As novas faces do sindicalismo rural brasileiro: a reforma agrária e as
tradições sindicais na Zona da Mata de Pernambuco
O sindicalismo rural brasileiro teve nos trabalhadores das lavouras de cana-de-
açúcar de Pernambuco um de seus pontos de apoio mais fortes. As greves aí
realizadas, no final dos anos 70, reivindicando melhores condições de trabalho,
reuniram milhares de trabalhadores e notabilizaram os sindicalistas locais como
os mais ativos do país1. A ênfase em questões de ordem trabalhista que
caracterizava a prática política daqueles sindicatos mudou significativamente
em meados dos anos 90, quando a Federação dos Trabalhadores na Agricultura de
Pernambuco ' FETAPE passou a capitanear um expressivo número de ocupações de
terra na região canavieira, chegando, em determinados momentos, a suplantar o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra ' MST, que tradicionalmente
detinha o monopólio dessa forma de reivindicação em quase todo o país.
Como essa alteração de perspectiva e de atuação se processou e quais os seus
efeitos para a estrutura sindical de uma das principais federações de
trabalhadores rurais do país? Este artigo pretende fornecer algumas pistas para
responder a tais questões, a partir dos dados de uma pesquisa realizada entre
fins de 2002 e meados de 2003, na região da Zona da Mata de Pernambuco. Depois
de uma breve apresentação da história da formação do sindicalismo rural em
Pernambuco, busco reconstituir o processo que levou a FETAPE a partir para as
ocupações de terra, de modo a demonstrar que, mais do que uma estratégia
deliberada ou o simples reflexo da conjuntura econômica, essa mudança refletiu
um intenso drama social que envolveu gerações distintas de sindicalistas.
ESTADO DAS ARTES: HISTÓRIA DOS SINDICATOS E DAS LUTAS POR TERRA E SALÁRIO NA
ZONA DA MATA DE PERNAMBUCO
A faixa litorânea do Estado de Pernambuco é conhecida geograficamente por Zona
da Mata. Nesta região, foram introduzidas as primeiras lavouras de cana-de-
açúcar do país, ainda no período colonial. Em torno dessa estrutura produtiva
(plantation) se formou uma oligarquia de grandes proprietários com forte poder
econômico, os chamados senhores de engenho, os quais exerciam enorme influência
sobre o Estado brasileiro, tendo como lastro de sua força centenas de milhares
de trabalhadores rurais reunidos sob seu comando.
Lutas por Terra
Em meados da década de 50, na cidade de Vitória de Santo Antão, na Zona da Mata
pernambucana, um grupo de agricultores que cultivavam suas lavouras em terras
arrendadas criou uma associação de plantadores em um engenho chamado Galiléia.
Identificada pelos proprietários como uma ameaça a seu poder centenário, a
pequena associação foi tenazmente combatida e seus associados ameaçados de
expulsão da terra2.
Aquilo que era um movimento isolado de um grupo de agricultores logo se tornou,
pela própria intransigência dos proprietários das terras, um ícone das
reivindicações por reforma agrária na região. Associados, pela imprensa local,
às Ligas Camponesas que haviam sido formadas pelo Partido Comunista na década
de 40, os plantadores da Galiléia acabaram por assumir oficialmente o nome de
Liga Camponesa e, auxiliados por grupos políticos de esquerda, rapidamente
ampliaram seu movimento por toda a Zona da Mata e diversos outros estados do
país.
Essa vinculação entre reforma agrária e grupos de esquerda (vulgarmente
chamados de comunistas) contribuiu para que setores importantes da Igreja
Católica se envolvessem em serviços de formação e orientação de lideranças
rurais, nos diversos estados do Nordeste, ainda no final dos anos 50. Na Zona
da Mata um grande contingente de jovens foi organizado e formado pela Igreja;
muitos deles, bem orientados, viriam a fundar sindicatos de trabalhadores
rurais em diversas cidades para coibir o avanço das Ligas.
Além da Igreja, ironicamente, o próprio Partido Comunista Brasileiro, que nunca
chegou a aceitar por completo as alternativas de "revolução camponesa"
propaladas no processo de expansão das Ligas, passou a investir na
sindicalização rural como uma das formas de fazer penetrar sua política no
campo brasileiro3.
Nessas disputas, gradualmente foi sendo gestada uma polarização que opunha as
Ligas Camponesas, associadas diretamente com a reforma agrária, aos sindicatos
de trabalhadores rurais, que visariam à regulamentação das condições de
trabalho nas lavouras. Cabe advertir, no entanto, que as divergências estavam
referidas mais à orientação teórica dos grupos do que às suas práticas. O
próprio Francisco Julião (1969), que se tornou a principal figura das Ligas,
teria saudado a criação dos sindicatos de orientação comunista ou religiosa
como uma frente aliada às Ligas, incentivando que os membros destas também se
filiassem aos sindicatos de trabalhadores rurais.
Nos primeiros anos da década de 1960, pressões dos partidos políticos, de
setores da Igreja Católica e das organizações sindicais que começam a se
formar, propiciaram condições favoráveis à regulamentação da atividade sindical
no campo em todo o país. A partir de então, o número de sindicatos aumentou
significativamente, sobretudo em Pernambuco, onde foi criada, associando
católicos e comunistas, a FETAPE. A expansão e consolidação do sindicalismo
rural também foram favorecidas pela ascensão de Miguel Arraes à chefia do
governo do Estado de Pernambuco, em 1963, com o apoio tanto das Ligas como de
importantes parcelas do sindicalismo rural.
Depois da regulamentação do sindicalismo rural e da criação de uma estrutura
estatal para apoiar a sua formação, as Ligas perderam seu papel de principais
protagonistas das reivindicações camponesas, ocupando um lugar secundário, que
lhes dava um diminuto poder de barganha política. Esta situação se agravou mais
ainda depois do golpe militar de 1964, quando os principais dirigentes das
Ligas foram presos, assassinados ou exilados ' como ocorreu com o próprio
Julião e com o governador Miguel Arraes. No final da década de 60, as Ligas já
faziam parte do passado das organizações rurais.
As Lutas por Direitos
O gradativo fim das Ligas ocorreu concomitantemente com o fortalecimento do
sindicalismo rural, que em 1963 criou, sob a chancela do governo federal, a
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura ' CONTAG ' seria o único
órgão nacional de representação dos trabalhadores rurais, ao qual estariam
filiadas as federações estaduais (como a FETAPE, por exemplo), que, por sua
vez, congregariam os sindicatos municipais.
CONTAG ® Federações Estaduais ® Sindicatos (STR)
A CONTAG foi formada com predominância de sindicalistas comunistas, mas teve o
apoio também de grupos católicos ligados à Ação Popular. Seu primeiro
presidente era de São Paulo, e o vice-presidente era da FETAPE, isto é, de
Pernambuco. Nesse processo de sociogênese institucional ou corporativa, as
demandas por reforma agrária, apesar de presentes nas principais resoluções da
Confederação, como pano de fundo de todos os seus manifestos e publicações,
deixaram, gradativamente, de ser uma prioridade prática dos sindicalistas
rurais.
Em 1964, logo após o golpe, o governo militar decretou a intervenção na CONTAG
e em sindicatos de todo o país, afastando as diretorias eleitas. A intervenção
durou até 1967, quando um grupo liderado por um sindicalista pernambucano, cuja
formação política se deu nos grupos de evangelização rural, disputou e venceu a
chapa dos interventores em uma eleição para a diretoria da confederação. Desde
aquele evento, quando se desafiou a ordem imposta pelo governo ditatorial, o
sindicalismo rural de Pernambuco tornou-se uma referência para todo o país.
