Regime político e sistema de inteligência no Brasil: legitimidade e efetividade
como desafios institucionais
INTRODUÇÃO
Neste texto, discuto as mudanças ocorridas na área de inteligência no âmbito do
governo brasileiro entre 1999 e 2004. Tal discussão tem dois objetivos
principais: 1º) debater a relação entre desempenho agregado dos regimes
políticos democráticos (capacidade estatal e legitimidade) e as instituições da
área de segurança. Dado o foco do trabalho em um tipo específico de instituição
governamental (serviços de inteligência), importa saber o quanto as variações
observadas em um país qualquer ' na forma como as atividades de inteligência
são legalmente definidas e no modo de organizar tais atividades ' são
congruentes com a natureza do regime político vigente. Por outro lado, como os
diferentes níveis de efetividade e legitimidade das atividades de inteligência
afetam o desempenho do regime político como um todo1. 2º) sistematizar e
atualizar as informações dispersas que existem sobre essas agências
governamentais no caso do Brasil, de modo que os leitores interessados possam
ter uma visão geral dos processos em curso, suas realizações e também seus
limites2.
O argumento aqui desenvolvido está organizado em quatro partes. Nesta
introdução são explicitadas duas premissas gerais e a hipótese que orientou a
pesquisa. Em seguida, discute-se brevemente a natureza do regime político
brasileiro atual e alguns indicadores de desempenho relevantes para a
compreensão da atividade de inteligência. Na terceira parte são apresentadas as
mudanças na conformação organizacional e legal do sistema de inteligência deste
país ao longo do período 1999-2004. Finalmente, na conclusão, são resumidas as
principais descobertas da pesquisa.
A primeira premissa adotada aqui supõe que a existência de serviços de
inteligência institucionalizados, isto é, legítimos e efetivos, é condição
necessária para um Estado democrático garantir a segurança dos cidadãos e
promover o interesse público. Nesse sentido, serviços de inteligência são parte
essencial, juntamente com as Forças Armadas, as polícias e a diplomacia, do
aparato burocrático de qualquer Estado com pretensões mínimas de autonomia no
sistema internacional. Estados com regimes políticos democráticos não são
excepcionais, no sentido de que poderiam prescindir desse tipo de capacidade ou
poder3 (cf. Barry, 1991).
A segunda premissa diz respeito à tensão existente entre os requisitos de
segurança impostos a qualquer país em função da estrutura anárquica do sistema
internacional (self-helpe ganhos relativos) e os critérios mínimos da
democracia enquanto regime político. Além dos problemas comuns de controle
democrático que existem em outras áreas de atuação do Estado, também
caracterizadas por complexidade tecnológica e organizacional, na segurança há
tensões e dificuldades específicas que podem ser sintetizadas pela dupla
dicotomia segurança estatal versus segurança individual e segredo governamental
versus direito à informação. Obviamente, ambas as dicotomias não são
características exclusivas dos países semiperiféricos e periféricos, ou que
passaram por regimes autoritários de governo há menos de vinte anos,
manifestando-se de maneira mais ou menos intensa também nos países mais
poderosos, ricos e democráticos do mundo4.
Considero, entretanto, que o duplo desafio da legitimidade e da efetividade dos
serviços de inteligência é particularmente decisivo nas chamadas "novas
democracias" como o Brasil, exatamente pela experiência do regime militar
e pelos desafios recentes na área de segurança pública e inserção
internacional5.
Segundo a hipótese de trabalho que orientou a pesquisa, embora o regime
político brasileiro seja democrático e consolidado segundo critérios mínimos, a
capacidade estatal do país ainda é relativamente baixa, o que se traduz no grau
de efetividade das novas estruturas de inteligência que começaram a ser
implementadas a partir de 1999. Na fase atual de desenvolvimento político do
país, uma persistente vulnerabilidade em termos de capacidade estatal na área
de provimento de defesa nacional e segurança pública tende a ser deletéria
tanto para a estabilidade quanto para a qualidade da democracia. Nesse sentido,
conquanto a legitimidade e a efetividade dos serviços de inteligência sejam
dois lados da mesma moeda, no caso brasileiro os desafios atuais de
institucionalização desses serviços estão mais fortemente associados à
efetividade e eficiência do que à legitimidade6.
A NATUREZA DO REGIME POLÍTICO E A CAPACIDADE DO ESTADO NO BRASIL
Adoto como ponto de partida quatro condições necessárias e suficientes para
caracterizar um regime político como democrático: 1) os dirigentes dos Poderes
Executivo e Legislativo são selecionados com base em eleições periódicas,
competitivas e consideradas limpas pelos participantes e observadores externos
aceitos pelos candidatos; 2) os direitos políticos de votar e ser votado são
extensivos a toda a população adulta; 3) os direitos políticos e civis básicos
(expressão, organização e integridade física) de cada cidadão não são violados
sem que os governantes sejam responsabilizados política e judicialmente; 4) os
representantes eleitos podem governar sem a tutela de grupos de poder não
eleitos, sejam eles militares, empresários, governos estrangeiros ou outros
grupos de interesse7 (ver Mainwaring et alii, 2001).
Adicionalmente, utilizo aqui uma definição "negativa" de
consolidação: um regime político pode ser considerado consolidado após vinte
anos de existência sem que suas características básicas sejam transformadas,
seja de forma abrupta e violenta ou por meio de uma erosão mais ou menos lenta
e relativamente pacífica. Os problemas típicos da transição de um regime
político para outro são importantes em si mesmos, mas também são relevantes
porque condicionam o desenho institucional e o desempenho do novo regime
político (Aguero, 1998)8.
Além do problema da "durabilidade", uma agenda de pesquisa
normativamente orientada a respeito dos regimes políticos gira,
necessariamente, em torno da pergunta sobre "que diferença faz" ter
um ou outro tipo de regime político para a liberdade e a igualdade dos membros
individuais de uma sociedade. No caso em tela, saber se um regime político é
democrático necessariamente envolve avaliar a consistência entre o regime
político e áreas específicas de atuação governamental. Parte significativa do
esforço realizado neste texto tem por objetivo justamente estabelecer
parâmetros para testes comparativos de consistência desse tipo na área de
segurança estatal em geral, e na área de inteligência em particular9.
O Brasil como Democracia Consolidada: Medidas Comportamentais Agregadas
Com base nas três primeiras características utilizadas como critérios de
classificação (eleições competitivas, sufrágio universal e vigência de
liberdades políticas e civis), há amplo consenso na literatura sobre a natureza
democrática do atual regime político brasileiro. Esta conclusão geral aparece
em projetos de pesquisa que usam classificações dicotômicas que dividem os
regimes políticos em democracias ou ditaduras (e.g. Przeworski et alii, 2000),
bem como em classificações tricotômicas que incluem algum tipo de
semidemocracia ou semi-autoritarismo como forma de acomodar violações parciais
de um ou mais critérios adotados (Mainwaring et alii, 2001). Do mesmo modo,
isso também ocorre em projetos que usam medidas contínuas de democracia, tais
como o Projeto Polity da Universidade de Maryland ou o índice da fundação
Freedom House, nos quais o Brasil recebe avaliações que o consideram
democrático10.
Na última classificação da Freedom House (2004), por exemplo, o Brasil foi
considerado livre, enquanto Venezuela e Colômbia foram classificadas como
parcialmente livres. Note-se que estes dois países foram incluídos na amostra
de casos do ambicioso estudo comparativo de Arend Lijphart (2003) sobre a
relação entre tipos de regimes democráticos e desempenho econômico, social e
político dos países, sendo que tal inclusão se deu justamente porque ambos os
países andinos atendiam naquele momento ao duplo requisito adotado pelo autor
para aceitar um regime democrático como consolidado: durar mais de vinte anos
sem rupturas institucionais e ser classificado como plenamente livre pela
Freedom House11.
Embora a duração do regime democrático brasileiro ainda não tenha superado esse
limiar de vinte anos de estabilidade, quer se considere o ano da transferência
de poder dos militares para um presidente civil (1985), quer se considere o ano
da primeira eleição direta para a Presidência da República sob uma Constituição
democrática (1989), o país encontra-se agora muito próximo de atender a esse
requisito. Além disso, todas as avaliações internacionais prospectivas de risco
político para um período de cinco anos são consistentes, há vários anos, em
afirmar que não se vislumbra, no caso do Brasil, a possibilidade de uma
interrupção do processo democrático (Kingstone e Power, 2000)12.
Finalmente, a eleição do presidente Lula no final de 2002 e a chegada do
Partido dos Trabalhadores ' PT ao governo federal têm sido destacadas como
evidências de consolidação da democracia brasileira. Creio que isso faz
sentido, tanto por razões políticas quanto sociológicas. Em termos políticos, a
situação de "governo dividido" que caracteriza a cena brasileira, com
a oposição controlando os governos estaduais mais importantes e o presidente
dispondo de maioria precária no Congresso, exige que a coalizão governante
imprima alguma marca própria na priorização de gastos públicos até o final do
mandato de Lula em 2006. Em termos sociológicos, a coalizão de Lula implicou
uma circulação das elites na gestão pública e nos cargos representativos da
República maior do que a observada em qualquer outro governo federal desde o
final do regime militar13.
Em resumo, segundo medidas comportamentais agregadas e critérios de
classificação minimalistas, o regime político brasileiro é considerado
democrático e consolidado14.
Entretanto, uma avaliação mais completa do desempenho "qualitativo"
do regime político vigente no Brasil demanda uma discussão mais detida sobre o
exercício da quarta condição mencionada no início desta seção. Para fins de
comparação posterior com outros países, utilizarei três conjuntos de
observações adicionais no caso do Brasil: 1) medidas estruturais de desempenho
no provimento de eqüidade (renda per capita nominal e índice de desigualdade
social) e medidas atitudinais (satisfação com a democracia e apoio da população
a esta forma de governo), contrastadas com um "limiar de
estabilização" previamente estabelecido; 2) o estado atual das relações
civil-militares no país; 3) indicadores de capacidade estatal. Os problemas
relativos ao uso de tais medidas serão discutidos ao longo do texto.
O Brasil como Democracia ainda Vulnerável: Déficits Estruturais e Atitudes
Adotarei aqui os limiares propostos por Andreas Schedler (2001a) para três
indicadores não comportamentais de qualidade democrática, a saber: renda per
capita nominal superior a US$ 3.000, desigualdade inferior a 0,50 (coeficiente
de Gini) e legitimidade acima de 66% (apoio declarado ao regime democrático).
