional, este último
é mais moderno e adequado para fazer frente ao "problema" do envelhecimento das
populações9. Não é, assim, por acaso que a análise interna de seu funcionamento
e de suas relações com os outros atores empresariais é mais desenvolvida na
sociologia dos países anglo-saxões (Useem, 1993; 1996), enquanto o exame de
suas possíveis conseqüências indesejáveis para o equilíbrio social é mais
desenvolvido pelos cientistas sociais da Europa continental (Nikonoff, 1999;
Lordon, 2000a; Sauviat, 2001).
A partir do início dos anos 90, assistimos a uma disputa acirrada pela direção
dos fundos de pensão brasileiros (Grün, 2003c). Seus contendores eram: (1) os
administradores tradicionais dessas entidades, que ali chegaram, em geral,
vindos de remanejamentos nas altas posições nas empresas estatais que
patrocinavam os fundos; (2) vários atores oriundos, na sua maioria, do braço
sindical de classe média da Central Única dos Trabalhadores ' CUT e da Força
Sindical ' FS (bancários, eletricitários, telefônicos, petroleiros, e também
metalúrgicos); e (3) vários indivíduos provenientes dos mercados financeiros,
em geral próximos aos novos bancos de investimentos que proliferaram na década
passada.
Os primeiros atores "aterrissaram" nos fundos de pensão, em geral, como uma
espécie de "prêmio de consolação" pela derrota em disputas internas na direção
das grandes empresas estatais, que assim, no início, se transformaram em terras
de exílio para aqueles profissionais. O aumento da importância dos fundos na
economia brasileira e o intenso trabalho de construção identitária que esses
agentes empreenderam a partir dos anos 80 acabaram criando uma nova identidade
coletiva ' na década de 90, eles passam a se chamar de membros do "sistema" (da
previdência privada).
Os atores vindos da galáxia sindical são atraídos pelo espaço representado
pelos fundos de pensão justamente no período em que o surto grevista iniciado
com a redemocratização política se arrefece (Noronha et alii, no prelo). Os
fundos têm, estatutariamente, um conselho no qual devem estar presentes
representantes dos cotistas da ativa e dos já pensionistas. Se, no início,
essas posições eram pouco cobiçadas, rapidamente percebeu-se a sua importância,
e as disputas pelos assentos tornaram-se cada vez mais intensas. Nesse
contexto, a técnica eleitoral e a representatividade genérica dos quadros
oriundos ou ungidos pelo movimento sindical passaram a mostrar a sua força
diante das possibilidades de candidatos "avulsos" ou inspirados pelos membros
do "sistema", que haviam sido os primeiros a ocupar aquelas posições.
Os atores ligados ao mercado financeiro aproximaram-se dos fundos de pensão a
partir de duas motivações. Uma mais previsível e estrutural foi a tentativa de
fazer grandes negócios ou obter comissões sobre o movimento das enormes massas
de investimentos que os fundos realizam e refazem constantemente. Colocou-se aí
a questão da terceirização das carteiras de investimentos, fenômeno em torno do
qual se estabeleceu um contencioso: seriam os fundos de pensão capazes de gerir
seus próprios ativos ou eles necessitariam da ajuda de "verdadeiros
profissionais das finanças"? Muito além de uma simples questão prática a ser
aferida aritmeticamente, estávamos diante de uma disputa identitária. Aceitando
essa prestação de serviços como "natural", os fundos não só perdiam parte de
sua independência, como também renunciavam à imagem de que seus gestores eram
financistas tão capazes como aqueles que operavam no mercado tradicional10. A
outra motivação, mais conjuntural e mais premente, estava ligada à necessidade
manifesta do governo Fernando Henrique de contar com os capitais dos fundos de
pensão para promover o processo de privatização das grandes empresas estatais.
Como mostrou a seqüência de episódios da privatização da malha norte da
Telebrás, depois batizada de Telemar, os fundos foram tangidos a aceitar
parcerias com bancos de investimentos que dificilmente realizariam de maneira
espontânea (Duailibi, 2001:A13). O constrangimento para a adoção das duas
linhas de conduta poderia se dar indiretamente, compelindo os membros do
"sistema" a agir de acordo com o demandado ou, na forma mais extrema,
substituindo-os por indivíduos mais próximos aos desígnios da política
econômica daquele momento. Os diversos episódios em torno da privatização da
malha norte da Telebrás, que tiveram o ex-bancário, tornado operador financeiro
e político, Ricardo Sergio como protagonista, tornaram essa situação
praticamente pública (Santos, 2001:A9).
De maneira geral, atravessávamos uma conjuntura na qual dois grupos de atores,
cada um poderoso à sua maneira, desafiavam o "sistema": os financistas
brandindo a espada do verdadeiro profissionalismo; os sindicalistas, a bandeira
da verdadeira representatividade. No período da Presidência de Fernando
Henrique Cardoso, não por acaso, preponderou a primeira impugnação, acrescida
de uma deslegitimação constante dos fundos, sob a alegação de que eles eram
"corporativos". Assim, o governo federal e alguns estaduais, coadjuvados por
setores da imprensa de negócios, tentaram manter os administradores dos fundos
de pensão sob vigilância cerrada e pressão permanente. O principal instrumento
direto foi a Secretaria de Previdência Complementar ' SPC, do Ministério da
Previdência, que dava ênfase aos resultados das aplicações financeiras
realizadas pelos fundos por via do estabelecimento de benchmarkings de
resultados, mas que, proverbialmente, permanecia muda sobre a correição da
forma de integração dos fundos nos grupos que participavam dos leilões de
privatização. Se houve alguma ligação entre essas duas pontas da ação
governamental ' a insistência nos benchmarkings e no caráter "corporativo" dos
fundos sendo usada para constranger os membros do sistema a aceitar as
cláusulas leoninas que lhes foram impostas pelos bancos de investimento na
conformação das sociedades de propósito único que se constituíram naquele
momento ', isso a pesquisa histórica detalhada do período nos mostrará no
futuro.
Na nova quadra inaugurada com a vitória de Lula em 2002, os sindicalistas que
já atuavam na área da previdência privada serão ungidos em diretores executivos
dos grandes fundos, sendo convidados a utilizar o patrimônio das entidades nas
grandes empreitadas que o novo governo quer fazer deslanchar, como as parcerias
público-privado (PPPs) em obras de infra-estrutura (Martinez, 2004:4-5)11. É
bom deixar claro que essa ligação mais direta com as estratégias do novo
governo também não é realizada en douceur, já que os atuais dirigentes dos
fundos não deixam de manifestar suas reservas sobre o assunto e, além disso, os
oponentes dos petistas na representação dos cotistas dos fundos não deixam de
apontar esse possível atrelamento de suas poupanças a investimentos talvez não
rentáveis ou seguros (Futema, 2004).
Um dos efeitos mais diretos da abertura dessa janela foi que esses agentes
oriundos da vida sindical irão interessar-se pelas questões de gestão
financeira e econômica de maneira genérica, criando-se aí um espaço de
interlocução com as elites econômicas tradicionais. Nesse sentido, acompanhamos
em especial suas posturas referentes aos problemas societários dos
empreendimentos nos quais os fundos de pensão devem investir. O momento
coincidiu com o da tramitação da nova Lei das Sociedades Anônimas, uma peça
fundamental na tentativa de transformação do capitalismo brasileiro nos moldes
requeridos pela modernização à norte-americana, preconizada pela academia e
pelos órgãos de fomento econômico internacionais. Colocava-se aí o problema da
instauração da "boa" governança corporativa, um modelo virtuoso de relação
entre os mercados de capitais e as empresas, caracterizado pela transparência
contábil e pelo respeito absoluto aos direitos estendidos dos seus acionistas.
Esse tema, originalmente da economia financeira acadêmica e peça central nas
tentativas de exportação do modelo anglo-saxão de capitalismo12, foi lançado
pelos financistas e políticos próximos a Fernando Henrique durante seu governo
sem que esses arautos tenham conseguido dobrar a resistência do "capitalismo
tradicional", ou sem que esses atores tenham considerado que a questão fosse
suficientemente importante para valer a pena confrontar seus oponentes no
espaço das elites econômicas estabelecidas. Mas na voz dos sindicalistas, em
especial dos ligados à CUT, sobretudo no período que precedeu as eleições
presidenciais de 2002, preocupados em mostrar a adesão às práticas econômicas
estabelecidas no mundo financeiro, o tema irá ganhar o estatuto de manifestação
do interesse geral da nação. Nesse espaço, a governança corporativa foi
considerada um instrumento fundamental para o desenvolvimento econômico
moderno, pois criaria um clima propício ao investimento produtivo e seguro das
poupanças dos trabalhadores brasileiros, principalmente aquelas coletivizadas
pelos fundos de pensão, nas empresas e demais empreendimentos do país, que
assim passariam a dispor de recursos para realizar seus projetos de expansão13.
Talvez o ponto mais interessante dessa configuração que está fazendo nascer a
"boa governança corporativa tropical" seja a visibilidade que ela fornece sobre
os diversos segmentos do espaço financeiro nacional e suas articulações com o
mundo da política. Para nosso "teste de paternidade", a janela que foi aberta
pela campanha eleitoral para a Presidência da República em 2002 é uma excelente
oportunidade a ser utilizada. Desse ponto de vista privilegiado, pudemos ver a
coexistência nem tão pacífica assim de vários "subespaços" financeiros, mais ou
menos próximos ao entorno de Fernando Henrique Cardoso. Apesar de algumas
tentativas erráticas desse governo em promover o mercado financeiro nacional ou
regional, por intermédio da fixação da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro como
local para a realização dos leilões de privatização ou o reforço da Comissão de
Valores Mobiliários ' CVM, os grandes negócios envolvendo os arranjos e
rearranjos daquele processo se faziam cada vez mais nas grandes bolsas mundiais
(Nova Iorque, Londres, Frankfurt, Tóquio), privando os intermediários bursáteis
locais de seu fundo de comércio, exceto justamente dos fundos de pensão,
legalmente obrigados a aplicar seus recursos apenas no Brasil. O fenômeno do
esvaziamento das bolsas de valores dos países periféricos amplia-se, no caso
brasileiro, com o fechamento de capital de inúmeras empresas, tangidas pelos
altos custos administrativos da manutenção do capital aberto e pelo pouco
retorno em termos de obtenção de recursos novos que os mercados de capitais
realmente propiciavam (Ciarelli e Farid, 2002).