Durante o período do governo militar, os sindicatos da Zona da Mata de
Pernambuco desvencilharam-se das influências religiosas e, liderados pela
FETAPE, marcaram sua atuação, basicamente, pelas batalhas jurídicas contra os
grandes proprietários de terra que desrespeitavam suas obrigações legais para
com os empregados. É importante ressaltar que se tratava de um tempo de grande
perseguição às lideranças políticas de esquerda no Brasil e que suas ações pela
manutenção de direitos trabalhistas se desenrolavam nos tênues limites dos
marcos legais postos e impostos pelo governo. Cabe notar também que, nessa
mesma época, dado um suntuoso e inaudito investimento estatal, a lavoura de
cana-de-açúcar conheceu uma era de grande prosperidade, alavancada pelo
Proálcool, programa governamental de incentivo à cultura de cana que subsidiava
a produção de álcool combustível visando à substituição do petróleo.
O progressivo aumento dos incentivos estatais à produção de cana não foi,
porém, acompanhado de melhorias relativas nas condições de trabalho dos
canavieiros. Ao contrário, nesse período, milhares de trabalhadores continuaram
a ser mandados embora dos engenhos nos quais moravam e obrigados a viver em
condições precárias na periferia das cidades da região4. No final dos anos 70,
mais precisamente em setembro de 1979, a FETAPE, respeitando todas as
exigências legais, organizou a maior greve de trabalhadores rurais da história
do país, mobilizando milhares de canavieiros na Zona da Mata para lutar por
seus direitos trabalhistas.
Os acontecimentos de setembro de 1979 sinalizaram as potencialidades do
sindicalismo para mobilizar a enorme massa de trabalhadores da lavoura
canavieira, de modo que no ano seguinte uma mobilização ainda maior amealhou os
canavieiros para a luta. As manifestações de 1979 e 1980 criaram e consolidaram
as greves e as campanhas salariais como os principais instrumentos de pressão
do sindicalismo rural de Pernambuco e do Brasil. O sucesso das greves da zona
canavieira teve grande repercussão na confederação nacional, que se
encarregaria de propagar o caráter exemplar das ações promovidas naquela região
pelos quatro cantos do país. As greves tornaram-se o emblema máximo do
sindicalismo nacional, constituindo-se em um modelo a ser seguido por todos os
estados (Tavares, 1992). Durante a primeira metade dos anos 80, sindicalistas
de todo o país visitaram a Zona da Mata no período em que eram realizadas as
campanhas salariais para aprender como se organizavam greves e campanhas
salariais.
O relativo sucesso no atendimento das reivindicações por melhores condições de
trabalho reafirmou a proeminência da FETAPE no sindicalismo rural brasileiro,
consagrando também seus dirigentes.
A prosperidade da lavoura canavieira e dos sindicatos manteve-se até o final da
década de 80. Durante o governo do presidente Fernando Collor de Mello, foram
cancelados os subsídios à produção de álcool e açúcar e foi revogada uma série
de vantagens concedidas aos produtores de cana, como, por exemplo, a garantia
de compra pelo governo federal de todo o excedente produzido. Nesta conjuntura,
mais uma vez veio à tona a dependência dos grandes produtores de cana-de-açúcar
em relação ao Estado. O corte dos incentivos parece ter incidido diretamente
sobre a produção, como mostra a Tabela_1.
O endividamento da maioria dos produtores contribuiu para que, diante da
ausência de subsídios, a produção fosse gradualmente reduzida. Esta queda teve
reflexos diretos sobre os trabalhadores rurais. Informalmente, os sindicalistas
estimam, a partir do número de filiados, que o conjunto dos trabalhadores nas
lavouras de cana tenha diminuído de cerca de 240 mil (no tempo das greves dos
anos 80) para menos de 100 mil (na segunda metade da década de 1990).
Diante desse quadro de arrefecimento dos investimentos públicos no setor,
quatorze das principais usinas de beneficiamento de cana foram fechadas ao
longo da década. Muitos dos engenhos onde a cana era plantada ficaram
abandonados ou foram entregues aos bancos estatais para o pagamento de dívidas.
Estas empresas demitiram seus trabalhadores sem o pagamento de qualquer
indenização, alegando não terem fundos para arcar com as despesas contratuais.
A reação inicial dos sindicatos e da FETAPE foi, assim como nos anos 70,
incentivar os trabalhadores a recorrerem à justiça para receber a indenização.
No entanto, a maioria dos proprietários alegou não possuir fundos para saldar
suas obrigações patronais e, mesmo com a intervenção da justiça, continuou sem
pagar aos trabalhadores o que lhes era de direito.
Nesse contexto, foi revelado um dos paradoxos que estruturaram a notoriedade
dos sindicatos rurais na região. Para que um sindicato tivesse sucesso nas suas
demandas, ele precisava que elas fossem, de alguma forma, atendidas pelos
patrões. Enquanto os incentivos estatais garantiram a boa saúde das
oligarquias, os trabalhadores da região conquistaram avanços importantes nas
suas condições de trabalho e também na sua remuneração, que era a mais alta de
todos os trabalhadores rurais do país. Porém, quando a oligarquia foi atingida
no seu principal sustentáculo ' o Estado ', os trabalhadores e os próprios
sindicatos perderam seu ponto de referência.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra ' MST
O MST ' nasceu nos estados do Sul do Brasil, em reação a um reconhecido
processo de concentração fundiária. Descendentes de colonos europeus, que
gradualmente perderam suas parcas terras, capitanearam, no final dos anos 70,
as primeiras fileiras dessa organização que viria a ser uma das mais
emblemáticas da luta pela reforma agrária.
Críticos à restrita legitimidade das lutas trabalhistas (que podemos, para
efeitos analíticos, nomear como "modelo pernambucano") em uma área dominada
pela pequena propriedade, sindicalistas, universitários e também agentes
religiosos se aliaram a esses agricultores sem-terra e com eles montaram um
acampamento formado por barracas de lona preta em uma fazenda (Fazenda Sarandi)
no norte do Estado do Rio Grande do Sul5. A princípio, suas manifestações
visavam resolver o problema específico de reprodução desse grupo social, para o
qual a posse da terra era um elemento central. Com o passar dos anos, as
demandas desses colonos foram sendo ampliadas e, em 1984, seus principais
líderes fundaram formalmente o MST, cujo objetivo central era lutar pela
reforma agrária em todo o país6.
No decorrer dos anos 80, o MST alastrou-se para outros estados brasileiros, e
suas manifestações pela desapropriação de latifúndios improdutivos tornaram-se
o símbolo por excelência da demanda por reforma agrária no país.
A reforma agrária nas mãos do MST ganhou uma forma própria de ser representada,
por meio de um conjunto de símbolos políticos tanto peculiares quanto fortes. O
acampamento nas áreas improdutivas, as barracas de lona preta e a bandeira
vermelha tornaram-se a marca registrada do grupo. Com esses símbolos, a
presença dos sem-terra fez-se pública na dupla acepção desse termo: tanto a
sociedade começou a reconhecer essas pessoas e suas questões, quanto o Estado
não pôde mais se esquivar diante daquelas pressões. A gradativa aceitação, por
parte dos órgãos estatais, de algumas demandas do MST contribuiu também para a
sua consolidação como legítimo representante dos trabalhadores rurais que se
consideravam sem-terra. Nesse processo, com os acampamentos proliferando-se por
várias regiões do país, a sede do MST foi transferida de Porto Alegre para São
Paulo e o movimento passou a contar com uma coordenação nacional, que
congregava coordenações estaduais, regionais e municipais.