Os três limiares são relativamente baixos e assumidamente arbitrários,
servindo, no entanto, ao propósito de fornecer um parâmetro comparativo mínimo.
Em relação aos fundamentos socioeconômicos, o Brasil tinha US$ 2.993 de renda
per capita nominal na média dos anos 1999-2003. Uma vez ajustada pela paridade
do poder de compra, esta renda per capita estava estimada em US$ 7.600 em 2003,
mas sem melhorias significativas há muitos anos. Além disso, essa renda média
oculta uma altíssima concentração, com os 10% mais ricos controlando quase
metade da renda familiar e com disparidades muito grandes inclusive dentro
desse decil de renda mais elevado. Ostentando um coeficiente de Gini de 0,59 em
1999 e um Índice de Desenvolvimento Humano de 0,750 em 2001, o Brasil apresenta
ainda significativas e persistentes desigualdades raciais, de gênero e
regionais (maior parte do PIB gerado nas regiões Sudeste e Sul), bem como
clivagens determinadas por diferentes graus de controle sobre recursos cruciais
(terra, crédito, tecnologias de comunicação e informação, escolarização etc.).
Por sua vez, em relação aos fundamentos atitudinais dos comportamentos dos
atores, os dados da pesquisa de opinião Latinobarómetro para 2004 indicam que
apenas 4% dos entrevistados no Brasil confiam nas outras pessoas. Este
baixíssimo índice de confiança interpessoal é consistente com o número
decrescente de pessoas que apóiam consistentemente a democracia como regime de
governo (queda de 9% desde 1996). Dados da mesma pesquisa indicam que somente
28% dos entrevistados brasileiros estão satisfeitos com a democracia, enquanto
apenas 41% consideram esta forma de governo superior a qualquer outra (sendo
que este percentual chega a 74% no caso da Venezuela e, no caso do Uruguai, a
78%). Somente 56% dos entrevistados afirmam que não apoiariam um golpe militar
em nenhuma condição; apenas 46% acreditam que um governo militar solucionaria
menos coisas que um governo democrático, embora apenas 18% declarem acreditar
que em algumas circunstâncias um governo autoritário seria preferível a um
governo democrático. Em 2001, 53% dos entrevistados brasileiros confiavam nas
Forças Armadas (contra uma média de 38% na América Latina), enquanto as
instituições representativas brasileiras contavam com taxas de apoio abaixo da
média para a América Latina (cujas médias eram de 24% no caso dos parlamentos,
19% para os partidos políticos e 30% para os presidentes) (Latinobarómetro,
2004; ver, também, Dominguez e Shifter, 2003:137-161).
Ou seja, o Brasil apresenta índices piores em medidas estruturais e atitudinais
de desempenho do que nas medidas comportamentais agregadas. Com todas as
dificuldades metodológicas (e.g. mensuração e validade de indicadores
atitudinais) e teóricas (e.g. direção da causalidade) que possam ser lembradas,
o fato é que tanto os condicionantes estruturais (condições socioeconômicas)
quanto os fundamentos atitudinais (valores, opiniões e preferências) dos
comportamentos dos sujeitos políticos indicam que a "consolidação" '
no sentido negativo adotado ' do regime democrático brasileiro está longe de
significar o fim das vulnerabilidades ou um desempenho excelente do regime ao
longo dos últimos quinze anos.
Trata-se de um problema comum a todas as "novas democracias" em maior
ou menor grau, mas a aposta dos estudiosos e dos policymakers é que tais
problemas possam ser revertidos ou minimizados a partir de investimentos
pesados em reforma institucional, ainda que demorados e incertos. Utilizando
uma imagem de três estágios no processo de desenvolvimento latino-americano
posterior a 1990, Patrice Franko (2003:490-494) conclui que, mesmo nos casos de
superação bem-sucedida do primeiro estágio ("estabilização severa"
dos fundamentos macroeconômicos), ou mesmo do segundo estágio de
desenvolvimento ("transformação estrutural" dos equilíbrios entre
Estado/mercado e interno/externo), os desafios associados ao terceiro estágio
("construção de capacidades") seriam justamente os mais demorados e
difíceis, envolvendo investimentos significativos e sustentados ao longo do
tempo em desenvolvimento humano, melhoria de produtividade, infra-estrutura e
mudança nos padrões de interação entre indivíduos, grupos e instituições
formais e informais15.
Nesse sentido, a aposta na reforma das instituições, a segunda direção em que o
desempenho do regime político brasileiro precisa ser melhor analisado, em
conexão com os desafios na área de inteligência, diz respeito exatamente aos
aspectos institucionais que seriam mais ou menos conducentes a uma estruturação
ágil e legítima desses serviços. Tais aspectos institucionais, por sua vez,
podem ser divididos, adicionalmente, em dois tipos de considerações: primeiro,
o equacionamento das relações civil-militares nos marcos de um regime
democrático caracterizado por forte viés consensual na moldura institucional
mais ampla e por problemas estruturais e atitudinais que persistem após a
consolidação democrática; segundo, o problema da capacidade estatal em um país
semiperiférico nos marcos de uma transição sistêmica de poder no plano
global16.
Relações Civil-Militares como Medida de Desempenho Democrático
Identificar padrões de relações civil-militares é tarefa decisiva para que se
possa avaliar um regime político democrático. Na área de inteligência isto é
ainda mais importante, uma vez que na maioria dos países as Forças Armadas e os
Ministérios da Defesa controlam a maior parte dos recursos orçamentários,
humanos, tecnológicos e organizacionais que o Estado tenha sido capaz de
acumular na área de inteligência (Antunes e Cepik, 2003). No caso das
"novas democracias" com menos de vinte anos, há uma razão adicional
decorrente da grande presença de militares da reserva e da ativa nos escalões
intermediários e superiores das agências civis de inteligência. Em termos
analíticos mais gerais, supõe-se então que o estado das relações civil-
militares em um dado país tende a ser consistente com o regime político
vigente. Além disso, as relações civil-militares são um indicador indireto do
grau de controle democrático sobre os serviços de inteligência17.
Como lembra Rojas (2004:1-11), entre 1990 e 2004, a América Latina vivenciou
pelo menos cinco golpes de Estado, vinte rebeliões e/ou sérias crises
militares, além de oito colapsos/derrubadas de governos. Em alerta semelhante,
Trinkunas (2000:78) destaca que, ao longo dos últimos quinze anos, houve no
mundo todo um número significativo de transições da democracia para regimes
autoritários (apenas entre 1990 e 1992 houve doze golpes de Estado bem-
sucedidos e 26 fracassados).
Como os padrões de relacionamento entre civis e militares que estão emergindo
nas novas democracias são tão complexos e diversificados quanto os próprios
regimes políticos democráticos, é preciso utilizar como ponto de partida para a
análise um modelo que reconheça essa diversidade tipológica e também seja
sensível à variação temporal. Embora existam várias alternativas que
correspondem a esse duplo requisito, adotarei aqui a perspectiva proposta por
Samuel Fitch (1998)18.
Segundo Fitch (idem:36-60), sistemas democráticos de relações civil-militares
possuem três características essenciais: 1) existe uma clara subordinação das
Forças Armadas ao processo decisório democrático, com a superação da noção
autoritária de que as Forças Armadas são as "guardiãs da nação",
situadas acima da soberania popular e das instituições representativas de
governo que decidem concretamente quais são os "interesses nacionais"
nos marcos de uma Constituição livremente adotada; 2) verifica-se a
subordinação das cadeias de comando e controle das Forças Armadas às
autoridades civis designadas constitucionalmente para implementar as políticas
públicas de defesa e segurança; 3) os militares estão sujeitos ao império da
lei (rule of law), tanto no sentido de não terem quaisquer direitos
constitucionais ordinários negados (como em alguns países que proíbem os
militares de votar), quanto no sentido de não terem privilégios legais e
isenções de responsabilidade por atos cometidos no exercício de suas funções
profissionais.
Avaliando a experiência dos países latino-americanos depois de 1990, é possível
identificar pelo menos dois padrões diferentes de profissionalização
("clássico-huntingtoniano" e "desenvolvimentista"), quatro
níveis de "autonomia para governar depois de eleito" (ditadura
militar, tutela das Forças Armadas sobre o governo, subordinação condicional e
controle democrático) e um continuum discreto de situações mais ou menos
institucionalizadas para os dois padrões e os quatro níveis. As duas situações
intermediárias (tutela militar e subordinação condicional) apresentam
diferenças de grau e podem ocorrer tanto em regimes democráticos quanto
autoritários19. A diferença principal entre ambas é que, no caso da tutela
militar, o poder de veto e a influência exercida pelos militares nas decisões
políticas são "expansivos", abarcando temas da vida política muito
além da área de defesa, tais como conflitos distributivos, legislação
previdenciária, posse de terra, política ambiental, duração de mandatos
presidenciais etc. No caso da subordinação condicional, as Forças Armadas
operam como um dos grupos de interesse poderosos na sociedade e subordinam-se
aos governantes na maioria dos casos, desde que interesses vitais da corporação
não sejam contrariados. Mesmo quando as Forças Armadas aderem às regras
constitucionais, deixam de considerar a si próprias como guardiãs dos
"objetivos nacionais permanentes" e subordinam-se às decisões
governamentais sobre política de defesa e estrutura das forças. A debilidade
dos mecanismos de controle democrático existentes no Legislativo e Executivo
pode implicar margens significativas de autonomia em termos de doutrina,
organização, prioridades de investimento, gestão de pessoal, inteligência etc.
Na Figura_1, encontra-se uma adaptação do argumento de Fitch (1998:39), que
enfatiza os dois atributos fundamentais e sua evolução ao longo do tempo.
Embora haja significativa controvérsia sobre o grau de autonomia militar no
Brasil pós-1990, a maioria dos pesquisadores concorda que as relações civil-
militares durante o primeiro governo democrático após a transição (1985-1989)
foram caracterizadas por tutela militar (assim como no caso do Chile), enquanto
o período entre 1990 e 1999 foi marcado por uma evolução lenta para níveis de
subordinação condicional cada vez menos severos, especialmente nos anos após a
criação do Ministério da Defesa (2000-2004).
Entretanto, nem mesmo os analistas mais otimistas em relação aos casos do
Brasil, ou mesmo da Argentina e do Uruguai, chegam a afirmar que estes países
hoje possuem sistemas de controle democrático plenamente institucionalizados
sobre as Forças Armadas. A razão principal para esta relutância, especialmente
no caso brasileiro, é a extrema fragilidade institucional do novo Ministério da
Defesa vis-à-vis os comandos das três forças, bem como a falta de assertividade
das comissões parlamentares permanentes e do Congresso brasileiro como um todo
no exercício de suas capacidades de supervisão e influência sobre prioridades,
tanto políticas quanto orçamentárias20.
