Judiciário e privatizações no Brasil: existe uma judicialização da política?
INTRODUÇÃO
O objetivo central deste trabalho é verificar qual foi o papel do Poder
Judiciário brasileiro no processo de privatização de empresas estatais levado a
cabo nos anos 1990. Com isso, procurei responder a uma questão mais geral, qual
seja, em que medida o Judiciário influencia as decisões políticas, assumindo
funções que deveriam ser exercidas pelos Poderes propriamente "políticos" '
Executivo e Legislativo. Em outras palavras, qual o alcance verificável do
chamado processo de judicialização da política no Brasil ' ao menos no caso das
privatizações?
Por judicialização da política entendo a utilização de procedimentos judiciais
para a resolução de conflitos de ordem política, tais como controvérsias a
respeito de normas, resoluções e políticas públicas em geral, adotadas/
implementadas pelos Poderes Executivo e Legislativo. Assim, utilizando o
conceito de Tate e Vallinder (1995:13), trato por judicialização o "processo de
expansão dos poderes de legislar e executar leis do sistema judiciário,
representando uma transferência do poder decisório do Poder Executivo e do
Poder Legislativo para os juízes e tribunais". Simplificadamente, chamei de
judicialização a capacidade de o Judiciário intervir em políticas públicas,
interferindo ou alterando, em alguns casos, o status quovigente. Todavia, para
poder intervir, o Judiciário deve antes ser acionado. Este processo,
independentemente do ator que o promove ' se partido político, organizações da
sociedade civil, pessoas físicas etc. ', será chamado de politização da
justiça, quando se referir ao acionamento desse Poder de modo a interferir em
um processo político, nos termos acima descritos.
Tratarei a judicialização como um processo de três fases, que implica:
primeiramente no acionamento do Judiciário através do ajuizamento de processos
' ou politização da justiça; em segundo lugar, no julgamento do pedido de
liminar (quando houver); e, por fim, no julgamento do mérito da ação1, que
enseja a judicialização da política propriamente dita. Este é o que chamarei
aqui de ciclo da judicialização.
Portanto, parto do pressuposto de que não se pode falar em judicialização da
política somente em função do acionamento do Judiciário pela sociedade civil,
pelos partidos ou pelo ministério público (que seria apenas a primeira etapa do
ciclo, a politização da justiça), sem que haja uma resposta (isto é, o
julgamento do mérito das ações, independentemente se a favor ou contra2) às
ações impetradas. Nesse sentido, pode ocorrer a judicialização apenas quando o
Judiciário responde à demanda, independentemente da decisão à qual chega. Ao
contrário, não há judicialização ' quando o Judiciário é acionado, mas não
responde à solicitação, mesmo que a medida cautelar do processo (liminar) seja
julgada (cuja apreciação é de caráter emergencial); nesse caso, há apenas uma
politização da justiça, uma vez que o resultado prático ainda não é a
interferência do Judiciário na política.
Para discutir a atuação do Poder Judiciário brasileiro no caso das
privatizações, partirei de uma breve revisão3 do conceito de judicialização da
políticada ótica da ciência política. Em seguida, apresentarei a análise de um
conjunto de ações contra as privatizações, estruturadas em dois bancos de dados
formados por processos judiciais atinentes às privatizações realizadas nos anos
1990, impetrados por membros externos ao Governo, tais como partidos,
associações de classe e Ministério Público, com o objetivo de impedir ou
retardar o processo de desestatização de empresas. Meu objetivo é demonstrar
que os membros do Judiciário brasileiro não apresentaram, ao menos no caso aqui
analisado, uma preferência judicial por políticas públicas. Ou seja, intentei
asseverar que, embora o Judiciário tenha sido ativado como árbitro de conflitos
de ordem política, no caso das privatizações, ele não respondeu a essa demanda,
não completando, portanto, o que chamarei de ciclo da judicialização. Enfim,
busca-se atentar para a necessidade de se olhar com maior cautela e precisão
para o processo que vem sendo chamado de judicialização da política,
independentemente de considerações acerca do mérito dos resultados obtidos.
A LITERATURA ACERCA DA JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA
O Poder Judiciário, ao interpretar a Constituição e declarar a
constitucionalidade das leis e atos normativos, interfere em decisões políticas
que foram alcançadas por representantes eleitos. Todavia, isso não implica ' ou
ao menos não deveria ' que os juízes têm o poder de legislar, podendo-se
traduzir em criação de leis a sua função de intérpretes da Constituição4. Esta
é uma questão em voga no debate atual da ciência política brasileira, embora já
tenha sido trabalhada, sob diversos aspectos, pela literatura jurídica. A
presente revisão bibliográfica refere-se à abordagem da ciência política
brasileira sobre o tema.
Discute-se o novo papel do Judiciário, não apenas sob a ótica das
transformações sociais que o afetaram, como também das mudanças institucionais
que geraram novos padrões de relação entre aquele poder e as demais
instituições governamentais, levando a um aumento da influência política do
Poder Judiciário nas sociedades modernas. Os mecanismos institucionais
colocados à disposição desse poder, tal como o de judicial review,"uma das
principais formas [de judicialização da política] é o controle de
constitucionalidade dos atos do Executivo e do Legislativo" (Vallinder, 1995:
15), e suas novas funções diante da divisão de poderes são fatores que
impulsionaram a atuação política do Judiciário.
A idéia de uma lei superior, acima dos poderes do Estado e das leis produzidas
no Parlamento, é de origem inglesa, e será introduzida nos EUA a partir de uma
interpretação da Constituição de 1787, embora esta não especificasse, em nenhum
artigo, o mecanismo do judicial review.De acordo com o artigo VI, a
Constituição é a "Lei Suprema da Nação, e os juízes de todos os estados devem
se guiar por ela a partir de então". Foi a partir de uma interpretação que o
Juiz da Suprema Corte, John Marshall, fez desse artigo da Constituição, na
decisão proferida no caso Marbury versus Madison,em 1803, que o mecanismo de
judicial reviewse instalou nos Estados Unidos. Com a prerrogativa do controle
de constitucionalidade das leis, a Suprema Corte americana assumiu também o
poder de controlar os outros órgãos políticos ' Executivo e Legislativo. Cunha
Melo (2002) faz uma acurada descrição da introdução desse mecanismo no sistema
político norte-americano, demonstrando como a influência política do Poder
Judiciário é constitutiva e inerente à própria engenharia institucional adotada
naquele país.