CONSEQÜÊNCIAS DA CONCORRÊNCIA COM O MST PARA O SINDICALISMO RURAL
O MST aportou em Pernambuco em 1989, ano da primeira eleição para presidente da
República depois do golpe de 1964. Reunindo militantes que atuavam nos estados
vizinhos, e com o apoio de alguns prefeitos municipais, o movimento organizou a
ocupação de uma área pertencente ao governo do Estado na Zona da Mata. O
governador de Pernambuco era então Miguel Arraes, uma figura unânime entre os
agricultores, que acabara de retornar do exílio. Arraes, no entanto, negou-se
veementemente a atender a solicitação dos sem-terra, tornando-se tensas as
relações entre eles. A principal justificativa do governo, à época, foi a de
que o MST não era um representante legítimo dos trabalhadores rurais de
Pernambuco, já que suas lideranças vinham de outros estados. A falta de apoio
da FETAPE, sem dúvida a única entidade considerada legítima para representar os
trabalhadores da região, foi outro fator decisivo para os problemas de
interlocução entre o MST e os representantes do governo de Miguel Arraes.
Poucos dias depois da ocupação, os militantes e as famílias que haviam montado
o acampamento foram violentamente removidos pela polícia. Do acampamento, todos
se transferiram para a frente do Palácio do Governo, em Recife. Depois de um
longo período de negociações o governo ofereceu uma área de terra na região
mais árida do estado, para onde as famílias acabaram por se dirigir. A falta de
infra-estrutura, porém, teria levado os sem-terra a abandonar a área ofertada
nos meses seguintes.
O MST somente voltaria à região da Zona da Mata no ano de 1992. Desta feita, ao
contrário de 1989, seus militantes procuraram manter contato com os sindicatos
de trabalhadores rurais. Diante dos primeiros sinais de queda na produção
canavieira e da diminuição dos postos de trabalho na região, a proposta do MST
de mobilizar trabalhadores rurais para ocupar engenhos que não estivessem
produzindo soou interessante para os sindicalistas de duas cidades do sul da
Zona da Mata. Em ambos os casos, os presidentes dos sindicatos, que somente
conheciam o MST pela televisão, viram nas suas propostas uma possibilidade
plausível para mobilizar os trabalhadores rurais da região.
Segundo um desses dirigentes, do Município de Rio Formoso, os militantes do MST
o haviam procurado para pedir abrigo nas dependências do seu sindicato enquanto
estivessem fazendo seu "trabalho de base" na cidade, ou seja, enquanto
visitavam as periferias do pequeno município convidando trabalhadores rurais
desempregados para participar de uma ocupação de terra7. O trabalho dos
militantes do MST atraiu a atenção do presidente e também de um pequeno grupo
de jovens que ocupavam posições inferiores na hierarquia do sindicato. O que
deveria ser apenas uma ajuda do sindicato ao MST se transformou em trabalho
conjunto das duas organizações.
Em abril de 1992, no período de entressafra da cana (quando muitos dos
trabalhadores rurais ficam sem emprego), militantes do MST e dirigentes
sindicais ocuparam um engenho improdutivo em Rio Formoso. Mesmo não tendo sido
bem-sucedida na sua reivindicação da área (os invasores foram despejados pela
polícia poucos dias depois), a ocupação sinalizou para sindicalistas e
trabalhadores rurais da região uma alternativa aos modos já tradicionais de
luta, como as greves e os processos judiciais.
Neste artigo não poderei tratar dos pontos de vista dos trabalhadores rurais em
relação às ocupações, mas creio que o trabalho de Sigaud (2001) forneça pistas
suficientes para a compreensão do sentido do engajamento daqueles nessa
novidade. Da perspectiva dos sindicalistas, a ocupação parece ter servido como
um novo tempero às suas atividades, pois mesmo depois de despejado da primeira
ocupação o grupo manteve o acampamento em outras áreas, configurando o que
Sigaud chamou de uma "saga" de ocupações, que culminou nas primeiras
desapropriações de terra para fins de reforma agrária na região, no ano de
1995.
Após essa primeira ocupação, os militantes do MST e dirigentes sindicais
daquela pequena cidade estabeleceram uma espécie de concorrência por áreas que
estavam sem produzir. Nesse período, Rio Formoso foi dividida em dois
municípios (uma parte da cidade foi emancipada) e um novo sindicato foi
formado, sob a liderança de um jovem sindicalista oriundo da diretoria do
sindicato antigo. Essa jovem liderança, que havia participado da primeira
ocupação, realizada em conjunto com o MST, tornou-se o principal organizador de
acampamentos da região e fez da reforma agrária sua principal bandeira8.
Entre 1992 e 1995 foram organizados acampamentos em outras cidades da Zona da
Mata, alguns por sindicatos e outros pelo MST. Em 1993 a FETAPE, à luz dos
eventos do ano anterior, alterou seus estatutos e criou uma secretaria
específica para tratar da reforma agrária9. Segundo o dirigente que assumiu a
coordenação desta Secretaria de Reforma Agrária, porém, sua pasta não
significou muitas mudanças na perspectiva da FETAPE em relação às ocupações de
terra. A atuação da federação teria se limitado a apoiar ou mediar as
negociações nos acampamentos montados pelos sindicatos ou pelo MST. Os
dirigentes mais antigos, a quem chamou de históricos, teriam relutado em
associar a FETAPE às ocupações de terra. A reticência dos diretores mais
antigos e do próprio presidente da FETAPE concentrava-se no fato de que as
ocupações, consideradas ilegais e condenadas pelos principais jornais da
região, romperiam com a tradição da federação de defender os trabalhadores
dentro dos marcos legais.
A dificuldade da FETAPE em assumir a bandeira das ocupações também pode ser
atribuída à novidade que estas representavam para a região. Tratava-se de uma
experiência inédita que, à época, ainda não havia produzido resultados
satisfatórios.
A posição cautelosa da FETAPE somente começou a se alterar em 1995, ano que
parece ter sido decisivo para os propósitos tanto da FETAPE como do MST. Em uma
das inúmeras manifestações conjuntas que as duas entidades promoveram, tendo
sempre o MST à frente, a sede do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária ' INCRA ' foi ocupada. A demanda principal dos invasores era a nomeação
de um diretor permanente para o órgão, que se responsabilizasse pela
implementação dos assentamentos de reforma agrária. A manifestação teria sido
violentamente reprimida pela polícia, o que levou os dirigentes da FETAPE a
retirar os trabalhadores do local, enquanto os membros do MST teriam
permanecido. Quando, horas depois de sua retirada, o presidente da República
nomeou um novo superintendente para o cargo, os louros da conquista foram
revertidos apenas para o MST.
Se até esse episódio o MST precisou se associar à FETAPE para garantir sua
legitimidade, depois dessa vitória ' ao garantir a nomeação de um novo
superintendente para o INCRA ' o movimento sentiu-se independente e abandonou o
diálogo com a federação. Desde então, o MST vem intensificando as ocupações de
terras por toda a Zona da Mata.
Não há como recuperar os dados de todas as ocupações de terra feitas nos
primeiros anos da década de 90. Também não existem registros confiáveis sobre
quais seriam as organizações atuantes. Os dados da Comissão Pastoral da Terra '
CPT, no entanto, indicam o ano 1995 como um marco na intensificação das
ocupações na região.
No mesmo ano ocorreu outra eleição na FETAPE. O grupo histórico (dos dirigentes
que participaram das primeiras greves) foi mais uma vez vencedor, e a principal
alteração na composição da diretoria foi a mudança na Secretaria de Reforma
Agrária. O secretário anterior foi substituído por um sindicalista mais jovem,
oriundo da Cidade de Vitória de Santo Antão ' a mesma das Ligas Camponesas.
João Santos era, pelo menos, vinte anos mais novo que os principais dirigentes.
Filho de um importante líder sindical dos anos 60 e 70, fora funcionário da
FETAPE, entre o final dos anos 80 e o início dos 90, em um pequeno município da
região, onde conheceu alguns militantes do MST que organizavam um grande
acampamento. Quando seu pai deixou a direção do sindicato dos trabalhadores
rurais de Vitória de Santo Antão, depois de várias décadas, foi indicado para
substituí-lo. Eleito pela primeira vez em 1993, organizou, logo a seguir, a
primeira ocupação de terras conduzida por um sindicato, sem a colaboração
direta do MST.