Portanto, assim como no caso dos "limiares de consolidação" das
variáveis estruturais e atitudinais discutidas na seção anterior, pode-se dizer
que, em termos de relações civil-militares, o Brasil se encontra atualmente em
um patamar intermediário, entre o que Fitch caracteriza como subordinação
condicional e uma situação mais claramente identificável como "controle
democrático". Aceito provisoriamente esta avaliação, reconhecendo que ela
é imprecisa e subjetiva. E aceitá-la tem pelo menos duas implicações para a
discussão sobre os serviços de inteligência.
Em primeiro lugar, indica que o grau de controle democrático exercido sobre os
serviços de inteligência militares é baixo e que isso tem conseqüências para o
desempenho do regime democrático brasileiro. A matriz formulada por Peter Gill
(1994:82) para classificar serviços de inteligência em função de graus de
legitimidade derivados da observação de duas dimensões (autonomia decisória e
pervasividade na sociedade) e três níveis (alto, médio e baixo), em princípio,
fornece nove possibilidades de classificação capazes de distinguir não apenas a
situação de distintos serviços de inteligência e de segurança de um mesmo país
em um mesmo momento histórico, mas também de um mesmo serviço em diferentes
momentos históricos, ou ainda permite a classificação de sistemas nacionais de
inteligência para todos os países que contam com este tipo de agência
governamental. Uma primeira tentativa de classificar as organizações
brasileiras segundo essa matriz será feita na seção final deste texto. Vale
notar desde já, entretanto, que as proposições de Fitch (1998) e Gill (1994)
são compatíveis e úteis para um enquadramento comparativo dos serviços de
inteligência, embora ambas tenham como foco principal os problemas de
legitimidade, mais do que os problemas de efetividade.
Em segundo lugar, portanto, o nexo entre relações civil-militares e controle
democrático dos serviços de inteligência conduz à discussão sobre capacidade
estatal. No contexto atual da América Latina, onde as limitações orçamentárias
se tornaram cada vez mais dramáticas ao longo da última década, ao mesmo tempo
que houve pressões internas e externas para ampliar o envolvimento das Forças
Armadas e dos serviços de inteligência em áreas cada vez mais afastadas da
política internacional e das missões de defesa do território contra ameaças
externas, o envolvimento dessas organizações em missões cívicas,
antinarcóticos, de provimento de ordem pública e tantas outras, sem um adequado
desenvolvimento de equipamento, organização e doutrina, tende a trazer de volta
para a agenda do controle democrático os temas tradicionais associados ao
binômio "segurança e desenvolvimento" das décadas de 60 e 70.
Capacidade Estatal e Democracia: Tributação e Defesa como Indicadores
A capacidade de formulação, implementação e avaliação de políticas públicas de
um Estado é uma dimensão inseparável da avaliação da qualidade da democracia.
Sem uma adequada capacidade institucional de fazer valer as regras e
implementar as decisões tomadas pelos sujeitos políticos, ou sem a capacidade
de garantir o cumprimento dos direitos e deveres associados à cidadania, um
regime democrático torna-se aquilo que os cientistas políticos da República de
Weimar chamariam de "um pacto suicida". Por isso, a literatura de
política comparada vem enfatizando, há mais de dez anos, o estudo dos dilemas
associados à construção de capacidades institucionais e fortalecimento do
Estado (Geddes, 1994).
Entretanto, na maioria dos casos, os estudos disponíveis estão voltados para a
relação entre eficiência e legitimidade nas áreas de política econômica e/ou
políticas sociais. Faltam estudos similares no âmbito da defesa, segurança
pública e inteligência. Como os Estados contemporâneos são definidos (e
diferenciados entre si) pela sua capacidade de prover segurança e bem-estar a
todos os cidadãos, ainda que os gastos públicos de todos os países mais
importantes no sistema internacional sejam predominantemente gastos sociais
(saúde, educação, pensões e outras políticas sociais) e não mais gastos
militares, isso não torna menos relevante o desempenho do Estado na área de
segurança para uma avaliação das condições de consolidação democrática (Lane e
Ersson, 1994).
Um bom exemplo de como as duas dimensões podem ser integradas aparece na Figura
2, onde é possível visualizar a formulação recente de Charles Tilly (2003:41)
sobre a variação concomitante dos regimes políticos em termos de capacidade do
Estado e de aprofundamento da democracia.
É importante notar, sobretudo, como o modelo assume que existem áreas de
autoritarismo mesmo em regimes políticos caracterizados por alta capacidade
governamental e democracia. Estas "zonas de autoritarismo"
caracterizam não apenas os países mais industrializados da semiperiferia (e.g.
Brasil e África do Sul), mas também certas áreas de atuação e atividades do
Poder Executivo dos países centrais onde os mecanismos de controle democrático
são precários ou enfrentam dificuldades significativas (e.g. atividades de
inteligência e operações militares). Além disso, mostra como a relação entre
legitimidade e efetividade é complementar e não antagônica. O que Tilly (2003)
chama de "zona de cidadania" traduz, simultaneamente, o que Dahl
(1997) chamou de "poliarquia" (enfatizando o grau de democracia) e o
que Huntington (1975) chamou de "comunidade cívica" (enfatizando o
grau de governo). Em outras palavras, descreve os traços ideais-típicos de um
regime político onde há grande quantidade de poder acumulado e um nível mínimo
de distribuição desse poder entre os indivíduos e grupos sociais relevantes
para a sustenção do regime.
Existe grande divergência sobre medidas internacionalmente comparáveis de
capacidade governamental agregada. Deixando de lado, por ora, uma possível
utilização de medidas de capacidade disponíveis na área de políticas sociais
adaptáveis para as áreas de defesa, segurança e inteligência, neste texto vou
utilizar como proxy genérica de capacidade dos governos a sua capacidade de
arrecadar tributos da sociedade e alguns indicadores muito subjetivos de
capacidade bélica. Para relembrar o sentido do exercício, supõe-se como
hipótese de trabalho que a capacidade estatal brasileira seja hoje
desproporcionalmente inferior ao grau de democracia observado no país, o que é
algo deletério para a "durabilidade" e a "qualidade" do
regime democrático no país, demandando assim cuidadosa construção institucional
de capacidades específicas que permitam equalizar melhor as duas dimensões21.
Para evitar as oscilações anuais características das economias em
desenvolvimento e da América Latina em particular nos últimos anos, considere-
se o desempenho do Brasil em dois períodos de cinco anos. Naquele de 1994-1998,
para um PIB nominal médio de US$ 724,11 bilhões, a carga tributária bruta média
foi de US$ 189,61 bilhões (26,2% do PIB). Para o período 1999-2003, o PIB
nominal médio caiu para US$ 520,17 bilhões por ano, mas a carga tributária
bruta média naqueles anos subiu para US$ 255,88 bilhões ao ano (49,2% do PIB).
Não obstante essa brutal concentração de recursos nas mãos do Estado, a
capacidade de investir ou mesmo de custear as operações correntes foi sendo
cada vez mais comprometida, ao longo do período, pelo peso de uma dívida que
passou a representar 41,8% do PIB na média dos anos 1999-2003. Saldos
comerciais anuais em média de US$ 7,7 bilhões (US$ 24,82 bilhões em 2003) e
saldos primários (receitas menos despesas antes do pagamento de obrigações
financeiras e títulos da dívida) crescentes tendem a produzir efeitos positivos
a médio prazo, mas de modo geral o Estado brasileiro ainda está estrangulado
pelo volume e perfil de sua dívida pública no curto prazo22.
Um outro indicador relevante para uma avaliação da capacidade do Estado e dos
processos de reforma na área de inteligência seria justamente a defesa. Segundo
Dunnigan (2003:619-644), o Brasil possuía em 2000 um índice de capacidade de
combate terrestre igual a 94, um índice de qualidade total das Forças Armadas
de 33%, cerca de 285.000 efetivos (195.000 no Exército), orçamento de defesa de
US$ 18 bilhões por ano, um gasto militar anual por soldado de US$ 63, 1.700
veículos blindados, 320 aeronaves de combate dedicadas à guerra terrestre, um
índice de capacidade de combate naval igual a 06, representando 0,99% do poder
naval disponível no mundo, com 24 navios de guerra e um índice de qualidade de
65% para as forças navais. No âmbito do continente americano, a capacidade
bélica brasileira estava classificada em segundo lugar depois dos Estados
Unidos, sendo o Brasil seguido pelo Canadá, Colômbia, México, Chile, Argentina,
Peru, Venezuela, Cuba e então os demais países23.
Em relação ao orçamento de defesa, cabe observar que, em função da decisão do
governo Lula de aumentar o superávit primário nas contas públicas para reduzir
a exposição do país a choques externos (necessidade gerada pela péssima
situação econômica herdada do governo Fernando Henrique Cardoso), o volume de
recursos aprovados para a área de defesa para o ano fiscal de 2004 foi reduzido
em termos nominais em quase 50% em relação ao ano de 2000, para cerca de US$
9,4 bilhões, representando apenas 1,9% do PIB e também cerca de 1,9% do
orçamento federal de 2004. Entretanto, tão grave quanto a redução global do
orçamento de defesa é o perfil dos gastos, com 75,5% destinados ao pagamento de
salários e (principalmente) pensões, 11,3% para despesas correntes e apenas
3,8% para investimentos24.
Com uma situação orçamentária ainda mais difícil na área de defesa do que na
proxy geral representada pela arrecadação tributária, é preciso agora verificar
se as mudanças estruturais ocorridas na área de inteligência são consistentes
com o tipo de regime político, o grau de democratização e a capacidade estatal
brasileira.
SISTEMA BRASILEIRO DE INTELIGÊNCIA: MUDANÇA ESTRUTURAL E CONTROLE
Estabelecido o duplo contexto no qual foram realizadas as mudanças estruturais
na área de inteligência no Brasil ao longo dos últimos dez anos (consolidação
democrática sem redução das desigualdades e baixa capacidade estatal para
garantir direitos civis e defesa coletiva), é preciso agora apresentar
sistematicamente essas mudanças e refletir sobre os problemas de controle
democrático associados à emergência de novas organizações e procedimentos.
Quadro Legal e as Estruturas Organizacionais
A configuração atual da área de inteligência no Brasil foi estabelecida pela
Lei nº 9.883, de 7 de dezembro de 1999, por meio da qual o Congresso Nacional
criou a Agência Brasileira de Inteligência ' ABIN** e instituiu o Sistema
Brasileiro de Inteligência ' SISBIN.