O GERAL E O PARTICULAR NA DIFUSÃO DA GOVERNANÇA CORPORATIVA NO BRASIL
A "boa" governança corporativa é a solução internacionalmente reconhecida como
o padrão do receituário neoliberal para resolver o problema da capitalização
das empresas, fazer deslanchar não só os mercados financeiros, mas também as
economias locais como um todo14. Os seus preceitos principais são assegurar a
possibilidade de aquisição do controle das Sociedades Anônimas ' SAs por meio
dos mercados financeiros, a instauração da transparência contábil, o respeito
absoluto dos acionistas minoritários e o fim das ações preferenciais (sem
direito a voto). Ela tornaria atraentes os investimentos em papéis das
empresas, e assim todos lucrariam: o país, que veria sua economia deslanchar;
as empresas, porque ganhariam acesso a fontes de financiamento de longo prazo e
baixo custo; os investidores, que teriam maiores garantias e liquidez para suas
colocações e conseqüentemente maior rentabilidade; e, por fim, os
administradores profissionais das empresas, além dos seus empregados em geral,
que teriam seus rendimentos e interesse pelo trabalho elevados por causa da
adoção de esquemas de remuneração variável, como as stock-options que costumam
acompanhar a instauração da "boa" governança. Mas, se todos se beneficiam com
ela, por que então a "boa" governança não se instaura? Na verdade, a governança
pretendida torna a vida dos dirigentes das empresas realmente existentes mais
trabalhosa e menos livre. Em primeiro lugar, obrigando-os a desfazer um tipo de
arranjo societário já estabilizado. Ele acomoda bem as formas de transmissão de
herança dos empresários: as ações com direito a voto de suas companhias eram
cedidas aos grupos de herdeiros ungidos para dar continuidade aos
empreendimentos, enquanto os preteridos deveriam contentar-se com títulos que
lhes davam direito a rendimentos, mas sem capacidade de controle sobre os
negócios ' as ações preferenciais (sem direito a voto nas assembléias de
acionistas), que muitos associam às populares "mesadas". Assim, fica claro
explicar porque, enquanto aqueles a favor da "boa" governança agiam
publicamente, com um fervor quase messiânico, desenhando a possível inovação
como o próprio caminho da virtude para o capitalismo e a sociedade brasileiros
(CVM, 2002:13), aqueles que se opunham o faziam em surdina, sem nenhum alarde,
e concentrando seus esforços de convencimento junto àqueles que "realmente
interessavam", na ante-sala do poder central (Mattos, 2001).
No espaço das finanças, doutrinariamente, todos são a favor da governança
corporativa, que controlaria o comportamento oportunista dos dirigentes das
empresas organizadas como SAs, que é, como vimos, um pressuposto teórico e
ideológico do consenso atual. Afinal, as idéias do mecanismo legal da
governança chegam até nós totalmente caucionadas pelos arautos da
internacionalização financeira15. Contudo, as diferenças de ênfase talvez sejam
mais importantes do que as semelhanças do discurso. Para os atores mais
internacionalizados do mercado, normalmente portadores de diplomas e
backgrounds construídos na interface entre o mundo acadêmico internacional e a
prática profissional, paradoxalmente a questão é menor16. Capazes de operar nas
grandes praças financeiras, eles podem prescindir, ao menos a curto prazo, do
desenvolvimento horizontal das oportunidades de intermediação que a instauração
da governança corporativa propiciaria. Já para os atores tradicionais, que
normalmente são formados profissionalmente na prática direta do mercado e estão
umbilicalmente ligados aos instrumentos financeiros internos e mais conhecidos
do país, a questão é muito maior. Afinal, o crescimento dos primeiros pode dar-
se a expensas dos segundos, tanto na intermediação tradicional, agora mais
avisada, quanto na proposição de alternativas de investimentos mais
sofisticadas, seja no Brasil ou nas grandes praças mundiais.
Colocamo-nos, desse modo, diante da questão da diferenciação do mundo das
finanças. Até o processo de conglomeração bancária patrocinado pelo regime
militar, uma infinidade de pequenos intermediários avulsos convivia com os
bancos estabelecidos. Progressivamente, eles foram perdendo espaço e os bancos
comerciais transformaram-se em "supermercados financeiros", passando a
administrar mais diretamente a poupança nacional. No período anterior, tínhamos
a figura do corretor financeiro independente ou das pequenas companhias
distribuidoras de valores mobiliários, que indicavam aos seus clientes,
normalmente famílias de classe média, boas aplicações em títulos de renda fixa,
como as letras de câmbio oriundas ou lastreadas em operações de crédito do
comércio varejista, ou de renda variável, como as ações das empresas negociadas
na Bolsa ou em lançamento, ao lado das aplicações em moeda estrangeira, estas
em geral à margem da contabilidade oficial. Uma característica bem marcada da
época era o tipo de relacionamento entre corretor e clientela, que se dava na
base da confiança mútua, sem grande respaldo oficial, tendo como ponto-chave o
fato de o corretor ser considerado honesto. Nesse sentido, na São Paulo "pré-
monopolista", na qual os relacionamentos ainda tinham forte componente étnico,
as reputações tinham muito a ver com o entrelaçamento comunitário, sendo
freqüente encontrarmos os corretores em posições de destaque nas entidades dos
seus grupos de origem ou religião, que davam lastro às suas reputações. O
entendimento básico era de que as aplicações financeiras eram consumo diferido
em uma etapa mais pródiga da vida financeira/profissional das famílias que
deveriam ser usadas em épocas mais difíceis ou em ocasiões especiais esperadas,
como casamentos, grandes viagens, aquisições de imóveis etc. A partir dos anos
70, os bancos17 foram progressivamente estreitando o espaço para esse tipo de
negócio, concentrando neles mesmos a gestão das poupanças. Esse processo
diminuiu a clientela individual dos corretores independentes, que continuaram,
entretanto, a agir em vários tipos de intermediação, muitas vezes em nome dos
próprios bancos.
Os últimos anos assistiram à impugnação crescente do papel dos bancos
comerciais na medida em que eles foram responsabilizados pela permanência das
altíssimas taxas de juros praticadas no país. Fala-se, portanto, da necessidade
de "desintermediação" das poupanças, já que os bancos obteriam margens de
lucros excessivas pelo seu trabalho de coletar e reaplicar os recursos
financeiros. Abriu-se então a possibilidade de instalação de muitos agentes
avulsos na organização dessa corretagem, bem como se ensejou uma propensão à
criação de novos instrumentos de liquidez, parcialmente fora da ação
açambarcadora dos bancos, como os fundos de recebíveis que começam a
disseminar-se na paisagem financeira18. Esses títulos, oriundos de vendas a
prazo realizadas pelo varejo, seriam descontados a taxas elevadas se a empresa
varejista se dirigisse diretamente ao banco para descontá-los. Os fundos de
recebíveis permitem que os títulos sejam "securitizados" e repassados em lote
para particulares ou empresas, devendo aceitar um risco que se torna uma
espécie de média dos riscos desse gênero de operação. Em contrapartida, farão
jus a um rendimento maior do que conseguiriam em uma aplicação de mesmo
montante na rede bancária.
A "securitização", de alguma forma a extensão do princípio que criou as
sociedades por ações para operações mais diversificadas, é o agrupamento dos
títulos por algum critério de pulverização de risco, seguido da sua divisão em
blocos homogêneos para serem vendidos aos tomadores interessados. É a base
mesma do desenvolvimento das novas formas de crédito, dos novos produtos
financeiros. A lógica é: (i) antecipar o resultado das operações para o
vendedor e assim permitir que ele utilize o capital empregado em outras
empreitadas; (ii) pulverizar o risco de cada operação de crédito individual,
substituindo o mais incerto risco da inadimplência de um devedor particular por
uma alíquota do risco, menos incerto, do conjunto dos devedores da empresa em
questão; (iii) pulverizar o risco de operações muito grandes ou de resultado
incerto, permitindo a sua realização, já que é mais razoável um investidor
arcar com um risco elevado ' e grande expectativa de ganho se a operação for
completada ' quando o valor dessa operação for pequeno em relação ao total de
suas aplicações.
Por sua vez, a engenhosidade do financista consiste em ganhar uma comissão
criando um papel (security) que seja aceito pelas "duas pontas", cuja taxa de
desconto seja baixa para a empresa que originou o crédito ' o nosso varejista '
e a remuneração alta para quem irá comprar a security, cujo interesse é receber
um título com risco baixo em relação à expectativa de lucro, tudo isso tendo
como parâmetro as taxas cobradas e oferecidas pela rede bancária. Assim,
descontados os aspectos referentes à percepção do risco das operações, quanto
maiores forem as taxas bancárias, maior é o espaço para a criação de novos
instrumentos extrabancários de antecipação de resultados e de criação de
liquidez em geral (a não ser que o governo coíba essa atividade financeira
realizada à margem da rede bancária).