O modelo constitucional norte-americano difundiu-se por diversos países
ocidentais, especialmente na América Latina5. De acordo com Tate e Vallinder
(1995), a expansão do modelo americano de controle de constitucionalidade das
leis e da conseqüente atuação política do Judiciário caracteriza-se como um
fenômeno que se desenvolveu primeiramente nos EUA, o "berço da judicialização",
mas que vem se alastrando para diversos outros países, naquilo que os autores
aclamaram como expansão global do Poder Judicial. Assim, a primeira preocupação
dos autores é com os fatores que impulsionaram a expansão do Poder Judicial, ou
do "fenômeno de juízes estarem fazendo políticas públicas que anteriormente
eram feitas, ou na opinião da maioria deveriam ser feitas, por membros do
legislativo e executivo" (idem:2).
Com base na constatação (ou pressuposto) da expansão do Poder Judicial, os
autores definem judicialização da política, caracterizando-a como a difusão da
arena decisória judicial e/ou adoção de mecanismos judiciais em arenas de
deliberação política. O conceito inclui os julgamentos de ações que envolvam
políticas governamentais e a utilização de procedimentos jurídicos na ordenação
do mundo político, e tem como pressuposto uma postura politicamente ativa dos
juízes:
"Sob condições que sejam favoráveis, a judicialização [da política]
se desenvolve apenas porque os juízes decidem que devem (1)
participar da tomada de decisão política que poderia, de outra forma,
ser deixada à discrição, criteriosa ou arbitrária, de outras
instituições e, ao menos ocasionalmente, (2) substituir as decisões
políticas emanadas de outras instituições por aquelas emanadas deles
mesmos" (idem:33, ênfases no original, tradução da autora).
Contudo, Tate e Vallinder demonstram que a judicialização da política é um
fenômeno relativamente raro, pois depende de uma conjunção de fatores. O quadro
de possibilidades a seguir indica possíveis caminhos que são percorridos por
uma decisão:
Devido à importância das orientações de instituições majoritárias e dos valores
e atitudes dos juízes, espera-se que a judicialização ocorra em apenas duas de
oito possíveis combinações de circunstâncias. Quando as condições facilitadoras
não são favoráveis, não há judicialização em nenhuma das combinações. Por
conseguinte, o quadro demonstra que não basta a existência das condições, e nem
apenas o ativismo judicial, separadamente. Nas palavras dos autores:
"De juízes ativistas, por definição, pode-se esperar que aproveitem
todas as oportunidades para usar seu poder de tomada de decisão de
modo a disseminar os valores que prezam no que concerne a políticas
públicas. Todavia, quando esses valores são consistentes com aqueles
que dominam as instituições majoritárias, ainda que as condições
sejam favoráveis à judicialização do processo político, haverá muito
menos incentivos para que os juízes ativistas busquem fazê-lo, pois
esse processo já estará produzindo os resultados políticos desejados"
(idem:34, tradução da autora).
Em resumo, só há judicialização quando juízes apresentam uma postura política
ou ideológica contrária àquela predominante nas instituições majoritárias,
opondo-se, assim, às políticas por estas adotadas.
Mesmo sem uma análise empírica que comprove a expansão da judicialização da
política, os autores concluem que, a despeito de ser um fenômeno raro, a
judicialização vem-se expandindo no mundo por duas razões: a) as condições
favoráveis para sua expansão têm aparecido com maior freqüência no mundo após a
onda de democratização na América Latina, Ásia e África; b) a freqüência das
células da tabela em que a judicialização ocorre é muito maior do que as
células onde ela não acontece. Parece-me, no entanto, que mais do que comprovar
a expansão global da judicialização da política, Tate e Vallinder a tomam como
uma realidade do mundo pós-Guerra Fria.
Os trabalhos brasileiros acerca da judicialização da política, a sua maioria
centrada no controle constitucional, dividem-se em função do posicionamento dos
autores diante do aumento da influência do Poder Judiciário: alguns lhe são
favoráveis, pois isso gera um aumento do controle sobre os poderes políticos,
ao passo que outros lhe são contrários, uma vez que tal influência exacerbada
confere grande poder a membros não eleitos e que não sofrem controles externos,
opondo-se ao princípio democrático. Percebe-se, em ambas as visões, uma
preferência pelas análises empíricas, voltadas para as implicações políticas da
nova atuação judicial. Entretanto, todas elas se deparam com um problema comum:
não dão conta da questão do tamanho da influência política do Poder Judiciário,
ou seja, de que maneira esta influência vem se processando, com que grau e
intensidade ela está ocorrendo e, principalmente, qual o resultado efetivo da
mesma sobre o rumo das políticas públicas em curso.
Um dos mais expressivos trabalhos sobre a judicialização no Brasil foi
apresentado por Werneck Vianna et alii(1999). De acordo com os autores, a
expansão do princípio democrático tem implicado em uma crescente
institucionalização do direito na vida social, invadindo espaços que eram
inacessíveis a ele, como algumas esferas da vida privada. Foi o direito do
trabalho, nascido do êxito dos movimentos operários do século passado, que deu
um caráter público a relações antes circunscritas à esfera privada e que
introduziu no campo do direito um argumento de justiça, procurando compensar a
parte economicamente menos favorecida nas relações de trabalho, tirando a
exclusividade da tematização acerca da justiça social da esfera da sociedade
civil e do Parlamento. Esse novo direito, incentivado pelo Estado de Bem-Estar
Social, introduziu um viés igualitário na ordem liberal, publicizando a esfera
privada. Assim, a agenda da igualdade redefiniu a relação entre os três
poderes, atribuindo ao Poder Judiciário funções de controle dos poderes
políticos:
"O Estado social, ao selecionar o tipo de política pública que vai
constar da sua agenda, como também ao dar publicidade às suas
decisões, vinculando as expectativas e os comportamentos dos grupos
sociais beneficiados, traduz, continuamente, em normas jurídicas as
suas decisões políticas. A linguagem e os procedimentos do direito,
porque são dominantes nessa forma de Estado, mobilizam o Poder
Judiciário para o exercício de um novo papel, única instância
institucional especializada em interpretar normas e arbitrar sobre
sua legalidade e aplicação, especialmente nos casos sujeitos a
controvérsias" (idem:20).