Legalmente, a ABIN é considerada o órgão central desse sistema e tem a função
de regular o fluxo de informações produzidas pelas instituições a ela
vinculadas. Com cerca de 1.600 funcionários, a agência contava em 2004 com
aproximadamente quatrocentos analistas de informações de nível superior. Na
verdade, a Lei nº 9.883 continuou uma tradição de definições bastante genéricas
acerca do mandato legal das agências de inteligência no Brasil, mas também foi
o resultado possível de diversas iniciativas legislativas apresentadas pelos
partidos de esquerda e pelo governo Fernando Henrique Cardoso, negociações
internas no Poder Executivo e pressões da sociedade civil ao longo da década de
199025.
Nos artigos iniciais dessa lei, a atividade de inteligência foi definida como
sendo aquela que visa a "obtenção, análise e disseminação de conhecimentos
dentro e fora do território nacional sobre fatos e situações de imediata ou
potencial influência sobre o processo decisório e a ação governamental e sobre
a salvaguarda e a segurança da sociedade e do estado". De maneira
igualmente genérica, a contra-inteligência foi enunciada como a "atividade
que objetiva neutralizar a inteligência adversa". O conteúdo específico do
que seriam as prioridades e ênfases temáticas de ambas as atividades ficou de
ser detalhado por uma Política Nacional de Inteligência a ser fixada pelo
presidente da República, depois de ouvir sugestões do órgão externo de controle
no Congresso.
Inicialmente de maneira lenta, mas adquirindo um tempo crescente nos últimos
dois anos, emergiu no Brasil uma importante estrutura legal de regulamentação
da atividade de inteligência. Para uma visão mais abrangente e rigorosa dessa
moldura legal seria preciso analisar de modo integrado a Constituição Federal
de 1988, a legislação em vigor diretamente relacionada com os serviços de
inteligência e o restante da legislação infraconstitucional que define os
crimes contra a segurança do Estado e dos indivíduos, regula os instrumentos de
controle do crime (inclusive interceptações telefônicas), define segurança
informacional e segredo governamental, fixa os procedimentos de controle para a
administração pública de modo geral etc. Obviamente, uma avaliação tão
abrangente do quadro legal está muito além das possibilidades deste texto.
É preciso destacar, no entanto, que uma série de decretos e portarias
administrativas do Poder Executivo (e.g. o decreto que regulamentou em 2002 o
funcionamento do SISBIN), bem como algumas leis específicas (e.g. plano de
carreira para os analistas de informações da ABIN, aprovado em 2004), definiram
os contornos da atividade de inteligência no âmbito do governo federal. Mesmo
considerando que diferentes organizações e/ou funções do sistema brasileiro de
inteligência recebem mais ou menos atenção nos regulamentos, pode-se dizer que
hoje em dia o Brasil conta com uma legislação bastante desenvolvida nas áreas
de inteligência e de segurança informacional (ver Quadro_1 para uma relação dos
principais instrumentos)26.
Em relação às mudanças organizacionais mais importantes ocorridas depois da
criação da ABIN em 1999, é importante destacar pelo menos cinco transformações
recentes: a) subordinação da agência ao Gabinete de Segurança Institucional '
GSI da Presidência da República; b) criação da Comissão Mista de Controle das
Atividades de Inteligência ' CCAI no Congresso; c) regulamentação da
participação dos ministérios no âmbito do SISBIN; d) criação do Sistema de
Inteligência de Defesa ' SINDE; e) criação do Subsistema de Inteligência de
Segurança Pública ' SISP.
No caso da subordinação da ABIN ao GSI, embora isto signifique uma distorção em
relação ao espírito da lei de 1999 (uma vez que o diretor da ABIN é um civil
que precisa ter seu nome aprovado pelo Senado e o ministro-chefe do GSI é um
general indicado pelo presidente da República), o governo procurou justificar
essa decisão, tomada ainda durante o segundo mandato presidencial de Fernando
Henrique Cardoso, pela necessidade de preservar o presidente das demandas
gerenciais cotidianas e de crises potenciais decorrentes de escândalos e/ou de
tensões inerentes à relação entre inteligência e democracia. Na prática, o
movimento correspondeu a uma série de responsabilidades que o GSI foi assumindo
ao longo do período em função da confiança que o presidente depositava no
general Alberto Cardoso (nenhum parentesco com o presidente). O GSI
transformou-se no principal instrumento agregador dos fluxos informacionais
vindos de vários órgãos federais e no locus de gestão de crises nas áreas de
segurança interna e externa. Embora a ABIN seja definida legalmente como o
órgão central do sistema e exerça um papel de primus inter pares, na prática
sua subordinação ao GSI aumentou o poder de agenda da Presidência da República
sobre as prioridades do trabalho de obtenção e análise de informações, ao mesmo
tempo que reduziu a autoridade da ABIN sobre os demais órgãos participantes.
O segundo desenvolvimento estrutural relevante desde 1999 foi a instalação da
CCAI no Congresso Nacional, ocorrida em novembro de 2000. Prevista na Lei nº
9.883, de 7 de dezembro de 1999, sob a denominação de Órgão de Controle e
Fiscalização Externo, a instalação da Comissão Mista ocorreria apenas um ano
mais tarde. Tendo realizado onze reuniões até julho de 2004, a CCAI enfrentou
até aqui dificuldades para exercer suas funções de controle, as quais decorrem
de três fatores principais: 1º) do próprio desenho institucional do órgão,
presidido a cada ano em caráter rotativo pelo presidente da Comissão de
Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado e da Câmara dos Deputados; 2º)
da falta de recursos técnicos e de pessoal, como exemplifica o fato de que a
única funcionária do Senado que se especializou no tema e contribuiu
decisivamente para implementar a CCAI tem que apoiar os trabalhos de várias
comissões e da mesa diretora do Senado; 3º) da falta de assertividade do
Congresso Nacional como um todo no trato com os componentes militares e
policiais do SISBIN, uma vez que a ABIN e os demais ministérios não parecem ter
colocado maiores obstáculos ao trabalho da comissão ao longo destes primeiros
anos.
Por outro lado, a CCAI foi presidida por parlamentares importantes da coalizão
de centro-esquerda entre 2000 e 2003, tendo realizado iniciativas conjuntas com
órgãos do Poder Executivo, tais como um seminário inédito sobre o tema,
transmitido pela TV do Senado e que contou com a presença de palestrantes do
Brasil e do exterior, além de mais de trezentos participantes, ou o igualmente
inédito processo de consulta à sociedade civil acerca das prioridades da
Política Nacional de Inteligência, um processo iniciado em 2003 e ainda em fase
de implementação. Apesar destas iniciativas, até fevereiro de 2005 a CCAI não
tinha conseguido ainda ver seu regimento interno aprovado pelo Congresso e suas
reuniões e atividades esporádicas continuavam sendo excessivamente determinadas
por uma lógica reativa a eventuais escândalos e denúncias que aparecem na
mídia27.
Além da CCAI, outras quatro comissões poderiam exercer algum papel no controle
externo sobre diferentes partes do sistema, quais sejam: as Comissões de
Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara ' CREDEN e do Senado ' CRE, bem
como a Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado ' CSPCCO da
Câmara dos Deputados e, ainda, a Subcomissão Permanente de Segurança Pública da
Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal. Em relação aos
orçamentos, exercem fiscalização sobre a área de inteligência tanto a
Secretaria de Controle Interno da Presidência da República quanto o Tribunal de
Contas da União ' TCU28.
A publicação do Decreto Executivo nº 4.376, em 2002, representou um passo além
na delimitação das fronteiras organizacionais do SISBIN. Da forma como o
sistema havia sido definido na lei de 1999, ele não apenas poderia incorporar,
mediante convênios, ministérios e órgãos da administração federal indireta,
assim como organizações estaduais e municipais, mas até mesmo empresas privadas
e entidades da sociedade civil. Embora estes artigos da lei sigam em vigor e
tenham sido reiterados pelo texto do decreto, na prática, alguma estabilidade
organizacional foi obtida, fixando-se as unidades de cada ministério
responsáveis pela interação com o SISBIN.
Em 2004, o SISBIN era formado pelo GSI, ABIN, Ministério da Defesa, Ministério
das Relações Exteriores, Casa Civil da Presidência da República (órgão
responsável pela gestão do Sistema de Proteção da Amazônia), Ministério da
Justiça, Ministério da Fazenda, Ministério da Integração Regional, Ministério
da Ciência e Tecnologia, Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Saúde,
Ministério da Previdência Social e, ainda, pelo Ministério do Trabalho.
Entretanto, o peso relativo de cada um desses treze componentes principais é
bastante distinto.
Como se pode notar na Figura_3, pelo menos dois ministérios participam do
SISBIN por meio de três unidades ou mais (Justiça e Defesa), sendo que o
Ministério da Fazenda participa por meio da Secretaria da Receita Federal e da
unidade de inteligência do Banco Central. O Conselho Consultivo do SISBIN é
formado pelo GSI, ABIN, Itamaraty (MRE), Casa Civil, bem como pelos Ministérios
da Defesa, da Justiça e da Fazenda. Ao se definir um Conselho Consultivo
composto por um número ainda mais limitado de ministérios representados por
unidades analíticas e/ou operacionais relevantes para a área de inteligência,
procurou-se reforçar a tendência de melhor delimitação organizacional sem perda
de especialidades funcionais e/ou temáticas29.
Finalmente, é preciso destacar a formalização recente de outras duas redes de
inteligência no Brasil: o SISP e o SINDE.
Embora o SISP tenha sido estabelecido em 2000 por meio do Decreto Executivo nº
3.695, até agora seu potencial integrador dos fluxos de informação nas áreas de
inteligência criminal, inteligência de segurança (ou interna), contra-
inteligência e contraterrorismo foi pouco desenvolvido ' este subsistema é
coordenado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da
Justiça. Numa iniciativa sem precedentes, no segundo semestre de 2003, a equipe
responsável pela coordenação do SISP realizou importantes esforços para a
formulação de uma doutrina de inteligência de segurança pública, bem como para
treinar os núcleos gestores do subsistema nos estados e formular de maneira
cooperativa as bases de um Plano Nacional de Inteligência de Segurança Pública
' PNISP. Infelizmente interrompida, tal iniciativa era crucial para que o
Brasil pudesse enfrentar o crime organizado e a violência urbana, que tendem a
transformar-se na pior ameaça à segurança dos cidadãos e do próprio Estado. Os
principais componentes operacionais do SISP são: o Departamento de Polícia
Federal ' DPF e o Departamento de Polícia Rodoviária Federal ' DPRF, no
Ministério da Justiça; COAF, COPEI e SRF, do Ministério da Fazenda; membros do
Ministério da Integração Regional, do Ministério da Defesa, do Gabinete de
Segurança Institucional da Presidência da República, além das polícias civil e
militar dos 26 estados e do Distrito Federal. Embora definido como um
subsistema do SISBIN, na prática, a quantidade de organizações envolvidas e a
capilaridade das redes de inteligência das polícias tendem a transformar o SISP
em um sistema apenas parcialmente integrado ao SISBIN30.