A outra grande ponta do desenvolvimento dos produtos financeiros é aquela que
lida com a demanda das empresas por proteção contra o risco de alguma operação,
em especial de câmbio. Entram em campo os chamados "derivativos" e "opções",
títulos exarados da necessidade de as empresas se protegerem das flutuações,
normalmente de câmbio, mas também de qualquer outro preço de mercadoria ou
serviço que possa afetá-las (p. ex., o preço da soja para uma empresa que
fabrica óleo de cozinha ou o preço do transporte para o escoamento da safra do
mesmo produto). Vistos durante muito tempo como fonte de especulações
desenfreadas19, que prejudicavam os produtores em benefício dos especuladores,
esses tipos de papel tiveram sua circulação cerceada na maior parte dos países
durante muito tempo, com legislações que atendiam ao clamor popular que costuma
ser produzido em épocas de crise econômica (Mackenzie, 2002). A
desregulamentação dos mercados financeiros internacionais que começou nos anos
90 deu sinal verde para uma nova onda de desenvolvimento desses papéis. Essa
tendência tem reflexos importantes no espaço financeiro, já que a sua criação e
comércio também exigem um nível de conhecimento de matemática financeira não
corriqueiro. Daí se estabelece uma verdadeira barreira cultural de entrada para
os candidatos às funções de corretagem, bem como uma espécie de expulsória para
aqueles que não conseguirem adaptar-se rapidamente à nova tecnicalidade do
ofício (Bernstein, 1992).
O período mais recente assistiu a um novo desenvolvimento da intermediação
individual, que aqui deve ser entendida como oposta à intermediação bancária,
tida como excessivamente onerosa. Em parte impulsionada pela desregulamentação
internacional dos mercados financeiros que visa justamente diminuir os custos
da intermediação, em parte por uma importante redefinição do métier, estamos
assistindo ao desabrochar de novas figuras, em algum grau descendentes dos
corretores da fase pré-monopolista, mas em outro pertencentes a uma espécie
muito diferente. De novo os atores são independentes dos grandes conglomerados,
de novo eles podem atender a particulares, mas o principal atributo que eles
exibem não é mais a confiança, mas um novo tipo de competência técnica que
surge na esteira da evolução da economia financeira20. Agora, perseguindo o
objetivo de maximizar o rendimento possível para um nível de risco
predeterminado (ou vice-versa), o agente financeiro maneja um sofisticado
conjunto de técnicas de avaliação de retorno e risco para as aplicações,
constituindo os chamados "portfolios otimizados", que se tornam tão mais imunes
a problemas quanto mais diversificados forem os tipos de risco associados a
cada um dos títulos que compõem a carteira21, daí uma das necessidades de os
novos mercados terem à disposição alternativas mais diferenciadas de títulos
mobiliários, como os recebíveis (Bernstein, 1992; Fligstein e Freeland, 1995;
Mackenzie, 2003).
O CAMPO DAS FINANÇAS: CONFLITOS E CONVERGÊNCIAS
Na sua etnografia da City londrina, Paul Thompson (1997) sugere-nos que as
transformações observadas na paisagem da intermediação econômica a partir dos
anos 80 apresentam um forte componente de substituição de gerações. Também ali,
não mais se encontra o corretor benevolente, que extrai a sua legitimidade
diretamente do reconhecimento da honestidade, atributo que é quase sinônimo de
origem social legítima (gentlemanly) e meia-idade, mas jovens agressivos,
propondo negócios mais arriscados para uma clientela que, teoricamente, sabe
dos riscos que está correndo e os aceita em nome de uma maior rentabilidade. E,
aos atributos geracionais diretamente ligados ao conteúdo do trabalho, podemos,
tanto no caso brasileiro quanto no inglês, acrescentar outros marcadores
simbólicos que denotam a tentativa de registrar claramente a existência de uma
descontinuidade entre as gerações.
Assim, no Brasil, reportagens falam, ao lado da ambição econômica e da
tecnicalidade do grupo, da aversão à ingestão de bebidas alcoólicas e de um
modo de vida mais "saudável e natural" por parte dos membros mais visíveis da
nova geração, além da entronização do seu ídolo, Armínio Fraga, ex-presidente
do Banco Central e ex-gestor de fundos de George Soros, agora proprietário da
empresa brasileira de intermediação mais requisitada (Dávila, 2004; D'Ambrosio
e Vieira, 2004).
Tudo indica que estamos diante da emergência de um novo grupo das elites tanto
econômicas quanto culturais, que poderíamos batizar de "patriciado
meritocrático fernandista", do qual Fraga é a figura exemplar (Dias, 2000). O
reconhecimento da nova nobreza, que nos indica inclusive as novas regras do bem
viver, pode ser constatado de diversas formas, como a publicação (e, portanto,
a importância) de suas opiniões a respeito de assuntos distantes da sua
competência profissional reconhecida, como os esportes e as práticas culturais
e gastronômicas que devemos considerar de bom-tom. Evidentemente, ele é bem-
nascido ' patrício no sentido romano ', mas se fez por si só, em um métier
distante do praticado pelo seu pai, médico. Ele não é um arrivista
irresponsável, saído não se sabe de onde, como recentemente ficou registrada a
figura do "simples especulador" Naji Nahas. Apesar das inúmeras tentativas de
colar em Fraga o rótulo de especulador, a associação não parece ter sido bem-
sucedida. Ele provou sua competência escolarmente, no mundo internacional das
finanças e também na posição delicada de presidente do Banco Central que teve
como missão administrar a moeda no período em que o país tentava sair da crise
cambial deflagrada pelos gestores que o antecederam no BC; logo, está coberto
de méritos22. E é "fernandista" porque a última oitava legitimou o novo padrão
de intermediação, possivelmente pela sua caução internacional e sua
funcionalidade para a política de privatização das companhias estatais que
visava "enterrar o passado corporativo getulista" ' um objetivo ao mesmo tempo
econômico, cultural e moral.
A categorização positivada de nosso personagem ganha substância se a
referenciamos em um espaço social mais amplo. De um lado, contra os banqueiros
e financistas tradicionais; de outro, contra o mundo "antifinanceiro". Mais
"arejado" do que os banqueiros tradicionais, que costumam cultivar, pelo menos
em público, uma imagem conservadora e austera, ele certamente fará uso de sua
abertura para o mundo na busca de aplicações mais inteligentes para os recursos
dos investidores que o procurarem. Administrador responsável, como provou na
gestão do Banco Central, ele não pode ser chamado de aventureiro por aqueles
que nutrem desconfianças contra o mundo das finanças, ainda que essa tentativa
reapareça continuamente23. Em suma, estamos diante de uma receita de como deve
ser um bem-sucedido "homem moderno", com toda a conotação positiva que o termo
recebe na sociedade brasileira. E aqueles que opõem suas opiniões ou modos de
vida ao nosso moderno recebem inapelavelmente o rótulo de "não-modernos",
tornando sumamente custoso o confronto direto com o padrão apresentado.
Mas o que mais importa nesse conflito e sucessão geracional é que, por
intermédio da economia financeira, a nova geração redefine a idéia de interesse
geral que tradicionalmente é cultivada pelo mundo das finanças e transporta
esse novo critério para a sociedade. Antes os banqueiros queriam ser legítimos
porque se apresentavam como o elo entre os possuidores de recursos e aqueles
que poderiam fazer bom uso dos capitais na produção de riquezas, criando assim
um ciclo virtuoso de aceleração da atividade econômica, com benefícios para
toda a nação e, principalmente, sem propor uma esfera de virtude afastada do
mundo industrial. O instrumento por excelência da ação bancária era o desconto
de duplicatas ' os títulos comerciais gerados por operações de crédito ', e
quando os bancos passaram a concentrar-se na negociação de títulos
governamentais, não por acaso seus porta-vozes sempre que podiam declaravam que
aquela situação era anômala e que suas instituições, assim que pudessem,
deveriam abandonar essa atividade, que lembra os usurários medievais, e voltar
ao seu papel tradicional, e o único verdadeiramente saudável, de financiadores
da atividade empresarial (Troster, 2004).
Agora, no espírito da economia financeira, está sendo propagada uma nova idéia
sobre o fundamento da utilidade das finanças para o interesse geral. Elas são
absolutamente necessárias para a sociedade, uma vez que só por intermédio delas
somos capazes de manter uma vigilância eficiente sobre os atores econômicos,
principalmente empresas e países, obrigando-os a adotar o comportamento
racional. Essa vigilância se exerce por meio do recurso sistemático à
"arbitragem" ' a capacidade de os mercados financeiros perceberem o
comportamento anômalo de qualquer agente (uma empresa que usa mal seu
potencial, um governo que mantém sua moeda "artificialmente" valorizada ou
desvalorizada ou mantém um regime inflacionário) ' e punir esse ator
irresponsável, atacando-o (Mackenzie, 2003). Por exemplo, preparando uma oferta
hostil de compra, o take-over, sobre a empresa em questão ou um ataque à moeda
do país "malgovernado". Dessa maneira, a vigilância do mercado é vista como o
principal instrumento que a sociedade tem para se manter eficiente. E,
magicamente, os interesses financeiros privados dos operadores, que podem
receber fortunas pelos atos de arbitragem realizados nos mercados, acabam se
tornando uma virtude pública. Um corolário importante dessa visão é que
governos ou marcos institucionais que protegem as empresas contra ataques na
bolsa de valores ou qualquer outra ação financeira, ou mesmo que protegem
outros governos na esfera dos organismos multilaterais ou diretamente, longe de
estarem sendo virtuosos, na verdade, estão conspirando contra o uso eficiente
dos recursos disponíveis na sociedade e assim contra a nação como um todo, além
de, evidentemente, interferirem no fundo de comércio dos novos agentes.