Esse fenômeno, que vem ocorrendo no Brasil desde a Constituição de 1988,
intensifica-se no curso dos anos 1990 em função da valorização das Ações
Diretas de Institucionalidade ' Adins6 como "o último recurso diante do uso
abusivo de medidas provisórias na iniciativa das leis", ainda nos termos de
Werneck Vianna et alii. Conseqüentemente, de acordo com os autores, há uma
transformação dos partidos, sindicatos e associações em intérpretes da
Constituição, chamando o Judiciário a exercer funções de freio e contrapeso no
interior do sistema político, como uma forma de "compensar a tirania da
maioria" ' imposta, segundo eles, pelo Legislativo, órgão de lógica majoritária
' e se consolidando como um importante ator político dentro do processo
decisório.
Com base nesse arcabouço teórico, eles apresentam uma análise das ações diretas
de inconstitucionalidade, sugerindo que "o processo de judicialização da
política no Brasil tem sido o resultado de uma progressiva apropriação das
inovações da Carta de 88 por parte da sociedade e de agentes institucionais,
inclusive governadores e procuradores, dois importantes personagens dessa nova
arena política brasileira" (idem:53). Com base na análise de 1.935 ações
impetradas, desde 1988 até 1998, os autores assinalam uma resistência do
Judiciário ao desempenho de papéis que o levem a se tornar um personagem
central no processo de judicialização da política' isto porque, embora 30,8%
das Adins analisadas tenham tido os seus pedidos de liminar deferidos e apenas
7,5% aguardassem o julgamento, quando se passou para o julgamento do mérito da
ação, apenas 9,5% foram julgadas procedentes, e 54,4% ainda aguardavam o
julgamento do mérito, o que corrobora a percepção apresentada pelos autores de
que o Judiciário vem se eximindo de assumir o papel central que possui no
processo de judicialização da política.
Portanto, o trabalho de Werneck Vianna et alii (idem) apresenta duas linhas de
argumentação: por um lado, a análise teórica volta-se para a área da sociologia
do direito, nos moldes apresentados por Cappelletti (1993) e Garapon (1999)7,
demonstrando como alguns fatores sociais (tal como o movimento operário do
século passado e a luta contra a "tirania da maioria") levaram a uma atuação de
cunho político e social do Judiciário; por outro, a análise empírica concentra-
se nos novos instrumentos institucionais, colocados à disposição dos grupos de
interesse e de diversos atores políticos, tais como partidos políticos,
sindicatos e governadores, a partir da Constituição de 1988, que tiveram como
conseqüência a transformação do Poder Judiciário em importante ator político,
sendo chamado a arbitrar conflitos de ordem política e decisões tomadas pelo
Executivo e Legislativo a respeito de políticas públicas. Todavia, embora
enxergue de maneira positiva a influência política do Poder Judiciário, o
trabalho conclui que esse poder tem interferido malmente em questões
específicas da arena política.
Também baseado em dados empíricos, Castro (1997) analisa o impacto político do
comportamento do Supremo Tribunal Federal ' STF. De acordo com o autor, a
judicialização da política promove uma interação entre os poderes que não é,
necessariamente, prejudicial à democracia.
Embora o Judiciário venha causando algum impacto sobre o Legislativo e o
governo, freqüentemente por meio da concessão de liminares, o autor conclui que
uma parcela diminuta dessas ações resultou em decisões substantivas do mérito,
o que indica que o processo de judicialização da política ainda se encontra em
um estágio embrionário no país e, além disso, em sua maioria favorece as
políticas governamentais. Como argumenta o autor, ao analisar 1.240 acórdãos do
STF, "com exceção da política tributária, o STF preponderantemente não tem
desenvolvido jurisprudência em proteção a direitos individuais e em
contraposição às políticas governamentais" (idem:154).
Outro enfoque analítico foi dado pelo trabalho de Arantes (1997), o qual
examina o papel de árbitro do jogo político assumido pelo Judiciário tomando
como base um aspecto institucional da estrutura judicial: o sistema híbrido de
controle de constitucionalidade das leis adotado no Brasil. O princípio do
controle de constitucionalidade surge como uma maneira de impedir que leis e
atos normativos desrespeitem direitos e garantias individuais
constitucionalmente garantidos. Os dois modelos básicos de controle são o
difuso, originado nos EUA, e o concentrado, primeiramente instituído na
Áustria. O primeiro pressupõe a faculdade de todo juiz ou tribunal de examinar
a constitucionalidade das leis ' o que tem como conseqüência o fato de que
decisões diferentes podem ser adotadas para um mesmo caso, em função do número
de órgãos judiciais acionados, e de que a decisão que considera a lei
inconstitucional não é capaz de impedir a sua vigência. Já o segundo coloca em
julgamento a própria constitucionalidade da lei, e a atribuição de julgá-la é
monopólio de um tribunal especial, a Corte Constitucional; neste caso, a
decisão tem efeito erga omnes,ou seja, é válida para todos. O caso brasileiro,
por sua vez, pode ser classificado como um sistema híbrido, "capaz de combinar
a competência de juízes e tribunais inferiores de apreciar a
constitucionalidade das leis em processos quaisquer (difuso) e um órgão, ou uma
combinação de órgãos, responsável pelo julgamento de ações diretas sobre a
constitucionalidade das leis (concentrado)" (idem:35).
Com essa análise, o autor demonstrou a maneira pela qual o sistema híbrido de
controle constitucional condiciona a execução de planos de governo. Se, por um
lado, o STF ganha proeminência no sistema federalista brasileiro, com uma
rígida separação de Poderes, arbitrando conflitos entre o Executivo e o
Legislativo (tanto federais quanto estaduais), por outro lado, ele não está
sozinho nessa tarefa,juntando-se a ele todos os juízes e tribunais do país, em
função do modelo difuso-incidental de controle de constitucionalidade das leis,
mas sem o instrumento vinculante. Em resumo, a reorganização institucional de
1988 colocou o Judiciário na posição de uma arena de resolução de conflitos
políticos, principalmente em função do controle constitucional das leis; o
sistema híbrido acentuou o papel do Judiciário enquanto um recurso poderoso de
veto às decisões majoritárias tomadas na esfera política.