João Santos assumiu seu cargo na diretoria da FETAPE no final de 1995 e, já no
início do ano seguinte, a federação passou a assumir publicamente a coordenação
das ocupações de terra e acampamentos na região. Da mesma época data a criação
da bandeira da FETAPE, para marcar, assim como já fazia a flâmula do MST, a
filiação dos agricultores nos seus acampamentos. Sob a coordenação do novo
secretário, a federação tratou de incorporar os símbolos até então utilizados
somente pelo MST (barracas, bandeiras e ocupações), ampliando igualmente o
leque de ações dirigidas à ocupação de prédios públicos, principalmente da sede
do INCRA em Recife.
A FETAPE e o MST passam a disputar áreas de acampamentos na região da Zona da
Mata. No ano de 1997, a federação realizou o mesmo número de ações que este na
Região Metropolitana de Recife. Na Zona da Mata, foi responsável por cerca de
30% das ocupações, respondendo o MST por 47% dos casos10.
Sob a batuta de João Santos, a FETAPE retomou seu lugar na vanguarda do
sindicalismo rural brasileiro, notabilizada como uma das primeiras federações
do país a realizar ocupações de terra11. Na esteira desse sucesso, o presidente
da FETAPE foi eleito para dirigir a CONTAG, tendo como uma de suas bandeiras a
intensificação das ocupações, como forma de pressionar o governo a implementar
sua política de reforma agrária. Neste novo contexto, as ocupações de terra
contribuíram diretamente para reforçar a posição hegemônica dos dirigentes
pernambucanos no âmbito nacional.
Na eleição seguinte para a diretoria da FETAPE, João Santos foi mantido no
cargo de secretário de Política Agrária, intensificando-se as ocupações de
terra na região da Zona da Mata. O sucesso destas, medido pela sua grande
repercussão nos jornais, trouxe a FETAPE novamente ao centro da cena política
de Pernambuco. No entanto, os feitos exaltados publicamente pela imprensa não
correspondiam aos feitos até então capitaneados pelo grupo histórico, ou seja,
já não se referiam às campanhas salariais. Mesmo que tivessem apoiado a criação
da Secretaria de Reforma Agrária, os sindicalistas do grupo histórico nunca
chegaram a participar efetivamente das ocupações ou dos acampamentos promovidos
por João Santos.
CONFLITOS INTERNOS
No ano de 2001, compareci, pela primeira vez, a um evento promovido pela FETAPE
em Pernambuco. Tratava-se de um encontro entre os dirigentes estaduais e os
delegados sindicais, isto é, os representantes dos sindicatos nos locais de
trabalho da região da Zona da Mata.
O evento era dedicado a organizar a pauta de reivindicações que a FETAPE
entrega anualmente às entidades patronais todo mês de setembro, desde as greves
de 1979. Esses encontros eram voltados, há décadas, para os problemas relativos
às condições de trabalho na lavoura da cana.
Nessa ocasião, em especial, boa parte do tempo de debates entre os
sindicalistas foi dedicada às estratégias de reivindicação que poderiam ser
adotadas para a efetivação das demandas que estavam sendo formuladas. Naquele
contexto, chamava a atenção a comparação constante entre as campanhas salariais
(greves e direitos) e as lutas por reforma agrária (acampamentos).
Erguendo a primeira bandeira estavam os diretores da FETAPE que estiveram à
frente das greves de 1979 e também das bem-sucedidas campanhas salariais dos
anos 80. Suas manifestações lembravam os grandes feitos das décadas anteriores
e cobravam dos mais jovens a continuidade daquelas estratégias. A resposta dos
mais jovens, sindicalistas que não haviam sido socializados no período das
greves, era a condenação dos limites das estratégias passadas e de sua
utilização no presente. Em seus discursos, propunham que as lutas por salários
fossem pensadas no contexto da "crise" das usinas e, portanto, da própria
atividade canavieira como centro da vida social da região.
O ápice da disputa entre os dois grupos ocorreu no momento em que o secretário
de Reforma Agrária (ligado aos jovens) propôs a realização de uma manifestação
pela desapropriação de terras em plena campanha salarial. A reação da maioria
dos presentes foi de indignação, pois a proposta rompia com a mais forte
tradição do sindicalismo da região, que era a unidade de todos, mesmo os que
eram considerados inimigos internos, durante a campanha salarial. Não era
possível que uns estivessem em uma frente de luta (a campanha salarial) e
outros à frente de manifestações em torno da reforma agrária. Como resumiu um
velho sindicalista: "Reforma agrária tem o ano todo, mas campanha salarial
somente em setembro." Se os procedimentos tradicionais não fossem tomados como
uma obrigação quase natural por todos, a própria magia que animara a vida
sindical nos últimos anos poderia ser desfeita.
A campanha salarial representava, portanto, muito mais que um mero instrumento
reivindicativo que poderia ser medido por seus resultados práticos. Como
alertou Sigaud, o "ciclo de greves", iniciado em 1979, mesmo que não tenha
sempre alcançado avanços na regulação do trabalho, era um momento de "afirmação
de identidade dos trabalhadores, do fortalecimento de sua unidade em torno de
objetivos comuns. Um espaço privilegiado para a consagração do consenso [...]"
(Sigaud, 1986:328). Embora as campanhas salariais não apresentassem a mesma
eficácia prática de tempos anteriores, sua força residia na manutenção da
crença coletiva na sua capacidade de mobilização dos canavieiros, que era
nutrida a cada pronunciamento de um sindicalista mais antigo. Os feitos
passados forneciam o combustível para o pertencimento a uma entidade que a cada
dia via seus quadros encolherem, como podemos ver no depoimento de um dos
organizadores da greve de 1979:
"Dirigente: Amanhã [é] uma chapa só, porque não apareceu outra para
disputar. Então, a diferença do sindicato que a gente tinha para o
que a gente tem hoje é de 95%.
Marcelo: O que mudou?
D: Nós temos 5% do que a gente tinha antes.
M: Quais são os 5%?
D: Porque nós tínhamos, digamos assim, 3.500 associados. 3.500
associados. E agora nós temos, ao todo, 210.
M: Duzentos e dez! Só?
D: Associados em dia com o sindicato. A eleição de amanhã é só 260
pessoas que vai votar. Quem tinha 3.000, 3.000 e poucos associados.
Então isso caiu todas as rendas do sindicato. A gente não tem mais
funcionários no sindicato. Não temos mais carro no sindicato. [...]
Então a gente até dividiu o trabalho.
M: Como é que foi?
D: Porque são três diretores. Eu trabalho segunda e terça, sozinho
lá, fazendo tudo. Então o tesoureiro trabalha quarta e quinta,
fazendo tudo. Agora, na sexta é que junta nós três pra ver o que
fica. Passou-se na semana. Porque o presidente, você sabe, tem que
coordenar de qualquer maneira o que acontecer, tem que estar por
dentro de tudo para fazer a coordenação."
No entanto, essa fonte de orgulho tinha efeitos diversos para as distintas
gerações de dirigentes. Os mais antigos alimentavam-se de algo no qual foram
socializados, que realmente lhes tinha sido fundamental, até mesmo para
chegarem à destacada posição social que ocupam hoje. Já para os mais jovens,
que não viveram o tempo das greves e ingressaram na vida sindical exatamente no
momento em que a crise das usinas se intensificava, a memória não servia como
alento. Ao contrário, a idealização do passado parecia reafirmar a falta de
sentido, no presente, daqueles rituais de congraçamento.
O relativo sucesso alcançado pelas mobilizações por reforma agrária
capitaneadas pelo MST mas também, e principalmente, por João Santos, que a cada
dia ocupava mais espaço nos meios de comunicação com suas ocupações, serviu de
farol aos que não encontravam rumo nas palavras dos mais velhos.