Note-se que, nessa versão recente da economia financeira que tem na arbitragem
sua idéia-chave, a racionalidade não é mais um pressuposto do comportamento dos
agentes, como na versão tradicional da teoria neoclássica, mas uma performance,
produzida pela virtuosidade dos mercados. Esse desenvolvimento corrige a
fraqueza congênita da capacidade explicativa do modelo anterior, produzindo uma
simulação do comportamento dos agentes muito mais sofisticada. Primeiro, porque
a nova versão é dotada de interatividade ' a racionalidade torna-se uma
característica social, adquirida pelo aprendizado, tanto escolar quanto
prático. Segundo, pela sua analogia mais forte com alguns princípios do
convívio democrático, como o nosso voto obrigatório: da mesma forma que o
brasileiro aprenderia a votar votando, ele tornar-se-ia um investidor
capacitado operando no mercado.
Agora, os indivíduos não são simplesmente dotados de racionalidade econômica
porque essa seria uma capacidade genética do ser humano, mas chegam a ela
tangidos pela força da necessidade de corrigir os resultados dos seus
comportamentos passados. A lógica interna dos enunciados ganha muita robustez,
e, tendencialmente, o próprio conteúdo típico da profissão de economista muda
seus contornos. A busca de oportunidades para realizar arbitragem torna-se o
centro da atividade. Nesse quadro, as preocupações com a macroeconomia deixam
de ser relevantes nelas mesmas e ganham importância nas suas conseqüências para
a administração dos portfolios financeiros. A se julgar pela distribuição
recente dos prêmios Nobel de economia, a caução intelectual para esse
desenvolvimento recente também se revela fortíssima (Lebaron, 2000). Então, a
não ser que mudem os eixos culturais pelos quais se travam as discussões
econômicas atuais, nunca estivemos diante de uma versão da teoria econômica que
ancorasse tão legitimamente o darwinismo social, com a possível exceção dos
usos da teoria econômica de inspiração malthusiana no Colonial Office inglês do
século XIX, cuja análise pode servir para melhor entendermos esse efeito
cultural da teoria econômica (Thompson, 1993; Lebaron, 2003).
Estamos diante de uma sólida construção cultural, que explica e ordena o mundo
em que vivemos, fornecendo explicações lógicas para nossas vicissitudes
pessoais e coletivas. Sua força e sua fraqueza podem ser atestadas a partir do
enquadramento que faz dos problemas econômicos que consideramos mais prementes.
Assim, a persistência do desemprego, aparentemente uma prova da ineficiência da
visão financeira para dirigir nossos destinos, não é verdadeiramente um
problema econômico. Ele existe porque o sistema político, uma esfera que ainda
está longe de alcançar uma boa governança, se revela incapaz de tomar as
medidas corretas no sentido de eliminar os entraves que permitam a livre
arbitragem do mercado. O vilão a exorcizar é, portanto, a legislação
trabalhista que, sob a aparência de proteger os trabalhadores, os condena a
viver com uma procura medíocre para suas habilidades atuais e com fracos
incentivos para dotarem-se de novos atributos que possam ser apreciados.
Individualmente, os exemplos de sucesso, como o de Fraga, são o "mapa da mina".
Perseguir o exemplo ou não fazê-lo é uma decisão individual, deixada ao livre-
arbítrio de cada um de nós. Mas o custo por afastar-se do caminho "real" é
imputado ao indivíduo. A culpa de um eventual fracasso é dele e não da
sociedade, inclusive porque a nossa "pós-modernidade" nos dotou de uma panóplia
de instrumentos para reconstruirmos nossas trajetórias pessoais e profissionais
(Grün, 2003b).
Assim, a visão de mundo construída em torno da idéia de arbitragem, que apóia a
entronização do novo grupo no seio das elites brasileiras, parece difícil de se
combater. Parafraseando Goodman (1988), ela constrói um mundo completo e, por
isso, muitas vezes robusto24. Caminhando no halo da apropriação sociológica do
tema indicada por Bourdieu (1997:221-222), a luta para influenciar a maneira
como a sociedade pondera o valor de cada evidência na construção das versões
prevalecentes de como devemos entender o mundo que nos cerca é a essência mesma
da luta política ' a luta que produz as categorias cognitivas que informam a
nossa percepção do mundo social e assim conferem justiça, familiaridade ou
estranheza aos eventos com que nos deparamos. No quadro dessa guerra cultural
que estamos descrevendo, a maneira como a sociedade encara o desemprego ' como
um problema surgido da economia ou da política ', ou se ela aceita a teodicéia
proposta pela nova elite, concordando com a existência de dons naturais que
conferem legitimidade às pretensões do grupo, ou ainda se, ao contrário, a
sociedade considera que estamos simplesmente diante de mais um grupo de
aproveitadores privilegiados, tornam-se bons reveladores fotográficos da
robustez do worldmaking.
As poucas alternativas dos inimigos das finanças
A legitimidade desse novo grupo e da visão financeira como norteadora das
escolhas sociais teria se esvaído com a derrota eleitoral na eleição
presidencial de 2002 do candidato ligado a Fernando Henrique? Responder um
"sim" inequívoco a essa pergunta é uma vanidade fácil de se acalentar, ainda
que drasticamente desmentida pelos fatos, pelo menos até um ano depois da posse
de Lula. Mas, muito além de ser um equívoco freqüente, também é uma
interessante questão de sociologia que merece uma explicação analítica. Creio,
em bon Bourdieu, que a resposta sociológica repousa sobre a exploração de uma
homologia (Bourdieu, 1984) entre as posições que os petistas ocupavam na esfera
restrita das elites políticas no período em que estiveram na oposição e
diversos setores "antifinanceiros" na esfera da sociedade em geral.
No período fernandista, diversos quadros ligados ao PT e à CUT tentaram
reerguer a idéia das câmaras setoriais que surgiram com força durante o governo
Itamar Franco (Anderson, 1999). Em um momento em que o Consenso de Washington
se impunha como o único caminho possível para as economias latino-americanas,
as câmaras tornaram-se a resposta petista prática25 aos problemas do desemprego
e do desenvolvimento econômico. De um lado, no ambiente recessivo produzido
pelas políticas de austeridade monetária, as mobilizações setoriais que elas
deflagravam permitiam ganhos para setores representados pela CUT, talvez mais
precisamente uma diminuição de perdas; de outro, sua visibilidade produzia
ganhos políticos que demonstravam que a oposição não estava morta: ela tinha
uma alternativa concreta ao Consenso26. Reparemos: uma alternativa adequada ao
espaço de representatividade que seus quadros ocupavam naquele momento. Os
sindicalistas e ex-sindicalistas deixavam de simplesmente dizer "não" e
passavam a unir interesses até então vistos como antagônicos, mostrando-se
assim atores institucionais responsáveis, e incontornáveis. Por sua vez, os
prefeitos das cidades industriais administradas pelo PT e aliados também
encontravam uma resposta, pelo menos retórica, aos reclamos dos seus eleitores,
que afinal eram os mais diretamente atingidos pelas transformações econômicas,
e estavam muito mais próximos deles do que de Brasília. Além disso,
subsidiariamente, a abordagem das câmaras setoriais também contribuía para
caracterizar o desemprego como um problema econômico, produzido pela política
de austeridade monetária, pela insensibilidade diante dos problemas da
indústria, e não um problema político produzido por um marco institucional
anacrônico. Assim, se no período considerado as câmaras não prosperaram na sua
finalidade oficial, nem por isso deixaram de ser relevantes nas estratégias
diretas daqueles que as empreenderam.
A homologia acontece por causa do princípio que rege a idéia de câmara setorial
' o da coordenação, sistematicamente procurada, da ação dos diversos agentes
envolvidos por meio da criação de um consenso, seguido do planejamento de ações
conjuntas. Este princípio se opõe cognitivamente à idéia de coordenação
"espontânea" dos agentes econômicos por via da força imposta pela concorrência
no mercado livre, auto-regulado (Grün, 1999). Ele repõe na arena a idéia de
planejamento do desenvolvimento como centro da atividade econômica
governamental, em contraposição à idéia quase consensual nos últimos anos de
que o centro dessa atividade deve ser a criação e manutenção de condições
institucionais e macroeconômicas favoráveis à atração de investimentos
privados. As ações econômicas e políticas baseadas na coordenação sistemática
também servem como uma espécie de blue-print para a busca de soluções, pelo
menos retóricas, para os problemas macroeconômicos com que se deparam as
lideranças sindicais. Um exemplo recente foi a ação conjunta do sindicato de
trabalhadores, da empresa e do poder local na remodelação da fábrica da
Volkswagen da Via Anchieta27. Esta iniciativa acabou se tornando uma verdadeira
declaração dos princípios que norteiam a visão de economia inspirada pela
argumentação industrial e realçou o vínculo que parece unir os membros da
direção do PT com esse princípio28.
Das mordomias ao problema da média gerência
Alvo de ataques que começaram com a série de reportagens sobre as "mordomias do
setor estatal" publicadas pelo jornal O Estado de S. Paulo a partir de agosto
de 1976 (Kotcho, 1976), o mundo das organizações, na sua totalidade, sente-se
de alguma maneira representado por aqueles que parecem estar empunhando na
esfera da política o princípio da coordenação sistemática. É importante notar
que, se o ataque inicial visava o setor estatal "hipertrofiado pelo gigantismo
dos militares", ele claramente não se deteve no primeiro alvo, mirando em
seguida o espaço das organizações privadas, brandindo a bandeira da produção
enxuta e a da organização sem gorduras. No espaço cultural que se apresentava
no período, a única defesa eficiente contra aquela ofensiva foi a idéia de
qualidade total, que apareceu na década de 80, e não é por acaso que ela se
propagou rapidamente em espaços organizacionais tão diversificados. Mas a
qualidade, além de se situar claramente como um compromisso entre as duas
lógicas econômicas29, funcionou no período como uma arma para os gerentes
profissionais manterem e, eventualmente, recuperarem o controle social dos
espaços organizacionais em disputa com o poder sindical, além de se defenderem
da acusação de serem burocratas análogos aos funcionários públicos. Dessa
maneira, sua possível utilidade para unir o mundo industrial contra os inimigos
comuns não foi percebida, perdendo vez para a focalização dos agentes na
disputa dentro das organizações30. Ademais, qualquer que tenha sido o resultado
dessa luta interna, a partir de meados dos anos 90 o espaço de liberdade no
mundo organizacional diminuiu drasticamente e os compromissos foram se tornando
cada vez mais difíceis, preponderando a idéia do enxugamento, propagandeada
pela "reengenharia" ' o braço micro das pressões financeiras ', sobre a idéia
da mobilização das capacidades intelectuais e produtivas de todos os membros
das organizações, que representava o grande trunfo social da idéia da
qualidade31.