Também para Vieira (2002), a sobrecarga de demanda recursal do Judiciário é
conseqüência direta do hibridismo de nossa jurisdição constitucional, que
permite que o magistrado de qualquer instância do Poder Judiciário exerça juízo
de censura àqueles que violarem a Constituição, ao mesmo tempo em que
possibilita a um grande número de atores (intérpretes) o controle abstrato de
constitucionalidade das leis. Embora a Constituição Federal de 1988 tenha
retirado atribuições do STF, transferindo-as para o então criado Superior
Tribunal de Justiça ' STJ, buscando aliviar a sua sobrecarga, essa medida foi
insuficiente. O Supremo continuou assumindo a responsabilidade por matérias
outras que não a de controle abstrato da constitucionalidade: está sob sua
competência a jurisdição constitucional de proteção de direitos (apreciação de
mandado de segurança, habeas corpus, habeas datae mandado de injunção) e a
jurisdição constitucional sem controle de constitucionalidade (julgamentos de
altas autoridades da República, conflitos entre estados-membros ou entre estes
e a União, litígios entre a União e Estados estrangeiros).
Segundo Vieira, o aumento do número de processos sugere alguns aspectos
positivos decorrentes do desenho institucional, dentre eles a ampliação dos
agentes legitimados a propor Adins junto ao STF, o que "expandiu o próprio
papel do Supremo enquanto uma arena política na qual diversos grupos disputam a
realização ou o bloqueio da vontade constitucional" (idem:227). Todavia, a esse
poder cabe a última palavra no julgamento de constitucionalidade de
controvérsias políticas, do que decorre a sua enorme responsabilidade nessa
arena.
Não obstante, é possível inferir dessa literatura, que trata do Poder
Judiciário brasileiro a partir da Constituição de 1988, alguns indícios e
tendências no sentido de identificar uma não-judicialização da política no
processo de privatizações. Embora trabalhem com o marco institucional da Carta
de 1988 e com as implicações que este teve na organização do Judiciário, a
literatura nacional raramente preocupou-se em demonstrar como esse Poder vem
interferindo no sistema político, e como vem se dando a sua atuação política,
ainda que afirmem que este passou a ser um importante ator político. Mesmo os
trabalhos que buscaram compreender e contextualizar o fenômeno da
judicialização da política, bem como os contornos que este adquiriu no Brasil
pós-constituinte, não conseguiram comprovar uma efetiva atuação política dos
órgãos judiciais. Ainda assim, tanto Werneck Vianna quanto Castro assinalaram o
vácuo que se criou no processo de judicialização da política, em que o
Judiciário foi ativado como importante ator, com capacidade para mudar o rumo
de políticas públicas, mas que se absteve de julgar o mérito das ações
impetradas.
Enfim, o que me parece claro é que a literatura da ciência política apresentada
conseguiu diagnosticar o novo papel do Judiciário no funcionamento do sistema
político brasileiro pós-88, mas não comprovar que esse novo papel tem
implicado, necessariamente, em uma judicialização da política sempre que há
interpelação judicial em arenas eminentemente políticas. Com o objetivo de
preencher essa lacuna acerca do efetivo alcance da judicialização da política
no Brasil, farei uma análise do processo de privatizações levado a cabo no
último decênio, o qual sofreu alguma interferência do Poder Judiciário. Almejo
comprovar, com base em uma análise empírica, o alcance extremamente limitado
daquilo que alguns estudiosos vêm denominando judicialização da política, ou
melhor, a não-existência de uma completainterferência judicial na política
brasileira, ao menos no caso da política de privatizações.
O PODER JUDICIÁRIO E AS PRIVATIZAÇÕES NA DÉCADA DE 90
Conforme vimos, a literatura que trata da atuação política do Judiciário no
Brasil tentou comprová-la com base no número de processos impetrados ao longo
dos anos 1990, cujo objetivo era o de solucionar questões políticas, antes
resolvidas em outras arenas que não a judicial. Todavia, se estamos tratando de
uma interferência política do Judiciário, torna-se essencial atentarmo-nos para
o alcance que esta obteve, e não apenas para o acionamento deste Poder pelos
atores habilitados a partir da Constituição de 1988 ' isto é, e não apenas para
o que chamei aqui de politização da justiça,algo diverso da judicialização da
política.
Muitas das empresas estatais, dos mais diversos setores, tiveram o seu leilão
interrompido por medidas liminares que impediam, até o momento de sua cassação,
a continuação do processo: entre os anos de 1991 e 1998, foram vendidas 63
empresas controladas pelo governo federal; destas, 53 foram afetadas por ações
judiciais questionando a legalidade ou constitucionalidade da sua venda. A
mídia noticiou manifestações de partidos, sindicatos e trabalhadores em frente
aos locais onde os leilões aconteciam, demonstrando a sua oposição ao programa
do governo. Além disso, jornais faziam constantes referências ao que chamaram
de "enxurrada de ações judiciais", que se espalharam pelo país, com o objetivo
de impedir ou retardar a venda de empresas públicas.
O Poder Judiciário mostrou-se, então, como mais um ator com poder de veto, além
do próprio Congresso, ao processo de privatizações levado a cabo pelo governo
federal. Mas qual foi o verdadeiro papel que o Judiciário assumiu diante deste
processo? Como este Poder afetou ou interferiu nas privatizações? Além de seu
acionamento pelos opositores ao programa, fato já conhecido por sua divulgação
na mídia, qual o resultado obtido pela utilização deste ator com poder de veto?
Esta seção centrar-se-á na análise de dois bancos de dados formados por ações
judiciais impetradas contra o processo de privatizações de empresas públicas
nos anos 1990, com o objetivo de analisar comoo Poder Judiciário brasileiro
interferiu no processo de privatizações brasileiro. Partirei de uma breve
descrição do processo de privatizações para então entrar na questão da
judicialização propriamente dita.
No Brasil, o processo de reforma do Estado teve início no final dos anos 1980.
Segundo Diniz (1995), esse processo se iniciou a partir da percepção do
esgotamento do modelo de intervenção estatal, somado à necessidade de recursos
para reduzir as dívidas do Estado, o que levou à desestatização de certas
atividades econômicas. Atrasado em relação a outros países da América Latina
(cf. Almeida, 1996; Sallum Jr. e Kugelmas, 1993), o Brasil passou, a partir da
década de 1990, por um amplo processo de reforma do Estado, com grande destaque
para a política de privatizações de empresas estatais. Em apenas oito anos
(1991 a 1998), grande parte dessas empresas passou para o controle privado:
foram vendidas 63 empresas controladas pelo governo federal (excluído o setor
de telecomunicações ' Sistema Telebrás) e obtidos cerca de US$ 37,5 bilhões até
fins de 1998 (Almeida, 1999:421).