As disputas entre as gerações de sindicalistas que foram socializados em
períodos distintos intensificaram-se à medida que o tempo foi passando. Entre
2001 e 2003, acompanhei uma série de eventos públicos e privados envolvendo
sindicalistas de todas as idades. Os mais velhos, sempre que tinham
oportunidade, reafirmavam a importância das greves e da mesa de negociação como
meios adequados para resolver os principais conflitos com o governo e com as
entidades patronais. Ao mesmo tempo, criticavam os mais jovens pela falta de
temperança, pela forma dita aventureira e individualista como conduziam as
mobilizações por reforma agrária. Por outro lado, os sindicalistas envolvidos
com as ocupações de terra acusavam seus predecessores de não gostarem de
conflitos e de estarem interessados apenas na manutenção de suas posições.
Criticavam ainda o grupo histórico por não permitir a ascensão de sindicalistas
mais jovens aos postos mais importantes da federação, ou seja, por ter
monopolizado as posições de maior prestígio e poder.
De forma sintética, podemos dizer que se foi estabelecendo entre os grupos uma
polarização em torno destes elementos:
____________________________________________________
|Reforma_Agrária__|Lutas_pelos_direitos_trabalhistas|
|Jovens____________|Velhos___________________________|
|Presente__________|Passado__________________________|
|Ocupação________|Negociação_____________________|
|Inexperiência____|Experiência_____________________|
|Irresponsabilidade|Responsabilidade_________________|
As diferenças entre os históricose o grupo ligado à Secretaria de Reforma
Agrária foram se acentuando a cada reunião da federação. Em determinado momento
do mandato iniciado em 1999, as ocupações de terra ou de prédios públicos já
não contavam com o apoio irrestrito da direção históricada FETAPE.
A ÚLTIMA BATALHA
Em meio a esse processo teve lugar mais uma eleição para renovar a diretoria da
FETAPE. O grupo histórico formou sua chapa e a princípio excluiu o nome do
secretário de Reforma Agrária.
Desse conflito resultou a formação de duas chapas, uma formada pelo grupo
histórico, que colocou no cargo principal um jovem sindicalista sem ligação com
as ocupações de terra, e a outra formada por João Santos e pelo secretário de
Reforma Agrária que o antecedera. A disputa novamente concentrou-se na
polaridade entre reforma agrária e lutas salariais, ou seja, entre uma postura
dita combativa, associada com as ocupações, e uma conduta responsável e
negociadora que não excluía a luta por reforma agrária, mas pretendia conduzi-
la de modo menos conflituoso.
A chapa históricafoi representada pela cor verde, e a chapa de João Santos,
pela cor vermelha. Os significados populares de cada uma das cores ' o verde
representando esperança e paz, e o vermelho, o combate ' indicavam as propostas
de cada facção.
Pelas evidências colhidas durante minha pesquisa, menos que dividir a unidade
tradicional do sindicalismo rural pernambucano, os conflitos ocorridos nestes
últimos anos no âmbito da FETAPE tiveram um caráter renovador.
Para Durkheim (1995:xxxiv), "um grupo não é apenas uma autoridade moral que
rege a vida de seus membros, é também uma fonte de vida sui generis. Dele emana
um calor que aquece ou reanima os corações, que os abre à simpatia, que faz
ruir os egoísmos". Porém, como o mesmo autor adverte, este calor que dota de
sentido a vida dos indivíduos na sociedade moderna muda de intensidade com o
passar dos anos. A força da história, como processo contínuo de acumulação de
experiências, colabora para que os indivíduos se diferenciem a partir de sua
socialização.
Naquela eleição, eram visíveis as diferenças entre sindicalistas socializados
em contextos distintos. Como vimos, no caso do congresso de delegados que
acompanhei, a própria possibilidade de se recorrer a uma memória idealizada de
sucesso no tempo das grevesdespertava sentimentos opostos entre os dirigentes
sindicais do grupo históricoe aqueles do grupo ascendente. Para uns, servia de
alento em um momento de incerteza; para outros, demonstrava o descompasso entre
as necessidades presentes e as realizações passadas.
As contendas entre o grupo históricoe o da reforma agrária animaram de tal
forma a vida sindical de Pernambuco que produziram o maior congresso sindical
de todos os tempos. Partidários de um grupo e de outro, trabalhadores rurais de
todas as partes do estado rumaram para Recife. Vestindo suas camisetas verdes
ou vermelhas e entoando animados hinos ao som de pequenas orquestras, todos
queriam estar presentes à eleição da nova diretoria da FETAPE.
Como nas eleições anteriores, o grupo histórico sagrou-se vencedor da disputa,
porém por uma margem de votos inferior à alcançada nos outros pleitos. Teria a
opção pela reforma agrária sido derrotada?
UM NOVO COMEÇO
Como descrevi anteriormente, o final do período em que o candidato derrotado no
último pleito chefiava a Secretaria de Reforma Agrária foi marcado por uma
série de conflitos entre seus simpatizantes e o grupo que aqui chamo de
histórico. Um ícone dessas divergências eram justamente as ocupações da sede do
INCRA, que se tinham tornado uma rotina nos últimos anos. Consideradas por
todos como uma das marcas dos novos tempos da FETAPE (do tempo da reforma
agrária), as ocupações deste órgão federal foram, em todas as vezes que
acompanhei, planejadas e executadas quase sem interferência da direção da
federação, que era comunicada da ação apenas na última hora. A alegada
autonomia do grupo da reforma agrária incomodava os dirigentes mais antigos,
tanto pelo fato de não participarem da decisão, como também por se tratar de um
evento que, em muitos casos, colocava em xeque a própria imagem da FETAPE como
uma entidade que sabia negociar. No entanto, o primeiro grande evento
organizado pela FETAPE que acompanhei após a vitória do grupo histórico foi
exatamente uma ocupação do prédio do INCRA.
O que teria levado o grupo vitorioso a lançar mão, meses depois da eleição, do
mesmo artifício que em tempos passados havia sido tão criticado, ou seja, a
realizar também uma ocupação do órgão federal? A reposta a essa indagação eu
encontrei na própria ocupação, que visitei dias depois.
A ocupação da sede do INCRA em Recife naquela manhã de segunda-feira guardava
poucas semelhanças com os eventos que eu acompanhara nos anos anteriores. Se,
nas invasões passadas, a presença de uma pequena massa de trabalhadores rurais
no pátio do Instituto era sinônimo de tensão e conflito iminente, naquele
evento de 2003 o clima era de festa. No pátio do órgão estava armada uma
pequena feira composta por barraquinhas que vendiam produtos agrícolas, outras
que ofertavam artesanato, e também por balcões das diversas ONGs que prestam
assessoria à FETAPE. Havia ainda um carro de som e um trio de zabumba, sanfona
e triângulo animando o evento.
Essa disposição em nada lembrava as ocupações que eu havia presenciado
anteriormente, fossem as organizadas pela FETAPE, pelo MST, ou por outros
grupos. A distribuição das pessoas ligadas à FETAPE nas dependências do INCRA
indicava sua organização para além dos muros do órgão federal. No lugar das
lonas pretas, das foices, pedaços de pau e enxadas, podiam ser vistos murais de
cartolina com fotos e frases exemplares escritas com pincel atômico que
lembravam os áureos tempos da FETAPE. Em meio a amontoados de mandioca,
mulheres debulhando feijão de corda eram saudadas pelos líderes sindicais que
circulavam por entre as barracas declarando as benesses alcançadas com o
trabalho na terra. O modelo do evento lembrava muito mais as assembléias que
antecedem a campanha salarial e os demais encontros que são promovidos pela
federação para tratar de assuntos como a previdência social, por exemplo. Ao
contrário das outras ocupações, cuja intenção era surpreender os diretores do
órgão para obrigá-los a permanecer no local e iniciar negociações
extraordinárias, aquela tinha sido previamente agendada com a Superintendência
do INCRA, que reservara o dia para negociar com a FETAPE. Enquanto os
trabalhadores (que nos eventos anteriores abarrotavam os corredores que davam
acesso às salas de reunião) permaneciam do lado de fora, vendendo seus produtos
ou engatando um fio de prosa com amigos de outras cidades ao som do forró, do
lado de dentro dirigentes e assessores apresentavam sua pauta de reivindicações
ao superintendente nomeado há poucos dias.