A reengenharia produzia uma pressão enorme sobre a vida organizacional. Mas ela
era localizada no tempo, sendo normalmente realizada por meio de consultorias
de duração limitada. Mais recentemente, começou a ser secundada por uma série
de instrumentos de gestão de uso contínuo, inspirados na mesma idéia, vinda da
economia financeira e da agency theory, de que a empresa deve ser vista como um
feixe de contratos entre indivíduos bem definidos no tempo, no espaço e em
abrangência. Essas "ferramentas" apresentam um crescendo de controle e
individualização da medida do desempenho, operando, na esfera cognitiva, como
instrumentos importantes na tentativa de fazer desaparecer a "velha" idéia de
trabalho coletivo e, nas suas visões mais extremas, a própria idéia de empresa.
A primeira ferramenta que adquiriu popularidade no mundo organizacional foi o
chamado "custeio ABC", que propunha a mensuração completamente isolada da
realização de lucro ou de despesas de cada unidade da organização. Essa
finalidade seria alcançada pela abolição da diferença entre custos fixos e
custos variáveis (Armstrong, 2002; Colwyn Jones e Dugdale, 2002). No esquema de
custeio tradicional, os custos fixos (instalações, mão-de-obra indireta e de
supervisão etc.) eram de toda a empresa, deveriam ser rateados pelos seus
diversos departamentos e constituíam-se na base contábil para a idéia mesma de
empresa indissolúvel. Dessa forma, apenas os custos variáveis (matérias-primas,
mão-de-obra direta etc.) deveriam ser imputados a cada linha de fabricação de
produtos. A finalidade organizacional da tentativa de dissociação era clara:
acabar com as ambigüidades na avaliação do desempenho das empresas que impediam
a completa divisão das suas atividades-meio entre as múltiplas linhas de
produtos ou serviços. As conseqüências sociológicas dessa individualização dos
diversos setores das organizações logo começaram a se fazer sentir. O novo
instrumento permitia que, tanto contabilmente quanto cognitivamente, a empresa
pudesse ser vista como um conjunto de unidades independentes, apenas
provisoriamente trabalhando em conjunto, em suma, anunciando a idéia de
organização pensada como o feixe de contratos da agency theory. Rapidamente, a
perseguição desse modelo, até então exótico, se torna uma necessidade, provida
de um roteiro claro, para alcançar a "excelência". Em uma primeira fase, a
"ferramenta" foi apresentada sozinha; mais recentemente, como um sinal da sua
maturidade e naturalização dos princípios que a inspiraram, ela passou a fazer
parte dos grandes sistemas informáticos de gestão organizacional integrada
chamados de ERPs (Enterprise Resource Planning), considerados de utilização
praticamente obrigatória nas empresas modernas (Colwyn Jones e Dugdale, 2002).
A enorme difusão desses novos instrumentos consagrou a técnica contábil e
espalhou sua influência cognitiva por horizontes cada vez mais amplos, bem além
do ambiente das organizações industriais para as quais eles foram concebidos.
Em seguida ao custeio ABC, temos uma bifurcação dos instrumentos, que
corresponde, grosso modo, a uma diferenciação de perspectivas que sinaliza uma
nova polarização do espaço empresarial, agora interna à preponderância da
argumentação financeira. De um lado, aparece o chamado Balanced ScoreCard' BSC
(Kaplan e Norton, 1996), proposto pelo mesmo grupo responsável pela
"ferramenta" anterior; do outro, o Economic Value Added 'EVA (Lordon, 2000b). O
BSC, no espírito de Porter (1985), que propõe a descoberta e manutenção de
aspectos positivos decisivos de cada empresa ' no jargão, as suas vantagens
competitivas ', pretende ser uma interface organizando a ligação entre os
aspectos não financeiros da empresa e aqueles diretamente financeiros. Já no
EVA, a pretensão é efetuar uma medição direta, contínua e sistemática da
lucratividade diferencial (i.e, além das taxas médias ou esperadas) de cada
unidade e mesmo de cada indivíduo engajado na empresa que deverá servir como
base central para qualquer tomada de decisão, em especial as de investimento e
de venda de ativos, além da remuneração e dispensa de funcionários.
A avaliação crítica de cada uma das ferramentas levanta dúvidas quanto à
efetividade das promessas anunciadas e também sobre seus efeitos precisos na
realidade empresarial. O custeio ABC não conseguiria realmente individualizar e
redefinir as estruturas de custos de maneira a imputá-los inequivocamente a
cada fonte de lucro (Armstrong, 2002). O BSC não conseguiria fazer a junção
entre aspectos financeiros das empresas, como lucro e liquidez, e aqueles não
financeiros, como produtividade, qualidade e capacidade de inovar (Norreklit,
2000). Por sua vez, bons resultados na métrica do EVA também não garantiriam
resultados financeiros excepcionais, que seriam medidos pela valorização dos
preços das ações e lucratividade, à empresa que os alcance (Froud et alii,
2000). Entretanto, qualquer que seja a relação entre os resultados prometidos
pelas técnicas e as transformações efetivas que a sua adoção poderia produzir,
restam seus potentes efeitos retóricos (Norreklit, 2003). Na verdade, eles
anunciam, sem ambigüidades, que a "antiga" empresa hierárquica, previsível,
lócus fundamental da sociabilidade de seus integrantes, está irremediavelmente
fora do caminho da evolução da sociedade. No nível individual, realça a idéia
de que devemos nos preparar para outras realidades, nas quais os velhos
anteparos coletivos não mais funcionarão, devendo ser substituídos por esquemas
individualizados de segurança financeira, profissionais, de saúde e mesmo
emocionais.
Podemos assim, a partir da análise do que se passa nos ambientes de trabalho
modernos, dizer que o mundo organizacional hierárquico, que engloba os espaços
empresarial e estatal, lócus de inumeráveis estratégias profissionais e de
carreira, está sob fogo cerrado. As atitudes do PT no espaço político antes das
eleições de 2002 conotavam a intenção de defender esse mundo ameaçado.
Lembremos que o espaço dos prejudicados é bem amplo. O mundo econômico proposto
pelas finanças rejeita uma série de prejulgados que dão base não só à estrutura
das empresas, mas também à das profissões, como o primado da antiguidade na
aferição do mérito, como o papel fundamental dos títulos escolares na medida da
qualificação das pessoas, e outros.
Outra fonte importante para a criação do efeito homológico foi a atitude
compassiva do candidato Lula em relação à questão social32. A necessidade de
registrar e reiterar o cuidado com os menos aquinhoados é ponto essencial da
seqüência mnemônica deflagrada pelo pensamento hierárquico, que fornece a base
cognitiva para o entendimento tradicional de como devem funcionar e o que
devemos esperar das organizações (Douglas, 1996)33. Independentemente de sua
efetividade, a insistência nas idéias propagadas pelo Programa Fome Zero e
outras formas de assistência social continuam reiterando a sensação de
familiaridade do atual governo com a família de pensamento. No espaço cognitivo
deflagrado pelas idéias financeiras, a atitude, também aqui não importando a
distância entre discurso e prática efetiva das políticas que são decorrentes
dessa maneira de pensar, o espírito é outro: trata-se de assegurar a lisura e a
igualdade básica de chances na competição social (Boltanski e Thévenot, 1991).
Em suma, estamos diante de alguns setores da sociedade brasileira altamente
predispostos a aceitar a pregação petista, e através de um filtro cognitivo bem
claro. Sobre a efetividade dos filtros, é interessante notar alguns aspectos da
campanha eleitoral de 2002. No programa de Lula, as câmaras setoriais apareciam
bem-acanhadas, e no capítulo de política social, em vez daquele de política
econômica, denotando a sua perda de importância34. Por outro lado, os feitos
que poderiam ser computados como decorrentes delas estavam sendo catalogados
como provas da capacidade política dos prefeitos petistas das regiões afetadas
pelas políticas setoriais. Mas, talvez por falta de alternativas, nenhuma
dessas possíveis evidências ganhava o status de "contraprova" que diminuísse o
caráter do Lula-contra-tudo-que-está-aí, em especial contra o poder das
finanças e contra o novo mundo que elas estão desenhando. Por outro lado, no
plano da escolha de táticas eleitorais eficientes e além do que se passava
internamente ao PT, outras evidências da campanha de 2002 mostravam que o
caminho da antifinanceirização está interditado para as candidaturas que
pretendam vencer eleições e chegar ao poder. Na tentativa de alijar Serra do
segundo lugar e forçar um segundo turno contra Lula, tanto Ciro Gomes (Seabra,
2002) quanto Anthony Garotinho (Folha de S. Paulo, 2002) tentaram usar essa
carta e só conseguiram ser considerados candidatos "destituídos de seriedade"
pelo conjunto da imprensa e, aparentemente, pelos formadores de opinião,
sepultando de vez suas pretensões35. Na campanha de Ciro Gomes (Felício, 2002),
a carta foi jogada mais consistentemente e pudemos ver que ela levava a um
caminho incômodo: a toada antiplutocracia rapidamente começou a evocar a velha
música do regionalismo antipaulista e foi tachada de fascistizante36.