O marco institucional da inclusão das privatizações no processo de reformas
econômicas iniciadas pelo governo foi o Programa Nacional de Desestatização '
PND, parte da Medida Provisória nº 115 enviada pelo Executivo ao Congresso em
1990 (Pinheiro, 2000). O Executivo, buscando equilibrar as contas públicas e
diminuir a dívida interna, conseguiu aprovar o Programa, através da Lei nº
8.031/90, que definia 68 empresas a serem privatizadas, além de conceder ao
Executivo a prerrogativa de incluir ou excluir empresas do programa,
estabelecer as regras de venda das empresas e transferir ao Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social ' BNDES a administração do programa
(Almeida, 1999). Desde então, mudanças significativas foram introduzidas no
diploma original por medidas provisórias, até sua transformação na Lei nº
9.491/97.
Almeida (idem), analisando o processo de privatizações, afirma que esta foi uma
política levada adiante em duas etapas: em uma primeira, legislativa, na qual
foram definidas as regras do jogo; e em uma segunda, quando se efetuou a venda
das empresas7. Os grupos de interesse, contrários ou partidários das
privatizações, podiam agir em qualquer uma das duas etapas: na primeira,
mediante pressão sobre o Executivo e os congressistas e, na segunda, mediante o
acionamento do Poder Judiciário, na hipótese de ilegalidade e/ou
inconstitucionalidade do processo de privatizações. Todavia, participaram da
primeira fase fundamentalmente os grupos de interesse favoráveis a elas, tais
como associações empresariais. A grande participação dos opositores deu-se no
momento em que o programa foi posto em andamento. Nas palavras da autora,
"A oposição adotou duas estratégias para bloquear os leilões de
privatização: protestos públicos e recursos judiciais. Manifestações
de rua, às vezes violentas, nas imediações do edifício da Bolsa de
Valores onde as vendas se realizavam, ocorreram em quase todos os
leilões. Embora importantes como demonstração de descontentamento,
jamais conseguiram impedir uma privatização. São os recursos
judiciais que representam a principal estratégia para obstruir o
processo mediante o poder de veto do Judiciário. A descentralização
do sistema judicial e os vários instrumentos legais de recursos
outorgados a organizações e aos cidadãos pela Constituição de 1988
alimentaram a convicção de que a ida à Justiça seria um meio
promissor de deter a ação governamental"(idem:437, ênfases minhas).
Partidos, sindicatos e associações de trabalhadores utilizaram-se de diversos
recursos judiciais, disponibilizados pela Constituição, contra as privatizações
de empresas dos diversos setores incluídos no PND, conforme demonstram os dados
abaixo:
Os casos dos setores de mineração e de telefonia são especiais, uma vez que
representam uma alta porcentagem do total de ações (27,2% e 11,8%,
respectivamente) e se referem a uma única empresa em cada categoria: no caso da
mineração, a oposição à venda da Vale do Rio Doce produziu este número9, o
maior dentre as empresas; no caso da telefonia, as ações referiam-se à
Telebrás.
Já no caso do setor siderúrgico, assim como do químico e petroquímico, o que
posso afirmar, a partir da análise dos dados, é que possuem um elevado número
de ações, não porque a oposição à venda de uma empresa em específico tenha
contribuído para isso, mas porque tais setores foram os que apresentaram maior
número de empresas privatizadas no período que vai de 1991 a 1998.
Ao analisarmos a Tabela_2, pode-se verificar que não existe um crescimento do
número com o passar dos anos. O ano de 1992 apresentou 205 ações, seguido de
118 no ano de 1993; porém, já em 1994 este número caiu para 37 e para cinco no
ano seguinte. Somente no ano de 1997 é que houve um grande crescimento do
número de ações, quando tal número chegou em 261, com a privatização da
Companhia Vale do Rio Doce, a qual enfrentou muita resistência ' como mostra a
Tabela_2.
Outro dado interessante a ser observado é o número de ações extintas em
comparação ao número total de ações impetradas. De 1991 até 1994, o número de
processos extintos manteve-se elevado, ultrapassando 50% do total de ações
impetradas. Em seguida, essa porcentagem começa a cair, mas a média geral
continua elevada: dentre as 877 ações impetradas contra empresas já
privatizadas10, 420 já foram extintas, o que representa 47,9% do total.
Embora quase metade das ações tenha sido extinta, não resultando em uma
anulação das vendas em curso, não é possível afirmar que houve uma descrença na
utilização desse instrumento como forma de se obter algum resultado contra as
privatizações, uma vez que o número de ações não decresceu ao longo do tempo.
Embora as privatizações não tenham sido barradas, elas continuavam a ser
retardadas. Por outro lado, também não se pode afirmar que tenha havido uma
crença da sociedade civil sobre a eficácia na utilização do Judiciário como
forma de alterar uma decisão política, ou que tenha passado a se utilizar mais
desse recurso ao longo dos anos das privatizações.
O que se pode supor, a partir da análise dos dados da tabela, é que o número de
ações impetradas no ano varia conforme a projeção nacional da empresa: se for
uma empresa que, de certa forma, tem reconhecimento público e relevância
econômica considerável nacionalmente ' casos da Vale do Rio Doce e da Telebrás
' o número de ações é expressivamente maior em relação aos demais. Em ambas as
privatizações, a quantidade de processos impetrados com o objetivo de barrar ou
retardar a venda das empresas foi muito elevado: enquanto a média de ações por
empresa se encontra em 20,9, estas empresas apresentaram, respectivamente, 256
e 111 ações.
Os dados analisados até aqui referem-se ao número de ações impetradas, e não ao
resultado obtido por essas ações. Para compreender o resultado, seria
necessário pesquisar ação por ação. Todavia, como essas ações foram impetradas
nas mais diversas varas judiciais do país, e ainda se encontram espalhadas, não
tive acesso a elas. As únicas cujo resultado foi possível consultar foram
aquelas que já chegaram ao STF e ao STJ, uma vez que tais órgãos disponibilizam
o resultado das ações que neles se encontram. Assim, tive acesso a 27 ações que
já estão no STF e a outras 26 ações que se encontram no STJ.