Além das diferenças simbólicas, chamava a atenção a presença maciça no local de
dirigentes, funcionários e assessores responsáveis por outras "frentes de
luta", como, por exemplo, educação e previdência social. Pela primeira vez
desde que havia iniciado minha pesquisa, encontrei, em uma manifestação
identificada explicitamente com a reforma agrária, dirigentes e ex-dirigentes
do tempo das grandes greves, participando efetivamente da animação dos
trabalhadores e das negociações com o superintendente do INCRA.
A presença dos antigos diretores, do pessoal da animação, das diferentes
secretarias e de praticamente todos os funcionários da FETAPE que estavam
disponíveis naquele dia definia claramente o sentido que a demanda pela reforma
agrária, iniciada nas contendas com o MST, assumia para o sindicalismo rural
pernambucano.
Mesmo que o ato estivesse sendo organizado e animado pelos assessores e
dirigentes que outrora organizavam as greves e campanhas salariais; mesmo que a
disposição estética, assim como nas campanhas, exaltasse os feitos e as formas
do passado, a manifestação pela reforma agrária tornara-se, sem dúvida, o
leitmotiv da FETAPE naquele dia. As pessoas eram as mesmas, mas o simples fato
de estarem ocupando uma arena anteriormente interdita àqueles identificados com
as greves indicava a importância da mudança.
Para os homens e mulheres que se aglomeraram na sede do INCRA e que,
cotidianamente, conformam e reafirmam o espírito do sindicalismo rural em
Pernambuco, a participação nas contendas relativas à questão agrária parece ter
significado a própria possibilidade de continuidade de suas atividades. Pois
foi no espaço conquistado pelas reivindicações recentes por terra que as
demandas mais antigas (salários e previdência social, entre outras) puderam ser
reorganizadas e expressas com legitimidade.
ARTICULANDO DETERMINAÇÕES
Como vimos, uma articulação entre diversos determinantes contribuiu para
renovar a força e a significação do sindicalismo rural em Pernambuco, dentre os
quais se destacam a crise do complexo agroindustrial canavieiro, o conflito
geracional e a concorrência entre a FETAPE e o MST.
Creio que seja impossível determinar o peso exato de cada uma dessas variáveis
no decorrer do processo de intensificação das ocupações de terra ' mesmo
porque, ao procurar aferir o peso exato de cada uma delas, estaríamos isolando
elementos que só existem em relação com outros. Este procedimento, muito usado
na Sociologia, tende a privilegiar uma lógica analítica que opera por meio da
desarticulação dos fatos sociais, em detrimento da própria lógica dos
processos, ou seja, da lógica da interação ou da síntese (Marx, 1978; Elias,
1997).
Reconhecidas as variáveis mais importantes atuantes nesse processo, resta,
agora, compreender como esses elementos relacionados uns com os outros
repercutiram sobre o mais tradicional sindicalismo rural do Brasil.
A crise do complexo sucro-alcooleiro pode ser atestada pelo fechamento de
algumas das principais usinas de beneficiamento da região e pela redução
substantiva do número de trabalhadores rurais empregados nesta atividade
social. Cronologicamente, podemos localizá-la na gênese do processo de mudança.
No entanto, inexiste qualquer evidência de que esta crise tenha levado
diretamente às reivindicações e ocupações de terra. Como me referi
anteriormente, a lavoura canavieira de Pernambuco atravessou dificuldades em
diversos outros momentos nos últimos quatro séculos sem que a reforma agrária
fosse vista como uma alternativa. Outro elemento que ajuda a afastar o
determinismo econômico como motor da mudança social é a própria história das
reivindicações por terra na região. As Ligas Camponesas, por exemplo,
reconhecidas como um dos mais importantes movimentos que reivindicaram a posse
da terra para os trabalhadores rurais no Brasil, emergiram em um momento de
grande prosperidade da indústria canavieira ' os anos 60 ', em que os foreiros
de diversos engenhos foram ameaçados de expulsão para que suas terras fossem
também aproveitadas para o cultivo da cana, ou seja, em um contexto oposto ao
que se viu nos anos 9012.
A conduta inicial dos sindicatos de trabalhadores rurais ante o fechamento de
diversas usinas também nos ajuda a desmistificar tal associação. No período de
menor produção, entre 1990 e 1994, foram realizadas diversas reuniões para se
avaliar as possíveis alternativas à crescente demissão de trabalhadores rurais.
Um desses encontros foi o Seminário Regional: Crise e Reestruturação no
Complexo Sucro-Alcooleiro do Nordeste, realizado em 1993, com o apoio da
FETAPE, em cujos anais encontramos depoimentos de diversos sindicalistas sobre
esse processo, colhidos no momento exato em que ele ocorria. Nenhum deles
aludia a uma estratégia calcada apenas na reivindicação da desapropriação das
terras, como mostra o depoimento abaixo:
"[...] há uma parte que tem uma experiência da pequena produção, do
arrendamento, do foreiro, de coisas assim, mas os seus filhos hoje
quase não passaram por estas experiências, assumem o assalariamento.
Diante disso, como discutir reforma agrária num contexto desse?"
(Assessor sindical no Seminário Regional ' Crise e Reestruturação no
Complexo Sucro-Alcooleiro do Nordeste. Recife, 1993).
Diante da insolvência dos empresários, a avaliação mais comum entre
sindicalistas e seus assessores apontava para a necessidade da manutenção das
lutas por direitos trabalhistas que estavam sendo constantemente desrespeitados
pelos patrões. A crise foi interpretada, a princípio, como uma estratégia
patronal para aumentar seus lucros. Muitos sindicatos voltaram-se para a defesa
da manutenção dos empregos na Justiça do Trabalho, exigindo que os empregadores
cumprissem suas obrigações legais, principalmente pagando as multas pela
demissão injustificada de trabalhadores.
Outro ponto que também chama a atenção é o fato de a intensificação das
ocupações de terra, principalmente por parte dos sindicatos, ter ocorrido a
partir de 1995, principalmente em 1996, momento em que a produção de cana
voltava a crescer consideravelmente, o que desautoriza qualquer associação
direta entre crise na produção e mudanças nas condutas dos sindicatos.
Pelo que vimos até o momento, portanto, a "crise" da atividade canavieira teria
influenciado somente de forma indireta a mobilização do sindicalismo
pernambucano para realizar ocupações de terras. Sua maior contribuição parece
ter sido disponibilizar uma grande massa de trabalhadores e, mais ainda,
justificar ideologicamente a atuação dos sindicatos nesta outra seara. Contudo,
em todas as entrevistas que realizei com sindicalistas e assessores a crise
sempre foi apresentada como justificativa oficial para a reivindicação da
reforma agrária. Abaixo apresento alguns trechos de entrevistas em que este
tipo de justificativa se destaca:
"Marcelo: Eu queria saber, inicialmente, como essa demanda da reforma
agrária chegou aqui?
Assessor: É uma história antiga [...] Já vem da fase anterior a
Julião, mas intensifica-se com ele no Engenho Galiléia, em Vitória.
Também se liga com a história dos sindicatos... no processo de
consolidação dos sindicatos na Zona da Mata, e passa a ter uma ênfase
mais forte para o final da década de 80 e durante todo os 90, quando
coincidem algumas mudanças dentro de Pernambuco, no país e fora do
país. A mais sensível e a mais evidente delas é o início da
deterioração da economia sucro-alcooleira. A mudança no regime de
subsídios que sustentou essa economia durante muitos anos. (Assessor
jurídico da FETAPE, setembro de 2001).