Talvez porque os prejudicados pela financeirização fossem uma espécie de
clientela cativa do PT, fidelizada pela ação simbólica do partido em momentos
anteriores, talvez simplesmente por falta de resistência, talvez ainda porque a
retórica antifinanceira não é bem recebida na sociedade brasileira em geral,
eis que, enquanto seus possíveis adversários atacavam os bancos, Lula e o seu
séqüito aproximavam-se de diversos atores do mundo financeiro ' o episódio da
ida de Lula à Bolsa de Valores de São Paulo ' Bovespa sendo o evento mais
marcante (Murphy, 2002). A aproximação foi completa e sem ambigüidades? Pelo
que vimos acima sobre a diferenciação do espaço das finanças, é claro que não.
A Bolsa de Valores representava um dos setores menos privilegiados daquele
campo, o espaço dos corretores locais ' na linguagem de Bourdieu, o pólo
dominado. Além da Bolsa, havia os fundos de pensão, também atores dominados no
jogo financeiro do período fernandista, e no seio dos quais os petistas já
estavam implantados. A ida de Lula à Bolsa reforçava os laços entre as duas
ordens de atores e a posição dos petistas na disputa pelo comando dos fundos.
Assim, estava formada a confluência que produziu a homologia ' o pólo dominado
do campo político encontrava-se com o pólo dominado do campo financeiro, uma
situação interessante para ambos os grupos. O espaço social possibilitava uma
entrada relevante no mundo econômico para os petistas, que necessitavam de
caução para suas pretensões ao governo central, e uma entrada no mundo político
para os setores econômicos, que precisavam desse apoio para tentar renegociar
seus posicionamentos diante do pólo dominante do seu campo.
No espaço dos atores que se ocupam da representação de seus pares, a situação
parece confortável para todos, mas no espaço social, como nos advertia
constantemente Bourdieu, estamos diante da possibilidade de um trompe-l'il
generalizado. Os interesses que são específicos e contingentes para os grupos
políticos nas disputas por espaços no seu campo são interesses críticos,
fundamentais para a sobrevivência dos grupos sociais que se sentem
representados pelos princípios que a atuação pregressa do PT sugeriu que o
partido fosse empunhar uma vez no poder. Se o campo político mantiver a sua
autonomia, controlando a pressão dos eleitores e grupos de interesse, a
distância entre o padrão de atuação sugerido pela história do partido e a ação
governamental tende a aumentar. Nesse espaço, salvo a ocorrência de
perturbações externas que produzam heteronomia no campo, a idéia de arbitragem
é fundamental. Disputa-se o troféu que ela instituiu, o da melhor gestão do
cotidiano econômico, aferida pelo teor e repercussão imediata das notícias no
mundo financeiro, principalmente pelos seus reflexos nas bolsas de valores, nas
taxas de câmbio e nos preços dos títulos externos brasileiros. Enfim, uma
agenda definida pela ameaça da espada de Dâmocles que a arbitragem impôs às
sociedades. Se estas não agissem de acordo com as recomendações, a ação dos
mercados financeiros rapidamente se faria sentir: teríamos ataques contra a
moeda e demais haveres do país que ousasse desafiar as leis da ortodoxia
econômica. Nessa disputa pelo centro do tabuleiro político, o melhor governo
seria justamente aquele que melhor nos defendesse contra os mercados, sempre de
acordo com a opinião padronizada sobre o comportamento daquelas instituições37.
O atual governo parece procurar a coerência com as expectativas geradas antes
das eleições, declarando a dissociação das chamadas políticas microeconômicas
do Estado das ações macroeconômicas, marcadas pela ortodoxia financeira38.
Talvez a principal ação visível no primeiro ano do governo Lula em prol do
princípio da coordenação procurada tenha sido a adoção do conceito de
"concertação"39 pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social criado sob
a direção do ministro Tarso Genro, que produziu um incômodo visível nos
comentaristas mais comprometidos com a visão financeira da economia (Folha de
S. Paulo, 2003). O progressivo esmaecimento tanto do uso do conceito quanto da
atuação do Conselho, ou, ao contrário, seu eventual ressurgimento, podem ser
considerados indicadores da potencialidade desse gênero de ação simbólica e
econômica destoante dos princípios que regem a ação econômica e política (até
agora?) relevante do atual governo.
Outra iniciativa, cognitivamente baseada na aplicação do mesmo princípio, é o
apoio aos chamados Arranjos Produtivos Locais ' APLs, que se constituiriam em
um instrumento direto de ação "microeconômica" do governo federal40. A
ancoragem é forte: nos APLs o governo federal reencontra parceiros que
funcionam ou justificam o seu funcionamento no fomento da ordem industrial,
como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo ' FIESP, o Serviço
Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas ' SEBRAE, atores locais e,
eventualmente, sindicatos e cooperativas de trabalhadores41. Mas essas ações
locais dificilmente seriam capazes de roubar a atenção que as ações
macroeconômicas recebem normalmente e, assim, inverter a apreciação geral de
que o atual governo federal preferiu o rumo da ortodoxia econômica, o
atendimento dos reclamos da galáxia financeira, às necessidades dos membros e
apoiadores da comunidade industrial. Não é, evidentemente, descartada a
descoberta ou invenção de casos de êxito estrepitoso de algum tipo de
aglomeração fomentada, do gênero dos APLs. Poderíamos imaginar um, ou vários
clusters, cuja atividade produza impacto sobre as contas externas, mostrando um
caminho generalizável para exportações de alto valor agregado ou para a
substituição de importações que produzam efeito equivalente. Uma situação
dessas produziria forte efeito-demonstração e parece estar no mapa das
tentativas dos governistas, em particular nos ramos considerados de ponta, como
os softwares ou a biotecnologia.
É interessante notar que, na oitava passada, no halo da bolha da alta
tecnologia, os fundos de pensão ensaiaram a entrada em atividades de capital de
risco, no que foram impedidos pelas autoridades federais. No atual momento, o
foco com que o governo pretende conduzir os fundos está nas PPPs. A bolha da
alta tecnologia estourou nos EUA, mas nada impede que os fundos voltem a
interessar-se pelo fomento a atividades nascentes como as da alta tecnologia,
ou que sejam direcionados a elas. Nesse caso, estaríamos diante de uma
ampliação da atividade "microeconômica" induzida pelo governo federal, restando
saber se ela seria considerada adequada pelos "árbitros" do mercado. Afinal, a
sabedoria convencional dos mercados (Galbraith, 1998) sempre pode considerar
qualquer atividade "subótima" e influenciar as autoridades fiscalizadoras, os
pensionistas e os rivais dos petistas na sua representação, no sentido de
inviabilizar as aplicações de risco, nos PPPs ou quaisquer outras que estiverem
no horizonte.
CONCLUSÃO
O nome da entidade é arbitragem. Uns consideram-na santa e a invocam com
prazer, outros vêem nela um demônio a ser exorcizado com temor. Mas todos
admitem a sua existência. Uns pavimentando o caminho para que os novos
instrumentos financeiros e seus arautos se desenvolvam no país, outros
preparando defesas contra, tentando diminuir a exposição internacional por meio
da diminuição e alongamento da dívida pública. Em ambos os casos, subordinando
as demais necessidades nacionais ao império da arbitragem. Poderíamos analisá-
la pelo seu lado de artefato econômico, comprovando os seus efeitos ou
refutando as evidências em nome de outra explicação. Mas ela é também um
artefato cultural, dotado de uma solidez que pouco se abala diante das
impugnações científicas.
A força das novas finanças, e da arbitragem em especial, repousa em bases mais
sólidas do que a sua robustez econômica. Estruturalmente, elas são construções
culturais baseadas na mesma estrutura metafórica que funda a sociedade
capitalista. Seus instrumentos são virtuosos porque contribuem para manter a
auto-regulação tanto do mercado quanto da sociedade como um todo. Douglas e Ney
mostram os passos da solidificação da metáfora do mercado auto-regulado como
essência da vida social. Ela é baseada na analogia entre a noção dos
rendimentos decrescentes na natureza e na economia, passando pela idéia de
apetites auto-regulados na esfera da psicologia. Assim como devemos ser sábios,
retirando da natureza apenas o que ela pode recuperar e repor, devemos
igualmente moderar nosso apetite em sociedade, pois, se não o fizermos, seremos
irremediavelmente punidos (1998:33-36). E os instrumentos que tornam a punição
mais rápida são virtuosos, porque ajudam a sociedade a restabelecer o
equilíbrio mais rapidamente e com menores danos.
Conjunturalmente, vimos o ganho de legitimidade dos agentes sociais que fazem
dos novos procedimentos financeiros o seu fundo de comércio. A comparação
esboçada entre o "patrício" Armínio Fraga e o "arrivista" Naji Nahas parece-me
um bom instrumento para essa medida42. Enquanto o primeiro continua gozando de
excelente trânsito nos circuitos das elites brasileiras e na imprensa, o
segundo, sempre que ensaia uma reaparição, mesmo quando aparentemente em prol
de uma causa respeitável, é rapidamente estigmatizado43. Temos assim uma esfera
das finanças legítima e outra ilegítima ' e nunca é demais lembrar o esforço
inglório, não só nas margens da esfera política, mas também no seu centro, no
sentido de tentar caracterizar o ex-gerente de fundos de George Soros (que por
sua vez também muda de roupagem, investindo na identidade de filantropo e de
filósofo social) e seu grupo como especuladores do mesmo naipe que Nahas, ou
aventureiros dogmáticos como Gustavo Franco.