Do total de ações que estão no STF (27) até o momento em que os dados foram
levantados para este trabalho, onze delas ainda não haviam sido extintas, com
baixa definitiva ao arquivo, correspondendo a 40% das ações. Porém, destes 40%,
três ações tiveram negado o seu provimento, o que significa que elas ainda não
foram arquivadas, mas em breve o serão. Somadas a estas, outras quatro sofreram
desistência por parte do requerente da ação, o que significa que também serão
extintas. Portanto, das onze que ainda não foram arquivadas, sete já estão em
vias de ser, correspondendo a 63% das ainda não arquivadas e 26% do total das
ações (das 27), o que significa que apenas 15% deste total são ações que
realmente ainda estão em andamento, fato que comprova a idéia de que o
Judiciário, apesar de ter sido ativado pela sociedade civil e por partidos de
oposição, ainda não conseguiu barrar um processo de privatização. Com relação
às 26 ações que se encontram no STJ, têm-se apenas três ações que ainda não
foram arquivadas ' 11% das ações impetradas ' enquanto todo o restante já foi
arquivado. Em resumo, das 53 ações que se encontram no STF e no STJ, apenas
sete (13,2%) ainda estão em andamento; todo o restante (86,8%) já foi arquivado
' ou está em vias de ser ' e não conseguiu impedir a desestatização das
empresas que foram a leilão.
Enfim, embora os leilões de privatização tenham sido interrompidos ou
retardados em função de diversos tipos de recursos que foram impetrados nas
varas judiciais de todo o país, nenhuma venda foi anulada por sentença
judicial. Ainda citando Almeida (1999:438-439), "a descentralização do
Judiciário e a falta de coerência entre os diversos tribunais regionais
transformaram a privatização em uma batalha judicial. Ainda assim, a
convergência entre a política do Executivo e a interpretação da Constituição
dada pelo Supremo permitiu a continuidade do programa [de privatizações]".
Além das ações que formam o banco de dados fornecido pelo BNDES, analisei ainda
mais 39 ações diretas de inconstitucionalidade (Adins) referentes às
privatizações que se encontram no banco de dados do STF11, desde 1988 até 2002.
Em todas estas Adins foi apresentado pedido de medida liminar, e foram
impetradas principalmente por partidos políticos e por governadores, com o
objetivo de barrar o processo de venda de algumas empresas estatais ou de se
opor a algumas das normas estipuladas ao processo de privatização ou de
concessão de serviços públicos. Como todas as Adins tratam do tema da
privatização, não há sentido em classificá-las aqui de acordo com a classe
temática do dispositivo legal questionado. Há então quatro maneiras de olhar
para tais ações: a) de acordo com o tipo de requerente da ação (seu autor); b)
com o requerido da ação; c) com o resultado obtido pelo pedido de liminar; d)
com o resultado do mérito da ação. É a partir dessas análises que entrarei no
conceito de ciclo de judicialização.
Observando os requerentes de ações, vê-se claramente o principal opositor ao
processo de privatizações que esteve em curso nos anos 1990: os partidos de
esquerda12, que perceberam o Judiciário como um importante ator capaz de mudar
o rumo das reformas em curso: 61,5% das ações impetradas tiveram os partidos
enquanto requerentes, o que corrobora a tese de Tate e Vallinder (1995) de que
o Judiciário serve como um recurso das minorias contra medidas adotadas pela
maioria.
Em segundo lugar, encontram-se as Associações de Trabalhadores, cujas ações
questionavam a inclusão de empresas nos programas estaduais ou nacional de
privatização, seguidas pela OAB, pelos governadores e pelos Legislativos
estaduais. As três Adins de governadores apresentavam como requerido não o
governo federal ou o próprio PND, mas sim as suas Assembléias Estaduais, e
opunham-se às leis estaduais que estipulavam regras para as privatizações
estabelecidas nos Programas Estaduais de Desestatização.
Esses dados demonstram que o principal "requerido" das Adins contra as
privatizações foi o Executivo Federal (presidente da República), uma vez que
são de sua iniciativa as medidas que deram origem e estruturaram a política de
privatizações. Se somarmos a essas as Adins cujos requeridos são o presidente e
o Congresso Nacional, obteremos um total de 26 ações, o que corresponde a 66,7%
das Adins.
Quanto aos governos estaduais, foram apresentadas dez Adins cujos requerentes
eram as assembléias legislativas dos estados e seus governadores, representando
25,6% do total de ações. Se analisarmos o dispositivo legal questionado por
essas ações diretas de inconstitucionalidade, verificaremos que todas essas dez
ações referem-se às regras para as privatizações estabelecidas pela
Constituição Estadual, bem como à própria lei que estabelece o Programa
Estadual de Desestatização ' PED.
Observando apenas o resultado do pedido de liminar, percebe-se que apenas 4%
dos pedidos foram deferidos, no todo ou em parte, e outros 3% ainda aguardavam
julgamento à época do levantamento. Todo o restante (82,1%) teve o pedido de
liminar prejudicado ou indeferido, ou ainda teve seu teor "não conhecido", o
que significa que a medida cautelar teve seu seguimento prejudicado.
Pode-se simplificar a Tabela_5 agregando as ações cujas liminares já foram
julgadas, ou seja, foram indeferidas, deferidas ou deferidas em parte; as ações
cujas liminares não foram julgadas, mas já foram extintas, que são aquelas que
foram prejudicadas ou não reconhecidas; e as Adins com liminares aguardando
julgamento.
Das dezenove Adins que já foram julgadas, apenas quatro (10,2%) foram deferidas
ou deferidas em parte, e as outras quinze foram indeferidas. Assim, das 39
liminares solicitadas, 32 (82,1%) não foram concedidas, ou seja, não
conseguiram suspender a inconstitucionalidade que estava sendo sugerida. Este
grande número de liminares cassadas ou negadas demonstra que, embora algumas
poucas ações tenham conseguido retardar, ainda que por um curto espaço de
tempo, a venda de algumas empresas estatais, elas não foram eficazes na tarefa
de impedir o curso das privatizações.
Embora as empresas estatais já tenham sido privatizadas, os dados apresentados
demonstram que 30,8% das Adins ainda aguardavam o julgamento de seus méritos à
época do levantamento, o que significa que não conseguiram, quando foram
ajuizadas, alterar o curso das reformas políticas que estavam em jogo. Os
outros 69,2% são processos encerrados por terem sido considerados
improcedentes, terem o mérito prejudicado ou "não conhecido", terem seu
seguimento negado ou ainda serem extintos. Analisando o julgamento do mérito
das Adins, temos o Gráfico_2.
Portanto, 26 (66,7%) ações não tiveram seu mérito julgado, mas já foram
extintas, ou por terem o mérito prejudicado ou não conhecido, ou por terem seu
seguimento negado. A única ação cujo mérito foi julgado foi considerada
improcedente.