Já o SINDE foi estabelecido formalmente em junho de 2002, por meio de uma
medida administrativa do ministro da Defesa (Portaria nº 295/MD). Este sistema
foi criado para articular os centros de inteligência da Marinha (CIM), Exército
(CIE), Aeronáutica (CIAer) e Estado-Maior de Defesa (EMD-2) com o Ministério da
Defesa. Daí porque a coordenação do SINDE cabe ao Departamento de Inteligência
Estratégica desse Ministério (DIE), que também é responsável pela representação
do SINDE junto ao SISBIN e ao Congresso Nacional. Estão subordinados ao
Ministério de Defesa os serviços de inteligência de cada força, assim como
secretarias e chefias responsáveis pela inteligência estratégica e operacional.
Em geral, o suporte tático às unidades de escalão intermediário é mais precário
do que a capacidade central em cada força singular31.
Apesar da nomenclatura utilizada (a idéia funcionalista de sistema), o grau de
centralização hierárquica ou mesmo de equilíbrio homeostático no SISBIN é
baixo. Afinal, a noção de "sistema" remete justamente à idéia de um
todo que é mantido coeso pela diferenciação funcional de suas partes. No caso
dos três sistemas de inteligência brasileiros, pode-se dizer que o grau de
diferenciação funcional do sistema é baixo, o que contribui para tornar toda a
iniciativa de integração um ato de "cooperação voluntária" entre
agências que competem por recursos muito escassos. O estabelecimento formal do
SISBIN, do SISP e do SINDE significa um passo significativo para gerar
cooperação entre as agências e, no melhor dos mundos possíveis, melhorar a
integração de fluxos informacionais vitais para a segurança do Estado e dos
cidadãos, mas é apenas um passo no que parece ser ainda um longo caminho no
processo de institucionalização32.
Prioridades, Políticas e ênfases dos dois Últimos Governos
Por outro lado, os novos "sistemas" na área de inteligência no Brasil
contribuem para simplificar os procedimentos de controle externo sobre a
atividade, na medida em que criam pontos de interação mais focalizados entre
uma miríade de organizações de inteligência e os sujeitos políticos
interessados no Congresso Nacional, no Poder Executivo e na própria sociedade.
Em resumo, na Figura_4 encontra-se uma representação da relação entre os três
sistemas que considero mais aproximada da dinâmica de poder de facto e da
distribuição setorial de recursos, mesmo que a lei diga que as áreas de
inteligência militar e policial são subordinadas ao GSI e à ABIN por meio das
regras de funcionamento do SISBIN.
Prioridades, Políticas e Ênfases dos Dois Últimos Governos
De acordo com a lei de criação do SISBIN, as prioridades para a obtenção e
análise de informações são estabelecidas para todo o sistema por meio de uma
Política Nacional de Inteligência e de diretrizes anuais. Ambos os instrumentos
são de responsabilidade do Poder Executivo, ouvida a Comissão Mista do
Congresso. A atual PNI foi enviada ao Congresso em maio de 2000 (Mensagem
Presidencial nº 135), tendo sido aprovada pela CCAI com algumas emendas em
novembro de 2001. Porém, refletindo a fase inicial de estruturação do SISBIN e
a necessidade de legitimar as novas estruturas de inteligência, a PNI tratou de
procedimentos, limites e responsabilidades, com um nível muito baixo de
explicitação de prioridades e ênfases temáticas.
Um indicador mais preciso sobre as diretrizes para o setor pode ser encontrado
nas declarações públicas dos seus dirigentes durante o segundo mandato do
presidente Fernando Henrique Cardoso (1999-2002). Por exemplo, na sua palestra
de abertura do seminário realizado no Congresso Nacional em novembro de 2002, o
general Alberto Cardoso (então ministro-chefe do GSI) destacou as áreas em que
os órgãos de inteligência teriam produzido conhecimentos com impacto
significativo nas decisões governamentais. Vale reproduzir a lista de temas
mencionados: o acompanhamento de movimentos separatistas, o acompanhamento do
atendimento das reivindicações dos movimentos sociais, as questões fundiárias,
a proteção da população indígena, meio ambiente e biodiversidade, oportunidades
e óbices para o desenvolvimento nacional (particularmente nas áreas de
tecnologia de ponta e de aproveitamento de recursos naturais), grilagem de
terras (especialmente na região amazônica), proliferação de armas de destruição
em massa (em apoio às delegações brasileiras e agências multilaterais),
segurança pública nos estados federados (em cooperação com o SISP), combate ao
crime transnacional organizado, narcotráfico, tráfico de armas e
"lavagem" de dinheiro, prevenção do terrorismo, movimentação de
integrantes de organizações terroristas internacionais, acompanhamento e
avaliação de conflitos externos (e potenciais reflexos para o país),
acompanhamento das ações resultantes da aplicação do Plano Colômbia e dos seus
possíveis desdobramentos para o Brasil. Além desta lista de temas, também foi
mencionado o trabalho de implementação do chamado Programa Nacional de Proteção
ao Conhecimento ' PNPC e o trabalho realizado pelo Centro de Pesquisa para a
Segurança das Comunicações ' CEPESC/ABIN, relacionados com os esforços do
governo brasileiro nas áreas de segurança informacional, criptografia e contra-
inteligência33.
Embora não esteja ainda disponível para o público uma sistematização semelhante
do leque temático do trabalho de inteligência do governo Lula (2003-2006), o
Conselho de Governo definiu quatro grandes áreas temáticas como prioridades
para 2003-2004: segurança pública e crime organizado (inclusive terrorismo e
imigração ilegal); segurança da informação (inclui proteção ao conhecimento
sensível); ameaças aos interesses nacionais e oportunidades, sobretudo na
América do Sul; ameaças internas e externas ao Estado e à ordem democrática. As
quatro áreas prioritárias foram subdivididas em dezoito temas específicos.
Em julho de 2004, em discurso proferido durante a posse do novo diretor-geral
da ABIN, Mauro Marcelo de Lima e Silva, o próprio presidente Lula destacou a
necessidade de a agência superar definitivamente a herança do passado por meio
do fortalecimento da capacidade analítica coletiva e da relevância dos seus
produtos, algo diretamente dependente do crescente profissionalismo dos seus
funcionários. Sem dúvida, estes são alguns dos desafios da área de inteligência
no Brasil após a implementação das mudanças estruturais em curso. Mas um
problema adicional é o da alocação de recursos escassos para o cumprimento de
uma missão definida de maneira genérica e volúvel segundo a crise política do
momento. Isto fica evidente no grande leque temático e na ênfase (raramente
questionada) em segurança interna. Estes três tópicos (recursos,
profissionalização e qualidade dos produtos) necessitam de um comentário
adicional (Mignone, 2004).
Dificuldades Persistentes: Recursos, Profissionalização e Qualidade dos
Produtos
O contexto mais geral das dificuldades de institucionalização das novas
estruturas de inteligência no Brasil é dado pela falta de disposição das elites
políticas no Poder Executivo e no Congresso Nacional em lidar com o problema da
efetividade e eficiência dos serviços e unidades especializados no cumprimento
de missões e mandatos legais definidos muito genericamente (o que remete às
questões essenciais de prioridades, divisão de trabalho entre as agências,
especialização, recursos, liderança etc.).
Junte-se a isso a resistência cada vez mais forte do Poder Judiciário a
qualquer reforma que afete seus interesses corporativos, mesmo que isto possa
contribuir para melhorar o desempenho estatal no provimento de segurança e bem-
estar, além da baixa capacidade de pressão da sociedade civil nas áreas
relacionadas à segurança do Estado, inteligência e defesa. Isto tudo foi
traduzido na generalidade da linguagem utilizada nas leis e demais regulamentos
que criaram os três subsistemas de inteligência, bem como na dispersão de temas
e prioridades expressos pelos dois últimos governos.
Uma maneira mais direta de avaliar essas dificuldades é a observação do volume
de recursos alocados para a atividade, o alcance do processo de
profissionalização e a qualidade dos produtos de acordo com os usuários. Como
salienta Dunnigan (2003:633), apesar de ser incerta a relação entre indicadores
de input e capacidade combatente agregada, de modo geral a maioria dos governos
acaba recebendo o nível de serviço que eles são capazes de pagar para receber.
Estimar os gastos governamentais com inteligência no Brasil é difícil, mas não
tanto por causa dos limites impostos pelo segredo governamental. Em 2003, as
despesas de caráter secreto ou reservado de várias naturezas (inclusive
segurança e inteligência) somaram cerca de US$ 3,5 milhões (0,12%) para um
gasto total de US$ 291 bilhões. Entretanto, seja por decisão consciente ou por
dificuldades inerentes à lógica do processo orçamentário brasileiro, mesmo os
gastos que não são classificados como reservados são de difícil agregação a
partir do orçamento geral da União ' OGU34.
O fato é que não existem levantamentos sistemáticos sobre o gasto federal com o
SISBIN, o SINDE e o SISP. Além de faltar uma base conceitual adequada e
comparável internacionalmente, qualquer estimativa sobre a capacidade estatal
brasileira na área de inteligência que fosse baseada apenas no volume total de
recursos alocados pelo governo federal seria imprecisa, uma vez que se faz
necessário levar em conta pelo menos as capacidades estaduais dos órgãos que
compõem o SISP nos 26 estados e no Distrito Federal35.
Provisoriamente, pode-se tentar estimar o gasto brasileiro com inteligência a
partir da soma do orçamento da ABIN (critério de unidade executora) com os
valores que aparecem na subfunção "informações e inteligência" em
todas as unidades executoras do Ministério da Defesa e do Ministério da
Justiça.
No caso da ABIN, o orçamento para 2003 foi de cerca de US$ 40 milhões, sendo
que 73% deste total estava comprometido com despesas de pessoal (ativos e
pensionistas), 21% com o custeio e investimentos na atividade-fim da agência
(cerca de US$ 8,5 milhões) e 6% com outros tipos de despesas. No caso do
Ministério da Defesa, o valor autorizado, em 2004, para a subfunção 183
("informações e inteligência") foi de aproximadamente US$ 1 milhão
(US$ 700 mil para o DIE/MD e para o EMD; US$ 230 mil para o Exército; US$ 50
mil para a Marinha; e US$ 30 mil para a Aeronáutica).