A outra diferenciação que propus é a que divide o mundo das finanças entre
atores nacionais, dominados, e atores internacionalizados, dominantes. Aqui,
temos de nos acautelar contra a ilusão homológica. Os grupos que deram guarida
a Lula e seu séqüito apenas tentavam melhorar seus posicionamentos no campo
financeiro e não uma reformulação drástica daquele espaço. Talvez a conexão
surgida em 2002 tenha evitado uma propagação ainda mais rápida da impugnação
que os mercados financeiros internacionais decretaram contra o PT, diminuindo
os estragos da corrida contra o Real. Mas o comportamento dos atores após a
posse do novo presidente da República não deixa margem à dúvida. A hierarquia
do espaço financeiro continua a ser respeitada, ainda que o novo governo aqui
também tenha ensaiado passos diferentes, como na tentativa de sedução tentada
junto aos fundos de pensão internacionais em maio de 2003, buscando novas
fontes de investimento no país, possivelmente distintas daquelas operadas pelos
"árbitros" (Batista, 2003).
A força dos constrangimentos estruturais aparece justamente por meio da não-
continuidade das tentativas de sair do script restrito do mundo da arbitragem.
Não é a falta de opções que nos conduz ao caminho da ortodoxia financeira. É a
defesa prévia contra o peso avassalador das possíveis impugnações que os
árbitros poderiam proferir. Ela acaba construindo a agenda dos possíveis e da
ação governamental e, subordinando as possíveis alternativas às suas
premências, termina por descartá-las.
O espaço para os grupos que foram diretamente atingidos pela financeirização se
restringiu mais ainda no primeiro ano do novo governo. Aqui, a mensagem é
clara. Fala-se de uma reforma trabalhista distinta da reforma sindical. Aceita-
se, pelo menos em parte, o argumento de que o emprego não cresce por causa do
marco regulatório restritivo (Rolli e Fernandes, 2004). Logo, os contratos de
trabalho formais devem ser flexibilizados e com eles as estruturas formais das
organizações. Consubstanciando esse entendimento, a ação em prol dos APLs,
normalmente aglomerados de pequenos empreendimentos ainda no nascedouro,
dificilmente poderia redundar em elevação do emprego formal. As atividades
fomentadas pelos fundos de pensão, uma das alavancas do desenvolvimento,
tampouco tendem para o coração da área industrial, onde costumam ser produzidos
os empregos tradicionais ' formais, com expectativa de carreira e estabilidade.
Pelo contrário, até o momento, os investimentos dos fundos têm fomentado mais
as atividades de serviços, como os shopping centers e o turismo, criadoras
típicas de empregos temporários e informais, e em muito menor escala
empreendimentos industriais, como a Empresa Brasileira de Aeronáutica '
EMBRAER, que tendem a manter uma maior proporção de empregos formais e com
perspectivas de carreira.
De maneira geral, o grande desafio para os inimigos da ordem financeira é
montar uma agenda que não seja taxada de particularista ou de corporativa.
Vimos a proximidade freqüente entre essas idéias e posturas extremistas,
normalmente catalogadas como de extrema-direita. Há certamente uma lógica
mnemônica que produz a convergência. Ela é inevitável? Provavelmente não, mas
os diversos casos, históricos ou recentes, nacionais ou internacionais,
ocidentais ou orientais, mostram que as probabilidades jogam pela junção. Nesse
sentido, seria interessante acompanhar o desfecho da estratégia de desafio ao
FMI que o governo Kirchner está empreendendo na Argentina. Uma negociação
argentina, que receba o enquadramento de "bem-sucedida"44 na agenda brasileira,
poderia deflagrar pressões fortes contra a atual condução da economia,
rearticulando as vozes caladas pelo início do governo Lula.
Um outro desfecho possível vem da possibilidade de uma degringolada interna do
mundo financeiro. A história das finanças (Mackenzie, 2003) mostra que as
agendas políticas de períodos bafejados por crises financeiras tendem a
restringir drasticamente a abrangência da expansão possível dos produtos
desenhados para aumentar a liquidez do sistema capitalista, chegando mesmo a
proibi-los. Notavelmente, não tivemos esse resultado no Brasil recente e talvez
até o contrário. Em um período de grita geral contra os altos custos da
intermediação bancária, e logo em seguida à vitória do PT nas eleições
presidenciais, eis que uma tímida tentativa de manter, ainda que apenas na
retórica, o sabidamente ineficiente tabelamento dos juros bancários sofreu uma
impugnação tão severa que fez o tema submergir novamente e parece ter
contribuído para erradicar do atual governo qualquer veleidade que possa
chocar-se com a rota da ortodoxia (Leonel e Tavares, 2003). Assim, a análise do
espaço cultural que determina os graus de liberdade e as alternativas diante do
mundo financeiro mostra um ambiente extremamente adverso aos setores que
pretendem opor-se a ele.
NOTAS
1. Bons exemplos, recentes, norte-americanos da primeira corrente são Fligstein
(2001) e Abolafia (1996). Uma síntese da visão "bourdieusiana", mais próxima da
"construção social dos mercados", mas incorporando alguns pontos da outra
corrente, pode ser encontrada em Bourdieu et alii (2003). Dois representantes
fortes da segunda corrente são Knorr Cetina e Mackenzie (ver, em especial,
Mackenzie, 2002 e Knorr Cetina e Bruegger, 2002a; 2002b).
2. Ver <http://sfs.kellogg.northwestern.edu> e <http://www.siswo.uva.nl/ES>.
3. Sobre o significado do conceito de "capital" em Bourdieu, suas coincidências
e diferenças com os usos do termo na teoria econômica e os mal-entendidos que
ele provoca nos leitores pouco familiarizados com o autor, ver Boyer (2003).
4. Trata-se de um famoso fundo de investimentos, concebido e gerenciado por
economistas famosos, de muito sucesso nos anos 90, cuja insolvência causou
grande impacto no mercado financeiro internacional.
5. Essa interpretação é só aparentemente análoga à do "efeito manada", a partir
da qual a economia tenta dar conta do fenômeno. Para a sociologia das finanças,
esse fenômeno do comportamento mimético é permanente, enquanto para os
economistas ele só aparece na ordem das explicações quando surgem fenômenos de
exceção, não explicáveis por via do quadro analítico tradicional, advindo da
hipótese da racionalidade dos agentes econômicos.
6. Nesse quadro analítico, o grande pecado do governo Clinton teria sido a sua
política de diminuição da dívida pública, ao contrário daqueles outros que
ganharam destaque na imprensa.
7. A assimetria de informações que permite aos gerentes-representantes
enganarem seus acionistas-representados é o ponto fulcral da explicação ' não
exatamente constatado, mas tornado um axioma ' do comportamento dos gerentes
profissionais das grandes empresas, o qual, nessa chave analítica, deve
necessariamente derivar para condutas que prejudiquem os acionistas, já que os
indivíduos tendem a maximizar as suas utilidades em detrimento dos direitos
alheios, a não ser que sejam coibidos. O desenvolvimento sistemático da idéia
está em Fama (1980). Uma crítica sistemática da hipótese e de suas
conseqüências, em Perrow (1990). Em um outro registro, em parte ecoando o texto
já clássico de Galbraith (1967) sobre o papel da "tecnoestrutura" nas grandes
organizações, Lordon (2002) faz uma análise da tendência do capital industrial
para a busca de crescimento, a qualquer custo, da escala de operações, para em
seguida mostrar que seu contraponto financeiro só retoricamente age no sentido
"correto" da acumulação de capitais sem interferência alguma de considerações
de status.
8. Evidentemente, os partidários da economia financeira podem fazer acusações
simétricas aos sociólogos da mouvance. Eles seriam assim tachados de defensores
da "gastança" e da ineficiência burocrática que promove o funcionalismo à custa
das populações que deveriam ser bem atendidas e não o são, ou estimuladas a
enfrentar de frente seus desajustes para integrar-se orgulhosa e produtivamente
à sociedade, em vez de manterem-se como clientela cativa e subordinada aos
"esquerdistas do Estado". Sobre a eficiência desse argumento nos anos 80 e
início dos 90, ver Handler (1996).
9. Sobre os mal-entendidos sociais que levaram à produção do "problema", ver
Bourdelais (1993).
10. Posteriormente, com a diferenciação cada vez maior das possibilidades de
aplicações financeiras que se foram tornando disponíveis no país, a questão
tornou-se menos dramática e a "terceirização" avançou com maior rapidez.
11. As PPPs foram postas na cena "da esquerda" pelo New Labour de Blair. Sua
aplicação, principalmente na esfera regional ou local, na qual ganham o nome de
Private Finance Iniciative ' PFI, naquele país produziu muito ceticismo, tanto
à esquerda quanto à direita do espectro político (ver, entre outros, Froud,
2003 e Weaver, 2003).
12. Até o final da década de 90, a maior parte dos analistas críticos era
cética em relação às possibilidades de expansão do modelo de governança
corporativa norte-americano para países não anglo-saxões. No início do século
XXI, as análises passam a constatar a adoção de vários preceitos norte-
americanos nos países mais afeitos às regras de convivência "social-
democratas", e alguns autores irão falar de convergência dos diversos modelos
de capitalismo para o modelo norte-americano (Lane, 2003), enquanto outros
preferirão a idéia da hibridização de modelos (Streeck e Yamamura, 2001;
Vitols, 2002).
13. Ver detalhes da justificativa e uma discussão sobre como a governança
corporativa alcança o estatuto de interesse geral da nação em Grün (2003a).