[...]
Presidente: Tivemos 240 mil trabalhadores aqui, hoje nós temos na
faixa de 100 mil. A maior parte são contratados temporários. Só
alguns sindicatos que começou a entender que tem que mudar.
(Presidente da FETAPE, setembro de 2001)
[...]
Marcelo: Quando surgiram os acampamentos aqui na região?
Dirigente: No ano de 1993, 1994, mais ou menos. Nessa época surgiu
esse primeiro acampamento, mas surgiu da necessidade dos
trabalhadores, por conta das demissões em massa das empresas, do
desemprego desenfreado e da fome que estava batendo solta. (Ex-
presidente de sindicato na parte sul da Zona da Mata, maio de 2002)
[...]
Dirigente: Essa crise no setor desestabilizou alguns sindicatos [...]
Aqueles sindicatos que as empresas ainda se mantiveram bem, viveram
bem, eles estão ainda com o potencial, os trabalhadores trabalhando
[...] Mas aqui onde tem problema, naquele município que a empresa
faliu, está pré-falida, a situação é mais complicada. É tal que
você... Há uns dez anos para trás, você falar de reforma agrária na
zona canavieira era difícil, era problemático você convencer um
trabalhador para ele sair do salário, para ir pegar um pedaço de
terra. Você contava nos dedos alguns que queriam. Agora, de uns cinco
ou seis anos pra cá ficou mais fácil você fazer um trabalho de
conscientização da terra. Em determinado momento o pessoal ficou sem
opção. Ele procura e não encontra.
Marcelo: Não tem o que fazer?
Dirigente: Não tem o que fazer, vai brigar pela terra (ex-presidente
da FETAPE, outubro de 2001)".
Por meio das entrevistas e da análise dos materiais de arquivo foi possível
notar que a justificação das ocupações pela crise é uma elaboração realizada
depois do início do processo, a qual encontra ressonância na atividade
sindical, entre outras razões, porque é coerente com o tipo de intermediação
entre capital e trabalho realizado pelos sindicatos. No entanto, como vimos
anteriormente, não foram os dirigentes históricos que organizaram as primeiras
ocupações de terras feitas pelos sindicatos.
A existência de uma crise estabeleceu as condições para que jovens
sindicalistas pudessem contrapor-se à ordem hierárquica vigente desde as greves
de 1979. Os problemas práticos passaram a ser enfrentados nos primeiros anos da
década de 90, quando a tradicional prática de "botar na justiça" não surtiu os
efeitos que dela esperavam os sindicalistas mais experientes. Essas investidas
frustradas prenunciaram muito mais do que o esgotamento de uma "frente de
luta". Pela primeira vez em muitos anos foi possível aventar a possibilidade de
se estar encerrando o ciclo político da geração das greves.
No entanto, foi por obra de um dos velhos sindicalistas (o dirigente de Rio
Formoso) que os sindicatos se aproximaram do MST. Ao abrigar nas dependências
da entidade os jovens militantes do MST que vinham de outros estados, aquele
dirigente sindical proporcionou um espaço de socialização e, por conseguinte,
de aprendizado de novas formas de reivindicação para um grupo de jovens
sindicalistas que rapidamente seria seduzido pela bandeira das ocupações.
Em contextos favoráveis, como o do sindicato de Rio Formoso, que se dividiu em
dois, foi possível manter a relação intergeracional sem que o conflito pelo
poder se estruturasse de fato, pois havia lugar para todos. O mesmo, porém, não
ocorreu na FETAPE, cuja diretoria não podia fortalecer novos integrantes sem
prejudicar os dirigentes mais velhos. Como aponta Sigaud (2001), foram esses
jovens sindicalistas, radicados posteriormente no recém-constituído sindicato
da Cidade de Tamandaré (PE), que passaram a disputar áreas improdutivas com o
MST.
Como assinalei acima, o congresso de delegados sindicais a que compareci foi
marcado pela cisão entre os diretores mais antigos, que defendiam a valorização
da memória das grandes greves, e os diretores mais jovens, que a todo momento
lembravam que "a luta agora é outra". As dicotomias entre passado e futuro,
entre lutas por terra versus lutas por direitos, também se ancoravam na alegada
perda de eficácia das greves como estratégia de reivindicação durante a crise
dos anos 90. Segundo pesquisadores que acompanharam o mesmo evento em anos
anteriores, os atos de contar a história (encenados pelos antigos
sindicalistas) não ocupavam, então, tanto espaço como quando do evento a que
assisti13. Essa informação reforça a hipótese de que a ênfase nas dicotomias
entre passado e presente, tanto de um lado como do outro, serviu para anunciar
um embate que se estruturava cotidianamente nos corredores da FETAPE. Naquele
momento específico, a concorrência com o MST, que incitara a criação e
fortalecimento da Secretaria de Reforma Agrária, já não era o carro-chefe que
contribuía para a intensificação cada vez maior das ocupações de terra pela
FETAPE. A concorrência com o MST havia penetrado no seio da própria federação e
se radicado entre os jovens sindicalistas, que ao organizarem ocupações de
terras se empenhavam em reunir novos simpatizantes, de modo a aumentar seu
poder dentro da organização sindical.
Como adverte Norbert Elias (1997:221-222), "seria igualmente simplista
incriminar as gerações mais velhas, detentoras das posições mais elevadas de
carreira e do establishment, por restringir o acesso de pessoas mais jovens às
desejadas oportunidades de vida em longos períodos [...]". Os intensos dramas
sociais que vivenciei na região mais tradicional do sindicalismo rural
brasileiro não foram fruto de uma estratégia elaborada pelos sindicalistas mais
antigos.
Os diretores do tempo das greves haviam construído uma carreira na qual sua
história de vida se confundia com a história do sindicalismo rural. Todos eles
entraram para os sindicatos municipais e, depois, para a FETAPE ainda muito
jovens e dedicaram suas vidas ao combate contra uma das mais poderosas
oligarquias do país. Como recompensa, receberam remunerações acima da média
para um trabalhador rural e, mais do que isto, a admiração e gratidão de
milhares de trabalhadores que passaram a desfrutar de direitos historicamente
negados. Em uma sociedade na qual o reconhecimento individual é dado pela
interpendência entre os sujeitos sociais, deixar uma posição social que provia
a vida de pessoas comuns de um sentido especial não foi tarefa simples. Para os
diretores que conheci, perder seu lugar na FETAPE era perder seu lugar no
mundo. Era destituir-se do próprio sentido de suas vidas.
Não foi outra a sensação que me transmitiu o jovem João Santos quando soube que
seu nome não seria incluído na chapa favorita e percebeu que sua ascensão
social na FETAPE estava bloqueada pelos mais velhos. A partir do contato com o
MST, porém, ele aos poucos foi construindo, dentro e fora do sindicalismo, uma
reputação cujo símbolo maior eram as ocupações de terra. Foi participando das
marchas e ocupações que ele ganhou as páginas dos principais jornais do país
como um dos primeiros sindicalistas a adotar as ocupações como instrumento para
a realização da reforma agrária. João Santos, assim como seus companheiros do
tempo das greves, tornou-se um indivíduo especial, com um certo poder de
decisão sobre a vida de muitos trabalhadores rurais de sua região.
Levando em consideração o caráter coletivo desses dramas individuais,
percebemos o quão importante foram as experiências de contato e concorrência do
sindicalismo rural pernambucano com o MST. Produtos de contextos políticos
distintos, estes dois tipos de organização compartilharam, na região canavieira
de Pernambuco, um importante processo de mudança social. Se, no começo, o MST
parecia estar mais adaptado à crise, logo os sindicatos tratariam de dar sua
resposta na mesma moeda, e com a vantagem de estarem organizados há muito mais
tempo.