É importante salientar que nenhuma ação teve o mérito julgado procedente. Assim
sendo, o fato de a metade das ações ainda não ter tido o seu mérito julgado
permite considerar duas visões alternativas acerca do problema: (1) ou podemos
pensar que, mesmo que as empresas tenham sido privatizadas, as ações ainda não
foram julgadas (e muito provavelmente não o serão, uma vez que poderá ser
declarada a perda do objeto da ação, fazendo com que ela seja extinta), ou
seja, não houve uma interferência efetiva do Judiciário na política de
privatizações; (2) ou ainda podemos pensar que metade das ações ainda não foi
julgada e, quando o for, poderá mudar o rumo das reformas e, portanto, ainda
não se pode dizer que foram ineficientes em alcançar o objetivo de brecar as
privatizações ' dado que ainda não tiveram seu mérito avaliado. Suponhamos
então que algumas dessas ações tenham uma sentença favorável, confirmando que o
PND ou algum processo de venda tenha sido inconstitucional. Será que isto
implicará em uma reversão da privatização já concretizada, ou seja, em uma
invalidação do contrato de venda e no conseqüente retorno da empresa para mãos
estatais, em função da "inconstitucionalidade" do processo? Isto é, que algum
juiz decidirá a favor do requerente da ação, e, portanto, pela
inconstitucionalidade do processo de privatização, revertendo a venda e
"reestatizando" uma empresa que já está sob domínio privado? Parece-me pouco
provável tal medida ser tomada por qualquer juiz.
De qualquer ótica que se olhe para essa questão, o que se vê é sempre o mesmo
quadro: as ações impetradas provocaram uma politização da justiça, mas não
conseguiram barrar a política adotada pelo governo e não foram instrumentos
eficientes para alterar o rumo do quadro vigente no momento, qual seja, o de um
processo de privatizações em curso, implementado pelo governo como parte de uma
política mais ampla de reforma do Estado brasileiro. O único resultado obtido
foi o retardamentodo processo, mas não o seu cancelamento em função das ações
impetradas.
Retomando então o conceito de ciclo de judicialização, que implica,
primeiramente, na politização da justiça (acionamento do Judiciário), passando
pelo julgamento do pedido de liminar para, enfim, chegar no julgamento do
mérito da ação direta de inconstitucionalidade ' na judicialização da política
propriamente dita, analisei as Adins apresentadas. O Gráfico_3 indica em que
medida cada uma das fases do ciclo de judicialização é efetivada.
Como indica o gráfico, apenas uma única das 39 ações passou pelas três fases, e
as outras 38 Adins (97,5%) ou ainda estão aguardando julgamento do mérito, ou
tiveram seu mérito prejudicado, não conhecido, ou negado o seguimento ' isto é,
não julgado. Dessa forma, mesmo o Judiciário tendo sido acionado enquanto
importante ator institucional com poder de veto ao processo de privatizações,
ele não impediu a continuidade deste programa, reforçando o impulso já dado
pela maioria parlamentar, que aprovava as medidas do Executivo, para o sucesso
da reforma liberalizante. É o que se pode verificar na análise das ações
impetradas no decorrer das privatizações, que não conseguiram impedir nenhum
leilão de venda, embora todos os setores de atividade econômica com empresas
privatizadas tenham apresentado ações contra os leilões.
Se, como afirmei na definição de judicialização com que estou trabalhando, o
juiz acha que pode e deve intervir no rumo das políticas, devo considerar
também se o juiz julgou as ações contrárias às políticas governamentais em
curso. A resposta que encontrei, pela análise das três fases do ciclo de
judicialização, é negativa. Apenas uma ação teve seu mérito julgado, e ainda
assim foi considerada improcedente, não sendo reconhecida a
inconstitucionalidade sugerida pela Adin. Das outras 38 Adins, doze ainda estão
aguardando o julgamento e as 26 restantes já foram extintas sem mesmo terem o
mérito analisado, ou seja, tiveram seu mérito prejudicado, não conhecido ou
negado o seguimento.
Uma vez que não estou admitindo judicialização da política apenas como um
fenômeno resultante de um grande número de ações impetradas na justiça, sendo
este aqui chamado de politização da justiça, independente do resultado que elas
venham a produzir, então pode-se afirmar que o Poder Judiciário não conseguiu
reverter, no caso das privatizações, o rumo de políticas públicas
governamentais ' o que vai no sentido do que afirmou Castro (1997), ou seja, de
que as decisões do Supremo Tribunal Federal, ao não decidirem sobre o mérito da
ação, acabam por favorecer o Executivo, em detrimento da outra parte do
processo.
Os dados aqui apresentados corroboram a idéia de que é preciso olhar com mais
cautela para o que a literatura nacional vem chamando de judicialização da
política.A análise do caso das privatizações mostra que o Judiciário não
interveio na arena política e, portanto, não se pode dizer que ele vem
produzindo no Brasil a judicialização da política somente em função de números
de ações impetradas que têm por objeto políticas públicas. O elevado número de
ações pode ser apenas uma expressão do novo formato institucional adotado por
este Poder a partir de 1988, que favorece a politização da justiça, mas não
necessariamente representa a judicialização da política.
CONCLUSÃO
O presente trabalho teve por objetivo compreender a influência do Poder
Judiciário brasileiro no período pós-Constituição Federal de 1988 sobre a
agenda de reformas liberalizantes em curso no país, especialmente a política de
privatizações de empresas estatais iniciadas pelo governo Collor. Buscou-se
entender qual o verdadeiro peso do Judiciário sobre as políticas governamentais
e de que maneira a crescente interferência deste Poder, no âmbito da política,
vem se processando no Brasil.
Constatei que aquilo que a literatura vem chamando de judicialização da
política é um processo muito mais complexo do que vem sendo apresentado, e
envolve não apenas uma nova comunidade de intérpretes que impetram no
Judiciário diversas ações com o intuito de buscar soluções judiciais para
conflitos políticos, mas também um grupo de atores essencial para a obtenção de
resultados deste processo ' os magistrados, que no contexto da nova
Constituição de 1988 traçaram os contornos assumidos pela inserção do
Judiciário na arena política no país.
Partindo do conceito de ciclo de judicialização, procurei confirmar a hipótese
de que não se pode falar em judicialização da política sem uma análise acurada
do resultado efetivo obtido pelas ações impetradas no rumo das políticas
públicas que se pretende alterar através da utilização do Poder Judiciário.