Apenas como exercício analítico, caso fossem mantidas as mesmas proporções
encontradas na ABIN para a relação entre atividade-fim e gastos com pessoal
(respectivamente, 21% e 73% de um total hipotético), a alocação de recursos
para atividades relacionadas com inteligência (e "informações") na
área de defesa seria algo em torno de US$ 5,1 milhões em 2004. Procedimento
semelhante foi adotado para o Ministério da Justiça, embora neste caso não seja
possível fazer nenhuma extrapolação para o SISP, uma vez que a segurança
pública é responsabilidade dos estados no sistema federativo brasileiro e,
mesmo com as transferências federais de receitas, partes importantes do SISP
ainda seriam custeadas pelos próprios estados. No caso do Ministério da
Justiça, a subfunção "informações e inteligência" recebeu autorização
de gastos da ordem de US$ 3,9 milhões para 2004, elevando os gastos com
inteligência nesse Ministério, seguindo-se a mesma lógica da estimativa feita
para o Ministério da Defesa, para a faixa dos US$ 18,5 milhões quando são
acrescentadas as estimativas de gasto com pessoal36.
A soma do orçamento geral da ABIN, mais as estimativas a respeito do SINDE e do
Ministério da Justiça chega a US$ 63,6 milhões para 2004. É difícil até mesmo
estabelecer uma margem de erro percentual para este valor. Como estimativa do
gasto brasileiro com inteligência, o exercício é precário por três razões: 1º)
por um lado, o valor é muito alto, considerando-se a quantidade de coisas não
relacionadas com a atividade de inteligência que, provavelmente, está incluída
no item "inteligência e informações" dos orçamentos do Ministério da
Defesa e do Ministério da Justiça; 2º) por outro lado, é muito baixo, pois não
leva em consideração os gastos dos governos estaduais com inteligência; 3º)
além dessas limitações óbvias, há que se notar ainda que não foi incluído no
exercício o complexo Sistema de Vigilância e Proteção da Amazônia (SIVAM/
SIPAM), no qual já foram investidos mais de US$ 1,5 bilhão e cuja capacidade
operacional plena está prevista para 2004. Apesar dos caveats metodológicos
destacados aqui, o Quadro_2 mostra claramente como os gastos brasileiros com
inteligência são baixos em relação aos gastos totais com defesa.
Ademais de um volume de recursos aparentemente muito baixo, o alto grau de
comprometimento dos orçamentos de defesa, segurança pública e inteligência com
despesas de pessoal e dívidas torna ainda mais difícil o desafio da
profissionalização.
A lei que definiu, finalmente, um Plano Especial de Cargos para a ABIN (Lei nº
10.862/2004) foi um passo além na direção de uma maior profissionalização do
sistema de inteligência brasileiro. Ao criar uma carreira de analista de
informações de nível superior, com requisitos de ingresso, treinamento,
progressão e aposentadoria, a nova legislação confere um sentido de longo prazo
para o planejamento de recursos e capacidades. Além disso, mesmo que sua
estrutura de incentivos e sanções ainda demande significativos aperfeiçoamentos
para evitar distorções corporativas, de modo geral ela aponta para a
consolidação de critérios meritocráticos e publicamente defensáveis para a
profissão. Isto parece decisivo considerando que a ABIN vem recebendo um número
crescente de candidatos para o concurso de provas e títulos (9.064 candidatos
para 120 vagas em 1999 e 10.546 candidatos para 61 vagas no concurso de 2000).
Por outro lado, a ABIN também vem tendo grande dificuldade de manter esses
jovens analistas. Afinal, dos 300 concursados desde 1995 restavam apenas 128 na
Agência em agosto de 2004. Em termos de capacidade de treinamento, a partir de
2002 a Escola de Inteligência passou a atender uma demanda crescente de cursos
por parte de órgãos integrantes do SISBIN, sendo que naquele ano foram
realizados dezenove cursos com 414 participantes, número que subiu para 1.418
alunos em 200337.
Considerando uma demanda crescente por treinamento nas áreas cada vez mais
complexas de operações e análise, em contraste com uma oferta educacional por
parte das escolas de inteligência do governo federal cada vez mais ameaçada
pela falta de recursos e de pesquisas, parece claro que um dos aspectos
centrais a observar no desenvolvimento da área de inteligência no Brasil é
justamente o vínculo entre profissionalização e qualidade dos produtos de
inteligência. Ademais, a profissionalização das atividades de inteligência no
Brasil ainda depende de um longo percurso no que diz respeito às Forças Armadas
e à polícia38.
CONCLUSÃO
Para resumir então uma longa caminhada, vejamos algumas conclusões preliminares
do exercício. Em primeiro lugar, o regime político brasileiro é uma democracia
consolidada, com importantes déficits estruturais e atitudinais que são
refletidos em medidas mais desagregadas de liberdade e igualdade. Em termos de
capacidade estatal, embora no contexto latino-americano o Brasil seja um país
com um Estado forte, tanto do ponto de vista da exação de tributos quanto da
defesa nacional, em comparação com os dez países mais industrializados e
poderosos do mundo o Estado brasileiro está fragilizado pela vulnerabilidade da
economia a choques externos, pelo alto grau de endividamento público e pela
baixa capacidade de investimento e custeio na área de defesa. Estes e outros
fatores limitam o desempenho governamental no provimento de segurança e bem-
estar39.
Nesse contexto, as reformas estruturais brasileiras na área de inteligência
foram em larga medida bem-sucedidas do ponto de vista de sua adequação ao
contexto de um regime democrático consolidado. Mais do que isso, como destaca
Bruneau (2003), elas são uma parte importante da própria consolidação
democrática. Denúncias e escândalos de violações de regras democráticas
apareceram ao longo desse processo e estão no centro das preocupações do novo
governo de centro-esquerda em relação ao papel a ser desempenhado pelos
sistemas de inteligência nas áreas de política externa, defesa nacional e
segurança pública. De modo geral, os problemas verificados na área de
inteligência também são consistentes com temas mais gerais de
"institucionalização informal" (O'Donnell, 2001) e com as limitações
estruturais do Estado e do regime político no Brasil. Entretanto, uma rápida
pesquisa nos bancos de dados disponíveis com matérias da mídia mostra que nos
dois últimos anos o tema da eficiência dos serviços tornou-se mais presente, ao
lado das persistentes questões de legitimidade. Os Quadros_3 e 4 refletem este
primeiro juízo a respeito do caso brasileiro, respectivamente, do ponto de
vista da legitimidade e da efetividade40.
Estes dois quadros refletem um juízo provisório e pessoal do autor com base na
escassa evidência disponível, e não devem ser lidos como mais do que mera
opinião relativamente "educada" a respeito da natureza da atividade e
da trajetória recente do caso brasileiro. Do ponto de vista das escolhas
fundamentais que os governantes das "novas democracias" teriam que
fazer em relação à área de inteligência, pode-se dizer então que no caso do
Brasil essas escolhas foram feitas, tratando-se a partir de agora de avaliar
seu impacto segundo critérios comparativos internacionais, bem como em relação
às ameaças e vulnerabilidades da segurança estatal e dos cidadãos no Brasil.
A primeira das três escolhas fundamentais diz respeito às capacidades ou
funções "clássicas" da atividade que seriam priorizadas (coleta,
análise, contra-inteligência e operações encobertas). No caso do Brasil, com a
importante exceção da complexa arquitetura de coleta de inteligência de sinais
e imagens associada ao Sistema de Vigilância da Amazônia, a prioridade
declarada e observada tem sido posta nas funções de análise e contra-
inteligência. As agências brasileiras de inteligência são proibidas por lei de
realizar operações encobertas no exterior ou no território nacional, embora
violações parciais a esta regra nos conduzam às demais escolhas cruciais que
foram feitas ao longo do período 1995-2004.
O segundo conjunto de escolhas diz respeito ao balanço entre capacidades civis
e militares. Neste aspecto, o caso brasileiro claramente destaca o componente
civil do sistema, não apenas definindo a ABIN como órgão central do SISBIN, mas
incorporando ao conselho do sistema os ministérios civis de maior peso, como a
Casa Civil, Justiça e Relações Exteriores. A mesma estrutura se encontra
reproduzida no caso do sistema de inteligência de defesa, coordenado pelo
Departamento de Inteligência Estratégica do Ministério da Defesa. Embora no
caso do SINDE o grau de autonomia das agências de inteligência das três forças
possa ser considerado excessivo, ele é em parte neutralizado pela própria
alocação de recursos, a qual é em grande medida decidida pelos componentes
civis do SISBIN.
Note-se que não se está afirmando que esta divisão de recursos é
necessariamente algo bom em si mesmo. No caso do Brasil, ela reflete em parte
uma outra decisão altamente problemática, a de priorizar quase que
exclusivamente os problemas de segurança domésticos ou internos, em detrimento
da coleta e análise de inteligência sobre segurança internacional. Essa escolha
decorre de demandas dos próprios usuários (ministros, Presidência da República,
comandantes militares e dirigentes da área de segurança pública) e parece ter
sido reforçada no novo governo de centro-esquerda, mas reflete também o arranjo
institucional extremamente dependente de consensos e pretensamente cooperativo
do SISBIN, em que cada burocracia tradicional (diplomacia, militares,
policiais) na verdade tem reafirmado sua jurisdição e contido o processo de
profissionalização da atividade.
As duas principais instâncias integradoras dos fluxos de inteligência (o
próprio GSI e os conselhos dos três sistemas) são também as principais arenas
institucionais mediadoras da relação entre os usuários (policymakers) e os
serviços de inteligência. Sobre essas instâncias e sobre a Comissão Mista de
Controle das Atividades de Inteligência do Congresso Nacional recairá o foco da
avaliação sobre a efetividade e a legitimidade das novas estruturas de
inteligência adotadas pelo governo brasileiro ao longo dos próximos anos.
NOTAS
1. Ao longo do artigo, por democracia entenda-se o que Dahl (1997) chama de
poliarquia.
2. Outros trabalhos recentes sobre os serviços de inteligência no Brasil são
Antunes e Cepik (2003), Cepik e Antunes (2003) e Bruneau (2003). Para
contextualizações históricas e comparativas, ver Antunes (2002) e Stepan
(1988). Para um marco analítico mais desenvolvido sobre a relação entre
inteligência e democracia, ver Cepik (2003).