14. Ver a frase elucidativa no despacho da Agestado de 7/9/2000, às 17h21,
intitulado "Fraga: governo incentivará fundos de pensão": "Acredito que o boom
de produtividade registrado pela economia dos Estados Unidos tem mais a ver com
boa governança do que propriamente investimentos em tecnologia da informação".
O anúncio do novo consenso, que substitui a antiga idéia do declínio
empresarial norte-americano, que teria sido causado pela melhor performance
industrial japonesa e do qual as palavras de Fraga são um eco interessante, é
apresentado em The Economist, 15/1/1994, pp. 65-66.
15. Por exemplo, por intermédio das recomendações repetidas da Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico ' OCDE, que promove sistematicamente
estudos, seminários e publicações sobre o tema (OECD, 2003).
16. Sobre as flexões de que os discursos econômicos e organizacionais
dominantes são objeto diante da prática empresarial e governamental, ver Lordon
(2002).
17. Aos bancos pedia-se segurança e solidez, cabendo às instâncias
fiscalizatórias do governo federal o controle da sua honestidade.
18. Ver Galvão (2004) e os sites <http://www.acionista.com.br/bovespa/
fundos_recebiveis_27_02_04.htm>; <http://www.tvbovespa.com.br/pdf/
RevistaCapitalAberto5.pdf>. Para uma análise da tendência internacional à
diferenciação entre a intermediação oferecida pelos bancos comerciais e aquela
proposta pelos novos agentes, ver Aglietta e Orléan (2002).
19. Sobre a pré-história das opções, das acusações contra o seu uso e da
tentação de ganho que elas despertam, ver Cardoso (2002), comentando o clássico
do século XVII Confusion de Confusiones (Penso de la Vega, 1977).
20. Embora no atual momento a relação entre os novos gestores e os bancos
estabelecidos seja provavelmente mais interativa, com bancos constituindo
fundos de investimento de gestão terceirizada, oferecida aos "novos
financistas", e também caucionando alguns empreendimentos dos gestores (Pavini
et alii, 2004; D'Ambrosio e Vieira, 2003).
21. Na linguagem específica, trata-se de construir portfolios a partir de
títulos com baixa covariância de risco, como, por exemplo, uma composição entre
títulos de empresas exportadoras, cujos resultados dependem mais da evolução da
taxa de câmbio, e títulos de redes de varejo popular, cujos resultados irão
depender mais da evolução do mercado interno, supondo-se que taxa de câmbio e
poder de compra das classes populares evoluam segundo tendências independentes.
22. Outro exercício interessante, e que certamente ajuda a conferir
centralidade à figura de Fraga, seria contrastá-lo com seu antecessor no Banco
Central, Gustavo Franco, que acabou se confinando em um papel social de zelote
do neoliberalismo. Diante dos "excessos" deste último, nosso personagem central
ganha ares de pessoa de bom senso, razoável e mesmo afável. Aliás, as mesmas
reportagens que exaltam Fraga lembram que Franco é um indivíduo isolado, que
não faz parte do grupo.
23. Aí aparece mais forte o contraste com Franco.
24. Extensos comentários e críticas dos colegas-filósofos de Goodman sobre o
assunto, seguidos de réplicas e precisões do autor em McCormick (1996).
25. "Prática" aqui é um termo que se refere à eficácia do discurso nos limites
internos do campo político. Se a oposição não encontra uma retórica para se
contrapor ao discurso da situação, ela tende a desaparecer. Assim o discurso
das câmaras pode ser considerado "prático" se consegue manter a
operacionalidade política da oposição. Evidentemente, essa praticidade pode ou
não ter correspondência com sua aplicação "concreta" no espaço econômico, mas
esse problema só poderá ser realmente colocado quando e se a oposição virar
governo. Sobre essa autonomização do discurso interno ao campo político, ver
Bourdieu (1981).
26. Sobre as câmaras, ver Arbix e Zilbovicius (1997). Sobre a minha
interpretação da importância do fenômeno para a trama cultural econômica, ver
Grün (2003a).
27. Ver a entrevista de José Lopez Feijóo, então secretário-geral do Sindicato
dos Metalúrgicos do ABC, no endereço eletrônico: <http://
www.oficinainforma.com.br/semana/leituras-20020119/02.htm>. Para a apresentação
do evento pela Volkswagen, ver <http://www.volkswagen.com.br/
fábricanovaanchieta>.
28. Sobre as repercussões do processo, ver, p. ex., a coluna de Luís Nassif, "A
Estratégia da Volks" (Folha de S. Paulo, 15/6/2002).
29. O compromisso aparece de maneira mais clara na idéia de kaizen ' a busca
sistemática de redução de desperdício na atividade organizacional. A lógica
industrial funcionando sem "predadores naturais" enfatiza a busca de eficiência
por meio dos aumentos de escala, dando à redução do desperdício um status de
simples detalhe. Ver, a respeito dos repertórios de argumentação de cada uma
das lógicas, Boltanski e Thévenot (1991).
30. Sobre a lógica da ação dos agentes de comando industrial brasileiros e as
contradições a que estão submetidos, ver Zilbovicius (1999).
31. Detalho as circunstâncias desse conflito cultural, que repõe os termos que
já existiam no trabalho de Veblen (1921), em Grün (1999).
32. Menos importante para a zona do espaço social que estamos explorando no
presente artigo, mas igualmente ou até mais importante no espaço social como um
todo.
33. No texto indicado, Douglas recupera a oposição "hierarquia x mercado",
desenvolvida por Weber, e discute suas conseqüências cognitivas para o
entendimento das disputas culturais nas sociedades capitalistas, em especial
naquelas tocadas pelo neoliberalismo.
34. Ver <http://www.lula.org.br/programadegoverno>, acessado em 25/7/2002.
35. Acompanhei os principais jornais naquele momento e não encontrei, nem nas
páginas de reportagens nem nas colunas de cartas dos leitores, manifestações de
apoio a Ciro Gomes ou a Garotinho quando de suas declarações antifinanceiras. A
análise pode ser estendida e enriquecida pelo acompanhamento da tramitação da
emenda que pretende alterar o sistema financeiro nacional, em especial na
questão da fixação, ou não, de uma taxa de juros legal máxima ' a "velha"
questão da Lei da Usura, que teve algum destaque no início do governo Lula e
depois desapareceu do noticiário (ver, p. ex., Oliveira, 2003).
36. É interessante lembrar a experiência nacional da Malásia, considerada a
principal contraprova de um país que conseguiu se livrar da influência dos
mercados financeiros internacionais e, conseqüentemente, da arbitragem. Ali, o
repúdio à ação dos mercados financeiros aparece ao lado de uma retórica anti-
semita e xenófoba (Cohen, no prelo). Podemos também acrescentar a própria
história do fascismo "clássico" europeu, que tem em uma de suas matrizes o
obreirismo antifinanceiro e anti-semita dos seguidores de Proudhon (Sternhell,
1984). Assim, ao observarmos a nossa pequena experiência doméstica nas eleições
de 2002, o principal exemplo internacional dos nossos dias e a experiência
histórica clássica, é difícil imaginar que a associação antiplutocracia e
xenofobia e anti-semitismo seja fortuita, ainda que não determinística.
37. Sobre os constrangimentos sociais e tecnológicos que regem a produção e a
manutenção dessa opinião padronizada, e a força desse consenso, ver Knorr
Cetina e Bruegger (2002b).
38. Assim podemos conferir sentido às reiteradas declarações de Lula,
conclamando os empresários a investir sem levar em conta as altas taxas de
juros (ver, p. ex., Athias, 2004:B1).
39. Internacionalmente, a lógica da concertação, amparada nos conceitos de rede
e de capital social, tenta afirmar-se como uma alternativa de ordem moderna
distinta da financeira. Seus partidários começam com a explicação dos ciclos
virtuosos produzidos na "III Itália" (Putnam et alii, 1993), chegando a
generalizações que tentam dar conta do mundo econômico atual na sua totalidade,
questionando a idéia do primado da lógica financeira na produção do laço social
fundamental (Boltanski e Chiapello, 1999).
40. Ver, p. ex., as atas do seminário "Ipea Discute Arranjos Produtivos
Locais", de 26-27 de agosto de 2003, no site da instituição. Segundo os
organizadores: "Políticas públicas baseadas no conceito de arranjos produtivos
locais têm sido desenhadas para promover o aumento das exportações, promover a
redução das desigualdades regionais, fomentar sistemas locais de inovação e
promover uma maior inclusão social" (<http://www.ipea.gov.br>).
41. É interessante notar que a FIESP e o SEBRAE fazem parte da constelação das
entidades "corporativas", portanto ameaçadas pelo padrão de racionalidade
imposto pela cultura financeira, tendo assim um interesse muito mais forte do
que o comum em fazer deslanchar iniciativas que mostrem suas respectivas
contribuições para a sociedade brasileira.
42. Não podemos esquecer do "maximalista" Gustavo Franco, a outra figura que
equilibra a imagem positiva de Fraga. Franco parece ter mantido sua influência
em circuitos conservadores tradicionais. Acompanhar a dança das imagens pode
ser uma entrada excelente para a análise do substrato cultural que
sobredetermina as esferas econômica e financeira.
43. Por exemplo, em O Globo, 27/2/2004: "Refinaria do Ceará: Aliás, no jantar
com Lula, o príncipe Bandar (sempre acompanhado do polêmico amigo brasileiro
Naji Nahas) prometeu que a saudita Aramco voltará a estudar o projeto de
construção, em parceria com a Petrobras, de uma refinaria no Ceará."
44. Ainda que, pela lógica do sistema de forças simbólico, esse enquadramento
seja pouco provável, já que qualquer "senão" no futuro acordo da Argentina com
seus credores será alardeado como a prova cabal do quixotismo da atitude de
desafio aos mercados financeiros internacionais.