Neste artigo, tratei apenas dos efeitos que este movimento constante de ação e
reação teve para o sindicalismo, mas o contrário também poderia ter sido feito,
pois em nenhuma outra parte do Brasil o MST encontrou uma concorrência tão
forte. A partir do ponto de vista dos próprios sujeitos que vivenciaram os
processos sociais, e não de uma perspectiva teórica exterior a eles, do
desvelamento de seus dilemas e contradições, foi possível compreender o sentido
renovador dessa experiência para a atividade sindical na região. Renovador não
como uma oposição entre velhas e novas formas de ação, mas como um modo de
reanimar o mundo social dos sindicalistas.
O espelho do MST estabeleceu a possibilidade de criação de uma nova
oportunidade para os jovens que se especializaram em uma frente de luta que não
era prestigiada pelos dirigentes mais antigos, permitindo que viessem a ser
reconhecidos pela condução das manifestações por reforma agrária. Para o grupo
histórico, a concorrência com o MST e com a geração mais nova permitiu a
incorporação de novos métodos de reivindicação e, mais do que isto, talvez
tenha representado a continuidade do reconhecimento público da importância do
grupo em uma época de intensa desregulamentação de direitos trabalhistas antes
considerados fundamentais14.
CONCLUSÃO
Em um momento em que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra se impõe à
sociedade brasileira como o principal sujeito das reivindicações de cunho
agrário, torna-se premente uma análise do impacto dessa organização no
sindicalismo rural que outrora ocupou com destaque este papel. Este artigo
procurou pensar essa relação a partir das suas determinações em diferentes
escalas, privilegiando a compreensão do ponto vista dos envolvidos na mudança,
ou seja, dos próprios sindicalistas.
Além de negar a naturalidade das dicotomias sociológicas que costumam polarizar
lutas por terra e lutas por salários, os fenômenos observados na Zona da Mata
de Pernambuco nos últimos anos nos mostram a importância de ter em conta que
essas instituições são formadas por indivíduos, cujos distintos interesses
conformam os sentidos das ações que promovem como dirigentes sindicais. O
acompanhamento sistemático dos eventos promovidos pela FETAPE permitiu-me
perceber que a adesão desse tradicional pólo de defesa dos trabalhadores rurais
ao modelo forjado pelo MST não refletiu apenas as mudanças estruturais da
sociedade brasileira, tendo sido guiada também pelas estruturas internas da
formação sindical e por suas condições históricas de reprodução.
Assim, vimos que aquilo que se manifesta exteriormente como uma mudança no
sindicalismo representou, mais objetivamente, uma alteração na distribuição de
poder dentro da federação de trabalhadores rurais mais importante do país. A
relação entre processos internos (conflitos geracionais) e externos (crise
econômica e emergência de novas organizações) possibilitou a unificação de um
grupo em torno da demanda por reforma agrária e reforçou a associação entre os
sindicalistas mais velhos e as lutas salariais. O conflito entre novas e velhas
formas de organização e de luta política, que em um primeiro momento poderia
ser visto como prejudicial à unidade da federação, contribuiu para que o
sindicalismo rural voltasse a ocupar um papel destacado na representação dos
trabalhadores rurais da região, ao incorporar seletivamente formas e pautas de
reivindicação forjadas por outros grupos sociais. Por fim, vimos que a FETAPE
não se transformou em uma organização semelhante ao MST; ao contrário, a
pesquisa mostrou que os sujeitos e as formas tradicionais de se fazer política
no campo podem incorporar novas demandas sem perder sua identidade histórica,
ou seja, sem deixarem de ser um sindicato, no sentido clássico do termo15.
NOTAS
1. Isto não significa que o grupo não tenha sido alvo de críticas de setores
que gostariam de ver incluídas no programa de lutas desses trabalhadores
reivindicações ativas por reforma agrária.
2. Segundo Callado (1960:34), a associação havia sido fundada porque "o foro
alto fez com que vários foreiros da Galiléia começassem a atrasar, a dever
dinheiro, a afogar tudo em Pitu. [...] Eles precisavam organizar uma sociedade,
criar um fundo, para amparar os que adoecem e pagar as dívidas dos atrasados".
3. Agradeço a um dos pareceristas anônimos de Dados pela advertência de que a
proposta de sindicalização do Partido Comunista Brasileiro ' PCB é anterior à
criação das Ligas Camponesas. Como não havia base legal que permitisse a
sindicalização, porém, o partido voltou-se para a criação de associações que,
em alguns casos, foram transformadas em sindicatos quando a legislação o
permitiu. É importante lembrar, ainda, que nessa época já havia, principalmente
nos estados do Sul do Brasil, uma federação de trabalhadores e lavradores, a
União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil ' ULTAB, criada sob a
influência direta do Partido Comunista Brasileiro.
4. Para uma análise mais detalhada dos processos de expropriação e precarização
do trabalho nas lavouras canavieiras ver Palmeira (1979) e Sigaud (1979).
5. No caso específico desta ocupação, sua base era formada por famílias
inteiras de colonos que haviam sido expulsas das áreas indígenas do norte do
Rio Grande do Sul. Para maiores informações sobre o caso ver Gehlen (1983).
6. De fato, os acampamentos não eram formados apenas por descendentes de
imigrantes europeus, mas foram os colonos, como eram chamados, que tomaram as
rédeas do movimento e formularam suas principais demandas. Não por acaso este
ficou conhecido como "movimento dos colonos sem terras". Para uma análise mais
detalhada do evento ver o trabalho de Gehlen (1983).
7. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Formoso foi um dos mais ativos
pólos das lutas salariais e por direitos trabalhistas nas décadas anteriores.
Seu principal dirigente ocupou, durante o final da década de 80, importantes
cargos na diretoria da federação estadual.
8. O nome deste dirigente foi o que por mais vezes apareceu nas solicitações de
desapropriação de terras feitas à Superintendência do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária ' INCRA em Recife desde 1980.
9. A organização de secretarias de acordo com as chamadas "frentes de luta"
está diretamente relacionada à presença de sindicalistas ligados à Central
Única dos Trabalhadores ' CUT na CONTAG e na FETAPE. No entanto, o fato de ter
sido criada uma Secretaria de "Reforma Agrária", e não de outra luta, indica
que o problema estava posto (a meu ver pela chegada do MST) para os
sindicalistas pernambucanos. Se analisarmos as secretarias criadas na FETAPE
nos últimos anos, poderemos constatar que sua emergência está ligada à
imposição social de novos problemas ou, no linguajar sindical, de novas lutas,
como foi o caso, por exemplo, das Secretarias de Mulheres e de Jovens, criadas
mais recentemente.
10. Segundo dados do INCRA para 1997.
11. Existem informações, não confirmadas pelos dados oficiais, de que as
federações de São Paulo e Minas Gerais também haviam realizado ocupações de
terra.
12. Os próprios sindicatos, nas campanhas salariais das décadas anteriores,
nunca deixaram de ter como ponto de pauta a destinação de uma área dos engenhos
para o plantio de uma lavoura de subsistência dos canavieiros (a chamada Lei do
Sítio). A realização de ocupações, no entanto, não é mencionada nos documentos
sindicais da época.
13. Agradeço principalmente os comentários de Lygia Sigaud sobre os eventos que
presenciara em anos anteriores.
14. Sobre algumas das conseqüências recentes da desregulamentação do trabalho
no Brasil, ver Cardoso (2003).
15. Contribui para esta constatação o fato de que, após ser derrotado na
eleição da FETAPE, João Santos tenha criado uma nova organização (um movimento,
nas suas palavras), nos moldes do MST, a Organização de Luta no Campo ' OLC,
dedicada exclusivamente a organizar ocupações de terra para exigir a
desapropriação de áreas para fins de reforma agrária.