3. Esta premissa corresponde ao alerta de Linz e Stepan (1996) para o fato de
que "sem Estado não há democracia possível" em um mundo de Estados.
Para um aprofundamento inicial sobre as atividades de inteligência como
dimensões do poder de Estado na paz e na guerra, ver Herman (1996; 2001).
4. O relatório da comissão nacional de investigação sobre o desempenho dos
serviços de inteligência dos Estados Unidos diante dos ataques terroristas de
11 de setembro de 2001 demonstra a atualidade do problema para todos os países
(cf. Kean e Hamilton, 2004, esp. caps. 11, 12 e 13).
5. Para um comentário útil sobre diferentes comunidades epistêmicas nas áreas
de Estudos de Inteligência e Relações Internacionais, ver Fry e Hochstein
(1993).
6. A crítica da idéia anti-republicana de que existiria um trade-off claro
entre efetividade e legitimidade das instituições políticas é feita em Cepik
(2003).
7. O quarto critério corresponde à chamada oitava condição de Dahl (1997) para
a vigência da poliarquia.
8. Por definição, a subdisciplina de "transitologia" analisaria então
períodos temporais de até vinte anos (do fim de um regime político à
consolidação de outro). Outros fatores importantes para a avaliação da
"durabilidade" de regimes políticos consolidados seriam o nível de
desenvolvimento socioeconômico, a capacidade estatal, o efeito das instituições
políticas vigentes, a maior ou menor desigualdade social, a legitimidade das
instituições políticas e sociais, sua maior ou menor informalidade e o contexto
internacional (cf. Lane e Ersson, 1994; Linz e Stepan, 1996; Przeworski et
alii, 2000; Diamond e Plattner, 2001; e Schedler, 2001b).
9. Para o caso dos Estados Unidos, dois estudos neo-institucionalistas
relevantes sobre segurança nacional e democracia são Zegart (1999) e Feaver
(2004).
10. No último country report disponível no âmbito do projeto Polity IV (2004),
o Brasil foi classificado como altamente democrático (8 pontos em uma escala de
0 a 10), e a última transição para a democracia foi localizada no ano de 1985
(cf. <www.cidcm.umd.edu>).
11. Como se sabe, a Freedom House utiliza uma classificação final triádica
(livre, parcialmente livre, não-livre) baseada em uma escala de 1 (mais livre)
a 7 (menos livre) para dois conceitos agregados: direitos políticos (PR) e
liberdades civis (CL). Na tabela de 2004 (que avalia os acontecimentos do ano
de 2003), o Brasil recebeu notas 2 (PR) e 3 (CL). A Venezuela recebeu 3 (PR) e
4 (CL), enquanto a Colômbia recebeu 4 (PR) e 4 (CL). Em 2004, de maneira não
surpreendente em função do viés pró-liberal da fundação, a Freedom House
considerava, respectivamente, o Chile como o país mais livre (1) e Cuba como o
país menos livre (7) da América Latina (cf. Freedom House, 2004).
12. Para um exemplo de como são feitas essas avaliações internacionais de risco
político, ver Political Risk Services (2004).
13. Note-se que se trata de observar os gastos e prioridades substantivas no
processo de produção de políticas públicas, e não de aceitar como válido o
"teste de alternância" proposto por alguns institucionalistas de
inclinação pró-majoritária. Considerar a alternância de poder entre partidos
como um indicador de consolidação ou de qualidade democrática, simplesmente
reforça um viés a favor de sistemas majoritários de votação e polarização
bipartidária, duas características institucionais que estão longe de
representar a única ou a mais eficaz e eficiente forma de arranjo democrático
(cf. Lijphart, 2003).
14. Trata-se aqui de juízo baseado na observação externa dos comportamentos dos
sujeitos coletivos relevantes (elites civis, grupos sociais diversos, governos
estrangeiros, Forças Armadas etc.) e da verificação empírica sobre a ocorrência
ou não de um único tipo de evento (interrupção violenta dos procedimentos
democráticos definidos acima) com várias nuances e formas específicas. Quanto
mais exigentes os critérios, menor o número de países e/ou de períodos
históricos que poderão ser considerados democráticos ou, no caso da definição
adotada aqui, democracias consolidadas. Para discussões adicionais sobre estes
pontos, ver Diamond e Plattner (2001) e, também, Collier e Levitsky (1997).
Para os problemas de operacionalização conceitual, periodização e mensuração da
consolidação em diferentes países e períodos, ver Schedler (2001a; 2001b).
15. Cabe mencionar, de passagem, que faz muita falta dentro da própria
literatura sobre teoria democrática e instituições comparadas um esforço de
modelagem analítica que combine critérios verticais (níveis de democratização)
e horizontais (modelos de democracia). Sobre a construção de capacidade estatal
na América Latina, ver Geddes (1994). Para a centralidade do particularismo
como instituição informal das "novas democracias" e de outros países
considerados poliárquicos (e.g. Índia, Itália e Japão), ver O'Donnell (2001).
16. Tenho opinião contrária à de Bolivar Lamounier em seu capítulo sobre o
Brasil no livro de Dominguez e Shifter (2003:269-291), em particular sobre a
origem histórica e institucional dos déficits democráticos e de capacidade
governamental no país, mas importa destacar como o debate acadêmico brasileiro
sobre a democracia se deslocou do programa de pesquisa da transição para o das
conseqüências de diferentes arranjos institucionais. No caso, Lamounier critica
o que ele considera um excessivo componente "consensual" na
democracia brasileira, em oposição a uma melhor eficiência
"majoritária" que deveria ser buscada. Embora ele não realize o
trabalho de avaliação sistemática sugerido pela tentativa de integrar o Brasil
na tipologia de Arend Lijphart (2003), vale como uma provocação sobre o tema
(ver, ainda, Carrillo, 2001 e Polity IV, 2004).
17. A necessidade de um vínculo mais forte entre os estudos de inteligência
(Intelligence Studies) e a área de relações civil-militares é destacada em
Bruneau e Dombroski (no prelo).
18. Para um panorama dos estudos sobre as relações civil-militares na América
Latina, ver D'Araújo e Castro (2000), Pion-Berlin (2001), Trinkunas (2000),
Stanley (2001), Fitch (1998) e Aguero (1998). Para uma discussão metodológica
recente sobre critérios de classificação de regimes autoritários, ver Geddes
(2003).
19. Note-se que ambos os padrões profissionais de atribuição de missões para as
Forças Armadas ("clássico" e "desenvolvimentista") são, em
princípio, compatíveis com regimes democráticos. No caso da América Latina, em
anos recentes, esse padrão desenvolvimentista ocorre na Venezuela, onde 74% dos
entrevistados pela pesquisa do Latinobarómetro declaram apoiar a democracia, e
um padrão "clássico-huntingtoniano" prevalece no Uruguai, onde 78% da
população declara ser favorável à democracia. Por outro lado, controle civil
sobre os militares ocorre tanto em contextos democráticos quanto autoritários.
Exemplos contemporâneos de controle da liderança política sobre as Forças
Armadas em contextos não democráticos são China e Cuba. Ainda assim, aceita-se
em geral a falta de controle dos governantes sobre as Forças Armadas como um
indicador de fragilidade institucional incompatível com a oitava condição de
Dahl para a existência de uma poliarquia ("os representantes eleitos podem
governar sem a tutela de grupos de poder não eleitos"). Nos chamados
"novos autoritarismos competitivos" ' países que faziam parte da ex-
URSS ', uma das características que impedem chamá-los de democracias são as
dificuldades de subordinação das Forças Armadas e/ou das forças de segurança e
polícias políticas.
20. Contrastar, por exemplo, as abordagens de Hunter (1997) e Zaverucha (2000).
Para uma avaliação da legislação brasileira relevante, ver <www.senado.gov.br>
(Prodasen). Para uma visão geral das estruturas de defesa, cf.
<www.resdal.org>. O episódio que levou à queda do então ministro da Defesa
brasileiro, embaixador José Viegas, em novembro de 2004, mostrou que, de um
lado, setores das Forças Armadas ainda recusam os procedimentos democráticos.
Por outro lado, demonstrou como as autoridades civis no Brasil ainda não têm a
menor idéia do papel a ser desempenhado pelas Forças Armadas na inserção
internacional do país e na melhoria do desempenho do Estado brasileiro nas
áreas de segurança e defesa. Para os requisitos e componentes de uma política
de defesa cuja ausência impede uma melhoria do desempenho do regime político
brasileiro em termos de legitimidade e efetividade do poder militar do Estado,
cf. Proença Jr. e Diniz (1998).
21. Para uma discussão mais detalhada sobre as transformações ocorridas na
estrutura do Estado brasileiro ao longo dos últimos quinze anos, ver Sallum Jr.
(2003). Para um argumento institucionalista histórico acerca da relação entre
democracia, guerra e construção do Estado na América Latina, ver López-Alves
(2000).
22. Em 1999, em conseqüência dos sucessivos choques externos decorrentes da
crise financeira na Ásia e na Rússia, o então governo Fernando Henrique Cardoso
foi forçado (após um ataque especulativo que derrubou as reservas e provocou
evasão de capitais) a abandonar o regime de bandas cambiais (crawling peg),
passando a regular o valor da moeda por meio de instrumentos de mercado e com
força institucional possibilitada pelo fato de os três bancos federais não
terem sido privatizados e o Banco Central ter sido "realinhado" com a
realidade macroeconômica do país. Após os ataques terroristas de 11 de setembro
de 2001 nos Estados Unidos, a crise argentina de 2001-2002 e o uso político do
pânico financeiro como arma eleitoral pelo governo Cardoso, o Brasil atravessou
uma crise bastante séria, com contração de 0,2% do PIB real em 2003.
23. Tais medidas e informações são meramente indicativas, uma vez que James
Dunnigan não explicita suas fontes e fórmulas de cálculo para cotejamento
crítico com outras fontes, tais como o Military Balance (IISS), o Jane's Group
ou o Ministério da Defesa do Brasil. São apresentadas aqui apenas para dar uma
escala de grandeza e um procedimento analítico na avaliação da capacidade
estatal brasileira. Segundo Dunnigan (2003:632-633), o conceito de capacidade
de combate terrestre (land combat power) abarca a capacidade de combate total
das Forças Armadas de um país com exceção da Marinha de Guerra. Trata-se de um
índice composto, formado por indicadores quantitativos e juízos qualitativos a
respeito de equipamentos, armas e tropas. O índice de qualidade total (total
force quality) é uma fração pela qual o valor bruto da capacidade de combate
deveria ser multiplicado para dar conta de fatores "soft" de
capacidade (liderança, suporte, instituições etc.). O número de efetivos leva
em conta apenas a quantidade de pessoal uniformizado, independente de
desempenharem funções de suporte ou de pertencerem a unidades de combate. O
orçamento militar foi estimado pelo autor com uma margem de erro de 10%.