Nesse sentido, analisei os dados obtidos, em um total de 842 ações, com ênfase
no acionamento do Poder Judiciário por associações de classe, sindicatos e
partidos políticos contra a política de privatizações. Somadas a essas ações,
considerei ainda outras 39 Adins, impetradas entre 1988 e 2002, relativas ao
programa de privatizações. Esses dados demonstraram que os juízes têm se
eximido de adotar uma postura política ativa e de promover uma interferência
judicial em âmbitos eminentemente políticos, o que pode ser verificado pelo
resultado das ações impetradas: nenhuma das ações conseguiu barrar a venda de
uma empresa estatal.
Das 39 Adins que foram impetradas, questionando alguma etapa ou procedimento da
privatização de empresas estatais, 19 ações (48,7%) tiveram o pedido de liminar
apreciado, mas quando se observa o resultado do mérito, tem-se que apenas uma
ação (2,5% do total) foi julgada, e outras 26 já foram extintas sem o
julgamento do mérito, sendo que nenhuma conseguiu reverter o processo de
desestatização.
Com isso, pode-se afirmar que o acionamento do Poder Judiciário por partidos,
entidades de classe e associações de trabalhadores, não tendo conseguido
impedir a venda das empresas estatais incluídas no PND, não perfez os
resultados políticos esperados por meio do acionamento do Judiciário e, dessa
forma, não reproduziu no país o fenômeno da judicialização da política.
Todavia, uma questão pode ser colocada: era esta a intenção dos requerentes de
ações? Ou seja, eles queriam realmente bloquear e impedir o processo de
desestatização ou apenas retardá-lo, aumentando, assim, os custos do processo
e, também, a sua própria visibilidade junto à opinião pública? Se o objetivo
era o de elevar os custos do processo e, desta maneira, dificultá-lo, a
estratégia era seguramente apropriada. Apenas a politização da justiça
conseguiu produzir esse resultado, embora a judicialização da política não
tenha sido alcançada.
Em resumo, a utilização do Judiciário não impediu, mas retardou a ação do
governo no caso das privatizações, além de levá-lo a mudar as suas estratégias
de ação face à avalanche de processos judiciais e de pedidos de liminar. Neste
sentido, o acionamento do Judiciário refletiu-se no processo de privatizações.
Contudo, uma vez que estou trabalhando com um conceito de judicialização da
política que implica em uma participação ativa dos magistrados no rumo dos
assuntos definidos na esfera da política, julgando as ações que chegavam ao
Judiciário, então é possível afirmar que este Poder, embora tenha sido chamado
a se pronunciar sobre questões políticas, não judicializou tais questões, pois
não julgou o mérito de tais ações. Ao fim e ao cabo, uma vez que a venda das
empresas já se concretizou e o Judiciário não a impediu, fica realmente difícil
imaginar que o processo será revertido; o poder decisório do Judiciário e sua
influência sobre a cena política são substancialmente afetados a partir do
momento que os novos controladores das empresas já "entregaram o cheque" e
começaram a exercer o seu poder. A partir de então, pouco se pode fazer, além
de esperar que as ações se extingam por perda de objeto.
NOTAS
1. Note-se que o que está em questão não é o fato de a ação ter sido procedente
ou improcedente, mas sim se ela foi ou não julgada.
2. Como colocou Werneck Vianna et alii(1999:119) "o papel do STF como guardião
da Constituição não se firma apenas quando reconhece a demanda de um intérprete
em favor da inconstitucionalidade de um diploma legal, mas também quando a
nega".
3. Uma revisão mais detalhada acerca da literatura já foi realizada por mim e
por Ernani Carvalho, em um trabalho apresentado no XXVI Encontro Anual da
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais ' ANPOCS
(Oliveira e Carvalho, 2002), no qual fazemos uma distinção entre a abordagem da
sociologia do direito e da ciência política. Para a análise aqui proposta,
centrar-me-ei na da ciência política, em especial aquela específica do caso
brasileiro.
4. Em Os Federalistas, Hamilton, Madison e Jay afirmam: "Não se pode dar nenhum
peso à afirmação de que os tribunais podem, a pretexto de uma
incompatibilidade, substituir as intenções constitucionais do legislativo por
seus próprios desejos. [...] Os tribunais devem especificar o sentido da lei; e
caso se disponham a exercer a vontade em vez do julgamento,isso levaria
igualmente à substituição do desejo do corpo legislativo pelo seu próprio. Se
esta observação provasse alguma coisa, seria de que não deve haver nenhum juiz
além do próprio legislativo" (1993:482, ênfases minhas).
5. De acordo com Vieira (2002),o Brasil foi um dos primeiros países a adotar o
sistema do judicial review, na Constituição de 1891, em que já estava presente
o poder do Judiciário controlar atos normativos infraconstitucionais.
6. Ação Direta de Inconstitucionalidade ' Adin é um instrumento jurídico que
tem por finalidade questionar a constitucionalidade de leis ou atos normativos.
Podem propor Adin, a partir da Constituição de 1988: o presidente da República;
as Mesas do Senado Federal, da Câmara dos Deputados, das Assembléias
Legislativas; os Governadores de Estado; o Procurador Geral da República; o
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; os partidos políticos com
representação no Congresso Nacional e confederações sindicais ou entidades de
classe de âmbito nacional (art. 103).
7. Estes dois autores foram trabalhados por mim e por Carvalho (2002) (cf. nota
nº 3).
8. A autora enfatiza que "[...] os dois processos coincidiram parcialmente no
tempo, uma vez que a definição das regras continuou a se processar mesmo depois
de iniciadas as vendas. Apesar da coexistência, transcorreram em espaços
políticos e institucionais diferentes, caracterizados por diferentes estruturas
de pontos de veto, bem como por diferentes atores com poder de veto" (Almeida,
1999:434).
9. Os dados brutos sobre os processos referentes às privatizações foram
fornecidos à autora pelo Departamento de Contencioso do BNDES.
10. Embora a Caraíba esteja entre as empresas privatizadas no setor, ela não
sofreu nenhuma ação judicial contra a sua privatização.
11. Lembrando que esta tabela, por analisar as empresas privatizadas em cada
ano, exclui as ações contra empresas que ainda não haviam sido privatizadas,
bem como as ações contra o próprio Programa Nacional de Desestatização.
12. Estes dados a pesquisadora buscou no site do STF na Internet
(www.stf.gov.br).
13. De 39 Adins, 24 foram impetradas por partidos políticos, todos eles de
esquerda.