Segundo o Jane's Group, em 2002, o gasto brasileiro com defesa teria sido de
US$ 10,7 bilhões, representando então 2,4% do PIB. O gasto anual por soldado é
uma medida agregada, dividindo orçamento por número de pessoal uniformizado, em
dólares correntes. O número de veículos blindados inclui veículos blindados de
transporte de tropas (armoured personnel carriers), tanques leves, tanques
principais (main battle tanks) e outros veículos de suporte. O número de
aeronaves não inclui interceptadores. No caso das forças navais, o índice de
capacidade de combate é um valor numérico, refletindo a capacidade total da
frota (para Dunnigan, o valor de combate naval dos Estados Unidos é de 302, o
da Rússia é de 45, China 16 e México e Argentina alcançam valores similares,
igual a 02. Os demais indicadores são auto-evidentes.
24. Para maiores detalhes, ver Rosieri (2004) e, também, Pederiva (2002).
25. Sobre o Serviço Nacional de Informações ' SNI entre 1964 e 1990 e sobre a
década de 90, ver Stepan (1988), Antunes (2002) e Antunes e Cepik (2003).
26. O mesmo não pode ser dito a respeito da legislação que regulamenta o
direito dos cidadãos às informações governamentais, que permanece escassa e
falha (Cepik, 2000). Para obter o texto integral da legislação brasileira em
vigor, ver <www.interlegis.gov.br>.
27. Para uma discussão detalhada dos conteúdos das atas das onze reuniões da
CCAI, ver Antunes (2004). Para uma visão abrangente do seminário promovido pela
CCAI em conjunto com a ABIN e outros órgãos, ver Brasil (2003).
28. Para uma discussão crítica dos limites institucionais de vários mecanismos
de controle sobre a atividade de inteligência, ver Cepik (2003, esp. 3ª parte
do cap. 3).
29. Previsto inicialmente para reunir-se uma vez por trimestre, o Conselho
realizou quatro reuniões até agosto de 2004, tendo criado um Grupo de
Integração para tentar melhorar a cooperação interagências.
30. De fato, o Decreto Executivo nº 3.448, de 5 de maio de 2000, estabeleceu o
SISP como parte do SISBIN e designou a própria ABIN como órgão central do SISP.
Devido a problemas operacionais e disputas entre a ABIN e o Ministério da
Justiça, um novo Decreto Executivo (nº 3.695, de 21 dezembro de 2000)
transferiu a coordenação do SISP para a Secretaria Nacional de Segurança
Pública do Ministério da Justiça ' SENASP/MJ. Nos estados, o núcleo de gestão
do SISP seriam os gabinetes de Gestão Integrada do Sistema Único de Segurança
Pública ' SUSP sob o comando do ministro da Justiça e do diretor da SENASP, com
a participação das Polícias Federal e Rodoviária Federal, das Polícias
Militares e Civis, Ministérios Públicos, Receita Federal e ABIN.
31. A estrutura regimental do MD está definida no Decreto nº 5.201/2004, que
deve ser consultado para uma melhor compreensão da relação entre o órgão
central do SINDE e as agências centrais das forças singulares, formalmente
representadas em um conselho do sistema nos termos da Portaria MD 295/2002.
32. É questionável o grau de coesão mesmo dentro de cada subsistema. No caso do
SISP, por exemplo, há fortes resistências por parte da Polícia Federal em
relação ao papel coordenador da SENASP. Existem também dificuldades entre a
ABIN e a Polícia Federal, entre as Polícias Militares e as Polícias Civis nos
estados, entre as Polícias Civis e os Ministérios Públicos, entre as polícias
estaduais e a Polícia Federal etc. No caso do SINDE, é pouco provável que não
existam resistências burocráticas à integração horizontal entre os serviços de
cada Força, bem como resistências ao papel coordenador do DIE e do próprio MD.
33. Para o texto completo da palestra do general Cardoso, ver Brasil (2003).
34. Todos os valores foram convertidos em dólares, considerando uma taxa de
câmbio de R$ 3,00 por dólar. A consulta ao OGU pode ser feita por meio do
Sistema Integrado de Administração Financeira ' SIAFI do governo federal ou na
página da Câmara dos Deputados na Internet: <www.camara.gov.br/internet/
orcament/principal/default.asp>. No OGU, o nível de agregação mais amplo das
informações são as unidades (órgãos de primeiro escalão como a Presidência da
República ou o Ministério da Defesa e unidades de autorização de despesa dentro
destes órgãos, tais como a ABIN na PR ou o Exército no MD) e as funções
governamentais (defesa, saúde etc.). As várias atividades e prioridades
governamentais são organizadas em Programas que são compostos de Ações. Cada
Ação, vinculada ao seu Programa específico, é classificada ' teoricamente de
acordo com o objeto em si da Ação ' em Funções (defesa nacional ou segurança
pública, por exemplo) e Subfunções. A linha do orçamento referente à
"Informação e Inteligência" é, portanto, uma Subfunção (nº 183).
Sobre os problemas associados ao uso do orçamento para deduzir indicadores de
desempenho, cf. Pederiva (2002).
35. Para uma idéia geral da importância das polícias estaduais, note-se que
enquanto as Forças Armadas brasileiras somavam cerca de 295 mil efetivos em
2003 (195 mil no Exército), os efetivos policiais do governo federal e dos
estados somavam mais de 500 mil em 2001 (dos quais cerca de 15 mil na Polícia
Federal, 376 mil nas Polícias Militares estaduais encarregadas de patrulhamento
e prevenção e 103 mil nas Polícias Civis estaduais encarregadas de investigação
e repressão ao crime). Também precisariam ser levados em conta recursos
indiretos e assistência internacional (especialmente dos Estados Unidos no caso
das operações antinarcóticos), tema que foi objeto de debate polêmico na mídia
brasileira no começo de 2004 e pauta de reuniões das comissões congressuais de
controle externo (CCAI e CSPCCO).
36. Esta utilização da subfunção "informação e inteligência" também é
problemática para estimar gastos com inteligência de maneira realista.
Considerando todos os órgãos com Ações classificadas nesta subfunção no OGU de
2004 do governo federal, a subfunção 183 acaba incluindo ações tão distantes da
área de inteligência como a construção da Rede de Bibliotecas Virtuais em Saúde
(Ação 6189) ou o desenvolvimento de um Cadastro Nacional de Profissionais e
Estabelecimentos Assistenciais de Saúde (Ação 6153). Tal constatação advém de
pesquisa específica realizada com dados coletados em banco de dados (Access) da
Câmara dos Deputados, considerando a execução orçamentária acumulada até 24/7/
2004. Cf. <www.camara.gov.br/internet/orcament/principal/default.asp>.
37. Para uma discussão mais detalhada sobre os quatro critérios utilizados para
avaliar a profissionalização da atividade de inteligência no Brasil
(conhecimentos específicos, carreira, formação e código de ética), embora
anterior à promulgação da Lei nº 10.862/2004, ver Cepik e Antunes (2003).
38. Uma possível solução seria aumentar a cooperação entre a ESINT (Escola de
Inteligência da ABIN), a Escola de Inteligência do Exército, a Escola Superior
de Guerra e outras escolas superiores no âmbito federal com currículos
complementares (e.g.Escola Superior de Administração Pública, Escola Superior
do Ministério Público da União, Colégio Nacional de Procuradores-Gerais de
Justiça etc.), o que poderia ser feito por meio de convênios com universidades
e esforços internos de coordenação no âmbito do SISBIN, SINDE e SISP. Porém,
mesmo que tal sinergia pudesse ser obtida existe uma precondição para que os
resultados gerados tenham impacto sobre a efetividade e a legitimidade dos
sistemas: essas instituições precisam ser submetidas aos mesmos processos
avaliativos externos que outras instituições educacionais brasileiras de nível
superior, tais como o sistema de avaliação da pós-graduação conduzido pela
CAPES/MEC e os critérios utilizados pelo CNPq/MCT para apoio à pesquisa.
39. Outros fatores a mencionar seriam o peso da economia informal, o número
insuficiente de funcionários de carreira em burocracias estatais especializadas
(fiscal, militar, financeira, inteligência, diplomática etc.), o desperdício
causado por ausência de planejamento e a corrupção. Cabe destacar que o setor
público na América Latina tem, em média, metade do tamanho do setor público nos
países mais industrializados e ricos (Franko, 2003:162).
40. Por exemplo, as duas trocas de diretores-gerais da ABIN ocorridas desde a
criação da agência foram decorrentes de problemas associados à legitimidade e
não à eficiência. Em 2001, o primeiro diretor-geral da agência, coronel
(Reserva) Ariel de Cunto, foi afastado do cargo após a divulgação na imprensa
de que havia nomeado para a direção do Setor de Acompanhamento de Organizações
Criminosas da ABIN o tenente Del Menezzi, o décimo nome na lista dos
torturadores mais denunciados pelo grupo Brasil: Nunca Mais ' BNM. O cel. De
Cunto assumiu que tinha conhecimento dessas acusações, mas insistiu na
manutenção do tenente no cargo. Foi apenas depois destas denúncias que a ABIN
se prontificou a fazer um cruzamento entre os nomes de seus servidores com os
444 nomes de torturadores denunciados pelo BNM. Em julho de 2004, a segunda
diretora-geral da ABIN, Marisa Del'Isola Diniz (a primeira mulher a dirigir um
serviço de inteligência na América do Sul), deixou o cargo em meio a uma série
de desgastes associados a disputas entre grupos dentro da ABIN que chegaram à
Justiça e às ruas na forma de manifestações sindicais, mas também em
decorrência de denúncias de envolvimento de funcionários da ABIN em atos de
espionagem contra membros do governo Lula. No discurso de posse do terceiro
diretor-geral da ABIN em menos de cinco anos, o presidente Lula enfatizou a
agenda da profissionalização e da agilidade (efetividade, eficácia e
eficiência) como condições de legitimação da atividade de inteligência no
Brasil.
41. Tabela adaptada da tipologia de serviços de inteligência de segurança
desenvolvida por Gill (1994:82).
42. O termo "pervasividade" é derivado do inglês pervasiveness, e me
parece preferível a outras alternativas como "intromissão" ou
"penetração".